Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19981/16.6T8SNT.L3.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
ANULAÇÃO
CONTRATO FIDUCIÁRIO
VALOR PROBATÓRIO
DECLARAÇÕES DE PARTE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
NEGÓCIO USURÁRIO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
Apenso:
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I- De acordo com o disposto no art.º 662.º do CPC, na reapreciação da decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação pode e deve formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida.

II- Inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações de parte, a prova testemunhal e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada.

III- Assim, o valor probatório das declarações de parte será aquele que lhe deva ser atribuído, caso a caso, pela análise prudente do juiz, nas concretas circunstâncias do caso, sendo certo que tais declarações assumirão muitas vezes um papel decisivo, nos casos em que são realizados negócios apenas com a presença dos intervenientes.

IV- Ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º, n.º 2, do Código Civil, que confere às partes a possibilidade de modelarem livremente o conteúdo dos contratos, é válido o negócio fiduciário, mediante o qual as partes pretenderam, primeiramente, transmitir a propriedade do imóvel de uma parte para a outra, para garantir o reembolso de um empréstimo. E, uma vez cumprido o empréstimo e esvaziada de sentido útil a garantia constituída, pretenderam assegurar a retransmissão da propriedade do imóvel novamente para o primeiro transmitente.

V- Porém, não será enquadrável naquela figura jurídica, o negócio em que existe uma escritura de compra e venda de um imóvel seguida de um contrato promessa de compra e venda desse mesmo imóvel, com vista à retransmissão do mesmo, mas em que tais negócios não foram queridos por uma das partes. Os mencionados negócios constituíram apenas um meio de a outra parte obter um lucro desproporcionado, explorando a situação de necessidade da primeira. Neste caso, melhor se adequa a qualificação do mesmo como negócio usurário, anulável ao abrigo do art.º 282.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:

AA intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra:

Portucale Ventures - Imobiliária, S.A. e

BB, todos melhor identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:

- que seja declarado «nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda entre A. e a R. sociedade, celebrado por escritura de 25 de Fevereiro de 2011, lavrada no Cartório Notarial de CC, de fls 50 a 51 vº do Livro de Notas para Escrituras Diversas 113, ou, sem conceder, seja anulado, sendo sempre declarados nulos, ou anulados, os registos de aquisição a favor da R. sociedade;

- e os RR. condenados a, solidariamente, pagar à A. indemnização no montante de 15.000,00 euros

Alegou, para tanto, em síntese:

No âmbito das partilhas subsequentes ao divórcio que dissolveu o vínculo matrimonial que a ligava a DD, foi-lhe adjudicada a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3.º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta ..., n.º... freguesia de Massamá e Concelho de Queluz.

Nessa partilha, a autora ficou de dar tornas ao seu ex-marido, no valor de € 10.000,00.

Não dispondo de tal quantia, respondeu a um anúncio num jornal onde era anunciado o empréstimo de dinheiro, na sequência do que foi contactada por uma pessoa de nome EE, que lhe disse conhecer um investidor que estava na disposição de lhe emprestar dinheiro, sob a condição de constituição de uma hipoteca sobre a fração, como garantia da restituição do montante mutuado e respetivos juros.

No dia 24 de fevereiro de 2011, a referida EE contactou a autora dando-lhe conta de que a escritura pública de mútuo e hipoteca teria de ser celebrada no dia seguinte, a pretexto de, nesse dia, o investidor se deslocar a Lisboa.

Assim, no dia 25 de fevereiro de 2011, num Cartório Notarial em Lisboa, foi-lhe apresentado o investidor, o 2.º réu, que se limitou a dizer que estava com muita pressa e que, para se ultimar o empréstimo era necessário que a autora assinasse de imediato a respetiva documentação, que já trazia consigo, o que esta fez, em estado de ansiedade e nervosismo, sem se aperceber daquilo que efetivamente estava a assinar.

Só mais tarde se apercebeu que, naquela data, assinou uma escritura nos termos da qual declarou vender a fração à 1.ª ré, pelo preço de € 18.000,00, quando estava convencida de que se tratava de uma escritura de mútuo e hipoteca.

Sucede que, dos referidos € 18.000,00, à autora apenas foi entregue a quantia de € 7.700,00.

O negócio formalizado não passou assim de um esquema ardiloso, arquitetado pelos réus, com o auxílio e conluio dos restantes intervenientes, que induziram a autora em erro, causando-lhe avultados prejuízos, nomeadamente subtraindo-lhe o direito de propriedade sobre um imóvel, contra a sua vontade e sem o seu conhecimento.

A autora apresentou queixa-crime contra o 2.º réu e a referida EE, sucedendo que o processo crime que se seguiu a tal queixa veio a ser arquivado por despacho do Ministério Público.

Nesse processo crime, os denunciados apresentaram um contrato-promessa de compra e venda, com a mesma data da escritura acima referida, do qual consta que a ré sociedade declarou prometer vender à autora, que declarou prometer comprar-lhe, a fração acima identificada, no prazo de seis meses, pelo preço de € 27.000,00.

A autora não celebrou com os réus qualquer contrato-promessa, presumindo que o documento que o consubstancia se encontrava entre o «molho de papéis» que lhe foi dado para assinar.

Não teve oportunidade de ler esse documento, o qual mais não é do que «um subterfúgio fabricado pelos RR. para com isso pretenderem justificar a sua abusiva actuação e apropriação ilegítima do património da A., e à custa dela».

*

Os réus contestaram, arguindo:

a) a excepção dilatória da incompetência territorial do tribunal onde a ação foi inicialmente distribuída;

b) a excepção peremptória da prescrição do direito que a autora pretende fazer valer através desta ação.

No mais, defendem-se por via de impugnação.

A primeira ré deduziu reconvenção, alegando, em síntese, que a Autora, no âmbito do referido contrato-promessa, foi interpelada para comparecer no local e na data que lhe foram indicados com vista à realização do contrato definitivo, não o tendo feito.

No entanto, continua a residir na fração até à data, pelo que a 1.ª ré é credora da autora em montante equivalente ao do arrendamento local, ou seja, à razão de € 300,00 por cada mês decorrido desde a data do início retenção do imóvel, o que perfaz a quantia de € 17.100,00.

Concluem pedindo a procedência da excepção invocada e, em qualquer caso, a improcedência da acção e absolvição dos réus dos pedidos. Mais pedem a condenação da Autora no pedido reconvencional.

*

Na réplica, a autora respondeu à matéria de excepção e deduziu oposição à reconvenção.

Julgada procedente a excepção dilatória da incompetência territorial do tribunal, foram os autos remetidos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa.

*

Na audiência prévia foi julgada improcedente a invocada exceção da prescrição.

*

Mediante despacho de fls. 239-242, foi julgada verificada a exceção dilatória de litispendência quanto à reconvenção, com a consequente absolvição da autora da instância reconvencional.

