Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1504/18.4T8PVZ.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO
FILHO NASCIDO FORA DO CASAMENTO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA
DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
SUMÁRIO (elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC):

I. A interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento.

II. A hermenêutica dos testamentos é fundamentalmente subjectivista, mas com um certo ingrediente objectivista, consequência da natureza formal do negócio a interpretar.

III. Na interpretação do testamento não pode deixar de se ter em conta o contexto à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e religiosos), em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento.

IV. Porém, a interpretação da vontade do testador tem um limite formal intransponível: a correspondência mínima com o contexto. Ou seja, se a intenção testatória deve ser procurada por todos os meios possíveis, ainda que exteriores ao testamento, tal intenção só poderá ter-se por decisiva e relevante se de algum modo se reflectir, transparecer ou traduzir nos termos do testamento.

V. A lei aplicável ao conteúdo do testamento é a vigente ao tempo da abertura da sucessão (data da constituição da situação jurídica sucessória). Pelo que, tendo a testadora falecido em 1948, o regime jurídico a aplicar será o do Código Civil de 1867 (Código de Seabra - ut artº 1761º), ainda que o momento da vocação sucessória ocorra em data posterior à morte do testador e já após a entrada em vigor do actual Código Civil.

VI. Com efeito, o momento da abertura da sucessão, coincidente com o momento da morte do de cuius, da vocação sucessória e da retroacção da aceitação e partilha sucessória, tem uma importância capital em matéria de aplicação das leis no tempo. É pela lei vigente nesse momento que se definem os efeitos sucessórios (cfr. artº 12º, nºs 1 e 2, Iª parte, do CCiv) decorrentes da morte do respectivo autor e das consequentes abertura e vocação sucessória e que são resolvidas as questões jurídicas que se conexionam directamente com o conteúdo de tais efeitos.

VII. A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da igualdade (desde a sua versão originária), surgindo a não discriminação – designadamente, entre filhos legítimos e ilegítimos – como princípio fundamental do Estado de direito democrático, princípio que se impõe no plano sucessório.

VIII. A ordem material instituída pela Constituição de 1976 conforma e limita todas as normas ou interpretações normativas aplicadas e aplicáveis a partir da sua entrada em vigor, independentemente do seu momento genético ou da sua fonte, não podendo um órgão de soberania (ou qualquer outra instituição do Estado) aplicar, no momento presente, uma norma pré-constitucional, não vigente, mas designada como lei aplicável pelos preceitos normativos actuais, quando essa norma seja materialmente contrária a princípios fundamentais da ordem jurídico-constitucional instituída pela CRP – pelo menos quanto a um conjunto básico de normas constitucionais, reconduzível aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

IX. Nessa senda, é inconstitucional a interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 12.°, n.°s 1 e 2, e 2230.°, n.° 2, do Código Civil, nos termos da qual se considere válida, e não contrária à lei ou à ordem pública, uma disposição testamentária, constante de testamento elaborado e aberto antes de 1976, que elege como critério de determinação dos legatários a sua condição de filhos legítimos ou ilegítimos, em virtude de a lei aplicável ao referido testamento, determinada à luz das normas cíveis vigentes, permitir essa distinção, por violação dos artigos 13.°, n.°s 1 e 2, e 36.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível

I – RELATÓRIO

Vieira & Filhos Lda intentou acção sob a forma de processo comum contra AA1 e AA2, peticionando que seja declarado que a vontade de AA3 expressa no testamento realizado em Fevereiro de 1943 foi a de deixar a propriedade dos bens identificados aos filhos legítimos dos seu sobrinhos AA4 e AA5, pelo que o R., sendo filho daquele, não é seu filho legítimo e, como tal, não foi contemplado como legatário naquele testamento.

Peticiona ainda que seja declarada a nulidade da escritura pública de habilitação de legatário ou de outras escrituras que tenham por objecto os bens constantes do testamento, sendo ordenado o cancelamento de qualquer registo que tenha sido efectuado com base naquela escritura de habilitação ou outras escrituras outorgadas pelo R. tendo por objecto aqueles bens.

Para fundamentar a sua pretensão, alega que o R., sendo filho de AA4, nasceu quando aquele tinha o estado civil de solteiro e que, tendo aquele falecido nesse mesmo estado civil, o R. não pode ser considerado filho legítimo daquele.

Não tendo AA5 descendentes, tal significa que a propriedade dos bens imóveis que AA3 legou aos filhos legítimos daqueles dois sobrinhos não foi transferida para o R., mas para as pessoas que a testadora indicou para o caso de os mesmos não terem filhos legítimos.

Alega ainda que celebrou com estes legatários contratos-promessa, justificando dessa forma o seu interesse nesta acção, e que o R., com uma errada interpretação do testamento, se arroga proprietário dos bens, tendo logrado efectuar a seu favor o registo da aquisição de pelo menos dois imóveis.

Devidamente citados, vieram os Rs. alegar que o R. é o único filho de AA4, assim tendo sido reconhecido já após a sua morte e que as pessoas que celebraram com a A. os alegados negócios tendo em vista a transferência da propriedade dos bens imóveis legados não eram titulares de qualquer direito que pudessem validamente transmitir-lhe, no que aos bens identificados no testamento diz respeito.

Alegam que, à data da morte do usufrutuário, seu pai, a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos é proibida, não podendo ser invocada qualquer forma de discriminação que os distinga. Considerando que a lei aplicável é a lei em vigor à data da morte do pai usufrutuário, tem de considerar-se a condição imposta - de o filho ser legítimo - como não escrita.

Alegam ainda que não é, sequer, certa que a referência a filho legítimo se tenha por excludente, em relação a si filho de pai solteiro, tanto mais que ora fala em filhos, ora em descendentes, ora ainda em filhos legítimos.

Concluíram dizendo que a testadora não quis excluir os filhos nascidos fora de um casamento e, mesmo que tivesse sido essa a sua intenção, tal exclusão seria ilegal e, por isso, não escrita.

Excepcionaram a ilegitimidade da A., por não ser titular de qualquer direito sobre os imóveis, e da R. mulher pois que contra ela não foi deduzido qualquer pedido.

Deduziram ainda pedido reconvencional, pugnando pela sua interpretação do testamento, e pedindo:

I -

a) seja declarado que o R. é o único filho de AA4;

b) este AA4 foi o último dos usufrutuários de AA3 a falecer;

c) o R. era o único filho que existia desses mesmos usufrutuários;

d) seja declarado que ao chamamento sucessório dos concepturos que fossem vivos em 16/02/2010 se aplica a lei em vigor a essa mesma data;

e) seja declarado que a condição imposta no testamento de o concepturo nomeado ser filho legítimo é ilegal e inconstitucional;

f) seja declarado que o R. é o único legatário da propriedade dos bens em causa, por via do testamento outorgado por AA3;

II - seja declarada a nulidade das escrituras de justificação notarial que afirmam terem sido realizadas pela A. e terceiros, declarando-se que os intervenientes de tais escrituras não adquiriram a propriedade dos bens;

III - declarado ainda que pelos contratos de compra e venda e de permuta celebrados após não foi validamente transmitida a propriedade a favor das sociedades que neles intervêm como adquirentes, os quais fazem parte do legado instituído a favor do R. reconvinte.

Requereram ainda a intervenção principal provocada, no âmbito do pedido reconvencional deduzido, de AA6, Socitrofa-Imobiliária SA, Imobiliária Teixeira & Filhos SA, herdeiros de AA5 (identificando-os), AA7 e marido AA8, AA9 e AA10.

Foi apresentada réplica, defendendo a A. que a reconvenção não deve ser admitida, mantendo, quanto ao mais, a sua versão da petição inicial.

Em 10/01/2019 foi proferido despacho a admitir a intervenção principal provocada, do lado passivo da reconvenção, ou seja, como terceiros reconvindos, de AA7 e marido AA8 e dos herdeiros de AA11, isto é, os identificados AA9 e AA12 (e não AA10) AA10, tendo sido questionada a existência de outros herdeiros daquela.

No mais, foi o pedido de intervenção rejeitado.

Devidamente citados os terceiros, AA12 veio aderir aos articulados de petição inicial e réplica nos termos de fls. 233, o mesmo acontecendo com AA9 a fls. 240 e AA7 e marido a fls. 249.

Constando dos autos que a referida AA11 teria outro filho, e confirmada a sua existência (fls. 259), foram os RR reconvintes convidados a fazer intervir tal herdeiro na qualidade de reconvindo, o que estes fizeram por requerimento de fls. 262, tendo a sua intervenção sido admitida por despacho de 14/05/2019.

Devidamente citado, este reconvindo veio apresentar articulado nos termos de fls. 277, aderindo aos fundamentos da petição e réplica.

Foi realizada audiência prévia e, nesta, foi proferido despacho saneador que julgou a instância válida e regular, não admitindo o pedido reconvencional deduzido nos pontos II e III, mas apenas o que foi deduzido no ponto I, julgando improcedentes as excepções de ilegitimidade que foram invocadas pelos Rs., declarando as partes como legítimas.

Foi realizada a audiência de julgamento, tendo as partes prescindido da prova testemunhal e das declarações de parte que haviam sido indicadas e admitidas, vindo a final a ser proferida a seguinte

“Decisão:

Pelo exposto, o Tribunal julga:

1 - a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) declara que, considerando os testamentos realizados por AA3 em 03/02/1943 e 12/08/1943 e os termos em que esta deixou definida a disposição do direito de propriedade dos bens legados em usufruto em benefício dos seus sobrinhos AA4 e AA5, o R. AA1 não é o legatário dos bens identificados nestes autos e nesses testamentos.

b) determina o cancelamento do registo da aquisição efectuada pelo R., em seu benefício, sobre os seguintes bens:

- em 30/11/2017, do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, sito na Rua 1 da União de Freguesia de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, Santo Tirso, descrito na CRP sob o nº..58 e inscrito na matriz predial sob o art. 6237;

– em 23/04/2018, do prédio misto sito no lugar de Friães, composto de casa de rés-do-chão e terreno, da União de Freguesias de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, Santo Tirso, descrito na CRP sob o nº..40 e inscrito na matriz predial sob o art.3995.

2 - a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:

a) declara que o R. AA1 é o único filho de AA4 que, por testamento de AA3, falecida em D/M/1948, havia sido instituído, juntamente com a sua irmã, AA5 legatária do usufruto dos imóveis referidos no testamento, tendo legado a propriedade aos filhos legítimos dos usufrutuários ou descendentes destes que existam à data da morte do último dos usufrutuários, ou subsidiariamente, caso nesse momento não existissem, a outras pessoas ali referidas;

b) declara que o pai do R. foi o último daqueles usufrutuários a falecer e que AA5 não deixou filhos;

c) declara que à data da morte do pai do R., este era o seu único filho.”.


**


Inconformado com esta sentença, vem o réu e reconvinte AA1 interpor recurso revista “da parte desfavorável da mesma, per saltum, diretamente para o S.T.J., nos termos do art. 678 nº 1 do CPC, visto se suscitarem apenas questões de direito”.

