Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6585/19.0T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
REGISTO CIVIL
PRESUNÇÃO
PATERNIDADE
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
RECONHECIMENTO
TEMPESTIVIDADE
PRAZO
CONSTITUCIONALIDADE
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
CONFLITO DE DIREITOS
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E REPRISTINADO A SENTENÇA
Sumário :
I – Por aplicação do Ac. 523/2025, de 17/06/2025, do plenário do TC, devem considerar-se/julgar-se inconstitucionais quer o prazo de 10 anos do art. 1842.º/1/c) do C. Civil (sobre a ação de impugnação de paternidade) quer o prazo de 10 anos do art. 1817.º/1 do C. Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade por remissão do art. 1873.º do C. Civil), ou seja, o direito de impugnar a paternidade que conste do registo de nascimento e o subsequente direito de investigar a paternidade, por parte do filho, não caducam pelo decurso do tempo.

II – Porém, tendo a presente ação sido proposta após uma idêntica ação de impugnação e de investigação de paternidade ter terminado, por desistência da instância, 21 meses antes da propositura desta, tendo concomitantemente, com tal desistência da instância, os aqui autores declarado renunciar ao esclarecimento e investigação da sua relação de filiação e aceitado receber do investigado o montante de € 400.000,00, atuam os aqui autores em Abuso do Direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, ao virem aqui exercer os seus direitos de impugnação e de investigação de paternidade

Decisão Texto Integral:

I - RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., Póvoa do Varzim, e BB, residente na Rua ..., 3º andar direito frente, Braga, instauraram, em 16/12/2019, ação de impugnação e de investigação da paternidade contra CC (entretanto, em .../.../2019, falecido), residente na Rua do ..., Braga, DD, residente na Avenida ..., 4º andar direito frente, Braga, e EE, residente na Praça ..., 5º andar direito, Braga, pedindo que seja :

I- Reconhecido e declarado que a Autora não é filha do falecido FF;

II- Reconhecida e declarada a paternidade da Autora relativamente ao Réu CC;

III- Reconhecido e declarado que o Autor não é filho do falecido FF;

IV- Reconhecida e declarada a paternidade do Autor relativamente ao Réu CC;

V- Ordenado aos Serviços do Registo Civil que efetuem as correspondentes e necessárias retificações, anulações ou cancelamentos e inscrições nos livros respetivos, em termos de ser cancelada, eliminada e dada sem qualquer efeito a inscrição da paternidade dos Autores relativamente a FF e de passar a constar a inscrição da paternidade deles relativamente ao Réu CC, determinando que sejam anulados os assentos de nascimento atuais e que sejam substituídos por outros onde se mostre inscrita a paternidade do Réu CC, sem qualquer referência a FF.

Alegarem, em síntese, que os autores são irmãos, filhos dos 1º e 2ª Réus, e irmãos do 3º Réu, que é filho do 1º Réu; sendo que a paternidade dos autores se encontra inscrita no registo como pertencendo a FF, em virtude deste, à data do nascimento dos autores, ser casado com a 2ª Ré.

Sucedendo que, não obstante a 2ª Ré e FF estarem então formalmente casados, não coabitavam desde, pelo menos, finais de 1952; sendo que, pelo menos desde dezembro de 1952, a 2ª Ré manteve relações de intimidade amorosa e sexual, em exclusividade, com o 1º Réu, tendo sido dessas relações que nasceram os autores.

Mais alegaram que apenas no dia de Natal de 2016 a 2ª Ré contou ao autor que o verdadeiro pai do mesmo e da irmã era o 1ª Réu.

Foi instaurado incidente de habilitação de herdeiros por morte do 1º Réu, CC, em que, por sentença transitada em julgado foi habilitado como seu único herdeiro o 3º Réu, EE.

Apenas 3º Réu contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Invocou a caducidade do direito dos Autores em proporem a presente ação, alegando que, à data da propositura desta encontrava-se há muito decorrido o prazo de dez anos, a contar da data em que os Autores atingiram a maioridade, sendo certo, segundo alegou, que os Autores têm conhecimento desde os seus 10 anos de idade que o 1º Réu seria o seu pai, pelo que sempre o direito daqueles a proporem a presente ação se encontra extinto por caducidade.

Mais alegou que, por documento subscrito pelo Autor em 16/03/2018, e pela Autora em 22/03/2018, aqueles declararam, de livre vontade, reconhecerem “ter-lhes sido revelado por sua mãe DD, mais de trinta anos, que o seu verdadeiro pai poderá não ser o seu marido FF”; que “não obstante terem conhecimento e consciência dessa notícia, até à data nunca se interessaram pelo verdadeiro esclarecimento da definição da sua relação de filiação”; e afirmaram manter “o mesmo desinteresse por qualquer esclarecimento de definição da situação jurídica da sua relação de filiação, aceitando a paternidade presumida de FF, razão pela qual expressamente declararam renunciar nos tempos futuros ao esclarecimento e investigação da sua relação de filiação e investigação da paternidade biológica relativamente a CC, bem como à instauração de quaisquer ações judiciais para semelhante efeito”, resultando assim, inter alia, que os autores confessaram o seu desinteresse em esclarecer a definição da relação de filiação e renunciaram ao direito de proporem a presente ação.

Invocou ainda o abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, consistente em os autores terem proposto a presente ação após terem declarado renunciarem ao direito de a instaurarem e de terem, para tal, recebido a quantia de € 200.000,00 euros cada um.

Concluiu pedindo que se julgassem as exceções invocadas procedentes e, em consequência, se absolvessem os réus dos pedidos e, subsidiariamente, se julgasse a ação improcedente por não provada e se absolvessem os réus dos pedidos.

Os autores responderam às exceções invocadas, impugnando parte dos factos alegados e pugnando pela improcedência das exceções.

Nomeou-se curador ad litem ao falecido pai dos Autores inscrito no registo, FF.

Citado, o curador não contestou.

Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador – em que se conheceu da exceção perentória de renúncia pelos autores do direito a proporem a presente ação, exceção julgada improcedente – que declarou a instância regular, estado em que se mantém, tendo-se identificado o objeto do litígio e enunciado os temas da prova.