*

Decorridos todos os trâmites legais, veio a ser realizado o julgamento e proferida a primeira sentença, em 27-06-2019, que julgou a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos.

Interposto recurso de apelação, veio o Tribunal da Relação a proferir o acórdão datado de 19-05-2020, que anulou a sentença proferida e determinou a devolução do processo à primeira instância, nos termos e para os efeitos descritos no acórdão.

Foi proferida a segunda sentença, em 09-05-2022 que, de novo, decidiu julgar a acção improcedente e absolveu os réus dos pedidos.

A Autora voltou a interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação proferido segundo acórdão, em 08-11-2022.

Considerando que a 1.ª instância não tinha cumprido integralmente o determinado no acórdão de 19 de maio de 2020, o Tribunal da Relação voltou a anular a sentença proferida.

Em 22-02-2024, foi proferida a 3.ª sentença que manteve a improcedência da acção e consequente absolvição dos réus.

De novo inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação proferido acórdão, em 08-04-2025, que julgou a apelação procedente, revogou a sentença recorrida e declarou “nulo o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública celebrada no dia 25 de fevereiro de 2011, no Cartório Notarial deCC, pela qual a autora, AA, declarou vender à 1.ª ré, Portucale Ventures - Imobiliária, S.A., pelo preço de € 18.000,00 (dezoito mil euros), a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3º andar direito para habitação, do prédio urbano sito na Praceta ..., nº ..., freguesia de Massamá e Concelho de Queluz,(…)”.

Inconformados, os réus vêm interpor recurso de revista, para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

A)Recorre-se de revista do douto acórdão que julgou procedente a apelação, revogou a sentença recorrida e declarou anulado o negócio jurídico de compra e venda operado entre as partes.

B)Os Recorrentes pugnam pela manutenção da Sentença proferida pelo tribunal de primeira instância nos precisos termos nesta contidos, uma vez que a fundamentação aduzida encontra-se juridicamente bem sustentada e fiel aos princípios a que deve obediência, sendo merecedor de louvor o elevado acerto da mesma e não de qualquer censura como pretende a Apelante.

C)O acórdão recorrido começa por referir que os Apelados não presentaram contra-alegações – o que não é verdade.

D)As contra-alegações de recurso foram apresentadas a 07-05-2024.

E) As mesmas não foram analisadas e tidas em consideração pelo Tribunal da Relação – assim padecendo o acórdão proferido de nulidade.

F) Para revogar a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação veio dar como provados factos que assentaram, única e exclusivamente, nas declarações de parte da Apelante e no depoimento da sua filha.

G) O tribunal de primeira instância apreciou livremente as declarações de parte prestadas pela Recorrida.

H)O julgador tem em conta não só o teor das declarações, mas também a forma como a declarante se exprime, como se comporta, a sua expressão corporal e, em confronto com a demais prova produzida, se a versão das declarações merece credibilidade – tudo alicerçado no princípio da imediação.

I)O acórdão recorrido faz tábua rasa do princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, ao focar-se nas gravações das declarações de parte da Apelante.

J) A prova não começa e termina naquilo que é dito em audiência de julgamento.

K) “(…) a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto foi formada de acordo com o que lhe foi dado experienciar na audiência de julgamento, pelo que foi dito e pela forma como o foi, observando com a atenção e perspicácia a postura corporal das testemunhas e do senhor perito, proporcionado pelo principio da imediação. Se está certo ou errado, é a livre convicção do julgador na apreciação da prova e garante da sua integridade, imparcialidade, liberdade e independência.” – conforme despacho proferido a 06-01-2025.

L) O acórdão recorrido faz uma errada aplicação do artigo 466.º do Código de Processo Civil ao utilizar as declarações de parte como única referência probatória para dar como provados um conjunto de factos que foram impugnados no recurso do recorrente.

M) A livre apreciação que o Tribunal faz das declarações de parte – conforme disposto no n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil – não pode significar que o Tribunal possa fazer aquilo que fez, ou seja que se possa estribar unicamente neste meio de prova para dar factos como provados!

N) A parte, no momento em que presta as suas declarações, mais não está a fazer, na parte em que estas lhe sejam favoráveis, do que a reafirmar aquilo que alegou na sua Petição Inicial. Numa palavra está a alegar factos que devem ser depois comprovados através de outros meios de prova.

O) Esta realidade impõe que este meio de prova seja conjugado com outros meios de prova que o corrobore, apontando para uma mesma conclusão em termos fácticos.

P) Entende o Recorrente que se verifica uma verdadeira subsidiariedade deste meio de prova.

Q) Neste sentido aponta até o regime que estabelece que as declarações de parte podem ser requeridas até ao final da audiência de julgamento.

R)Se é certo que o Supremo Tribunal de Justiça só se pronuncia quanto a matéria de Direito, é igualmente certo que o acórdão recorrido estribou a sua decisão em dois alicerces: a matéria que deu provada (e que o tribunal de primeira instância entendeu como não provada) e a prova pericial (que o tribunal de primeira instância não valorou da mesma forma).

S) Para dar como provados os factos que o tribunal de primeira instância considerou como não provados, o Tribunal da Relação recorreu, única e exclusivamente, às declarações de parte da Apelante.

T) E era isto que não poderia fazer.

U) A prova é apreciada livremente pelo julgador, com a devida ponderação e a partir da análise de cada meio de prova.

V)A propósito da valoração das declarações de parte, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 19-12-2024 (processo n.º 26696/21.1T8LSB.L1-6), faz o seguinte resumo quanto à posição da doutrina e jurisprudência:

No essencial, existem três teses que são defendidas na nossa doutrina e a jurisprudência quanto à função e valoração das declarações de parte.

Uma primeira tese defende que as declarações de parte são supletivas e apenas se encontram vinculadas ao conhecimento dos factos, uma segunda tese preconiza que as declarações de parte constituem um princípio de prova e uma terceira tese que defende que as declarações de parte são por si só suficientes. Perante as três teses existentes, é entendimento deste Tribunal que no encontro de todas as teses, resulta uma quarta tese no sentido que as declarações de parte devem ser livremente apreciadas pelo Tribunal que, caso a caso, atento o modo como são prestadas, deve ou não valorá-las de modo positivo ou negativo, conjugando-se ou não com outros meios probatórios, sustentando ou não a sua convicção.”

W) O acórdão recorrido revoga a decisão proferida pela primeira instância escorando-se, única e exclusivamente, nas declarações de parte da Apelante, que ouviu em gravações.

X) O que ofende e viola os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.

Y) A decisão da primeira instância tem o cuidado de esclarecer que não ficou convencida com nenhuma das teses apresentadas, nem pela Autora, nem pelos Réus.

Z) Tem o cuidado de esclarecer que ficou convencido que o negócio operado teve contornos que nenhuma das partes esclareceu de forma convincente e isenta.

AA) Entendeu, ainda, que cabia à Autora, Apelante e aqui Recorrida, fazer a prova cabal de que se encontrava numa posição de fragilidade perante os Réus, que assim se teriam aproveitado da sua debilidade para obter um ganho às suas custas.