Apresenta alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

1. Está em causa na presente ação a interpretação e efeitos de uma deixa testamentária, constante de um testamento cerrado outorgado em 1943 por uma senhora que faleceu em 1948, sem herdeiros legitimários, redigido por um terceiro a pedido da testadora (como dele consta), aprovado e autenticado por notário, deixa essa do seguinte teor: A propriedade dos legados em usufruto aos mesmos AA4 e AA5 (sobrinhos da testadora) deixo-a aos filhos legítimos ou descendentes destes que existirem ao falecimento do último dos usufrutuários, mas se nenhum deles deixar descendentes deixo a propriedade dos prédios às filhas de AA13 de nomes AA14 e AA11,eapropriedadedorestanteaestesmesmose aosfilhos de AA15, para entre todos ser dividida igualmente”.

2. Nenhum dos ditos usufrutuários chegou a casar e os filhos de que ali se fala eram meros concepturos, pois não existiam então, tendo ambos os usufrutuários falecido no estado de solteiros, mas o último a falecer (AA4), já em 2010, foi o único que deixou um filho, que é o réu e ora recorrente (obviamente não nascido de casamento do pai, que nunca casou).

3. Na ação a autora peticiona que, por um lado, seja declarado que a vontade da testadora, expressa naquela disposição, foi “deixar a propriedade daqueles bens a favor dos “filhos legítimos” de seus sobrinhos”- os ditos usufrutuários-, e que “não sendo o réu, filho “legítimo”(…), não foi contemplado por aquela disposição testamentária”;

4. No despacho saneador, o tribunal da 1ª instância, depois de elencar os “factos assentes”, que considera provados, elaborou como único “tema de prova” o seguinte: ”saber se a testadora, ao formular o legado nos termos em que o formulou (atrás transcritos) quis excluir os eventuais filhos ilegítimos dos usufrutuários”;

5. Tal resultou, como é óbvio, da necessidade de interpretar o testamento, procurando apurar a vontade real da testadora, como preceitua o art. 2187 do C.C., dado que, estando controvertida qual fosse aquela vontade, nada havia que permitisse até então demonstrar essa factualidade, nos documentos até então produzidos como prova, ao contrário do que acontecia com os demais factos relevantes para a decisão, que já se encontravam provados e por isso foram considerados assentes;

6. Efetuada a audiência de julgamento, não foi porém realizada qualquer prova daquele facto, e, por isso, o Tribunal veio evidentemente a considerar essa matéria como não provada, não ficando assim demonstrada qual fosse a vontade da testadora;

7. O presente recurso versa apenas matéria de direito, por se entender que a douta sentença recorrida não aplicou corretamente o direito à matéria de facto apurada, que não está em causa, razão pela qual é interposto diretamente para esse Colendo Tribunal, "per saltum”, nos termos do art. 678 nº 1 do CPC;

8. Com efeito, é manifesto que competia à autora, nos termos do artigo 342 nº. 1 do C.C., o ónus de provar os factos constitutivos do direito que se arroga, ou seja, no caso, que a testadora, ao formular aquela disposição nos termos que constam do testamento, quis excluir da sua liberalidade os eventuais “filhos ilegítimos” dos usufrutuários (nomeadamente o réu, aqui recorrente, que, apesar de ser o único filho de qualquer dos usufrutuários que existia à morte do último destes), por querer beneficiar somente os filhos dos seus sobrinhos que nascessem de um casamento;

9. Porém, nada tendo sido apurado sobre qual fosse a vontade real da testadora ao ser redigida naqueles termos a referida cláusula, é manifesto, perante esse “non liquet”, que a autora não cumpriu o ónus da prova que lhe incumbia, nos termos do nº 1docitadoart.342,e tambémaeventualdúvidasobre taisfactos implicará necessariamente o não cumprimento desse ónus (artigo 414º. do C.P.C.), pelo que os respetivos pedidos terão que improceder;

10. No entanto, e surpreendentemente, a douta sentença recorrida deu um verdadeiro “salto no desconhecido” e, sem qualquer suporte probatório, ao invés de tirar as devidas consequências jurídicas daquela falta de prova, decidiu interpretar aquela cláusula do testamento exclusivamente “à letra”, ao arrepio da decisão da matéria de facto, e apesar de desconhecer a vontade da testadora, por - não obstante ter definido como tema da prova a averiguação dessa vontade, reconhecendo a evidente necessidade de a esclarecer - não ter sido possível provar essa ignorada vontade;

11. Assim, ficcionou que ela quisera de facto beneficiar somente os filhos dos sobrinhos que nascessem do casamento dos pais e excluir os que nascessem fora dele, nomeadamente o réu, ora recorrente;

12. E isso é tanto mais inaceitável quanto é certo que na “Motivação da decisão sobre a matéria de facto não provada”, a Mª. Juiz “a quo” havia escrito: “Tendo sido produzida apenas prova documental, não é possível afirmar-se qual a real vontade da testadora, para além do que consta do próprio testamento

outorgado e cujos termos não sabemos sequer se resultam da sua expressa vontade ou da linguagemde quem o redigiu” - pois efetivamente ele foi redigido por um terceiro e apresentado já escrito para aprovação do notário, que nem sequer o leu, como sucede nos casos dos testamentos cerrados;

13. E é mesmo incompreensível, quando é certo que a própria sentença evidencia e justifica que uma interpretação correta do testamento não se pode limitar a tomar à letra um texto que a testadora não escreveu e do qual se não sabe sequer se as expressões usadas correspondem ao seu pensamento ou apenas à terminologia de quem o redigiu;

14. Por isso, uma interpretação puramente literal, sem qualquer prova complementar, concluindo que a dita cláusula tinha o sentido que correspondia ao texto escrito da mesma, apesar de o Tribunal desconhecer(por, não obstante o ter definido como tema da prova, não ter sido realizada prova que o pudesse esclarecer) qual era a vontade da testadora que o outorgou, equivale a uma interpretação meramente objetivista, que é contrária à interpretação vincadamente subjetivista(apenas temperada pelo caráter formal desse negócio jurídico), que o art. 2187 do CC indiscutivelmente impõe e que a própria sentença, e bem, refere antecedentemente dever ser respeitada;

15. Daí que se imponha concluir que é de todo incoerente e contraditório que o Tribunal “a quo” tivesse vindo, no final, a interpretar aquela cláusula como se realmente traduzisse a vontade da testadora de que ela quisera de facto beneficiar somente os filhos dos sobrinhos que nascessem do casamento dos pais e excluir os que nascessem fora dele, nomeadamente o réu, ora recorrente - o que ignora de todo, pois a prova não permitiu comprová-lo (e tal prova competia à autora fazer);

16. O que é incontroverso no testamento é a vontade da testadora de, à morte do último dos usufrutuários, instituir como beneficiários da propriedade dos bens em causa, em primeiro lugar, os filhos que aqueles viessem a ter e existissem na data em que falecesse o último dos daqueles, mas já não foi possível apurar e não se sabe, qual o sentido com que o testamento se refere a eles como “legítimos”, nomeadamente se quis usar tal expressão para enfatizar que fossem indiscutivelmente verdadeiros filhos, de sangue, ou se no rigoroso sentido que então lhe correspondia juridicamente (de filhos nascidos do casamento).

17. Aliás, facilmente se constata que o testamento usa repetida e indistintamente tanto a expressão “filhos”, e “descendentes” sem adjetivação, assim como “filhos legítimos”, e “descendentes legítimos”, para se referir a realidades semelhantes, o que revela que não era atribuída grande importância àquela qualificação, e muito menos que testadora a quisesse usar com rigor, com o significado preciso de restringir o benefício aos filhos nascidos do casamento e excluí-lo dos demais, para além de ser incompreensível que se referisse identicamente aos filhos das sobrinhas queridas e de outras senhoras, cuja virtude estava acima de qualquer suspeita, admitindo assim que pudessem vir a ter comportamentos impróprios, levando-a por isso a sentir necessidade de restringir o benefício aos filhos delas que fossem “legítimos”;

18. E seria totalmente incoerente que, se a testadora pretendesse salvaguardar que a sua liberalidade não pudesse beneficiar os eventuais filhos ilegítimos dos usufrutuários, não nascidos de casamento, admitisse que pudessem ser beneficiados os eventuais filhos ilegítimos destes, pois institui beneficiários os descendentes (sem adjetivação) que os filhos legítimos dos sobrinhos viessem a ter, se estes tivessem entretanto falecido;

19. E até porque o facto de ser muito generosa e religiosa não justificava, e muito menos impunha, que tivesse tal repulsa pelos eventuais filhos dos seus sobrinhos só porque estes os tivessem em solteiros ou fora do casamento, ao ponto de os discriminar daquela forma, e de qualquer modo, não o fazendo de forma clara e perentória;

20. Do exposto, resulta que a douta sentença recorrida violou a lei substantiva, nomeadamente o artigo 342º. nº 1 do C.C., não aplicando corretamente o direito aos factos provados, desde logo ao não ter tomado em consideração o incumprimento do ónus da prova que incidia sobre a autora, uma vez que, como reconhece expressamente, não foi possível apurar que a vontade da testadora correspondesse ao alegado pela autora e que suportava o seu pedido;

21. Violou ainda o disposto no artigo 2187º. do C.C., ao proceder a uma interpretação da cláusula testamentária em causa meramente objetivista, sem qualquer ligação à ignorada vontade da testadora, fazendo-o com base unicamente no seu teor literal, depois de, contraditoriamente, no julgamento da matéria de facto - cujo único tema de prova consistiu exatamente no apuramento da vontade da testadora-ter concluído que não fora possível apurar essa vontade, tendo por isso considerado não provado que tal vontade tivesse o sentido atribuído pela autora, que correspondia ao teor literal do texto.

Por outro lado, e subsidiariamente,

22. Se porventura se entendesse que a ausência de prova da vontade da testadora não impedia que se considerasse que no testamento a testadora quis de facto beneficiar apenas os então juridicamente designados de “filhos legítimos” (no sentido de nascidos de um casamento dos pais) dos usufrutuários que existissem à data da morte do último, excluindo assim os demais filhos, então juridicamente “ilegítimos” - o que se equaciona apenas por cautela de patrocínio - importa analisar se tal disposição, assim interpretada, deve ou não ser considerada lícita à luz do regime jurídico que lhe seja aplicável;

23. Desde a feitura do testamento até à morte do último dos usufrutuários (2010) - data em que o testamento ocasionaria a atribuição da propriedade dos bens em causa, já que até esta data a propriedade da raiz dos bens não estava determinada - a legislação alterou-se radicalmente, vigorando até 1976 a Constituição de 1933 e o Código Civil de Seabra, que admitiam a distinção entre filhos ”legítimos” e “ilegítimos” (consoante nascessem ou não de um casamento dos pais), e admitiam a discriminação dos segundos, passando em 1976 a vigorar a atual Constituição da República, que estabeleceu a igualdade dos filhos (que, para efeitos sucessórios, veio a ser também consagrada no artigo 1138º. nº 2 do C.C.) e proibiu expressamente a sua discriminação e designação.

24. Assim, quando, em 2010, com a morte do pai do réu – o último a falecer dos sobrinhos da testadora a quem ela deixara o usufruto e, portanto, único momento em que poderia definir-se a propriedade da raiz dos prédios – chegou o momento para concretizar a deixa testamentária em causa, o réu era, simplesmente, filho daquele e o único que existia então, não sendo já lícito designá-lo como “não legítimo”, “ilegítimo” ou qualquer expressão que o definisse de forma discriminatória em relação aos filhos que nascessem de um casamento.