Instruído o processo – tendo-se realizada as perícias ao ADN e à letra que foram requeridas e deferidas – foi realizada a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e que, em consequência, absolveu-se os réus do pedido.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os autores recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação de Guimaraes de 20/03/2025, foi julgado procedente e, em consequência, revogando-se a sentença proferida:

“(…)

Julgam a exceção perentória de caducidade improcedente;

Julgam a presente ação integralmente procedente por provada e, em consequência:

I- Reconhecem e declaram que a Autora AA não é filha do falecido FF;

II- Reconhecem e declaram a paternidade do Réu CC relativamente à Autora AA.

III- Reconhecem e declaram que o Autor BB não é filho do falecido FF;

IV- Reconhecem e declaram a paternidade do Réu CC relativamente Autor BB;

V- Ordenam aos Serviços do Registo Civil que efetuem as correspondentes e necessárias retificações, anulações ou cancelamentos e inscrições nos livros respetivos, em termos de ser cancelada, eliminada e dada sem qualquer efeito a inscrição da paternidade de FF relativamente aos Autores, passando a constar a inscrição da paternidade de CC relativamente aos mesmos, determinando que sejam anulados os assentos de nascimento atuais e que sejam substituídos por outros onde se mostre inscrita a paternidade do Réu CC, sem qualquer referência a FF. (…)”

Agora inconformado, visando a revogação de tal Acórdão da Relação e a repristinação do decidido pela 1.ª Instância, interpõe a presente revista o réu EE.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

“(…)

1ª Pelo que se expõe é agora necessário ou conveniente que seja assegurada a uniformidade da jurisprudência firmado pelo acórdão nº 394/2019 do Plenário do Tribunal Constitucional, para efeito do que se requer ao Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Relator se digne propor ao Senhor Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça, o julgamento ampliado da presente revista com intervenção do Pleno das secções cíveis, nos termos do disposto no artº 686º, nº 1, C.C..

2ª A presente revista tem por fundamento a violação de lei substantiva.

3ª Relativamente ao segmento decisório que desaplica a norma do artº 1817º, nº 1, do C.C., na redação da Lei nº 14/2009, aplicável ex vi do disposto no artº 1873º, do mesmo Código Civil, por via das inconstitucionalidades materiais que a afeta, na parte em que aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do disposto no artº 1873º, prevê um prazo de dez anos para propositura da ação contado da maior idade ou emancipação do investigante.

4ª Mais, tem por fundamento a violação de lei substantiva, relativamente ao segmento decisório que julga improcedente a exceção perentória do abuso de direito invocado na modalidade de venir contra factum proprium, instituto previsto pelo legislador luso no artº 334º, do Código Civil.

5ª Ainda, o segmento decisório “C”. “V” que - Ordenam aos Serviços do Registo Civil que efetuem as correspondentes e necessárias retificações, anulações ou cancelamentos e inscrições nos livros respetivos, em termos de ser cancelada, eliminada e dada sem qualquer efeito a inscrição da paternidade de FF relativamente aos Autores, passando a constar a inscrição da paternidade de CC relativamente aos mesmos, determinando que sejam anulados os assentos de nascimento atuais e que sejam substituídos por outros onde se mostre inscrita a paternidade do Réu CC, sem qualquer referência a FF.

6ª O acórdão em revista revoga a decisão de mérito proferida na sentença lavrada nos autos e julga procedente e ação, por considerar que a norma do artº 1817º, nº 1, do C.C., está afetada por inconstitucionalidade material, julgando improcedente a exceção perentória da caducidade invocada pelo Réu/Recorrido, por força do disposto no artº 1873º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante.

7ª A norma constante do artº 1817º, não é inconstitucional, assim tendo decidido, sem alteração até ao momento, o Plenário do Tribunal Constitucional, através do acórdão nº 394/2019.

8ª De então a esta parte não surgiu qualquer alteração das conceções éticas, jurídicas, políticas, económicas, sociais e até religiosas no sistema jurídico, melhor na filosofia ou na sociologia e nos conteúdos dos conceitos subjacentes, assim como no ordenamento jurídico, que tenham modificado substancialmente a realidade que se verificava no momento em que foi assumida a jurisprudência do acórdão nº 394/2019, do Tribunal Constitucional.

9ª Flui de tudo o ante exposto que se impunha extrair conclusão inversa à que resultou firmada no presente acórdão, porquanto entende como se não violados os parâmetros convocados, impondo-se, em decorrência, um juízo de não inconstitucionalidade e o desatender o recurso interposto.

10ª Como invocado na P.I. e subsidiariamente no artº 13º da resposta à alegação de recurso perante o Tribunal da Relação de Guimarães - existem elementos de prova suficientes no processo para afirmar que os Recorrentes agem em abuso de direito, na modalidade de venice contra factum proprium. Decide o acórdão em mérito pela improcedência da invocada exceção do abuso de direito.

11ª Não concordamos, porque assim também não concorda este Colendo S.T.J., conforme se alcança do douto acórdão de 09-04-2013, lavrado pela 6ª Secção nos autos como proc. nº 187/09.7TBPFT.P1.S1.

12ª O douto acórdão padece, assim, de erro na interpretação e aplicação do artº 334º, C.C..

13ª O douto acórdão que revoga a decisão de mérito determina pelo segmento decisório “C” – “V”, que V- Ordenam aos Serviços do Registo Civil que efetuem as correspondentes e necessárias retificações, anulações ou cancelamentos e inscrições nos livros respetivos, em termos de ser cancelada, eliminada e dada sem qualquer efeito a inscrição da paternidade de FF relativamente aos Autores, passando a constar a inscrição da paternidade de CC relativamente aos mesmos, determinando que sejam anulados os assentos de nascimento atuais e que sejam substituídos por outros onde se mostre inscrita a paternidade do Réu CC, sem qualquer referência a FF.

14ª As instâncias não qualificam juridicamente a existência ou não de um qualquer vício do assento do registo civil dos Autores.

15ª O acórdão enferma de erro absoluto por omissão na determinação da norma aplicável. Não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

16ª É nulo nos termos do disposto no artº 615º, nº 1, al. b), C.C., nulidade que se invoca nos termos do disposto do nº 4, do citado artigo.