BB) Mas essa prova não foi feita.

CC)Teria de estar demonstrada “a consciência da situação de necessidade, inexperiência, dependência, ou deficiência psíquica de alguém”.

DD) A Autora e Apelante não demonstrou que os Réus tinham conhecimento de uma situação de fragilidade que pudessem explorar em seu benefício.

EE) O tribunal de primeira instância é, neste ponto, bastante esclarecedor: “Em suma, analisada a prova produzida, não tem o Tribunal elementos necessários para afirmar que a autora estava numa situação de inferioridade, de inexperiência, de ligeireza, de dependência, de estado mental debilitado ou afectado ou de fraqueza de carácter quando celebrou a escritura.

Aliás, salvo o devido respeito, a justificação que a autora arranjou para despoletar todo este imbróglio negocial a exigência de tornas pelo seu ex-marido é em sim inverosímil para não dizer caricato. É que a autora não se tinha divorciado há dois anos mas, segundo a filha dela, há mais de trinta anos! Pelo exposto, e sem necessidade mais considerações, a pretensão da autora tem, como acima se referiu, de ser julgada totalmente improcedente.”

FF)O acórdão recorrido faz tábua rasa de toda esta fundamentação, porque se alicerça apenas nas declarações de parte da Apelante e no testemunho da filha desta para dar como provada toda a factualidade que o tribunal de primeira instância deu como não provada.

GG) Violando o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, assente no princípio da imediação.

HH) O acórdão recorrido vai buscar, ainda, a valoração da prova pericial, para confirmar que os Réus, aqui Recorrentes, tinham conhecimento do valor de mercado do imóvel objecto do negócio.

II)A existirem dúvidas sobre o relatório pericial, as mesmas devem ser esclarecidas junto do perito que elaborou o mesmo: “Existindo dúvidas fundadas, nomeadamente por força da junção de documentos médicos, quanto à comprovação da data constante daquele relatório, deve o tribunal proceder às diligências tidas como necessárias, designadamente através da obtenção de esclarecimentos junto do perito responsável pela elaboração daquele relatório.” – vide acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 24-09-2020 (processo n.º 17743/19.8T8PRT-D.P1).

JJ) O que o tribunal a quo fez.

KK) Concluindo, dos esclarecimentos prestados pelo perito, que não era possível que este, mais de uma década decorrida sobre os factos em apreço, pudesse fixar o valor de mercado do imóvel em 2011.

LL) Presumiu que o imóvel em 2011 estaria devoluto – quando resulta da prova testemunhal que nunca o esteve.

MM)A valoração da prova feita pelo tribunal, alicerçada nos esclarecimentos feitos pelo perito em sede de audiência de julgamento, não merece qualquer reparo.

NN) Até porque outras testemunhas, também elas mediadoras imobiliárias, avaliaram o imóvel noutros montantes.

OO) Trata-se, no entanto, de uma questão tangente.

PP) A Autora teria de demonstrar que:

1-Foi ludibriada;

2-Que estava numa situação de fragilidade;

3-Que não percebeu o negócio que estava a concretizar;

4-Que os Réus sabiam da fragilidade da Autora e que a levaram a cair no logro, com o objectivo de enriquecer às suas custas.

QQ) A Autora não prova nem a fragilidade, nem o logro, nem que os Réus agiram com o intuito de obter um aproveitamento às suas custas.

RR) O acórdão recorrido conclui tal porque vem valorar as declarações de parte da Autora – o que não pode ser admitido.

SS) O que foi dado como não provado pela primeira instância foi que a Autora não conhecia FFe GG.

TT) E a prova cabia à Autora fazê-la – o que não fez.

UU) O acórdão recorrido pretende inferir factos dos depoimentos que, na verdade, não estão demonstrados.

VV) Não ficou demonstrado qualquer conluio entre as partes.

WW) O que está, de facto, provado, por documento autêntico – a escritura pública de compra e venda – é que a Autora vendeu o imóvel aos aqui Recorrentes e que recebeu o valor do preço através da entrega de cheques.

XX)Os Recorrentes desconhecem e não têm obrigação de saber o destino que a Autora deu aos ditos cheques.

YY) E a Autora não logrou provar o contrário.

ZZ) Todas as partes sabiam qual era o negócio (compra e venda e posterior contrato-promessa de recompra) que estavam a fazer e quiseram-no.

AAA) As partes outorgaram o negócio que acordaram e aceitaram, correspondendo à verdade as declarações expressas nos documentos outorgados, que configuram uma transmissão onerosa e não gratuita.

BBB) Os Recorrentes pagaram efetivamente os valores acordados, conforme consta da própria escritura, que foi o preço que as partes ajustaram e que era razoável atendendo ao estado do imóvel, ao facto de a Autora manter a posse do mesmo e atendendo ao então mercado imobiliário, com faculdade de recompra.

CCC)A tese da simulação carece por completo de sentido, desde logo porque a Ré é uma sociedade dedicada ao imobiliário, não conhecia os vendedores nem tinha qualquer relação próxima destes e pagou-lhes o preço devido pela compra.

DDD) Conclui-se que não corresponde à verdade, que a Autora tenha sido de algum modo enganada pelos Recorrentes para outorgar a escritura de compra e venda e demais documentação, pois,

a.A Autora sabia, exatamente, qual era o negócio (compra e venda e posterior contrato-promessa de recompra) que estava a fazer e qui-lo, nos seus precisos termos.

b.A escritura foi lida em voz alta pela Notária, foi explicado expressamente o seu conteúdo, pelo que, a Autora sabe, perfeitamente, que vendeu o imóvel, de livre e espontânea vontade;

c.A Autora, na data da escritura, não se apresentava com sinais de debilidade e de falta de compreensão;

d.Tendo a Notária questionado expressamente se tal escritura representava a vontade de todos e todos anuíram, sem que tivessem ninguém a coagi-los, nem a obrigar à outorga dos contratos.

EEE) O preço acordado foi pago, e se a Autora considerava que o valor do imóvel não era justo, tinha sempre a liberdade contratual de não o vender e de não outorgar a escritura.

FFF) Os Recorrentes desconhecem o que a Autora fez com os valores que recebeu, nomeadamente se pagou quaisquer comissões, sabe é que recebeu o preço acordado e depois fez o que entendeu.

GGG) Não estamos perante uma simulação de negócios nem perante usura – Estamos perante a liberdade contratual das partes.

HHH) A Autora quis vender o imóvel, os Réus quiseram comprá-lo.

III)O preço acordado reflectia não só o estado do imóvel, mas também o facto de a Autora permanecer na posse do mesmo, com a possibilidade de o adquirir novamente pouco tempo depois.

JJJ) O que a Autora pretendia fazer durante esse espaço de tempo – por exemplo, renovar o imóvel, encontrar um terceiro comprador para o imóvel, arrendar o imóvel, etc. – os Réus são absolutamente alheios a tal.