25. Tendo em conta que o seu chamamento sucessório ocorrido nesse momento resultou de um longo processo que se iniciou em 1948, com a abertura da herança, e só terminou então, em 2010, com a morte do último dos usufrutuários, deverá ser considerada competente para apreciar a legalidade da sua vocação sucessória a lei vigente nesta data (2010), de harmonia com o que resulta do entendimento de Baptista Machado, no já clássico “Sobre a aplicação no tempo no novo Código Civil”, em que refere que “...se a situação jurídica já se acha constituída à datada entrada em vigor da Lei Nova - ou porque se produziu o ato ou facto que a faz surgir, quando ela é de constituição instantânea (...) ou porque já se completou o processo constitutivo (quando a sua constituição depende da verificação de vários factos sucessivos, e só se completa com a ocorrência do último)- ela subsistirá depois dessa data, verificando-se assim uma espécie de sobrevivência, sob a Lei Nova, da situação criada ao abrigo da Lei Antiga”, com o que, a contrario (como como ali está implícito), se a situação jurídica não é de constituição instantânea, e se o seu processo constitutivo, embora começado na Lei Antiga, somente se completa na vigência da Lei Nova, é evidente que será esta que se aplica, pois não há nenhuma situação jurídica já constituída sob a Lei Antiga, que tenha que ser respeitada pela Lei Nova;

26. É insofismável que a deixa testamentária feita pela testadora a favor dos “filhos legítimos” que existam à data do último dos usufrutuários configura uma verdadeira deixa sujeita a condição suspensiva, já que quando a testadora nomeia beneficiários da sua disposição os filhos dos usufrutuários que sejam legítimos e que existam à data da morte do último dos usufrutuários está na realidade a subordinar a atribuição desse benefício a um duplo condicionalismo: que se trate de alguém que exista quando falecer o último dos usufrutuários (e, sendo a morte certa, embora se ignore quando ocorrerá, é evidente que não se sabe, quando a testadora faz o testamento, quando tal morte irá ocorrer); e que se trate de alguém que seja filho “legítimo” dos usufrutuários (e também se ignora se nessa data - termo incerto - existirá ou não algum filho dos usufrutuários que seja legítimo), pelo que a atribuição dessa deixa (esse efeito jurídico do testamento) só se produziria se se verificassem aqueles acontecimentos futuros e incertos, tratando-se, óbvia e manifestamente, de condições suspensivas, a cuja dupla verificação ficou subordinada a produção daquele efeito jurídico.

27. Sendo proibida no ano de 2010 a discriminação relativamente aos filhos nascidos fora do casamento - por a lei e os bons costumes decorrentes da evolução ética e social que consagrou a igualdade de direitos de todos os cidadãos, não tolerar a descriminação entre os cidadãos apenas com base em razões de características de raça, orientação sexual, aparência, nascimento dentro ou fora do casamento, ou semelhantes, impedindo que, só por essas razões, possa ser retirada a alguém alguma vantagem atribuída a quem não tenha tal característica (como seria aqui o caso, em que um benefício atribuído genericamente aos filhos de alguém não poderia ser atribuído ao Réu, só porque ele é um filho nascido fora do casamento) - deve a condição em causa, que a impõe, considerar-se manifestamente inidónea, e proibida, nos termos do art. 2230 do C.C..

28. Consequentemente, e conforme dispõe o art. 2230 nº. 1 do mesmo Código, deve tal condição considerar-se não escrita, subsistindo a deixa testamentária sem ela, ou seja, sem que a sua atribuição fique subordinada à condição de o filho ser nascido do casamento dos pais.

29. No caso do recorrente, não tem aplicação a ideia – defendida pelos autores que preconizam que a Lei aplicável à sucessão é a do momento da sua abertura - com base na consideração de que não seria natural que o legislador constitucional pretendesse, aplicando a lei nova aos efeitos já produzidos pela lei do momento da abertura da sucessão, “expropriar” bens e direitos que os parentes legítimos (com base em regras de vocação sucessória então em vigor), houvessem já adquirido de modo definitivo, pois neste caso, como é óbvio, nunca haveria a “possibilidade de alteração de todas as partilhas feitas no passado, em que a questão se colocasse, mesmo que constassem de escrituras ou de inventários, acarretando o desprestígio das instituições jurídicas, intoleráveis situações de incerteza, até com graves repercussões no comércio jurídico”, pois que ,aqui (em que há um processo sucessório com uma dupla vocação, ou uma vocação originária e uma vocação subsequente) só quando se desse a morte do último dos usufrutuários é que se completava o processo constitutivo da situação jurídica de legatário, e não antes, e portanto, só se o último dos usufrutuários tivesse falecido no domínio da lei antiga é que o processo constitutivo se completaria ao abrigo da lei antiga, o que aqui não sucedeu, não ocorrendo pois quaisquer alterações a efeitos da lei anterior em relação aos legatários, que não existiam.

30. Daí que deve o recorrente ser chamado a beneficiar dessa liberalidade, por ser o único filho de um dos usufrutuários, sobrinhos da testadora, que existia na data da morte do último daqueles usufrutuários, ocorrida ao abrigo da nova Lei.

Ainda subsidiariamente,

31. Continuando na mesma hipótese de se vir a entender que o testamento deva ser interpretado no sentido de excluir da instituição de beneficiário da referida deixa os filhos dos usufrutuários, que, existindo à morte do último destes, não preencham a condição de ser provenientes de um casamento dos pais, e de se entender ainda que tal condição não está abrangida pela proibição constante do art. 2230 do CC (apesar de a vocação sucessória apenas se completar em 2010), tal pressuporia que essa norma viesse a ser interpretada de uma forma que violaria claramente a Constituição vigente.

32. Com efeito, consagrando o art. 2º nº1 da Constituição da República Portuguesa, como direito fundamental, o direito à igualdade, bem como, em afloração e consequência desse princípio, o direito à igualdade dos filhos nascidos fora do casamento, e a proibição constitucional da discriminação dos filhos nascidos fora do casamento, imposta pelo nº 4 do art. 36 do mesmo Diploma Fundamental, a interpretação do citado art. 2230 que considerasse válida e eficaz a condição anteriormente referida, a que ficaria subordinada aquela disposição, num caso em que – como no presente-se completa o processo constitutivo da situação jurídica de legatário apenas no ano de 2010, seria claramente inconstitucional.

33. Daí resultaria, em consequência, que fosse validada uma flagrante discriminação desses filhos, motivada exclusivamente por serem nascidos fora do casamento, que o Tribunal, caso a isso se não opusesse o respeito pela ordem constitucional, iria indevidamente possibilitar ao interpretar como lícita aquela condição discriminatória imposta no testamento, que, pelas razões sinteticamente referidas, a ordem constitucional não permite.

34. Assim: ou porque se deve entender que a autora (a quem pertencia o ónus de provar os factos constitutivos do direito que se arroga) não conseguiu provar que a intenção da testadora tivesse sido restringir aquela deixa testamentária apenas aos filhos (das pessoas que nomeia) que tivessem nascido de um casamento, e de excluir aqueles que o não fossem, factos que o Tribunal não conseguiu apurar; ou, subsidiariamente, porque se deva considerar que a vocação sucessória desses filhos deve ser apreciada de harmonia com a lei vigente no momento em que essa condição se verificar (em 2010, à morte do último dos usufrutuários) e nessa data não havia distinção entre filhos nascidos do casamento e fora deles, e era proibida a sua discriminação, do que resultava a ilegalidade dessa condição, por ofensa da lei e dos bons costumes, nos termos do art. 2230 do Código Civil, com a consequência de tal condição se dever considerar não escrita, deixando assim a deixa de estar subordinada a tal condição ilegal; ou quer ainda porque, também subsidiariamente, se deve considerar que a Lei Constitucional, consagrando o direito à igualdade dos filhos nascidos fora do matrimónio, e proibindo a discriminação entre eles com base nesse facto, levaria a que fosse inconstitucional, por violação daqueles princípios, uma interpretação daquele art. 2230 do CC que permitisse a aplicação daquela cláusula e consequentemente admitisse que (em 2010, quando se completa o processo constitutivo da situação jurídica de legatário), unicamente pelo motivo de não ser filho do casamento, o recorrente não fosse beneficiário da liberalidade instituída a favor dos filhos de seu pai, deverá entender-se que o Réu é o beneficiário de tal deixa testamentária.

35. Consequentemente, deve, na procedência do recurso, ser revogada a douta sentença recorrida, e o réu absolvido do pedido subsistente, devendo por outro lado julgar-se procedente o pedido reconvencional do réu, de, como único filho de qualquer dos usufrutuários existente à data da morte do último dos usufrutuários, ser declarado beneficiário da propriedade dos bens identificados na ação, cujo usufruto havia sido legado a seu pai e à irmã deste, AA5.

Pelo exposto, e sobretudo por tudo quanto V. Exas. doutamente suprirão, espera confiadamente

JUSTIÇA!


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A recorrida Vieira & Filhos, Lda., respondeu às alegações, pugnando pela improcedência do recurso, com a manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

Da interpretação do testamento: da vontade real da testadora

• Caso se conclua que a vontade (real) da testadora, ao clausular no testamento – relativamente à propriedade dos legados em usufruto que ali fez aos sobrinhos AA4 e AA5 – que deixa tal propriedade “aos filhos legítimos ou descendentes destes que existirem ao falecimento do último dos usufrutuários, …”1, foi beneficiar apenas os filhos legítimos (os nascidos dentro do casamento), então, há que determinar qual a lei aplicável: se a vigente em 1948, data do falecimento da testadora – vingando, então, o Código de Seabra; se a vigente à data do “falecimento do último dos usufrutuários”, ocorrido em 2010 – vingando, então, o actual Código Civil, ut artº 2230º, nº2).

A concluir-se que a vontade da testadora foi beneficiar apenas os filhos legítimos e que é aplicável a legislação vigente à data da sua morte (1948), então, face às posteriores alterações legislativas relativas à não discriminação entre filhos nascidos fora e dentro do casamento, há que ver da eventual inconstitucionalidade dessa discriminação e se tal proibição (a chamada “inconstitucionalidade superveniente”) se aplica às heranças abertas antes da entrada em vigor da CRP.

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

1 - Está declarado que o R. nasceu em D/M/1948 e este é filho de AA4.

2 - AA4 faleceu em D/M/2010.

3 - A paternidade do R. foi estabelecida em acção judicial intentada após a morte do progenitor, por sentença proferida em D/M/2013.

4 - Por documentos de 03/02/1943 e 12/08/1943, AA16 fez testamentos, cujo teor integral aqui se considera reproduzido e dactilografado a fls. 27 a 37, através dos quais declarou:

deixo aos meus sobrinhos AA4 e AA5 e, em partes iguais (…) o usufruto vitalício de oito décimas partes da já mencionada cota de dez mil escudos nominal que tenho na Fábrica da Fiação e Tecidos de Santo Tirso Ldª, o usufruto de um prédio denominado Cerrado de Friães de Baixo (…) o usufruto da Bouça de São Miguel, conhecida por Bouça da Igreja, em São Miguel do Couto, o usufruto da Bouça de Fontiscos, o usufruto da garagem, casa d´eira e Cortinha pegada, junto da minha casa de habitação…”.