17ª No artº 106º da contestação, o Réu insurge-se contra o pedido assim formulado suportando-se no disposto no artº 1837º, C.C.. Em sede de resposta à alegação de recurso de apelação, coloca novamente a questão no artigo 14º, 1ª parte.

18ª O douto acórdão não pode olvidar o que a lei substantiva dispõe sobre a matéria do registo e, muito menos, que essa lei prescreve em termos de retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo – artº 1837º, C.C., bem como a projeção dos vícios sobre o registo civil, reconhecidos por decisão judicial, os quais o Tribunal deve comunicar à conservatória competente, por meio de certidão – artº 78º, do Código do Registo Civil – C.R.C..

19ª A ratio da lei corresponde à exigência do próprio Cód. Reg. Civil, porquanto sendo o nascimento um facto sujeito a registo civil obrigatório – artº 1º, nº 1, al. a), C.R.C., só pode ser invocado depois de registado.

20ª Não compete ao oficial público do registo civil, face a uma ação sobre o estado de pessoa, fazer qualquer juízo de qualificação jurídica inovadora sobre qualquer vício de registo e lavrado em assento de nascimento, bem como o modo de reprodução nesse registo, isto é se o registo é nulo – artº 87º, C.R.C., se deve ou não ser cancelado – artº 92º, C.R.C., se é lavrado na modalidade de assento ou por meio de averbamento – artº 50º, C.R.C.,

21ª sendo que nos termos do artº 68º, nº 1 e 69º, nº 1, al. b) e n), C.R.C., as alterações do conteúdo dos assentos que devam ser registadas são lançadas, na sequência do texto, por meio de averbamento, tal como também impõe o Código Civil. (…)”

Não foi apresentada qualquer resposta.

II- Fundamentação de Facto

II – Factos Provados

As Instâncias deram como provados os seguintes factos

1- AA nasceu a ... de ... de 1954 e tem inscrita a paternidade a favor de FF e a maternidade a favor de DD.

2- BB nasceu a ... de ... de 1957 e tem inscrita a paternidade a favor de FF e a maternidade a favor de DD.

3- EE nasceu a ... de ... de 1948 e é filho de CC e de GG.

4- HH nasceu a ... de ... de 1952 e é filho de II e de JJ.

5- CC faleceu a ... de ... de 2019 e foi cremado no tanatório de Braga.

6- FF faleceu a ... de ... de 1998.

7- DD nasceu a 1... de ... de 1930 e é filha de KK e de LL.

8- DD casou com FF a 27 de novembro de 1949; tendo sido decretada a separação judicial de pessoas e bens a 21 de outubro de 1967, convertida em divórcio a 7 de janeiro de 1976.

9- DD casou com MM a 16 de novembro de 1988 e viu o seu casamento dissolvido por morte do marido a 26 de setembro de 2009.

10- A 6.2.2018, BB intentou ação de impugnação da paternidade presumida e investigação da paternidade contra DD, AA e CC a qual correu termos sob o n.º 633/18.9T8BRG deste Juiz 1, do Tribunal de Família e Menores de Braga.

11- NN, advogado, recebeu de CC, a 6.12.2010, € 10.000,00 para entregar aos AA., OO e PP.

12- Os AA., OO e PP receberam de NN, advogado, € 10.000,00 a 7.12.2010.

13- A 22.3.2018 a A., AA, declarou por escrito que:

“1º - A declarante reconhece ter-lhe sido revelado, tal como ao seu irmão BB, por sua mãe DD, mais de trinta anos, que o seu verdadeiro pai poderá não ser o seu marido FF, conforme está exarado nos respetivos assentos de nascimento, mas sim CC.

2º - Não obstante ter conhecimento e consciência dessa notícia, até à data nunca se interessou pelo verdadeiro esclarecimento da definição da sua relação de filiação e, muito menos, pela instauração de ação judicial para impugnação da paternidade presumida e investigação de paternidade.

3º - Na presente data, mantém o mesmo desinteresse por qualquer esclarecimento de definição da situação jurídica da sua relação de filiação, aceitando a paternidade presumida de FF, razão pela qual expressamente declara renunciar nos tempos futuros ao esclarecimento e investigação da sua relação de filiação e investigação da paternidade biológica relativamente a CC, bem como a instauração de quaisquer ações judiciais para semelhante efeito.

4º - Mais declara reconhecer a caducidade do direito de proposição da ação de investigação de paternidade, pelo decurso do tempo, nos termos definidos pelo artigo 1817.º do Código Civil Português.”.

14- A 16.3.2018 o A. PP declarou por escrito que - cfr. documento junto a 19.11.2020:

“1º - Na presente data apresentou pedido de desistência da ação de impugnação de paternidade presumida e investigação da paternidade, na qual demanda como réus DD, AA e CC, que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Família e Menores - Juiz 1, Proc. 633/18.9T8BRG.

2º - Reconhece ter-lhe sido revelado, tal como a sua irmã AA, por sua mãe DD, mais de trinta anos, que o seu verdadeiro pai poderá não ser o seu marido FF, conforme está exarado nos respetivos assentos de nascimento, mas sim CC.

3º - Não obstante ter conhecimento e consciência dessa notícia, até à data em que apresentou em juízo a ação de impugnação da paternidade presumida e investigação de paternidade, nunca se interessou pelo verdadeiro esclarecimento da definição da sua relação de filiação.

4º - Na presente data, mantém o mesmo desinteresse por qualquer esclarecimento de definição da situação jurídica da sua relação de filiação, aceitando a paternidade presumida de FF, razão pela qual apresentou pedido de desistência da referida ação, e mais expressamente declara renunciar nos tempos futuros ao esclarecimento e investigação da sua relação de filiação e investigação da paternidade biológica relativamente a CC.

5º - Mais declara reconhecer a caducidade do direito de proposição da ação de investigação de paternidade, pelo decurso do tempo, nos termos definidos pelo artigo 1817.º do Código Civil Português.”.

15- A 16.3.2018 BB declarou, por escrito, ter recebido de CC a importância de € 200.000,00 (duzentos mil euros), a título de liberalidade pessoal.

16- A 22.3.2018 AA declarou, por escrito, ter recebido de CC a importância de € 200.000,00 (duzentos mil euros), a título de liberalidade pessoal.