KKK) De forma alguma decorre da prova coligida que a Autora fosse incapaz e que não estivesse nas suas perfeitas faculdades quando outorgou a escritura e o contrato promessa de compra e venda.

LLL) O acórdão recorrido só conclui o contrário porque se refugia nas declarações da própria Autora – que mais não faz do que replicar o que alegou na sua Petição Inicial.

MMM)A este respeito, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 26-04-2018 (processo n.º 2037/13.0TBPVZ.P1.S1):

I - Para além das garantias previstas na lei garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia.

II-Dentro do género, surge a figura da alienação fiduciária ou venda em garantia, a qual constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade.

III-O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (art. 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, e o fim visado.

IV-A respeito da validade dos negócios fiduciários, na vigência do actual CC, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a tese da sua admissibilidade.

V-Acolhendo esta tese, entende-se por acertado o entendimento de que a celebração de negócios jurídicos fiduciários é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei.

VI-Numa situação em que os réus outorgaram entre si, simultaneamente, uma escritura de compra e venda onde o primeiro declarou vender e os segundos declararam comprar e um contrato-promessa de compra e venda onde os segundos declararam prometer vender e o primeiro declarou prometer comprar do mesmo imóvel, tendo tais negócios em vista garantir o pagamento do empréstimo de uma quantia de 30 000, a celebração destes dois contratos de sinal contrário um com natureza real e outro com natureza obrigacional relacionados funcionalmente por um nexo ou escopo de garantia, constituem negócio fiduciário válido.”

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão da Relação, fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA”

II-OS FACTOS

Após a decisão sobre a impugnação da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação foi definitivamente fixada a seguinte factualidade provada e não provada:

1.Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz 5, sob o n.º 4450/09.9T2SNT-E, inventário para partilha de bens em casos especiais, em que foi requerente, AA, e requerido/cabeça de casal, DD.

2. No dia 2 de julho de 2010, requerente e requerido/cabeça de casal, apresentaram no processo identificado em a), requerimento contendo uma transação da qual consta, além do mais, o seguinte:

1.º

Requerente e requerido acordam reciprocamente em atribuir ao imóvel, verba única do ativo (...)1 o valor de 65.000,00€, constante do relatório de avaliação junto aos autos.

2.º

As partes acordam que tal prédio fique adjudicado à requerenteAA (...).

3.º

Nestes termos a Requerente ficará como única proprietária do prédio urbano supra descrito (...).

5.º

Fica assim o Requerido com direito a receber, a título de tornas a serem pagas pela Requerente, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros).

6.º

Mais acordam que tal quantia será paga pela Requerente em duas prestações, por transferência bancária para conta do Requerido com o NIB (...), sendo a primeira na importância de 5.000,00€, paga de imediato na assinatura do presente acordo e a segunda prestação de igual montante, paga até ao dia 30 de setembro de 2010, por forma à Requerente conseguir obter financiamento bancário para pagamento da segunda prestação».

3. Sobre essa transação recaiu a seguinte sentença, também datada de 2 de julho de 2010:

«Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens comuns que foram do casal constituído por AAeDD(...), homologo pela presente sentença a partilha constante do requerimento de fls. 552-553, adjudicando as verbas e condenando-os a cumprir com as obrigações aí consagradas».

4. A partir de data não apurada, mas após a celebração do acordo referido em 2., o ex-marido da autora começou a insistir com esta para que lhe pagasse o montante das tornas ali referidas.

5. Em novembro de 2010, faleceu a mãe da autora e nasceu sem vida, uma filha de uma sua nora, o que lhe provocou um forte abalo psicológico;

6. (...) o que, associado à cada vez maior insistência do seu ex-marido no recebimento das tornas, a deixou perturbada e transtornada.

7. A autora procurou o financiamento dos € 10.000,00 referidos em 2., junto de instituições bancárias e financeiras, mas sempre sem sucesso;

8. Como tais tentativas resultaram infrutíferas, a autora ligou para um número de telemóvel que viu anunciado no jornal “Ocasião” como pertencendo a alguém que emprestava dinheiro.

9. (...) tendo sido atendida por um indivíduo que se assumiu como engenheiro e a informou que apenas tinha disponibilidade para lhe emprestar até € 1.000,00, mas conhecia uma pessoa que a poderia ajudar, e que mais tarde lhe daria o contacto dessa pessoa;

10. Essa tal pessoa telefonou-lhe logo a seguir, identificando-se como EE, e afirmando ser assessora do Banco Santander.

11. (...) altura em que a autora expôs a EE a razão pela qual necessitava com urgência que lhe fosse concedido um empréstimo no valor de € 10.000,00, tendo esta afirmado que lhe conseguia o dinheiro;

12. EE marcou, então, um encontro com a autora para o dia seguinte, num café sito em Entre Campos, Lisboa, onde esta deveria comparecer, fazendo-se acompanhar de toda a documentação que tivesse em seu poder referente à fração;

13. No dia seguinte, a autora e EE encontraram-se no café por esta indicado, onde aquela:

- expôs novamente a razão pela qual necessitava que lhe fosse emprestada a quantia de € 10.000,00;

- entregou a EE a documentação que levou consigo, referente à fração, após o que esta se retirou, levando consigo a documentação.

14. No dia 25 de Fevereiro de 2011, foi celebrado contrato de compra e venda formalizado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de CC que teve por objecto a fracção autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3º andar direito para habitação do prédio urbano sito ..., nº ... freguesia de Massamá e Concelho de Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz com o nº .14 daquela freguesia, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .31, agora correspondente ao artigo .75 da União das freguesias de Massamá e Monte Abraão.

15. Por via desse contrato a autora declarou vender e a ré Portucale Ventures – Imobiliária, S.A. aceitou comprar a fracção autónoma identificada em 1. pelo preço de 18.000,00 euros que a autora declarou ter recebido e do qual deu quitação.

16. Aquela aquisição encontra-se registada pelas Ap. ...1 de 22/02/2011 e pela Ap. ..74 de 4/3/2011.

17. Para pagamento do preço foram emitidos quatro cheques em nome da autora, sacados sobre a conta .......19 da ré sociedade no Banco Popular, mais concretamente:

- Nº ........20, datado de 25/2/2011, no valor de 9.700,00 euros;

- Nº ........40, datado de 25/2/2011, no valor de 1.870,00 euros;

- Nº ........43, datado de 25/02/2011, no valor de 2.430,00 euros;

- Nº ........37, datado de 25/02/2011, no valor de 4.000,00 euros.

18. Na mesma data, 25 de Fevereiro de 2011, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda onde se fez constar que a ré e a autora acordaram que a ré se obrigava a vender à autora e esta prometia comprar a fracção autónoma identificado em 1. pelo preço de 27.000,00 euros.

19. Mais se refere que a escritura pública de compra e venda seria celebrada no prazo máximo de 180 dias e as condições de pagamento do preço, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 34 a 36 dos autos.