5 - Declarou ainda, em relação à propriedade, dos legados em usufruto aos mesmos sobrinhos AA4 e AA5:

“deixo-a aos filhos legítimos ou descendentes destes que existirem ao falecimento do último dos usufrutuários, mas se nenhum deles deixar descendentes, deixo a propriedade dos prédios às filhas de AA13, de nome AA14 e AA11 e a propriedade do restante a estas e aos filhos de AA15 para entre todos ser dividida igualmente”.

6 - AA16 faleceu em D/M/1948 no estado cível de viúva, sem ascendentes ou descendentes.

7 - AA4 faleceu no estado civil de solteiro, sem outros descendentes, tendo efectuado testamento em que instituiu seu herdeiro AA6.

8 - AA14 e AA11, filhas de AA13, já faleceram.

9 - A AA14 deixou como herdeiros a sua única filha AA17.

10 - A AA11 deixou como herdeiros o marido AA9 e os filhos AA18 e AA12.

11 - AA5 faleceu em D/M/2009, no estado civil de solteira, sem descendentes.

12 - Em 13/11/2017, por escritura de habilitação, o R. habilitou-se como legatário dos seguintes bens imóveis legados por AA3:

- prédio denominado Cerrado de Friães de Baixo que compreende duas pequenas casas, quintal, poço, tanque e lameiro junto denominado Cortinha, a confrontar do nascente com herdeiros de AA19;

- bouça de São Miguel conhecida por bouça da Igreja de São Miguel do Couto; - bouça de Fontiscos;

- usufruto da garagem, casa d´eira e cortinha de baixos, aliás, Cortinha pegada, junto da sua casa de habitação.

13 - O R. registou a aquisição a seu favor dos seguintes imóveis:

1 – em 30/11/2017, do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, sito na Rua 1 da União de Freguesia de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, Santo Tirso, descrito na CRP sob o nº..58 e inscrito na matriz predial sob o art. 6237;

2 – em 23/04/2018, do prédio misto sito no lugar de Friães, composto de casa de rés-do-chão e terreno, da União de Freguesias de Santo Tirso, Couto (Santa Cristina e São Miguel) e Burgães, Santo Tirso, descrito na CRP sob o nº..40 e inscrito na matriz predial sob o art.3995.

14 - O prédio referido em 13-1 é o denominado “garagem, casa d´eira…” no testamento.

15 - O prédio referido em 13-2 é o denominado “Cerrado de Friães de Baixo” no testamento.

16 - Datado de 17/01/2005, foi elaborado o documento junto aos autos a fls. 44, cujo teor aqui se considera reproduzido, em que figuram como outorgantes A. e os referidos AA4, AA5, AA7, AA8, AA11 e AA9.

Não se provou:

- qual a real vontade da testadora ao referir-se a filhos legítimos dos usufrutuários no testamento celebrado.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Analisemos as questões suscitadas na revista.

DA INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO – DA VONTADE REAL DA TESTADORA

Antes de mais, deve anotar-se que o facto de se ter consignado na sentença que “Não se provou qual a real vontade da testadora ao referir-se a filhos legítimos dos usufrutuários no testamento celebrado”, tal é irrelevante, pois se trata de uma expressão puramente conclusiva, que não factos.

Assim, à falta de prova complementar ao que consta do texto do testamento, impõem-se interpretar aquela vontade em conformidade com o teor do documento. Isto é, na ausência de prova complementar (como ocorre nos presentes autos), a determinação da vontade real do testador passa pela interpretação do testamento e constitui uma questão de direito, susceptível de ser apreciada em recurso de revista pelo STJ.

Com efeito, a interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187.º, n.º 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento2.

Assim, v.g., o Ac. STJ de 13-09-20123: “ IV - Compete, contudo, ao STJ, dentro do âmbito da sua actuação, apreciar se a Relação observou devidamente as regras de interpretação que decorrem do art. 2187.º do CC, porque uma coisa será apurar a vontade naturalística do de cujus, outra, substancialmente diversa, será o apuramento do resultado da interpretação com a sua subsunção aos requisitos aludidos naquele normativo, por forma a obter o seu sentido e alcance.

V - Uma interpretação efectuada tendo em atenção a vontade do testador através da sua contextualização expressa no documento é conforme aos cânones apontados pelo apontado art. 2187.º do CC, já que a directriz subjectivista da busca da vontade real do testador surge-nos claramente mitigada não sendo atendida se não encontrar naquele o sentido juridicamente relevante, sendo de atribuir ao próprio testamento o significado conforme com essa intenção ou vontade tendo em atenção o carácter formal do negócio testamentário. “.

No processo nº 2010/12.6TBGMR.G2.S1, também relatado pelo aqui Relator, teceram-se amplas considerações sobre a interpretação do testamento, que, no essencial, para aqui se transportam.

Como ali se deu conta, em matéria de interpretação das disposições testamentárias, vale o disposto no artº 2187º, nº1, do CC, onde se consagra a posição subjectivista, mantendo a linha de orientação que já vinha do artigo 1761º do Código de Seabra4.

Com efeito, dispõe aquele artigo 2178.º, n.º 1, do Código Civil, que «na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento», logo acrescentando o seu n.º 2 que, para estes efeitos, «é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

A interpretação do testamento decorre da vontade subjectiva do testador, devendo-se, para tal, naturalmente (como decorre injuntivamente do disposto no artº 2187º, nº2 do CC), recorrer aos elementos textuais e contextuais decorrentes da formalização expressa por aquele no negócio efectuado (testamento), pois que não existe vontade, por mais categórica que aparente ser, que se possa impor do exterior do negócio testamentário5.

A referida interpretação, conforme se diz no Ac. do STJ de 13.9.2012 (in www.dgsi.pt), encontra-se efectuada de acordo com os cânones apontados por aquele artº 1287º CC, “tendo tido em atenção a vontade do testador através da sua contextualização expressa no documento, já que a directriz subjectivista da busca da vontade real do testador surge-nos claramente mitigada não sendo atendida se não encontrar naquele o sentido juridicamente relevante, sendo de atribuir ao próprio testamento o significado conforme com essa intenção ou vontade tendo em atenção o carácter formal do negócio testamentário. «A reconstituição da mens testantis deve, pois, fazer-se, antes de mais, recorrendo aos elementos enquanto documento (“o contexto”) a que se refere o artº 2187º, nº1)»”6.

Ainda no que tange à interpretação da vontade do testador, escreveu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.5.2013 (FERNANDO BENTO – proc. 13706/09):

«A interpretação do testamento assenta, portanto, numa perspectiva subjectivista, ao invés da objectivista que preside à dos negócios inter vivos (art. 236º nº1 CC).

Compreende-se:

Nestes últimos estamos perante, pelo menos, duas partes e as respectivas declarações negociais, sendo bilaterais, são também receptícias; logo, há que atender aos interesses dos destinatários e à interpretação que estes fazem daquelas; assim, vale a vontade manifestada tal como é justificadamente compreendida e interpretada pelo destinatário (teoria da impressão do destinatário).

Tal não acontece no testamento em que a declaração é unilateral; aqui não há destinatário directo e imediato cujo interesse deva ser protegido; a declaração deve valer de acordo com a vontade do testador.

Dito de outro modo: enquanto ali estamos perante, pelo menos, duas partes em conflito de interesses, propugnando cada uma delas interpretações contraditórias ou divergentes das declarações negociais de que são reciprocamente declarantes e destinatários, no caso do testamento, sendo a declaração sempre unilateral, importa averiguar o entendimento e, por via deste, a vontade do respectivo autor.

Significa isto que não há conflito entre os sujeitos da relação sucessória, a saber, entre o de cujus, por um lado, e o herdeiro ou legatário, por outro (sem prejuízo, porém, de tal conflito vir a deflagrar entre os herdeiros ou entre os herdeiros e os legatários).

Nas palavras de E. Betti, a propósito de testamentos, "a meta principal da interpretação é, aqui, o pensamento do disponente, ainda que não se encontre exprimido de maneira adequada na declaração, desde que coincida, univocamente, com ela, e resulte de circunstâncias exteriormente reconhecíveis, no círculo social do disponente, mercê de ilações tiradas da experiência comum" (cfr. Teoria Geral do Negócio Jurídico, tomo II, 1969, p. 304).

Todavia, tratando-se o testamento de um acto formal, solene, objectivado num texto, não pode a interpretação prescindir deste elemento objectivo que funciona como seu ponto de partida.

Relevam, para apurar e reconstituir a vontade do autor do testamento, não só o respectivo texto, mas também quando se entenda que ele não manifesta correcta ou integralmente a sua vontade (e para que estes vícios sejam eliminados) o respectivo contexto à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, ou seja, começando pelo significado que ele atribuía às designações e expressões utilizadas e continuando pela sua maneira pessoal de ver e de encarar os problemas (as deixas testamentárias procuravam sempre solucionar problemas...), as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e religiosos), em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento, para concluir por "descobrir" a vontade expressa do testador»7.

Isto mesmo é, outrossim, referido por Galvão Telles, quando refere que «a interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. (...) Fixado, por esse modo ou com esses materiais, aquilo que efectivamente estava no pensamento do testador, não significa, porém, isto o termo do processo interpretativo, dado que sendo o testamento um acto formal ou solene, para que a vontade real ou verdadeira, assim apurada, seja atendível, necessário se torna que tenha, no contexto testamentário, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (...) Assim, a limitação contida no nº 2 do artigo 2187º do Código Civil não restringe o recurso a prova complementar, proibindo apenas que, com o uso de tais meios, se ultrapasse o processo de interpretação para apurar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento»8.

Como entendeu o STJ, em acórdão de 26-03-19659, sendo manifesta a vontade expressa no testamento relativamente a certas condições e omissa relativamente a outras, o silêncio destas não pode ser suprido por via de interpretação integrativa; assim entendeu quando doutrinou que "não pode suprir-se uma declaração de vontade omissa, com fundamento em interpretação do testamento".

Também MANUEL DE ANDRADE, a propósito da interpretação do testamento (à luz do Código de Seabra), escreveu que ele deve ser “interpretado de acordo com a vontade do testador, mas não deduzida essa vontade apenas do contexto do testamento, isto é, dos seus termos. A intenção do testador deve ser procurada não só através do contexto do testamento, como através de quaisquer outros elementos que permitam reconstituí-la. Ela deve ser indagada por todos os meios idóneos. Mas só relevará como sentido decisivo do testamento quando se puder considerar melhor ou pior expressa, ou menos reflectida, nos termos do respectivo documento. Não se exige uma exacta correspondência entre a vontade testatória e os termos do testamento; basta uma qualquer correspondência, vaga e imperfeita que seja”10. Acrescentando o mesmo Autor11 que a intenção testatória deve ser procurada por todos os meios possíveis, ainda que exteriores ao testamento, mas tal intenção só poderá ter-se por decisiva e relevante se “de algum modo se reflecte, transparece ou transluz nos termos do testamento12.

Exige-se, porém, e sempre, que a vontade do testador, “assim reconstruída, tenha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeita, no contexto” do testamento.