17- A autora AA escreveu pelo seu punho a carta identificada como documento 8 e junta aos autos a 19.11.2020 intitulada “Carta a um Comendador”.

18- A mãe dos Autores, a segunda Ré, DD, manteve relação sexual de cópula completa com o Réu CC no período dos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da Autora e dos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do Autor.

19- Em consequência daquelas relações sexuais resultou a gravidez da mãe dos AA. e os posteriores nascimentos destes.

20- Os AA. receberam € 200.000 como contrapartida sinalagmática da declaração contidas nos documentos referidos em 13 e 14.

21- Não obstante se mantivessem casados um com o outro e não separados judicialmente, a Ré DD e FF já não coabitavam desde, pelo menos, o final de 1952.

21-a - Os Autores têm notícia que CC era o seu pai biológico desde data anterior a atingirem a maioridade”.

*

II – B – Factos não Provados

Não se provou que:

22- DD só no dia de Natal do ano de 2016, contou ao seu filho e agora Autor, BB que CC era seu pai.

23- Só após o referido em 22 é que o A. procedeu às investigações necessárias para esclarecer se efetivamente era de facto filho de CC, questionando as pessoas ainda vivas das relações antigas e próximas de sua mãe e realizando testes de ADN de relação biológica.

*

III – Fundamentação de Direito

Pretendem os autores com a presente ação a correção das suas paternidades.

Sendo a mãe de ambos os autores casada aquando dos nascimentos, funcionou a presunção de paternidade (legítima, como então se dizia no art. 101.º do C. de Seabra) do marido da mãe, passando o nome deste (FF) a figurar no lugar da paternidade no registo do nascimento de ambos os autores.

Ora, segundo os autores, o seu progenitor não é o FF, mas sim o primitivo réu, CC (falecido no dia seguinte à propositura da ação), razão pela qual, tendo em vista a pretendida correção das paternidades, a presente ação é, ao mesmo tempo, uma ação de impugnação da paternidade (art. 1838.º e ss do C. Civil) do QQ e de reconhecimento judicial da paternidade (art. 1869.º e ss. do C. Civil) do CC, intentada em coligação pelos autores, como é permitido pelo art. 1872.º do C. Civil.

E tendo os autores, como resulta dos factos, 65 anos (a autora) e 62 anos (o autor) aquando da propositura da presente ação e estando provado que tinham “notícia que CC era o seu pai biológico desde data anterior a atingirem a maioridade”, o essencial da discussão jurídica centrou-se e continua a centrar-se, inevitavelmente, sobre a tempestividade da propositura da presente ação, o mesmo é dizer-se, sobre se é constitucionalmente admissível a fixação de um prazo para a propositura duma ação como a presente (de impugnação da paternidade e reconhecimento da paternidade).

Vejamos:

Como é sabido, o acórdão 23/2006, de 10/01/2006, do plenário do TC apreciou a constitucionalidade do prazo de dois anos de exercício da ação de reconhecimento judicial da paternidade – prazo esse constante do art. 1817.º/1 do C. Civil (na redação do DL 496/77, de 25-11) e aplicável, assim como hoje, por remissão do art. 1873.º do C. Civil – e proferiu declaração de inconstitucionalidade por tal prazo de dois anos, segundo o TC, representar uma “diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais em causa”, na medida em que considerou que a exiguidade do prazo “dificultava seriamente ou inviabilizava a possibilidade do interessado averiguar o vínculo da filiação natural”.

Na sequência de tal declaração de inconstitucionalidade, foram introduzidas alterações nos arts. 1817.º e 1842.º (preceito este respeitante ao prazo da ação de impugnação da paternidade) do C. Civil pela Lei 14/2009, de 1 de abril, alterações que alongaram o prazo de propositura da ação para 10 anos; após o que passou a reconhecer-se1 – a propósito da investigação de paternidade, onde a discussão sobre a constitucionalidade foi fundamentalmente travada – que as alterações legislativas de 2009, com o alargamento do prazo de 2 para 10 anos, haviam dado resposta adequada às razões de inconstitucionalidade apontadas pelo Ac. 23/2006 do plenário do TC.

Efetivamente, passou a observar-se que, com as alterações introduzidas pela Lei 14/2009, o interessado passava a ter a possibilidade real de exercer o direito à investigação de paternidade, quer por a caducidade não ocorrer na “imatura” idade de 20 anos; quer por, além do prazo objetivo/cego de 10 anos, se passaram a prever prazos especiais/subjetivos de vigência e termo inicial incertos, assim se conferindo/reforçando a garantia de efetivação ao direito ao reconhecimento judicial da paternidade (aos direitos fundamentais em causa).

Mas, passado esse momento inicial, começou a ser questionada a própria admissibilidade constitucional da existência de um prazo (e não já da sua concreta duração) de caducidade para o interessado exercitar o direito à investigação de paternidade.

Sucedendo – ponto que importa deixar claro – que não há qualquer divergência de opiniões ou entendimentos em relação a ação de investigação da paternidade ser o instrumento jurídico de tutela de direitos fundamentais pessoais do pretenso filho, designadamente:

- do direito à identidade pessoal, consagrado no art. 26.º/1 do CRP, que tem como dimensão essencial “o direito ao conhecimento da identidade dos progenitores que, por sua vez, garante um direito à localização familiar de tal modo que cada individuo possa identificar os seus parentes, a sua origem geográfica e pessoal2;

- do direito a constituir família, consagrado no art. 36.º/1 da CRP, isto é, do direito a estabelecer uma relação jurídica familiar, como filho, com alguém que se prove ser o pai natural; e

- do direito ao desenvolvimento da personalidade, incluído no art. 26.º/1 do CRP pela revisão de 1977, que significa e consagra uma “liberdade geral de ação”, uma “liberdade de comportamento” no sentido de adquirir o estatuto de filho, de tomar a opção de conformar a sua identidade nela integrando um vínculo de filiação a que tem direito, mas que ainda não se encontra estabelecido.