20. O cheque no valor de 9.700,00 euros foi logo levantado pela autora ao balcão do Banco Popular sito em Lisboa – Saldanha.

21. O cheque de 1.870,00 euros foi levantado no mesmo balcão da mesma agência bancária.

22. O cheque de 2.430,00 euros foi creditado em conta bancária de GG.

23. A autora desconhecia e desconhece a referida GG;

24. O cheque de 4.000,00 euros foi levantado por FF.

25. A autora desconhecia e desconhece o referido FF, a quem não entregou o cheque referido em 10.

26. Com referência ao cheque referido em 20., a autora apenas recebeu 7.700,00 euros que pensou terem-lhe sido mutuados, poisEE retirou para si € 2.000,00, com o argumento de que tal quantia se destinava ao pagamento dos seus honorários.

27. A autora desconhecia e desconhece GG, titular da conta referida em 9. dos factos provados;

28. (...) assim como desconhecia e desconhece FF, a quem não entregou o cheque referido em 10. dos factos provados, ou determinou o pagamento.

29. Após a celebração do contrato referido em 1., a autora entregou à ré a quantia de € 400,00.

30. A autora entregou tal quantia à ré, no convencimento de que o estava a fazer para amortização do mútuo.

31. A ré comunicou à autora, por carta registada com A/R, em 29 de maio de 2012, que nos termos do número dois da cláusula quarta do contrato-promessa referido em 5., a marcação da escritura pública de compra e venda da fracção identificada em 1., para o dia 29 de Junho.

32. A autora não compareceu para a concretização da outorga da escritura pública.

33. A autora continua a morar na fracção identificada em 1.

34. A autora apresentou queixa-crime contra o 2º réu, na qualidade de administrador único da 1ª ré e contra EE, tendo corrido termos o Processo de Inquérito nº 414/12.3T3SNT na 8ª Secção do DIAP de Lisboa, no qual veio a ser proferido, a final, despacho de arquivamento.

34. Da escritura de compra e venda consta expressamente que a Sra. Notária explicou o conteúdo da mesma às partes.

35. À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00;

36. (...) o que era do conhecimento da compradora. *

Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa não resultou provado que:

a)A autora no dia da outorga do contrato de compra e venda tinha conhecimento do negócio que ia outorgar e que correspondia ao real negócio que ia efectuar;

b) No interior do cartório notarial e em momento anterior ao da outorga do instrumento de compra e venda foi explicado à autora toda a documentação que sustentava o negócio;

c) A ré sempre quis comprar e prometer vender a fracção identificada nos autos;

d) A ré nunca quis emprestar quaisquer valores e tal questão nem lhe foi posta;

e) O que o Dr. HH propôs aos réus era se a ré estava interessada em adquirir um imóvel pelo valor de 18.000.00 euros celebrando um contrato de promessa compra e venda pelo prazo de 6 meses e pelo valor de venda de 27.000,00 euros, conforme proposto a este;

f) Esta proposta foi aceite pela ré, sendo que ambos os réus desconheciam se a autora pretendia um empréstimo, se tinha dificuldades financeiras, se estava com problemas do foro psicológico, se tinha de dar tornas ao ex-marido, ou se havia comissões.

III-O DIREITO

Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição do Tribunal, (cfr. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

1-Nulidade do acórdão

2-Princípio da livre apreciação da prova e sua observância por parte do acórdão recorrido

3-Valor probatório das declarações de parte

4-Negócio usurário/ contrato fiduciário

1-Os recorrentes vêm invocar a nulidade do acórdão recorrido, com base no facto de no mesmo constar que “não foram apresentadas contra-alegações”, quando tal não corresponde à verdade. As contra-alegações de recurso foram apresentadas a 07-05-2024. Segundo os Recorridos, tal significaria que as contra-alegações não tinham sido consideradas na apreciação do recurso o que demandaria a nulidade do acórdão.

O Colectivo, em conferência, reconheceu tratar-se de “uma inexactidão devida a manifesto lapso de escrita, que importa corrigir, nos termos dos artigos. 613.º, n.º 2, 614.º, n.º 1 e 666.º, n.ºs 1 e 2, consignando-se que as contra-alegações apresentadas pelos apelados foram tidas em consideração na prolação do referido acórdão.”

Assim, determinou que, onde no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, consta «Não foram apresentadas contra-alegações», deve passar a constar «Os apelados contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida».

E determinou a correcção do acórdão em conformidade.

Em face da ordenada correcção do acórdão, ficou sanado o lapso de escrita de que padecia o acórdão que, em todo o caso, não configuraria qualquer nulidade, por não se enquadrar em qualquer dos fundamentos constantes do art.º 615.º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).

Improcede, pois, a invocada nulidade do acórdão.

2-Os Recorrentes concluem que o acórdão recorrido faz uma errada aplicação do art.º 466.º n.º 3 do CPC, ao utilizar as declarações de parte como única referência probatória para dar como provados alguns factos que foram impugnados no recurso da Apelante. Defendem os Recorrentes que o Tribunal não se pode “estribar unicamente neste meio de prova para dar factos como provados.

Concluem ainda os Recorrentes que “o acórdão recorrido revogou a decisão proferida pela primeira instância escorando-se, única e exclusivamente, nas declarações de parte da Apelante, que ouviu em gravações”, o que, alegam, “ofende os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.”

Está, pois, em questão, a utilização dos poderes do Tribunal da Relação no âmbito da reapreciação da matéria de facto, importando averiguar se aquele Tribunal extravasou o âmbito desses poderes.

Com efeito, essa é a questão jurídica a que podem reconduzir-se as conclusões dos Recorrentes.

De acordo com o disposto no art.º 674.º n.º3 do CPC, “ o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.”

De certo modo, a questão suscitada pelos Recorrentes poderia enquadrar-se na última parte deste preceito, uma vez que parece pretenderem pôr em questão a força probatória das declarações de parte, defendendo serem as mesmas, desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, inidóneas para fundamentar a prova dos factos em causa e, concomitantemente, a decisão do Tribunal da Relação no sentido de alterar a decisão fáctica da 1.ª instância.

Contudo, os Recorrentes não alegam ofensa de qualquer disposição expressa da lei que sustente a sua tese de que as declarações de parte não são meio de prova idóneo e suficiente para provar os factos em apreço. E nem o poderiam fazer, pois, na verdade, não existe tal disposição legal.

Por isso, não é possível integrar a questão suscitada pelos Recorrentes no mencionado preceito legal.

Retornamos, assim, à subsunção da questão no âmbito dos poderes da Relação, em conformidade com o disposto no art.º 662.º n.º 1 do CPC. De acordo com este preceito, “A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

A propósito deste preceito legal, a Doutrina e a Jurisprudência muito têm reflectido sobre a respectiva interpretação e âmbito dos poderes-deveres conferidos à Relação nesta matéria.