Como refere OLIVEIRA ASCENSÃO13, “como o testamento é um negócio formal, o texto tem anda outra função: é um limite de busca da intenção do testador”. O que corresponde à fórmula ínsita no artº 9º, nº2 do CC. Sendo, como dito, questão de direito a de saber se o sentido correspondente à vontade real do testador satisfaz a exigência de um mínimo de correspondência com o contexto do testamento14.

Assim também, o Ac. do STJ de 07-11-2019, referindo que “Segundo as regras de interpretação previstas no CC de 1867, que não diferem significativamente das do atual CC, deve procurar-se a vontade do testador, atendendo a todo o texto e ao contexto do testamento, ou seja, deve atender-se não só ao texto de cada uma das disposições testamentárias, isoladamente consideradas, mas a todo o conjunto do testamento, acentuando as ligações entre as suas várias partes e referindo-as ao todo que as engloba.”15.

E o Ac. do STJ de 17-04-201216, “I - Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal.

II - Essa interpretação, de cariz subjectivista, a reflectir o sentido atribuído à declaração pelo respectivo autor, deve ser acolhida reportada ao tempo da elaboração e aprovação do texto, mas sem desprezar a globalidade das circunstâncias reconhecíveis ao tempo da sua abertura. (…)”.

Idem o Ac. STJ de 12-01-2010: “I - No domínio da interpretação das disposições testamentárias, o intérprete deve procurar o sentido mais ajustado à vontade do testador, atendendo ao contexto do testamento, podendo, todavia, lançar mão de elementos exteriores à declaração testamentária, capazes de auxiliar na determinação da vontade real daquele, devendo, porém, ser objecto de exclusão, aquela interpretação que não recolha um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, no conteúdo formal do documento lavrado (art. 2187.º do CC). II - Não tendo sido carreados para os autos quaisquer elementos, documentais ou testemunhais, susceptíveis de enquadramento no âmbito da aludida prova complementar, ter-se-á de proceder à interpretação do testamento com o exclusivo recurso ao respectivo conteúdo.”17.

Ainda no sentido exposto sobre a interpretação do testamento, pode ver-se JOÃO SÉRGIO CORREIA LEITÃO18-19.

Do exposto se conclui que a interpretação da vontade do testador tem um limite formal intransponível: a correspondência mínima com o contexto do testamento (ainda o acórdão do STJ de 17-04-201220: "Na interpretação do testamento vale a vontade querida pelo testador, apenas com a limitação da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa no contexto do testamento, exigida pela sua natureza formal").

No sentido de que a interpretação tem como limite uma repercussão literal mínima, pode ver-se, ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.2012 (Processo n.º 259/10.5TBESP.P1.S1 - ALVES VELHO), 4.6.2002 (Neves Ribeiro), 02B4448, de 13.1.2005 (Araújo de Barros), 04B3607. Na expressão do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4.3.2004 (Salazar Casanova), 10092/2003, «Quer isto dizer que o artigo 2187º do Código Civil (tal como o preceito correspondente do Código de 1867) não admitem que, por via interpretativa, se “corrija” o que poderá ter sido uma má decisão do testador. A vontade conjectural é ainda determinação da vontade real.».


*


Note-se que esta interpretação do testamento assente numa perspectiva subjectivista já vingava na legislação civil vigente à data da outorga do testamento dos autos, ou seja, no Código de Seabra.

Com efeito, como observa MOTA PINTO21, pronunciando-se sobre esta matéria (à luz do actual Cód. Civil), refere que quanto à interpretação das disposições testamentárias consagra a nossa lei o sentido subjectivo, com o limite do “contexto do testamento”, seguindo quase textualmente os dizeres do artigo 1761º do Código de Seabra, com a única diferença de enunciar agora o critério interpretativo dos testamentos não apenas para as hipóteses em que o contexto do testamento dê margem a hesitações, por obscuro ou equívoco, mas para todos os casos em que se ponha o problema da interpretação duma cláusula testamentária. “Decisivo é o que o testador quis dizer, desde que se possa averiguar. Na pesquisa da vontade do testador é admitido o recurso à chamada prova suplementar ou extrínseca, isto é, a elementos ou circunstâncias estranhas aos termos do testamento, fundadas em qualquer dos meios de prova geralmente admitidos. Recorre-se a todas as circunstâncias aptas a permitir concluir qual o sentido da vontade real do testador”, podendo atender-se a “projectos anteriores se não se conclui que a formalização significa uma modificação objectiva”, “às finalidades visadas, aos motivos, a anotações pessoais do testador nos seus papéis, etc.”.

Em suma:

A hermenêutica dos testamentos é – hoje, como já o era no domínio do Código de Seabra – fundamentalmente subjectivista, mas com um certo ingrediente objectivista, consequência da natureza formal do negócio a interpretar. Vale a vontade real do testador, desde que tenha no documento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (uma qualquer correspondência, ainda que vaga e imperfeita).


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Feito este bosquejo doutrinal e jurisprudencial atinente à interpretação do testamento, e regressando aos factos, vemos que o que consta da letra do testamento sub judice - no que tange à cláusula nele inserta e que é objecto de controvérsia nos autos - é que o testador deixou ali bem expresso, em relação à propriedade dos legados em usufruto aos sobrinhos AA4 e AA5, que: deixo-a aos filhos legítimos ou descendentes destes que existirem ao falecimento do último dos usufrutuários, mas se nenhum deles deixar descendentes, deixo a propriedade dos prédios às filhas de AA13, de nome AA14 e AA11 e a propriedade do restante a estas e aos filhos de AA15 para entre todos ser dividida igualmente”.

Trata-se de cláusula perfeitamente clara e inteligível, dado não haver dúvidas de que filhos legítimos são – melhor, eram – os nascidos fora do casamento.

Ora, como deixámos dito, para apurar e reconstituir a vontade do autor do testamento, à falta de prova complementar (e note-se que as partes prescindiram de prova testemunhal), teremos que nos cingir ao texto do documento, interpretando-o não de forma “seca”, puramente literal, mas reportando-nos à data em que o documento foi outorgado; ou seja, tendo em conta o significado que na época era atribuído às expressões ali utilizadas, procurando-se “entrar” na mentalidade do testador, a sua maneira pessoal de ver e de encarar os problemas (pois as deixas testamentárias procuravam sempre solucionar problemas...), ter em consideração as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e outros), as suas convicções religiosas; em suma, tem de se ter sempre em conta a mentalidade vigente à época, em concreto a mentalidade do testador ao tempo do testamento. É na concatenação destes elementos que se vai "descobrir" a vontade expressa do testador.

Isso mesmo é também salientado por LUÍS CARVALHO FERNANDES22O intérprete deve atender, não apenas ao teor de cada disposição testamentária, vista, isoladamente, mas ao conjunto do testamento, ao seu contexto”.

Sempre, com dito já, tendo em conta que qualquer que seja a interpretação a que se chegue do testamento, tem a mesma que ter sempre um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa, na letra do documento. Ou seja, como já amplamente percutido, não pode interpretar-se a vontade do testador com um sentido que não tenha no texto do testamento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa23.


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O que podemos, então, extrair do texto do testamento, concatenado com a mentalidade da época e da testadora ao tempo do testamento, os seus hábitos e convicções (maxime religiosas – dado o seu evidente fervor religioso, católico, apostólico, romano)?

Nos casos em que o documento seja absolutamente inquestionável quanto ao sentido aquela vontade testatória, a interpretação não suscita dúvidas. Pois, como reza o brocardo latino, in claris non fit interpretativo (nas questões claras não se faz interpretação).

Ao invés, há sempre a hipótese de não se chegar a uma interpretação sólida do testamento. Pode, com efeito, suceder que o intérprete, uma vez aplicada a precedente teoria – ou qualquer outra que se julgue preferível – , não consiga obter um resultado suficientemente líquido. E então, pergunta-se: como decidir em tais situações? Ensina MANUEL DE ANDRADE24 que “parece inevitável” que se terá de decidir pela nulidade do negócio, no próprio plano da interpretação. O testamento só pode valer com o sentido em que deva ser interpretado. Se o intérprete não chega a um sentido em que possa confiar, por bastante claro e unívoco, a conclusão só pode ser esta: nullum negotium”.

Já para OLIVEIRA ASCENSÃO25, se se apurar uma intenção do legislador que não tenha no contexto nenhum ponto de apoio, essa intenção tem de ser considerada irrelevante para a ordem jurídica; e se se não apurar nenhuma intenção do testador, prevalecerá a interpretação do contexto que parecer mais razoável.


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Ora, lendo o texto do testamento, concatenado com a mentalidade da testadora, os seus hábitos e convicções (em especial as religiosas), tudo enquadrado na época em que foi lavrado, cremos que outro entendimento não é possível senão o de que a testadora quis mesmo o que se escreveu na referida cláusula testamentária: deixar a propriedade dos bens ali referidos apenas aos filhos legítimos dos sobrinhos (ou descendentes destes), existentes à data do falecimento do último dos usufrutuários. Com o sentido, naturalmente, mais que sabido da testadora, de que filhos legítimos eram (apenas) os filhos concebidos dentro do casamento.

Nada se indicia, com efeito, que a testadora pretendesse beneficiar todos os filhos dos dois usufrutuários, fossem eles legítimos ou não, apenas excluindo os que pudessem considerar-se adoptados. Tal vontade do testador não resulta minimamente demonstrada, mesmo que indiciariamente, do circunstancialismo anterior ou posterior à elaboração do testamento, muito menos do seu texto.

O texto do testamento refere inequivocamente os “filhos legítimos” dos dois usufrutuários. E, à data, o conceito de filhos legítimos era não apenas fáctico, mas também jurídico, pois que resultava da lei. Nos termos do art. 101º do Código de Seabra, filhos legítimos eram os nascidos de matrimónio legitimamente contraído e, como tal, o filho de pai solteiro não seria um filho legítimo.

Note-se que o testamento em causa foi elaborado por quem era profundamente religioso porque assim o declarou expressamente, não sendo por isso, sequer, estranho que, à data da sua elaboração, fossem expressamente referidos os filhos legítimos dos beneficiários em causa.

Aliás, esta referência a filhos legítimos existe em vários momentos do testamento, sendo que a expressão “descendentes” é utilizada para referir os filhos dos filhos legítimos.

Assim, no caso concreto do legado sob apreciação, estando em causa nascituros, o mesmo apenas é válido quanto aos filhos (legítimos) dos seus sobrinhos AA5 e AA4, pois que quanto aos descendentes daqueles nunca o seria. Quer isto dizer que “os descendentes” dos filhos legítimos daqueles sobrinhos não teriam capacidade sucessória.

Com efeito, quer à data da elaboração do testamento, quer à data de hoje, apenas têm capacidade sucessória os nascituros não concebidos que sejam filhos de pessoa determinada, viva ao tempo da abertura da sucessão (D/M/1948), ou seja, os filhos dos referidos AA5 e AA4 e não também os demais descendentes (netos, bisnetos…).

Assim dispunham os arts. 2009º e 1779º do C. de Seabra e os arts. 2031 e 2033º do C. Civil vigente.