Pelo que é consensual que a admissibilidade constitucional da existência (ou não) de um prazo passa por saber se a existência de um prazo de caducidade para o interessado exercitar o direito à investigação de paternidade satisfaz suficientemente (ou viola a proibição de insuficiência de tutela) tais direitos fundamentais; ou, dito de outro modo, passa por saber se, não sendo a ação de investigação (ou de impugnação) instaurada durante certo lapso de tempo, é proporcional, à luz do art. 18.º/2 da CRP, o interessado perder (ver extinguir-se) o direito à investigação (à impugnação) de paternidade.

Questão sobre a qual o TC se debruçou dezenas de vezes nos últimos 20 anos, chegando a proferir, em plenário, dois acórdãos – o Ac. 401/2011, de 22/09/2011, e o Ac. 349/2019, de 03/07/2019 – no sentido da não inconstitucionalidade do prazo do art. 1817.º/1 do C. Civil, por o regime/prazo de 10 anos fazer uma ponderação aceitável dos direitos contrapostos: por um lado, o direito do filho ao reconhecimento da paternidade; e, por outro lado, o interesse do progenitor de não ver protelada uma situação de incerteza, de não ver perturbada a sua paz e segurança jurídicas.

Mas, produzindo as decisões do TC no âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade caso julgado apenas no processo em que são emitidas, a questão não parou de ser suscitada perante o TC, tanto mais que, neste, continuou a dividir opiniões (basta dizer que o Ac. 401/2011 teve 7 votos a favor e 6 votos contra e o Ac. 349/2019 teve 8 votos a favor e 5 votos contra).

Em todo o caso, não obstante a divisão de opiniões, o TC, quando confrontado com a questão após a prolação do Ac. 349/2019, manteve na maior parte das vezes o entendimento da “não inconstitucionalidade”, como sucedeu nos Ac. n.o 488/2019, 499/2019, 586/2019, 267/2020, 331/2020, 802/2021 e 425/2024 e nas Decisões Sumárias n.o 631/2019, 97/2020 e 271/20203.

Todavia, em sentido divergente – no sentido da inconstitucionalidade – pronunciaram-se os Ac. n.º 552/2024 e o Ac. n.º 62/2025; e, tendo deste sido interposto recurso para o plenário pelo Ministério Público, foi em 17/06/2025 proferido (com 7 votos a favor e 6 votos contra) o Ac. n.º 523/2025 do Plenário, segundo o qual “o TC, em Plenário, decide julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do art. 26º e do n.º 1 do art. 36º da Constituição, em conjugação com o n.º 2 do art. 18º da Constituição, a norma do n.º 1 do art. 1817º do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do art. 1873º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante».

Temos pois que após a prolação do Ac. da Relação aqui recorrido – proferido em 20/03/2025 – a maioria do TC inverteu o entendimento que até ali era maioritário, passando a considerar (com 7 votos a favor e 6 contra) que a ação de investigação de paternidade não pode ser sujeita pela lei ordinária a um prazo de caducidade, isto é, que a mesma é imprescritível.

E, claro, a argumentação que ora fez vencimento no TC, a propósito da ação de investigação de paternidade, é transponível e aplicável à caducidade do direito de impugnar (ao prazo de 10 anos previsto no art. 1842.º1/c) do C. Civil4), uma vez que também aqui se pode/deve dizer, do idêntico modo, que o direito fundamental à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade exigem que, sem dependência de um prazo de caducidade, se afaste uma paternidade jurídica que não corresponde a um vínculo biológico (aliás, se ficasse temporalmente vedada a possibilidade de impugnar um vínculo que não corresponde à verdade biológica, tornar-se-ia impossível, por a paternidade do marido continua a constar do registo, realizar a investigação de paternidade e satisfazer os direitos fundamentais acima mencionados).

Aqui chegados, há que dizer e reconhecer que é suposto e expetável que a jurisprudência do TC sobre uma questão constitucionalidade tenha um efeito estabilizador na jurisprudência comum e que esta passe a seguir o sentido da jurisprudência do TC (até por razões de economia processual, uma vez que a decisão que contrarie tal jurisprudência do TC, subirá a este em recurso e este voltará por certo5 a decidir no mesmo sentido).

É o que aqui faremos, sendo que, “por aplicação” de tal acórdão n.º 523/2025 do plenário do TC, também dizemos:

Os direitos pessoais do investigado e pretenso pai – os direitos à reserva da vida privada e ao desenvolvimento da personalidade, que se traduzem em não ver o seu comportamento passado, na esfera íntima do relacionamento sexual, revelado e exposto, com efeitos perturbadores para a sua vida atual – não ganham, com o passar do tempo, uma força acrescida que justifique a outorga de prevalência (que a caducidade significa); e a passagem do tempo não provoca o esbatimento do grau de merecimento de tutela dos direitos do filho/investigante à identidade pessoal e a constituir família.

A caducidade implica a desproteção de direitos fundamentais nucleares do suposto filho, desproteção que só poderia ser justificada por posições equivalentes, a nível jurídico-constitucional, do suposto pai; mas tais posições não possuem tal equivalência e a erosão do tempo não altera significativamente os dados da ponderação, a ponto de serem tuteláveis, de modo adequado, não excessivo e não desproporcionado, pela imposição de um prazo de exercício da ação.

Enfim, de acordo com a recentíssima jurisprudência do TC (o mencionado Ac. n.º 523/2025 do Plenário), a muito forte intensidade valorativa do direito à identidade pessoal, do direito a constituir família e do direito ao desenvolvimento da personalidade não se confronta com interesses do pretenso pai e investigado cujo merecimento de tutela justifique, em ponderação, o sacrifício daqueles direitos, por força da vigência de um prazo de caducidade, pelo que a limitação temporal violará a proibição de insuficiência de tutela devida aos mencionados direitos do filho.

Concorda-se/confirma-se pois o decidido pelo acórdão da Relação recorrido, na parte em que julgou/declarou inconstitucional quer o prazo de 10 anos do art. 1842.º/1/c) do C. Civil (sobre a ação de impugnação de paternidade) quer o prazo de 10 anos do art. 1817.º/1 do C. Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade por remissão do art. 1873.º do C. Civil), ou seja, o direito de os autores impugnarem a paternidade que consta dos seus registos de nascimento e o subsequente direito de investigarem a paternidade não caducou pelo decurso do tempo.