É hoje jurisprudência dominante neste Supremo Tribunal de Justiça que “a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.”2

Assim, “desde que não existam motivos para rejeitar o recurso de impugnação da matéria de facto, nos termos do art.º 640 (com o sentido que uniformemente vem sendo dado pelo Supremo Tribunal de Justiça (…), os objectivos projectados pelo legislador no que concerne ao duplo grau de jurisdição determinam o seguinte:

a)Reapreciação dos meios de prova especificados pelo recorrente através da audição das gravações e/ou das transcrições que porventura sejam apresentadas;

b)Conjugação desses meios de prova com outros indicados pelo recorrido ou que se mostrem acessíveis, por constarem dos autos (…)

d)Formação da convicção autónoma em relação à matéria de facto impugnada, introduzindo na decisão as modificações que forem consideradas pertinentes.

e)Sem embargo da ponderação das circunstâncias que rodeiam o julgamento da matéria de facto, a Relação goza no exercício desta função dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, sem exclusão dos que decorrem do princípio da livre apreciação genericamente consagrado no art.º 607.º n.º5 do CPC e a que especificamente se alude nos artigos 396.º ( prova testemunhal), 349.º (presunções judiciais), 351.º ( reconhecimento não confessório), 376.º n.º3 ( certos documentos), 391.º (prova pericial), todos do Código Civil, e artigos 466.º n.º3do CPC ( declarações de parte).

f)Consequentemente está afastada, em definitivo, a defesa de que a modificação na decisão da matéria de facto apenas deve operar em casos de “erros manifestos”, assim como é insuficiente que na apreciação do recurso de apelação, na parte que envolva a decisão sobre a matéria de facto, a Relação se limite a aludir a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas, sem efectiva ponderação dos meios de prova produzidos e que se mostram acessíveis. Sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, desde que a Relação, no quadro da aplicação do art.º 662.º, acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, deve refletir em nova decisão esse recultado.”3

É, assim, entendimento consolidado na Doutrina e na Jurisprudência que, de acordo com o referido art.º 662.º do CPC, o Tribunal da Relação poderá e deverá “formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada 4

Também Miguel Teixeira de Sousa5, a propósito defende que “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (…) ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Ora, emerge da análise do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação, depois de verificar que a Autora /Apelante cumpriu, nos termos legais, o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, procedeu à audição da gravação dos depoimentos, como os Recorrentes reconhecem. Confrontou o conteúdo de tais depoimentos, com outros elementos probatórios, designadamente a prova pericial e a prova documental. E, por fim, fruto de pormenorizada análise crítica das provas que foram decisivas para formar a sua convicção, deu como provado todo o circunstancialismo fáctico daí decorrente e aditou tais factos ao acervo fáctico fixado pela 1.ª instância. Dessa alteração da factualidade dada como provada, resultou, como é natural, uma solução jurídica diferente daquela que tinha sido atingida pela 1.ª instância.

Claro que os Recorrentes que viram a decisão do litígio revertida, contra si e a favor da Autora, por força da alteração da factualidade apurada, discordam da alteração da decisão sobre a matéria de facto, mas tal discordância é irrelevante para pôr em causa a realidade que se impõe que é a de reconhecer que o Tribunal da Relação procedeu ao integral cumprimento do preceituado no art.º 662.º do CPC, sendo certo que este Tribunal actuou no pleno uso dos poderes que a lei lhe confere, plasmados naquele normativo e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova., segundo a sua prudente convicção ( art.º 607.º n.º5 do CPC).

Resulta, assim, de todo o exposto, a total improcedência da invocada ofensa dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso a este propósito.

*

3-Importa agora analisar a questão de saber se alguma disposição legal impedia a Relação de fundamentar a sua convicção, relativamente a determinados factos, exclusivamente nas declarações de parte da Apelante.

Desde logo, não é exacto que o Tribunal da Relação tenha fundamentado a sua convicção exclusivamente nas declarações de parte da Apelante.

Como decorre do que ficou exposto, a Relação elaborou uma análise crítica das declarações de parte, conjugando tal meio probatório com os restantes meios de prova designadamente com a prova testemunhal e documental produzida, verificando aquele Tribunal que, desse confronto, as declarações de parte resultavam coerentes e, por isso, credíveis.

Mas ainda que, por hipótese de raciocínio, o Tribunal recorrido tivesse formado a sua convicção, em exclusivo, baseado nas declarações de parte, não se vê que tal ofendesse qualquer preceito legal.

Com efeito, “a prova por declarações de parte corresponde a um meio probatório expressamente previsto e admitido na lei - artigo 466.º do CPC, tal como sucede com a prova testemunhal- art.º 396.º do CC- e está sujeito à livre apreciação do tribunal se e na medida em que não envolvam confissão (n.º 3 do citado art.º 466.º) e que apenas tem a particularidade de serem provenientes de quem se sabe, à partida, ter interesse directo no desfecho da causa, com o consequente risco ou probabilidade de transmitir uma versão dos factos menos objectiva. Mas, obviamente, sem prejuízo de ter essas circunstâncias em consideração e de avaliar o depoimento com as cautelas que se impõem, o juiz não está impedido de fundar a sua convicção em relação aos factos – sejam eles essenciais ou não – nas declarações de parte (isoladamente ou em conjugação com outros elementos probatórios), nos mesmos termos em que pode e deve fazê-lo em relação à prova por testemunhas, sendo certo que a prova testemunhal também não está imune (longe disso) ao risco de falsear a verdade por força de diversas circunstâncias que afectam – ou podem afectar – a isenção e credibilidade de cada uma das testemunhas, seja por via de interesse (ainda que indirecto) que possam ter no desfecho da causa, seja pela sua proximidade em relação a uma das partes ou pelas desavenças em relação à outra.

Todas essas circunstâncias – seja no que toca à prova por declarações de parte, seja no que toca à prova testemunhal – têm que ser ponderadas pelo juiz, no sentido de avaliar a credibilidade de cada um dos depoimentos, procurando, por essa via, no conjunto de todos os elementos probatórios – tendo em conta, designadamente, as concretas circunstâncias em que cada um foi produzido e as coerências ou incoerências que entre eles se detectem – formar a sua convicção acerca da realidade dos factos que lhe cabe averiguar e julgar.

Dizendo de outra forma, o regime de valoração da prova por declarações de parte não está submetido, do ponto de vista formal e legal, a qualquer restrição e não é, na sua essência, diferente daquele que vigora em relação a outros meios probatórios (designadamente a prova testemunhal) que estejam submetidos à livre apreciação do julgador; o que está em causa – e é esse o papel do julgador – é apurar, com ponderação de todos os elementos ou circunstâncias que podem afectar a sua isenção ou credibilidade, se o depoimento em causa, atendendo às concretas circunstâncias em que foi produzido, tem (ou não) idoneidade bastante para, isoladamente ou em conjugação com outros elementos provatórios, fundar a convicção do juiz. O valor probatório dessas declarações será, portanto, aquele que, casuisticamente, lhe deva ser atribuído pela análise prudente do juiz nas concretas circunstâncias do caso.”6

E é nesta linha também o ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa7 ao referir que:

“(…) enquanto no ordenamento jurídico português tem vindo a fazer caminho uma equivocada desvalorização da prova por declarações de parte, no direito alemão recorre-se a essa prova para ultrapassar um non liquet sobre o facto probando. Visto por esta prespectiva, o contraste não podia ser mais evidente. No entanto (…) no direito português não só não existe nenhuma justificação legal para uma posição divergente daquela que vale para o direito alemão, como até existem elementos que contrariam qualquer divergência entre os dois ordenamentos.

Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos, pode ainda precisar-se”.

E nas palavras de Luis Filipe Pires de Sousa8, “inexiste qualquer hierarquia apriorística entre as declarações de parte, a prova testemunhal e a restante prova produzida, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia”.

Assim o entendemos também, pelo que, necessariamente, não podemos aderir à tese plasmada nas conclusões de recurso de desvalorização apriorística das declarações de parte.

Sendo certo que o valor probatório das declarações de parte será aquele que, lhe deva ser atribuído, caso a caso, pela análise prudente do juiz nas concretas circunstâncias do caso, é claro que tais declarações assumirão muitas vezes um papel decisivo, em situações , como se verifica no caso vertente, em que são realizados negócios apenas com a presença dos intervenientes9.

Destaca-se o que consta do acórdão recorrido, em sede de fundamentação da convicção do Tribunal com referência às declarações de parte, como bem revelador da profunda análise crítica de que as mesmas foram objecto e como o mesmo Tribunal justifica e demonstra, de forma convincente, a credibilidade que é devida a tal meio probatório:

- a autora revelou conhecimento direto acerca dos factos sobre os quais foi inquirida, pois foi ela quem vivenciou, na primeira pessoa, todo o processo que culminou na realização do negócio cuja invalidade é pretendida através desta ação;

- por vezes, o seu discurso foi algo confuso, consequência, reitera-se, do nervosismo e da forte carga emocional em que se encontrava, e também, insiste-se, do modo como o interrogatório foi conduzido pela senhora juíza a quo;

- as declarações foram, no entanto, perfeitamente percetíveis e revelam, sem margem para qualquer dúvida, o verdeiro e incrível engodo, para dizer o mínimo, para que foi arrastada;

- ao contrário do equivocamente afirmado pela senhora juíza a quo, o discurso da autora foi perfeitamente coerente e verosímil, natural e espontâneo;

- tratou-se de um discurso autêntico e honesto, sem premeditações, sendo manifesto o esforço que faz, não obstante as condições em que prestou declarações, para reproduzir fielmente o que na realidade se passou;

- o estado de nervosismo e de forte emotividade em que se encontrava, não a impediu de demonstrar que estava firmemente convicta das suas afirmações;

- o seu discurso foi percetível, pois, através dele, percebeu-se perfeitamente tudo quanto ocorreu até ao momento da assinatura da escritura; e até mesmo o que sucedeu posteriormente;

- o seu discurso foi perfeitamente verosímil, deixando-nos a firme convicção de que aquilo que disse corresponde efetivamente à verdade, à luz das regras da experiência, da lógica, daquilo que, na realidade, faz sentido;

- crê-se que aquilo que a autora afirmou em sede de declarações de parte pode, sem esforço algum, ser aceite por uma razão medianamente esclarecida, existindo um forte juízo de probabilidade acerca daquilo que afirmou, de acordo com padrões comuns de comportamento humano, segundo, reitera-se, as regras da lógica e da experiência humana.”

Nestas condições, improcedem também as conclusões dos Recorrentes, relativamente à existência de algum impedimento legal à valoração exclusiva das declarações de parte na fundamentação da convicção do Tribunal.

Cumpre acentuar, por fim, mais uma vez que, no capítulo da apreciação das provas, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça não pode interferir na decisão sobre a matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.10 Por isso, não cabe nesta sede, conhecer de todas as conclusões de recurso em que os Recorrentes se limitam a evidenciar a sua discordância sobre a decisão de dar como provados ou não provados determinados factos.

4-Por fim, os Recorrentes pretendem demonstrar que do circunstancialismo fáctico apurado não resulta a celebração de um negócio usurário, mas sim que se trata de um contrato fiduciário e, por isso, estaríamos perante um negócio válido.

Os Recorrentes socorrem-se, de resto, para fundamentar a sua tese, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-04-2018 (processo 2037/13.0TBPVZ.P1.S1)11

Na verdade, ali se decidiu que “a figura da alienação fiduciária ou venda em garantia constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade.

O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (art.º 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, e o fim visado.

A respeito da validade dos negócios fiduciários, na vigência do actual CC, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a tese da sua admissibilidade.”

E, assim, acolhendo essa tese, considerou-se acertado o entendimento de que “ a celebração de negócios jurídicos fiduciários é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto, em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei”.

Na situação do acórdão, os réus outorgaram entre si, simultaneamente, uma escritura de compra e venda – onde o primeiro declarou vender e os segundos declararam comprar – e um contrato-promessa de compra e venda – onde os segundos declararam prometer vender e o primeiro declarou prometer comprar – do mesmo imóvel, tendo tais negócios em vista, garantir o pagamento do empréstimo de uma quantia de € 30 000.

Este acórdão, efectivamente, considerou a celebração destes dois contratos de sinal contrário – um com natureza real e outro com natureza obrigacional – relacionados funcionalmente por um nexo ou escopo de garantia, um negócio fiduciário válido.

Será que tal jurisprudência é aplicável ao caso que ora nos ocupa?

Analisando o referido acórdão, desde logo se podem detectar diferenças significativas no circunstancialismo fáctico, comparado com a factualidade subjacente ao caso aqui analisado e que relevam na qualificação jurídica do negócio celebrado num caso e noutro.

Com efeito, como resulta do acórdão mencionado, ali se apurou que “o pai do 1º R. necessitava de dinheiro e, por esse motivo, acordou com o 1º e com o 2º R. que este lhe entregaria a quantia de € 30.000,00 com obrigação de lhe restituir essa quantia acrescida de juros e, para garantir a sua restituição, o 1º R. vendia aos 2ºs réus a referida fracção “AJ” por tal montante, ou seja, pelo preço de € 30.000,00 (ponto de facto nº 8).”

E com base nessa factualidade discorreu-se o seguinte:

Os réus, ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º, n.º 2, do Código Civil, que confere às partes a possibilidade de modelarem livremente o conteúdo dos contratos, juntaram, uniram ou coligaram dois contratos, o de compra e venda e de promessa de compra e venda, relacionando-os funcionalmente à luz de um nexo ou escopo de garantia.

Com efeito, pretenderam, primeiramente, transmitir a propriedade do imóvel do 1º réu para os 2ºs réus para garantir o reembolso do empréstimo. E, uma vez cumprido o empréstimo e esvaziada de sentido útil a garantia constituída, pretenderam assegurar a retransmissão da propriedade do imóvel novamente para o 1º réu (pontos de facto nºs 8 a 11).