Quer isto dizer que, faltando, embora, prova testemunhal acerca da vontade da testadora – dado as partes dela terem prescindido – , o texto do testamento é, porém, inequívoco quanto ao sentido da disposição dele constante: a testadora instituiu como legatários da propriedade dos bens imóveis identificados os filhos legítimos dos seus sobrinhos AA5 e AA4, com o sentido que tal designação tinha à data da elaboração do testamento e que eram os filhos nascidos do casamento, legitimamente

Ora, tendo ambos os sobrinhos morrido no estado civil de solteiros, tal significa que morreram sem filhos que pudessem ser, à data da elaboração do testamento por quem professava a fé católica, considerados legítimos.

Note-se que é totalmente incongruente afirmar-se que a testadora não teria pensado na possibilidade de haver filhos ilegítimos, filhos destes dois sobrinhos quando fez tal referência no testamento, pois que não teria certamente equacionado a possibilidade de estes seus sobrinhos e em particular a sobrinha virem a ter um comportamento de tal forma reprovável (como seria ter um filho sem ser casada).

A referência a filhos legítimos permite perceber que tal pensamento existiu, numa época em que (repare-se) mesmo que existissem apenas filhos ilegítimos, eles apenas sucederiam aos pais se tivessem sido perfilhados ou reconhecidos judicialmente e, ainda assim, em condições de inferioridade em relação a filhos legítimos (ut arts. 1990º e 1991º do Código de Seabra).

Outro entendimento não vislumbramos que, no contexto da época e com apoio na letra do testamento, possa, com razoabilidade, ser sustentado.

Não podemos olvidar que estamos a falar de um testamento de 1943, deixado por alguém que faleceu em 1948; e, outrossim, o contexto em que foi lavrado, maxime o ambiente e costumes da época e a grande religiosidade da testadora – esta bem patente na natureza dos muitos legados que fez (todos determinados pela sua fé religiosa), nas instituições que privilegiou e nas obrigações para celebração de actos religiosos, como é bem vincado na seguinte expressão ínsita no início do testamento: “Declaro que professo a religião católica, apostólica romana, na qual creio firmemente, esperando em Deus viver sempre e morrer nesta crença…”.

Naturalmente que, considerando esse seu “fervor” religioso e a posição rígida e fortemente sancionatória que a igreja manifestava quanto aos filhos nascidos fora do casamento, seria muito difícil aceitar que a testadora deixasse os seus bens a filhos…ilegítimos.

Assim, portanto, outro sentido não vemos para a cláusula testamentária que não seja o de que nela a testadora quis mesmo deixar a propriedade dos referidos bens aos filhos legítimos dos sobrinhos – isto é, concebidos no casamento – ou descendentes destes, que existissem à data do falecimento do último dos usufrutuários.

Qualquer outra interpretação não tem qualquer apoio na letra da cláusula testamentária.

Pelo que (percute-se) tendo tais sobrinhos da testadora (AA4 e AA5) morrido no estado civil de solteiros, significa que, para efeitos daquela deixa testamentária, morreram sem filhos que pudessem ser por ele abrangidos. E não havendo filhos legítimos dos referidos sobrinhos, como reza o testamento, deixou a propriedade dos prédios às filhas de AA13, de nome AA14 e AA11 e a propriedade do restante a estas e aos filhos de AA15 para entre todos ser dividida igualmente”.

DA LEI APLICÁVEL À CLÁUSULA TESTAMENTÁRIA

Tendo-se concluído que a vontade (real) da testadora – ao clausular no testamento que, relativamente à propriedade dos legados em usufruto que fez aos sobrinhos AA4 e AA5, “deixo-a aos filhos legítimos ou descendentes destes que existirem ao falecimento do último dos usufrutuários, …” (o destaque é nosso) – foi beneficiar apenas os filhos legítimos (os nascidos dentro do casamento), qual a lei aplicável ao respetivo testamento, outorgado em 1943, e à sucessão mortis causa da testadora, falecida em 1948: a vigente em 1948 (data do falecimento da testadora – caso em que se aplica o Código de Seabra, onde se validava a discriminação entre filhos nascidos fora e dentro do casamento), ou a vigente à data do “falecimento do último dos usufrutuários”, ocorrido em 2010 (caso em que vingará o actual Código Civil, que proíbe tal discriminação, ut artº 2230º, nº2)?

Sendo certo que o falecimento da testadora teve lugar na vigência do Código de Seabra de 1867, tendo em 1 de Junho de 1967 entrado em vigor o novo Código Civil, haverá sempre que levar em conta o estatuído no artº 5º do DL nº 47344, de 25 de novembro, que aprovou o atual Código Civil, ao dispor que « A aplicação das disposições do novo código a factos passados fica subordinada às regras do artigo 12º do mesmo diploma, com as modificações e os esclarecimentos constantes dos artigos seguintes».

Dispõe, por sua vez, o art. 12º, nº1 do (actual) C. Civil que:

I. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

II. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Somos a concluir, à luz deste preceito – que consagra o princípio fundamental da não retroactividade da lei nova –, que a natureza das disposições testamentárias ínsitas no testamento dos autos tem de ser determinada em função do regime legal em vigor à data em que o testamento foi outorgado (1943) e que o regime sucessório dos herdeiros e legatários que sejam chamados à sucessão do testador é o regime legal vigente ao tempo da sua morte (1948).

É certo que a segunda parte daquele número 2. pode prestar-se a equívocos. Porém, quando se afirma que a lei nova é de aplicação imediata ao conteúdo das situações jurídicas pré-existentes, apenas se pode significar que ela se aplica “para futuro”. Na verdade, o conteúdo da situação jurídica, assim como os efeitos que produziu ou era capaz de produzir, no período de tempo decorrido entre a constituição da situação jurídica e o começo da vigência da lei nova, não podem deixar de ser apreciados em face da lei antiga26. Já SAVIGNY, citado por BAPTISTA MACHADO27, observava que, se quanto à forma do testamento a lei aplicável é a que vigora ao tempo da realização do acto, no que toca ao conteúdo do testamento (v. g. amplitude da quota disponível, admissibilidade de substituições vulgares ou fideicomissárias, etc.) a lei que decide é a do tempo da abertura da sucessão.

O que quer dizer que o regime jurídico a aplicar será o do Código Civil de 1867, ainda que o momento da vocação sucessória ocorra em data posterior à morte do testador e já após a entrada em vigor do atual Código Civil.”28.

Isto é, quando a sucessão foi aberta (em 1948) ainda vigorava a lei antiga, não havendo lugar à retroactividade da lei nova à situação em apreço: tendo-se constituindo a situação jurídica sucessória na data da abertura da sucessão, a lei nova é posterior a essa constituição.

E não releva esgrimir com a ideia de que o processo constitutivo da situação jurídica do legatário só se teria completado com a morte do último dos sobrinhos da testadora. A vocação sucessória determina-se – ficou definida – com a morte da testadora e na data desta, embora, é certo, a concretização dessa deixa testamentária, nos termos em que foi formulada, ficasse dependente da ocorrência futura da condição que ali se apôs: a existência de filhos legítimos.

Como ensina PEREIRA COELHO29, na instituição de nascituros como herdeiros ou legatários há uma única vocação a favor de nascituros não concebidos e que retroage sempre, ficcionalmente, ao momento da abertura da sucessão, como acontece, por exemplo, quanto a frutos dos bens legados ou herdados30.

E como também refere RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA31, “Não se estranhará assim que o momento da abertura da sucessão, coincidente com o momento da morte do de cuius, da vocação sucessória e da retroacção da aceitação e partilha sucessória, tenha uma importância capital em matéria de aplicação das leis no tempo. É pela lei vigente nesse momento que se definem os efeitos sucessórios (cfr. artº 12º, nºs 1 e 2, Iª parte, do CCiv) decorrentes da morte do respectivo autor e das consequentes abertura e vocação sucessória e que são resolvidas as questões jurídicas que se conexionam directamente com o conteúdo de tais efeitos,…”.

Este Autor, na obra cit.32 – com toda a pertinência para os presentes autos – salienta que “a ordem de preferência dos sucessíveis é regulada pelo momento de abertura da sucessão, mesmo nos casos em que certas vocações sucessórias fiquem dependentes após tal data de qualquer evento condicionante”.

E dá, impressivamente, este exemplo:

“Suponhamos que A, sem herdeiros legitimários, institui por testamento B como usufrutuário de todos os seus bens, reservando a raiz para os descendentes de B que viesse a ter. Caso A falecesse em 1977 e B em 1983 sem descendentes, seriam chamados, nos termos dos arts. 2032º e 2033º do Código Civil, à sucessão de A os parentes colaterais de A prioritários em 1977 e não os prioritários em 1983 sem prejuízo do disposto no artº 2035º do Código Civil”

Assim, também, os Acs. do STJ de 7.12.1962 (BMJ, 122º, 589) e de 12.05.1981 (BMJ, 307º, 282).

*

Quanto à aplicação do direito sucessório no tempo e momento em que se concretiza a vocação sucessória, a doutrina e jurisprudência tem-se pronunciado, de facto, no sentido aqui exposto.

Assim (para além das referências jurisprudências e doutrinais já citadas), pode ver-se, ainda:

Na jurisprudência, v.g.:

• Ac. STJ de 4.10.2018 (proc. 2630/14.4T8VIS.C1.S1 – Maria da Graça Trigo).

• Ac. STJ de 4.6.1996: “A actual redacção do n. 2 do artigo 2139.º do Código Civil (introduzida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro), que, para efeitos sucessórios, não distingue entre filhos concebidos por casamento e fora de casamento, não se aplica às heranças abertas antes da entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, pois o que releva para a definição da lei aplicável é o momento da sua abertura”33.

• Ac. STJ de 17.3.1998: “I - O estatuto sucessório, na modalidade de sucessão voluntária por testamento e respectivas implicações, é regulado pela lei vigente ao tempo da abertura da sucessão, excepto quanto à validade formal do testamento e à capacidade para a sua feitura, questões a ser reguladas pela lei do tempo da respectiva celebração”34.

• Ac. STJ de 14.3.2000: “II - É ao momento da morte do testador, correspondente ao da abertura da sucessão que se tem de atender para se determinar os chamados à sucessão e o conteúdo dos respectivos direitos”35.

• Ac. da Rel do Porto de 29.4.1977: “II—Atento o princípio da não retroactividade da lei, os efeitos sucessórios determinam-se pela lei em vigor ao tempo da abertura da herança, isto é, ã data da morte do «de cujus».”36.

• Ac. Rel Coimbra de 31.1.1979: “Aberta uma sucessão quando ainda vigorava o C. Civil de Seabra, é ela que continua a regular a partilha entre os filhos do «de cujus», não sendo afectadas quaisquer normas deste diploma, que consagrem distinções entre filhos legítimos e ilegítimos, quanto aos montantes das quotas hereditárias a que tinham direito, pelo art. 36.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.”37.

Na Doutrina, v.g.:

• GALVÃO TELES: Direito das sucessões, Noções Fundamentais, pp 307 a 330.

Como escreve este Autor, a propósito da sucessão testamentária, na base da sucessão aparecem o testamento e a morte do testador, factos que, apesar de diferenciados, concorrem para a produção do efeito global. E acrescenta: “Em circunstâncias como esta o problema da aplicação temporal das leis, já de si difícil, cresce ainda de dificuldade precisamente porque estamos perante um facto complexo em cuja estrutura entram elementos distanciados no tempo”. Mas conclui que “Os efeitos sucessórios definem-se pela lei vigente à data da morte do de cuius, o último dos factos principais que estão na base desses efeitos”.

• OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora, pp 28 ss.

Escreve, ali, este Autor que na falta de regra especial em matéria das sucessões, há que recorrer ao critério geral do artº 12º, nº1 do CC. E observa que, apesar da dificuldade da aplicação deste normativo, “todavia todos concordam que a vicissitude “sucessão” é regida pela lei vigente ao da sua abertura”.

Assim se conclui, portanto, que o momento da abertura da sucessão, coincidente com o momento da morte do de cuius, define a lei aplicável à sucessão. É a lei vigente nesse momento que define e regula os efeitos sucessórios. Pelo que a lei aplicável à deixa testamentária em causa nos autos é a vigente à data da morte da testadora (1948 – Código de Seabra).

DA INCONSTITUCIONALIDADE DA DISCRIMINAÇÃO ENTRE FILHOS NASCIDOS FORA E DENTRO DO CASAMENTO E DA (NÃO)RETROACTIVIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS (NESTA MATÉRIA)

Tendo-se concluído que a vontade da testadora foi, efectivamente, apenas beneficiar os filhos legítimos dos sobrinhos (à data da morte do último) e, outrossim, que é aplicável à cláusula testamentária a legislação vigente à data da morte daquela (1948 – o Código de Seabra, que aceitava a sucessão dos filhos ilegítimos, ut arts. 1989 a 1992), então, face às alterações legislativas posteriores, relativas à não discriminação entre filhos nascidos fora e dentro do casamento (actual CC e CRP), há que ver da inconstitucionalidade dessa discriminação e se tal proibição constitucional (a chamada “inconstitucionalidade superveniente”) se aplica às heranças abertas antes da entrada em vigor da CRP.

Durante anos, vigorou no nosso ordenamento jurídico, a diferenciação entre dois estatutos: o estatuto de “filho legítimo” e de “filho ilegítimo”.

Com a publicação do DL 496/77, de 25 de Novembro foram abolidas as designações de “filhos legítimos” e “filhos ilegítimos” existentes em vários dos preceitos até então vigentes (v.g., os arts. 2041º, n.º 1, 2080º, n.º 2, 2139, n.º 2 e 2140, n.º 2, 2143º, 2144º, 1984º, n.º 2, 2158º, n.º 2, e 2159º do CC de 1966).

Assim, do princípio de não discriminação decorre que os filhos que não nascem do vínculo do casamento não podem ser conduzidos a uma “categoria inferior de filho”, que era aquilo que acontecia na ordem jurídica precedente. Partindo deste “estatuto inferior” que era atribuído aos “ilegítimos”, estabeleciam-se discriminações em diversas áreas jurídicas, que começavam, desde logo, na constituição do vínculo da filiação, e iam até à atribuição de direitos sucessórios38.

De facto, a actual redacção do nº 2 do artº 2139º do CC (introduzida pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro), não distingue, para efeitos sucessórios, entre filhos concebidos fora ou dentro do assamento.

E também a Constituição da República Portuguesa (no seu artigo 36º, nº 4) aboliu a discriminação entre filhos (nascidos dentro ou fora do casamento).

Tal não significa, porém, que a Constituição imponha uma total identidade de regime entre as duas espécies de filhos: o que ela não permite – como observa GUILHERME DE OLIVEIRA39 – é que os filhos nascidos fora do casamento sejam objecto de qualquer discriminação “que lhes seja desfavorável e que, além disso, não seja justificada pela diversidade das condições de nascimento”.

O artº 36º, nº4 teve aplicação imediata, revogando, designadamente, a legislação precedente (cfr. artº 293º CRP) que dava melhores direitos sucessórios aos parentes “legítimos”.


*


No anterior acórdão, sobre que incidiu o recurso para o Tribunal Constitucional, escreveu-se:

«Discutiu-se nos primeiros anos de vigência do novo regime se este valeria, inclusivamente, para as heranças abertas antes da entrada em vigor da Constituição, mas ainda não partilhadas a essa data. Porém, a jurisprudência fixou-se – e bem – no entendimento de que o princípio da não discriminação só se aplica às às heranças abertas depois do 25 de Abril de 1976, data em que a constituição entrou em vigor40.

Ou seja, o facto de aquele artº 36º, nº4 ser um preceito constitucional não importa qualquer desvio ou derrogação dos critérios que regulam a aplicação das leis no tempo, dado que as normas constitucionais não têm qualquer vocação de retroactividade. E o princípio geral ou tradicional em matéria de conflitos de leis no tempo é, como vimos, o consagrado no artº 12º do CCiv, de que a lei nova não tem efeito retroactivo, só se aplicando para o futuro.

Deve anotar-se que este princípio da não discriminação dos filhos, consagrado no art. 36.º, n.º 4 da CRP – um princípio basilar no que aos filhos diz respeito – “não opera apenas em face de normas que visam definir o estatuto dos filhos ou que com ele diretamente contendem. Basta que o interesse dos filhos seja elevado por lei a critério de decisão fundamental ou determinante para que a proibição se aplique e se possa censurar uma norma legal discriminatória”41.

Este princípio é, aliás, segundo JJ. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA “suscetível de várias irradiações42.

Temos, portanto, que a Lei constitucional não quis (no cit. artº 36º, nº4) afectar, no domínio do fenómeno sucessório, os direitos (maxime reais) já subjectivados por actos ocorridos anteriormente segundo uma desigual medida da capacidade de suceder, tenha havido ou não partilha dos bens transmitidos.

Assim, as sucessões que se tenham aberto antes da entrada em vigor da Constituição de 1976 (25.04.1976) continuam a ser reguladas pelo Código Civil de 1966.


*


A diferente entendimento não nos levam, seguramente, nem a letra da Lei Constitucional, nem a sua história, nem, sequer, o seu espírito.

Com efeito, não há na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (ut artº 9º, nº2 do CC) que mostre ser esse diferente entendimento o correspondente ao pensamento do legislador constitucional.

E quanto à história do preceito, lendo os debates parlamentares expressos no nº 39 do Diário da Assembleia da Constituinte, a pp 1067 ss, neles não se almeja a mínima referência à retroactividade do citado artº 36º, nº4 da CRP.

Atente-se, apenas, nas palavras do deputado VITAL MOREIRA, na Assembleia da República:

«Para citar apenas um exemplo expressivo, quer dizer-se que no dia da entrada em vigor da Constituição, deixa, por exemplo, de existir qualquer distinção jurídica entre filhos legítimos e ilegítimos e que – uma consequência prática – todas as heranças, abertas a partir da data da entrada em vigor da Constituição, deixarão de discriminar entre filhos legítimos e ilegítimos»43.

E nenhum outro deputado contradisse este pensamento expresso pelo Senhor deputado. Donde se extrai, sem margem para dúvidas, que não estava na mente da Assembleia da república atribuir carácter retroactivo àquele preceito inovador.

Finalmente, quanto ao espírito da lei, parece evidente não corresponder ele à referida retroactividade, dado que não se vislumbra que o legislador constitucional tivesse a intenção de «expropriar» bens e direitos que os parentes legítimos tivessem adquirido definitivamente com base em regras de vocação sucessórias então vigentes.

É que, a aceitar-se a retractividade daquele preceito constitucional, abrir-se-iam as portas à alteração de todas as partilhas que tivessem ocorrido no passado em que concorressem filhos nascidos fora e dentro do casamento, o que, seguramente, iria causar grande confusão e alarme social.

E a doutrina e a jurisprudência têm-se manifestado, não apenas no referido sentido de que os efeitos sucessórios são regulados pela lei em vigor ao tempo da morte do autor da sucessão, como ainda que a actual redacção do n.º 2 do art. 2139º do CC, introduzida pelo DL 496/77, de 25 de Novembro – que, para efeitos sucessórios, não distingue entre filhos concebidos por casamento e fora de casamento – , não se aplica às heranças abertas antes da entrada em vigor da CRP de 1976, pois o que releva para a definição da lei aplicável é, como dito, o momento da sua abertura.».

Deu-se ali conta de vasta jurisprudência e doutrina neste sentido44.

Outrossim se entendeu ali que «a disposição testamentária em causa, à luz das normas vigentes – e é em face destas que tem de ser vista e analisada – não é violadora dos bons costumes ou contrária à ordem pública.

Veja-se que a sanção da nulidade da disposição testamentária “quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por fim contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes” (actual artº 2186º CC) já vinha prevista no Código de Seabra, cujo artº 1746º dispunha que “A invocação de uma causa, quer falsa, quer verdadeira, contrária à lei, conduz sempre á nulidade da disposição.”. E ninguém na altura imaginava, sequer, que a disposição testamentária sob apreciação fosse contrária à lei. Pelo contrário: era a própria lei que fazia a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos.».

E se rematou que «a disposição testamentária que ora se pretende “atacar” é perfeitamente válida à face da legislação aplicável – a vigente à data da morte da testadora, ou seja, o Código de Seabra, que não proibia a discriminação entre filhos concebidos fora (ilegítimos) e dentro do casamento – , não sendo tal proibição ferida de inconstitucionalidade, dada a posição pacífica (na doutrina e jurisprudência), retratada supra, acerca da designada “inconstitucionalidade superveniente”», dessa feita se tendo confirmado a sentença recorrida.


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No aludido recurso de inconstitucionalidade, entendeu o Tribunal Constitucional dar razão ao Recorrente.

O objecto do recurso para o TC reconduzia-se à interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 12.°, n.°s 1 e 2, e 2230.°, n.° 2, do Código Civil, levada a cabo no antecedente acórdão prolatado nestes autos, que considerou válida, e não contrária à lei ou à ordem pública, uma disposição testamentária, constante de testamento elaborado e aberto antes de 1976, que elegeu como critério de determinação dos legatários a sua condição de filhos legítimos ou ilegítimos, em virtude de a lei aplicável ao referido testamento, determinada à luz das normas cíveis vigentes, permitir essa distinção.

Entendeu o Tribunal Constitucional que a ordem material instituída pela Constituição da República Portuguesa de 1976 conforma e limita todas as normas ou interpretações normativas aplicadas e aplicáveis a partir da sua entrada em vigor, independentemente do seu momento genético. Acrescentando que, em rigor, “não é um caso de inconstitucionalidade superveniente o que se verifica nos presentes autos, uma vez que a norma questionada é uma norma resultante da interpretação conjugada de preceitos constantes do actual Código Civil — uma interpretação normativa do disposto nos seus artigos 12.°, n.°s 1 e 2, e 2230.°, n.° 2”. Entendeu que o problema de (in)constitucionalidade se põe, sim, no plano da eficácia retroativa das normas constitucionais. Como tal, o que havia que indagar, neste caso, era se, e até que ponto, normas da Constituição da República Portuguesa de 1976 podem (ou devem) aplicar-se a um caso cuja lei material é, nos termos do Código Civil actual, reconduzível à legislação cível vigente em 1948, mais concretamente, o Código Civil de Seabra.