Mas, como é reconhecido pelo próprio Ac. n.º 535/2025, decidir pela desconformidade constitucional da existência de um prazo “não significa a transmutação de tais direitos em direitos absolutos, quando feito o confronto com os invocados direitos fundamentais do pretenso progenitor. O que acontece é que a ação de investigação de maternidade/paternidade é o único meio processual apto, e consagrado legalmente, para obter o reconhecimento da filiação biológica e, por essa via, fazer cumprir os comandos constitucionais nesse sentido.”

Pelo que continua a poder colocar-se, sem prejuízo da imprescritibilidade da ação de impugnação6 e de investigação de paternidade, a questão de saber se circunstância alguma torna inadmissível e ilegítimo o exercício de tais ações.

É certo que vem sendo repetidamente dito:

- que não pode atribuir-se ao investigante um “ónus de diligência” quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação (que são descabidos quaisquer juízos de censura pela passividade manifestada durante o período em que podia instaurar a ação e não fez);

- que a vontade atual do investigante em integrar na sua identidade o vínculo da filiação e de constituir o laço familiar correspondente não deve ser paralisada por não ter tomado antes essa iniciativa, podendo fazê-lo;

- que, estando em causa um elemento conformador da identidade própria, cabe ao titular, por força do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade, a sua autodefinição, no que é livre, não apenas de constrições externas, mas também de vinculações limitativas geradas por atitudes passadas;

- que é compreensível a mudança de ideias quanto ao reconhecimento judicial (mais, que a mudança de atitude está ínsita no direito ao livre desenvolvimento da personalidade).

Em todo o caso, quer-nos parecer que os limites gerais do abuso do direito não poderão deixar de ser convocados e, se for o caso, aplicados: não será decerto um campo privilegiado de atuação do instituto e seguramente que o mero decurso do tempo não configurará um abuso do direito (como perpassa da argumentação que conduziu à prolação do Ac. n.º 523/2025), mas a sua convocação/aplicação não pode ser afastada.

Vem isto a propósito, já se vê, dos particulares contornos do presente caso/ação; como consta dos factos:

Os Autores, nascidos em .../.../1954 e ...57, respetivamente, tiveram notícia que CC era o seu pai biológico desde data anterior a atingirem a maioridade;

Assim, antes desta ação, em 6/02/2018, o autor intentou ação com o mesmo objeto da presente ação (de impugnação e de investigação da paternidade), ação de cuja instância desistiu no mês seguinte;

Tendo ele e a autora, sua irmã, subscrito – em 16/03/2018 e 22/03/2018, respetivamente – declaração em que, inter alia, reconheceram ter-lhes sido revelado por sua mãe DD, há mais de trinta anos, que o seu verdadeiro pai poderá não ser o FF, mas sim CC; acrescentando, em tal declaração, que nunca se interessaram pelo verdadeiro esclarecimento da definição da sua relação de filiação e que mantêm o mesmo desinteresse, razão pela qual expressamente declaram renunciar nos tempos futuros ao esclarecimento e investigação da sua relação de filiação e investigação da paternidade biológica relativamente a CC, bem como à instauração de quaisquer ações judiciais para semelhante efeito;

Concomitantemente, o autor, em 16/03/2018, declarou ter recebido de CC a importância de € 200.000,00, a título de liberalidade pessoal; e a autora, em 22/3/2018, declarou ter recebido de CC a importância de € 200.000,00, também a título de liberalidade pessoal;

Volvidos menos de 2 anos, em 16/12/2019, intentam os autores esta segunda ação.

Vem sendo entendido, também não se ignora, que as possíveis e prováveis motivações patrimoniais dos investigantes são inteiramente legítimas; que a segurança patrimonial do investigado e/ou dos seus herdeiros não tem peso de ponderação bastante para obstar ao reconhecimento de uma paternidade que corresponda à progenitura biológica.

Mas, satisfeitas tais “legítimas” motivações patrimoniais – como indubitavelmente resulta do circunstancionalismo que rodeou o recebimento dos € 200.000,00, a título de liberalidade, por cada um dos autores – e tendo os investigantes declarado que renunciavam ao esclarecimento da sua relação de filiação, continuará a ser legítimo e admissível o exercício dos direitos a que declararam ter renunciado?

É claro que estamos perante direitos pessoais, indisponíveis e irrenunciáveis, sendo por isso nulas as declarações de renúncia dos AA. (como, aliás, já foi decidido com trânsito em julgado, no saneador).

Mas é justamente por os autores manifestarem, em termos que não os vinculam, a intenção de não ir praticar determinado ato (esclarecimento da sua relação de filiação) e, depois, o virem a praticar que se coloca a questão de saber se atuam em Abuso do Direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Embora não haja na Ciência do Direito e nas ordens jurídicas uma proibição genérica de contradição (há até uma permissão da contraditoriedade), certas circunstâncias especiais podem levar à aplicação de tal proibição, designadamente, quando um comportamento seja de molde a suscitar a confiança da “contraparte”.

Trata-se de imputar aos autores dos comportamentos (do factum proprium) as situações de confiança que, de livre vontade, tenham suscitado; quando o confiante adere ao facto gerador da confiança.

Daí o dizer-se que a concretização da confiança prevê um facto gerador de confiança e a adesão do confiante a esse facto, a ponto de este ter assentado comportamentos posteriores na confiança gerada, representando a supressão do “factum proprium” uma clamorosa ofensa dos sentimentos de justiça dominantes.

De facto, segundo o art. 334.º do C. Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, sendo que a boa fé, como princípio normativo, significa “que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto e leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros7.

Sendo exatamente isto que não pode ser dito do comportamento dos autores, em relação ao exercício do seu direito à investigação (e à impugnação) de paternidade.

Sem prejuízo da renúncia ao exercício de tal direito não ter eficácia jurídica – por se tratar de um direito indisponível/irrenunciável – nem por isso o comportamento dos autores, de declarar que não iriam exercer tal direito, deixa de poder ser considerado como lícito; e de entrar em contradição com o comportamento, também lício, de, a seguir, vir instaurar a ação que haviam declarado não instaurar.