Este é o sentido que se extrai da globalidade dos factos apurados, nomeadamente, da motivação subjacente à outorga da escritura de compra e venda da fracção – para garantir a restituição da quantia mutuada ao pai do 1º réu (ponto de facto nº 8) –, da simultânea celebração dos dois contratos em causa e, bem assim, da posterior actuação dos contraentes, em particular, no que respeita ao recebimento das rendas pelo 1º réu (vendedor) e às comunicações feitas por este à autora, enquanto arrendatária, com vista à visita ao locado pelo seu pai, ao aumento da renda e ao pagamento das prestações de condomínio (pontos de facto nºs 15 a 19).”

Neste contexto, foi entendido pelo Supremo que “ Da junção destes dois tipos resulta a celebração de um negócio fiduciário, contrato atípico, construído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção de adaptação (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, pág. 259) e, mais concretamente, dentro do género, uma alienação fiduciária ou venda em garantia, isto é, um negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade”.

Ora, retornando à factualidade apurada nos presentes autos, são evidentes as diferenças em relação à realidade subjacente ao acórdão mencionado, de molde a não ser possível aplicar-lhe o mesmo enquadramento jurídico.

Desde logo, a diferença decisiva reside na vontade das partes. Enquanto que no caso analisado no acórdão de 26-04-2018, as partes intervenientes quiseram celebrar os referidos contratos, “o de compra e venda e de promessa de compra e venda, relacionando-os funcionalmente à luz de um nexo ou escopo de garantia”, nada disso ocorreu no caso que ora nos ocupa.

Como decorre dos factos dados como assentes, a Autora não se apercebeu de que estava a vender o imóvel, não querendo, por conseguinte, realizar tal negócio. A Autora convenceu-se de que estava a realizar um contrato de mútuo com hipoteca sobre o referido imóvel, como resulta dos pontos 29 e 30 dos factos assentes.

À factualidade apurada nos presentes autos, aplica-se o enquadramento jurídico efectuado de forma exaustiva e profunda no acórdão recorrido, já que tal como ali se concluiu verificam-se os requisitos do negócio usurário, sendo que tal como ali e bem se concluiu:

“1- a usura pode coexistir no mesmo negócio com qualquer dos outros vícios da vontade ou do consentimento.

2 - O vício da usura não se restringe, não se limita e não se confunde com os outros vícios da vontade ou do consentimento que com ele coexistam no mesmo negócio.

3 - O negócio jurídico pode estar viciado por usura não existindo qualquer outro vício da vontade ou do consentimento.”.

Na verdade, como o acórdão recorrido bem observa:

A matéria de facto agora considerada provada revela à evidência:

a) a situação de inferioridade em que a autora,(…), se encontrava no momento da celebração do negócio identificado em 14. dos factos provados, e que nos é revelada pelos pontos 1. a 13. dos factos provados12;

b) a consciente exploração dessa situação, quer por parte de Luísa Pinhão, quer, consequente e necessariamente, da declaratária negocial, a 1.ª ré, por via do conhecimento, se se quiser, da consciência, do seu legal representante, o 2.º réu, o que nos é revelado pelos pontos 10. a 13., 15., 17. a 18. a 30., 35. e 36. dos factos provados;

c) a significativa lesão sofrida pela autora/recorrente, o que nos é revelado pelos pontos:

- 14. e 15. dos factos provados (a autora/recorrente declarou vender a fração por € 18.000,00);

- 17., 20., 21., 22., 24. e 26. dos factos provados (a autora/recorrente apenas recebeu a quantia de € 7.700,00);

- 35. dos factos provados (à data da celebração do negócio a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00);

- 36. dos factos provados (a compradora, a 1.ª ré, por via do seu legal representante, o 2.º réu, tinha conhecimento do valor de mercado da fração).

Resulta, pois, evidente a improcedência das conclusões dos Recorrentes a respeito duma eventual errónea qualificação do negócio em causa, como usurário, ao abrigo do disposto no art.º 282.º do Código Civil e consequente invalidade do mesmo, tal como foi decidido no acórdão recorrido.

De resto, os Recorrentes não suscitam qualquer questão jurídica que contrarie a fundamentação de direito elaborada no acórdão. Limitam-se a invocar as suas divergências de entendimento, relativamente à decisão sobre a matéria de facto, concluindo que “de forma alguma decorre da prova coligida que a Autora fosse incapaz e que não estivesse nas suas perfeitas faculdades quando outorgou a escritura e o contrato promessa de compra e venda”, ou que “ o acórdão recorrido só conclui o contrário porque se refugia nas declarações da própria Autora(…)”. Ora, este tema já foi suficientemente tratado, nos pontos anteriores, sendo irrelevante para a pretendida alteração da qualificação do negócio celebrado.

IV-DECISÃO

Em face do exposto, acordamos na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, julgando totalmente improcedente o recurso, e confirmando integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa, 16 de outubro de 2025

……………………………………………….

(Maria de Deus Correia)

……………………………………………

(Nuno Pinto Oliveira)

……………………………………………..

(Fátima Gomes)


1. Trata-se da fração identificada nos autos.

2. Acórdão do STJ de 16-12-2020 Processo 4016/13, disponível em www.dgsi.pt. Vide ainda a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 16-11-2023, Processo 10979/19, também disponível em dgsi.pt, assim sumariado:

  “O art. 662.º do Código de Processo Civil implica que a fundamentação do acórdão recorrido seja adequada e suficiente para que se possa concluir que o Tribunal da Relação reavaliou os meios de prova disponíveis, reponderou todas as questões de facto suscitadas para formar uma convicção própria e respondeu a todas as questões de facto suscitadas, fundamentando a sua resposta.”

3. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 2022, 7.ª edição Actualizada, Almedina, p.351-353.

4. Luis Filipe Sousa, Prova testemunhal, Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª edição Almedina, 2020, p.383

5. in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347.

6. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-03-2025, Processo 4681/21, disponível em www.dgsi.pt.

  O sublinhado é nosso.

7. Blog do IPPC, post de 25/05/2018, “Para que serve afinal a prova por declarações de parte?, https://blogippc.blogspot.com/2018/05/para-que-serve-afinal-prova-por.html.

8. Ob. Cit. , p.413.

9. Vide Acórdão do TRL de 10-04-2014, Processo 2022/07.1TBCSC, em que se referia: “Este inovador meio de prova, dirige-se, primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidade de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes. E, sujeitá-las a arrolar testemunhas sem conhecimento directo, que apenas reproduzam o que teriam ouvido dizer ou que expressem a sua opinião, tem reduzido interesse e muito limitado valor processual.”

10. António Abrantes Geraldes, Ob.cit., p.477.

11. Disponível em www.dgsi.pt

12. Tenha-se presente que não é taxativa a enumeração