Perguntou-se no ac. do TC: “pode um órgão de soberania (ou qualquer outra instituição do Estado) aplicar, no momento presente, uma norma pré-constitucional, não vigente, mas designada como lei aplicável pelos preceitos normativos atuais, quando essa norma seja materialmente contrária a princípios fundamentais da ordem jurídico-constitucional instituída pela CRP?”. E respondeu: “A resposta não pode deixar de ser negativa, pelo menos quanto a um conjunto básico de normas constitucionais, reconduzível aos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que a Constituição elege como limite à atuação do Estado, em quaisquer circunstâncias (veja-se o disposto nos artigos 7.°, n.° 6, e 8.°, n.° 4, da CRP). (…). nenhum órgão de soberania pode aplicar quaisquer outras normas de natureza infraconstitucional, quando delas resulte evidente lesão de tais princípios fundamentais, independentemente da sua origem espacial ou temporal.”.

A Constituição consagra o princípio da igualdade desde a sua versão originária, surgindo a não discriminação como princípio fundamental do Estado de direito democrático. Desta forma, o princípio da não discriminação, nas suas distintas vertentes, com ênfase nas referidas categorias suspeitas constitucionalmente consagradas, faz parte do património axiológico constitucional que enforma a constituição do regime democrático. Por essa razão – conclui o Tribunal Constitucional – “não pode deixar de se projetar, mesmo para o passado, modelando toda a ação estadual, incluindo a aplicação da lei pelos tribunais ou pela administração. É essa a situação que se encontra o caso dos autos”, restando, assim, “averiguar em que termos o princípio da proibição de discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos, categoria odiosa no plano da não discriminação, se impõe no plano sucessório.”.

Concluiu o Ac. do Trib. Const.:

“… é absolutamente inequívoco que a interpretação do princípio da proibição de discriminação entre os filhos nascidos dentro e fora do casamento, prevista no artigo 36.°, n.° 4, da CRP, abrange o plano sucessório, e é oponível a qualquer norma ou interpretação normativa a aplicar pelo Estado na vigência do atual quadro constitucional.”. E, nessa senda, rematou que “é impossível não verificar a flagrante contradição entre a interpretação normativa questionada — nos termos da qual é válida e lícita uma condição testamentária que estabelece uma discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, em virtude de tal distinção ser admissível no quadro da ordem jurídico-constitucional vigente no momento da entrada em vigor do testamento — e o que se descreveu sobre a densificação, significado e implicações da proibição de discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos..

(…).

Nenhum poder estadual pode, pois, sancionar tratamentos (discriminatórios proibidos pela Constituição. Ou seja, por mais que possam compreender-se, face ao contexto da época e à mentalidade do testador, disposições testamentárias que distingam com base no género, na raça, na orientação sexual ou em qualquer outra das categorias suspeitas ou odiosas identificadas pela CRP, não podem elas hoje ser aplicadas, nem podem as normas relevantes da legislação cível ser interpretadas de modo a acolher, no ordenamento jurídico-constitucional português instituído pela Constituição de 1976, qualquer de tais discriminações, que jamais podem ser justificadas com base na vontade.

(…). É indubitável que tais exigências materiais se impõem a quaisquer normas de direito interno, independentemente do seu momento genético ou da sua fonte”.

Perante o explanado, decidiu o Tribunal Constitucional:

a. Julgar inconstitucional a interpretação normativa conjugada do disposto nos artigos 12.°, n.°s 1 e 2, e 2230.°, n.° 2, do Código Civil, nos termos da qual é válida, e não contrária à lei ou à ordem pública, uma disposição testamentária, constante de testamento elaborado e aberto antes de 1976, que elege como critério de determinação dos legatários a sua condição de filhos legítimos ou ilegítimos, em virtude de a lei aplicável ao referido testamento, determinada à luz das normas cíveis vigentes, permitir essa distinção, por violação dos artigos 13.°, n.°s 1 e 2, e 36.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,

b. Dar provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida, em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade.”.


***


Nesta conformidade, apenas resta dar cumprimento a este juízo de inconstitucionalidade, alterando o decidido, com o consequente provimento ao recurso.

**


IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, concedendo-se a revista e, revogando-se a sentença recorrida, decide-se:

I. Absolver-se o réu do pedido subsistente;

II. Julgar-se procedente o pedido reconvencional do réu, de, como único filho de qualquer dos usufrutuários existente à data da morte do último dos usufrutuários, ser declarado beneficiário da propriedade dos bens identificados na ação, cujo usufruto havia sido legado a seu pai e à irmã deste, AA5.

Custas pela Autora/Reconvinda.

Lisboa, 02.20.2025

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Orlando dos Santos Nascimento (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. O destaque é nosso.

2. Assim, v.g., ac. STJ de 08-05-2013 - Revista n.º 13706/09.0T2SNT.L1.S1 (Fernando Bento).

3. Revista n.º 3415/05.4TBPRD.P1.S1 - Ana Paula Boularot.

4. Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VAVRELA, Código Civil Anotado, Vol. VI, pag. 486 e 487, p.302 e Ac. STJ 13.02.96, CJ STJ Ano IV, Tomo I, p.82 e seguintes.

5. Cfr. OLIVEIRA ASCENÇÃO, Teoria Geral do negócio jurídico e o negócio testamentário, in Comemorações dos 35 anos Do Código Civil E dos 25 Anos da Reforma de 1977, Volume I Direito da Família E Das Sucessões, Coimbra Editora e ANTÓNIO CICU, El Testamento, Editorial Revista de Direito Privado, Madrid, 1959, 169.

6. Apud MENEZES LEITÃO, A Interpretação Do Testamento, 1993, 96. Cfr neste sentido GALVÃO TELLES, Interpretação de Negócio Jurídico Formal: Correspondência entre Vontade e Documento, in O Direito, 121º, 844 e PAMPLONA CORTE-REAL, Curso de Direito das Sucessões, Centro de Estudos Fiscais, 1985, 169-170.

7. Destaques nossos.

8. Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 1986 (BMJ nº 362/pág. 550), publicada in "O Direito", Ano 121º, 1989, IV, pags. 771 e ss.

9. BMJ 145, p. 388 e segs.

10. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 167.

11. Cit, p. 316.

12. Destaques e itálicos nossos.

13. Direito Civil, Sucessões, 4ª ed., revista, pp 304.

14. Ac. STJ de 28-11-2002 - Revista n.º 3010/02 - Araújo de Barros.

15. Revista n.º 3077/16.3T8VIS.C1.S1 Rosa Tching.

16. Revista n.º 259/10.5TBESP.P1.S1 - Alves Velho.

17. Revista n.º 33/08.9YRGMR.S1 - Sousa Leite.

18. A interpretação o testamento (1991), 230-235.

19. A interpretação de negócio jurídico formal, O Direito, 121, nº4 (1989).

20. Processo n.º 259/10.5TBESP.P1.S1 (ALVES VELHO).

21. In Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., actualizada, pp 451-452.

22. Interpretação e integração do testamento, in Lições de Direito das Sucessões (1999), pp 472.

23. Ver, ainda, Ac. STJ de 13-01-2005 - Revista n.º 3607/04 - Araújo Barros.

24. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol II, pp 320.

25. Direito das Sucessões, 4ª ed., revista, pp 305-306.

26. Ver BAPTISTA MACHADO, “Sobre aplicação no tempo do novo Código Civil”, edição de 1968, pág. 97.

27. Ob. cit., pág. 186.

28. Neste sentido, ver o Ac. do STJ de 7.11.2019, 3077/16.3T8VIS.C1.S1 (Rosa Tching).

29. in Direito das Sucessões, Coimbra 1992, pág. 195.

30. Vide obra citada, fls. 199.

31. Lições de Direito das Sucessões, Vol. I, Coimbra, Editora. 1978, pág. 194.

32. Pág. 195, nota 257.

33. Processo n.º 251/96 - Machado Soares.

34. Processo n.º 869/97 - Lemos Triunfante.

35. Revista n.º 133/00 - Tomé de Carvalho.

36. Recurso n.º 13 230 - Licínio Vieira de Campos Caseiro.

37. Recurso n.º 25251 - Fernando Ferreira Pinto.

38. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, A Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 565.

39. Anotação ao ac. do STJ de 14.2.1978, na RDES, 1977, 170.

40. FRANCISCO PEREIRA COELHO, Curso de Direito da Família, 3ª Ed., Coimbra Editora, pp 174

41. JORGE MIRANDA; RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, Introdução Geral, Preâmbulo, Artigos 1.º a 79.º, Tomo I, 2.ª ed., Wolters Kluwer, Coimbra Editora, 2010, p. 836.

42. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, p. 565.

43. In Diário da Assembleia Constituinte, pp 4329.

44. Assim:

  Na jurisprudência, v.g.:

  Ac. STJ de 10.5.1988 (Heliseu Ferreira): “A partilha deve proceder-se de harmonia com as disposições legais vigentes à data da abertura da herança.

  II - Assim, no caso concreto, o artigo 36 n. 4 da Constituição, ao abolir a discriminação entre filhos, não quis afectar, no domínio do fenómeno sucessório, os direitos reais já subjectivados por actos ocorridos anteriormente segundo uma desigual medida da capacidade de suceder, tenha havido ou não partilha dos bens transmitidos.”

  Ac. do STJ de 26.10.1978 (BMJ 280, pp 321 ss): “I. As normas constitucionais não têm qualquer vocação de retroactividade. II. O disposto no artigo 36º, nº4 da Constituição da República, não é aplicável às heranças abertas antes da entrada em vigor da Lei Fundamental, mas só posteriormente partilhadas”.

  Ac. STJ de 28.10.1080 (proc. 69 080, in BMJ nº 300, pp 417 ss.): “O estatuído no artigo 36º, nº4, da Constituição da República, não é aplicável às heranças abertas antes da entrada em vigor da Lei Fundamental, mas só posteriormente”.

  Idem Ac. do STJ de 5.6.1979 (BMJ 288).

  Ac. RP de 14.2.2006 (proc. 0526812 – Henrique Araújo – disponível em www,dgsi.pt): “A actual redacção do nº 2 do artº 2139º do CC que, para efeitos sucessórios, não distingue entre filhos concebidos por casamento e fora dele, não se aplica às heranças abertas antes da entrada em vigor da Constituição da RP de 1976, pois que o que releva para a definição da lei aplicável é o momento da tal abertura”.

  Idem, da mesma Relação, de 29.04.1977, CJ Ano II, Tomo II, pp 490.

  Na Doutrina:

  Civilística, v.g.:

  OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil - Sucessões, 4.ª ed., Coimbra, 1989, págs. 346 e 347;

  PEREIRA COEHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito de Família, vol. I, 4.ª. ed., Coimbra, 2008, págs. 129 a 131;

  CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra, 1978, página 152, nota 209;

  GALVÃO TELES, Direito das Sucessões, 1971, págs. 307 e segs.

  LOPES CARDOSO, Parilhas J udiciais, 2º vol., p. 367; e Revista dos Tribunais, ano 95º, p. 279.

  Constitucional (em específico, quanto à “inconstitucionalidade superveniente”) v.g.:

  GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Gomes, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., reimp., Coimbra, 2014, pág. 976;

  JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 5.ª ed., Coimbra, 2003, págs. 303 e segs.;

  JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, 2007, págs. 824 e seg