Surgindo este segundo comportamento, na medida em que o primeiro comportamento foi acompanhado da liberalidade de € 200.000,00, aceite por cada um dos autores, como claramente reprovável e defraudatório da legítima confiança gerada no investigado.

À época (março de 2018) era claramente dominante, como acima se relatou, o entendimento sobre a não inconstitucionalidade dos prazos de caducidade de 10 anos (da impugnação de paternidade e da investigação de paternidade), pelo que o primeiro comportamento dos autores, respeitante ao não exercício do seu direito à investigação (e à impugnação) de paternidade, configura uma situação objetiva de confiança na contraparte, tanto mais que os investigantes aceitaram, do investigado, a liberalidade de € 400,000,00, gerando-se assim uma situação de confiança legítima, até por o investigado não poder conhecer (estando assim de boa fé) a intenção real dos aqui autores/investigantes.

Como refere Menezes Cordeiro (quer in “Da Boa Fé no Direito Civil”, pág. 757 e ss. quer in “Revista da Ordem dos Advogados”, ano 58, julho de 1998, pág. 964) configuram pressupostos da proteção da confiança ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”: - uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);- uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; - um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do, factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam num injustiça clara; - uma imputação da confiança à pessoa atingida pela proteção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.

Pressupostos que, no caso, em face do que se referiu, se devem dar como verificados: o investigado acreditou/confiou, razoavelmente, que os autores não exerceriam o seu direito à investigação de paternidade, sendo que tal confiança é imputável ao “factum proprium” dos autores, apresentando-se a destruição do “factum proprium” (pela instauração da presente ação) uma clara injustiça (tendo presente, designadamente, que os autores não verbalizam sequer a intenção de repor a situação que existia antes de terem declarado que não exerciam o seu direito à investigação de paternidade).

Em conclusão, sem prejuízo da imprescritibilidade da ação de impugnação e de investigação de paternidade aqui proposta – ou seja, sem prejuízo de se concordar com o acórdão recorrido na parte em que julgou/declarou inconstitucional quer o prazo de 10 anos do art. 1842.º/1/c) do C. Civil (sobre a ação de impugnação de paternidade) quer o prazo de 10 anos do art. 1817.º/1 do C. Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade por remissão do art. 1873.º do C. Civil) e de, em função disso, ter julgado improcedente a exceção perentória de caducidade – ocorre circunstância que torna inadmissível e ilegítimo, no caso, por força da cláusula geral do abuso do direito do art. 334.º do C. Civil, o exercício do direito.

Procede pois a exceção perentória do abuso do direito, invocada pelo R./recorrente, o que, sem necessidade de mais considerações (e prejudicando a apreciação do que se invoca sobre o ponto V do acórdão recorrido), conduz à improcedência total da ação.

É quanto basta, em face de tudo isto, para conceder a revista e para, repristinando o decidido pela 1.ª Instância, absolver os réus de todos os pedidos.

*

IV – Decisão

Nos termos expostos, concede-se provimento à revista, revoga-se o acórdão recorrido e, repristinando-se o decidido pela 1.ª Instância, absolvem-se os réus de todos os pedidos.

Custas, nas Instâncias e neste STJ, pelos AA..

Lisboa, 16/10/2025

António Barateiro Martins (relator)

Rui Machado e Moura, com a declaração de voto infra.

Ferreira Lopes

***

Declaração de voto:

Não obstante concordar com a decisão final proferida no presente aresto - a qual concedeu a revista, revogou o acórdão recorrido e absolveu os RR. dos pedidos formulados pelos AA. - entendo que não devem considerar-se inconstitucionais, quer o prazo de 10 anos do art. 1842.º/1/c) do C. Civil (sobre a ação de impugnação de paternidade), quer o prazo de 10 anos do art. 1817.º/1 do C. Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade por remissão do art. 1873.º do C. Civil).

Com efeito, continuo a sustentar que se mantêm inteiramente válidas as razões e fundamentos devidamente explanados no aresto em que fui relator no Tribunal da Relação de Évora, proferido em 2/3/2023, no P.1030/21.4T8STR.E1 (disponível in www.dgsi.pt), no qual, a dado passo, foi afirmado o seguinte:

- (…) a caducidade enquanto figura extintiva de direitos, pelo seu não exercício em determinado prazo, procura satisfazer os interesses da certeza e estabilidade das relações jurídicas, os quais exigem a sua rápida definição, impulsionando os titulares dos direitos em presença a exercê-los num espaço de tempo considerado razoável, sob a cominação da sua extinção.

E isto porque é do interesse público que se estabeleça o mais breve que seja possível a correspondência entre a paternidade biológica e a paternidade jurídica, fazendo funcionar o estatuto jurídico da filiação com todos os seus efeitos, duma forma estável e que acompanhe durante o maior tempo possível a vida dos seus sujeitos. O meio para tutelar estes interesses atendíveis, públicos e privados (segurança para o investigado e sua família) ligados à segurança jurídica é precisamente a consagração de prazos de caducidade para o exercício do direito em causa. Esses prazos funcionam como um meio de induzir o titular do direito inerte ou relutante a exercê-lo com brevidade, não permitindo um prolongamento injustificado duma situação de indefinição, tendo desta forma uma função compulsória, pelo que são adequados à protecção dos apontados interesses, os quais também se fazem sentir nas relações de conteúdo pessoal, as quais, aliás, têm muitas vezes, como sucede na relação de filiação, importantes efeitos patrimoniais.

Estes princípios são merecedores de tutela constitucional – interesse público na certeza e segurança jurídica – sempre presente em toda a regulamentação jurídica e intimamente ligado à consagração de qualquer prazo para o exercício de um direito (cfr. o artigo 20.º da CRP). Ou seja a protecção do direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no citado artigo 26.º, n.º 1, da CRP, não exige a imprescritibilidade das acções de investigação e de impugnação paternidade. O que é necessário é que o prazo concedido não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado desses direitos – não os dois anos inicialmente contemplados, mas os dez anos.

O regime de prazos instituídos pela citada Lei n.º 14/2009 prevê ainda prazos especiais, que apenas começam a contar a partir da data do conhecimento dos factos que possam constituir o fundamento da acção de investigação. Esses prazos de três anos, contam-se a partir da ocorrência de um dos seguintes eventos, previstos nas várias alíneas do n.º 3 do artigo 1817.º, a saber: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a paternidade ou maternidade do investigante; b) ter o investigante tido conhecimento, após decurso do prazo previsto no nº 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a ação de investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso progenitor; c) em caso de inexistência de maternidade ou paternidade determinada, ter o investigante tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem a investigação.

O aludido prazo de dez anos não contraria a jurisprudência do Tribunal dos Direitos do Homem cujo critério de julgamento é o de que os prazos não sejam impeditivos da investigação e não criem ónus excessivos em termos probatórios para as partes.

A existência de um prazo limite para a instauração duma acção de reconhecimento judicial da paternidade não é, só por si, violadora da Convenção, importando verificar se a natureza, duração e características desse prazo resultam num justo equilíbrio entre o interesse do investigante em ver esclarecido um aspecto importante da sua identidade pessoal, o interesse do investigado e da sua família mais próxima em serem protegidos de demandas respeitantes a factos da sua vida íntima ocorridos há já muito tempo, e o interesse público da estabilidade das relações jurídicas – o que é sustentado pela jurisprudência do TEDH.

Desta forma, através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais de três anos, o actual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito.

Cremos, assim, que o artigo 1817.º, nºs 1 e 3, do Código Civil não viola o direito à identidade pessoal, previsto no artigo 26.º da Constituição da República, nem é desproporcional e, por isso, não viola os direitos constitucionais ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respectivo vínculo jurídico, abrangidos pelos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao direito a constituir família (cfr. artigos 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1, da CRP).

Resulta, assim, da conjugação dos artigos 1817.º, n.º 1 e 1873.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 14/2009, de 1/4, que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, estabelecendo-se no n.º 3 do citado artigo 1817.º um conjunto de situações em que, excepcionalmente, se admite a investigação para além do prazo geral de dez anos que está fixado no n.º 1 de tal preceito legal.

Vejam-se também, neste mesmo sentido – ou seja, da norma constante dos nºs 1 e 3 do artigo 1817.º do CC, relativa aos prazos aí fixados, não ser inconstitucional – os Acórdãos do TC n.º 1000/14, de 18/05/2016 e n.º 394/2019, de 3/7/2019, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional,pt., bem como, entre outros, os Acórdãos do STJ de 3/5/2018, 5/6/2018, 7/11/2019, 10/12/2019 e 24/11/2020 e, ainda, os Acórdãos desta Relação de Évora de 21/4/2016, 14/9/2017, 28/9/2017 e 11/1/2018 (este último em que o signatário interveio na qualidade de 2º Adjunto), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Deste modo, pelas as razões e fundamentos supra elencados, sustento que não deverão considerar-se inconstitucionais, quer o prazo de 10 anos do art. 1842.º/1/c) do C. Civil (sobre a ação de impugnação de paternidade), quer o prazo de 10 anos do art. 1817.º/1 do C. Civil (aplicável à ação de investigação de paternidade por remissão do art. 1873.º do C. Civil), ou seja, o direito de impugnar a paternidade que conste do registo de nascimento e o subsequente direito de investigar a paternidade, por parte do filho, poderão caducar pelo decurso do tempo.

Pelo exposto, entendo que, “in casu”, atenta a factualidade apurada, se mostrava verificada a excepção de caducidade do direito de acção invocada pelo R./recorrente, o que, inexoravelmente, acarretava - também por esta via - a improcedência da presente acção interposta pelos AA./recorridos.

***

Lx., 16/10/2025

Rui Machado e Moura

______________




1. Cfr. Ac. do TC nºs 401/2011, 445/2011, 446/2011, 476/2011, 545/2011, 77/2012, 106/2012, 231/2012, 247/2012, 515/2012, 166/2013, 750/2013, 373/2014, 383/2014, 529/2014, 547/2014, 704/2014, 302/2015, 594/2015, 626/2015, 424/2016, 151/2017 e 813/2017.

2. Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, pág. 44↩︎

3. E tal entendimento também provocou idêntico efeito estabilizador na jurisprudência comum, passando a ser acolhido e sufragado de forma claramente maioritária neste STJ: entre os mais recentes e após o acórdão do plenário nº 394/2019, os Acórdãos de 12 de setembro de 2019 (Proc. n.º 503/18.0T8VNF.G1.S1), de 7 de novembro de 2019 (Proc. n.º 317/17.5T8GDM.P1.S2), de 10 de dezembro de 2019 (Proc. n.º 211/17.0T8VLN.G1.S2), de 10 de setembro de 2020 (Proc. n.º 1731/16.9T8CSC.L1.S2), de 17 de setembro de 2020 (Proc. n.º 2947/12.2TBVLG.P1.S2), de 24 de novembro de 2020 (Proc. n.º 6554/15.0T8MAI.P1.S2), de 16 de novembro de 2020 (Proc. n.º 389/14.4T8VFR.P2.S1), de 6 de maio de 2021 (Proc. n.º 1097/16.7T8FAR.E2.S1), de 6 de julho de 2021 (Proc. n.º 1487/17.8T8BGC.G1.S1), de 2 de fevereiro de 2023 (Proc. n.º 1352/21.4T8MTS.P1.S1), e de 6 de julho 2023 (Proc. n.º 1475/21.0T8MTS.P1.S1): No sentido da inconstitucionalidade, os Acórdãos de 26 de Janeiro de 2021 (Proc. n.º 2151/18.6T8VCT.G1.S1), de 9 de Novembro de 2022 (Proc. n.º 26/19.0T8BGC.G1.S1) e de 31 de outubro de 2023 (Proc. n.º 1030/21.4T8STR.E1.S1)).

4. Não é assim com todas as alíneas do art. 1842.º/1 do C. Civil: os Ac. do TC n.ºs 446/2010, 39/2011, 449/2011, 643/2011 e 247/2013 pronunciaram-se pela não inconstitucionalidade do prazo estabelecido na alínea a); e o Ac. do TC n.º 441/2013 pronunciou-se pela não inconstitucionalidade do prazo previsto na alínea b).

5. Embora, no caso/questão, a flutuação/divisão da jurisprudência constitucional, desde 1988, não permita dar nada como certo.