Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
| Relator: | ARMINDO MONTEIRO | ||
| Descritores: | DIREITO AO RECURSO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACORDÃO DA RELAÇÃO ABSOLVIÇÃO PRINCÍPIO DA ADESÃO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DOCUMENTO FALSO USO DE DOCUMENTO FALSO DANOS PATRIMONIAIS | ||
| Data do Acordão: | 07/06/2011 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
| Sumário : | I - Não está consagrado na nossa lei um irrestrito direito ao recurso de todos os despachos e sentenças que afectem direitos ou interesses individuais, nem um esgotamento de todas as instâncias de recurso. Efectivamente, da conjugação dos arts. 400.º, 432.º e 433.º do CPP retira-se que o recurso para o STJ tem como pressuposto, puro derivado da lei, uma condenação, não cabendo por isso recurso da parte penal de acórdão absolutório proferido pelo Tribunal da Relação (ainda que a 1.ª instância tenha condenado o arguido). II - O art. 400.º, n.º 3, do CPP, estabelece uma quebra ao princípio da adesão, ao consentir que, mesmo em casos de absolvição em sede penal, é facultado o recurso para o STJ no que respeita à indemnização cível, respeitados que sejam os critérios do valor do pedido e da sucumbência. III - Num sistema de adesão como o nosso, os factos a considerar na fixação da reparação por perdas e danos são os fornecidos pelo processo penal, os que se provaram e os que não se provaram, bem como os fornecidos pelo enxerto cível. IV -No caso dos autos, resultou provado, para além do mais, o seguinte: - o arguido solicitou à sociedade N, que se dedica à realização de operações de natureza financeira, uma garantia autónoma no valor de € 200 000 a favor de V, destinada a assegurar o bom pagamento do fornecimento de produtos à sociedade unipessoal R, de que era sócio; - posteriormente, o arguido solicitou outra garantia à sociedade N, mas desta vez a favor do banco B; - a sociedade N condicionou prestar, agora, nova garantia, solicitando ao arguido a entrega de uma garantia emitida por V, através da qual esta declarava que dava por extinta a garantia indicada; - mais tarde o arguido, conforme solicitado por N, entregou pessoalmente a esta uma «declaração» de extinção da garantia; - contudo, esta «declaração» entregue pelo arguido não era autêntica; - a sociedade N ficou convencida da veracidade de tal «declaração», razão pela qual, a pedido do arguido, emitiu nova garantia a favor do banco B; - o arguido sabia que a «declaração» apresentada à assistente N não correspondia à verdade, uma vez que V nunca declarou extinta a garantia prestada a seu favor, causando dessa forma um prejuízo patrimonial correspondente ao valor da garantia concedida em benefício de B; - ao utilizar um documento que sabia ser falso, o arguido fê-lo com intuito de obter um enriquecimento ilegítimo para si, correspondente ao valor do prejuízo sofrido por N. V - Com base nesse quadro factual conclui-se que o arguido conhecia que a «declaração» corporizada no documento que utilizou não era verdadeira, real, conhecendo igualmente a essencialidade da sua apresentação à assistente, que a levaria a emitir a segunda garantia apenas no caso a sociedade V a desobrigar da garantia anterior. Está, pois, delineado o processo de actuação fraudulenta do arguido que, mediante meios astuciosos, induziu a assistente em erro, levando-a a dispor patrimonialmente a seu favor. VI -A obrigação de indemnizar por facto ilícito propõe-se cobrir todo o dano real à custa do lesante, nos termos do art. 562.º do CC, pressupondo a violação ilícita de direitos subjectivos de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, o nexo de imputação do facto ao agente e a causalidade entre o facto e o dano. VII - A medida da obrigação de indemnizar os danos patrimoniais sofridos pela assistente/demandante visa remover o dano real sofrido, através da restauração natural ou de equivalente pecuniário. Na situação em apreço, a indemnização a fixar ascende ao valor da 2.ª garantia emitida pela lesada no contexto fraudulento criado pelo arguido/demandado. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça : No processo comum (tribunal colectivo) n.º1209/09.7TDPRT.P1 da 2ª Vara Criminal do Porto foi o arguido AA submetido a julgamento e a final condenado nos seguintes termos: - pela prática, em autoria material e em concurso efectivo (arts. 30.° e 77.°), de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.°, n.°1 e 218.°, n.° 2, al a )do Código Penal e um crime de uso de documento falso, p.e p. pelo art. 256.°, n.° 1, al. e), anterior al. c) do mesmo diploma legal, nas penas, respectivamente, de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão. Em cúmulo das penas parcelares, ora impostas ao arguido, atento o disposto no art.77º nº2 Código Penal, foi condenado na pena unitária de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão. Ao abrigo do disposto no art.50º, nº 5, do Código Penal, suspendeu-se tal pena pelo período de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão. Outrossim, julgou-se parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante N... – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., contra o demandado AA e, em consequência, condena-se este a pagar àquela a quantia de € 109.642,37 (€ 108 750,00 + € 892,37), absolvendo-se o mesmo do restante pedido. Inconformado, o arguido AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação que o absolveu . Irresignado , recorre , agora , a assistente para este STJ , alegando , em conclusão que: A. Resulta claro e inequívoco, de que a declaração que extinguiu a garantia emitida a favor da V... era falsa, pela prova testemunhal e documental junta ao processo, estando assim preenchidos os elementos do crime previstos no artigo 256° n.º 1 e) do Código de Processo Penal, pois quem melhor do que a emitente do documento, para provar e alegar a falsidade do mesmo; B. Que não resulta prova de que tenha sido o arguido a falsificar a referida declaração, resultando sim que a mesma foi entregue pelo arguido à N..., conforme transparece no acórdão recorrido, vejam a expressão que dele consta na página 20,3.° parágrafo "vale dizer a declaração entregue pelo arguido" C. Sendo assim, nada mais se pode concluir e interpretar ao abrigo do artigo 256, n.° 1 e), do que o preenchimento de todos os elementos do crime e portanto decidir pela condenação do arguido, já que se entende, que não se pode interpretar o artigo 256 ° n.°l e) no sentido de não sabendo quem falsificou a declaração, não se poder assumir que foi um terceiro, que não o arguido; D. Que o arguido conhecedor da falsidade da declaração, fez chegar a mesma à posse da N...,, usando essa declaração para enganar e obter vantagens para si e para a sua empresa, levando a N... a acreditar que a garantia teria sido extinta, permitindo assim a emissão de uma segunda garantia. E. Que a conduta acima é esclarecedora quanto à atitude enganatória sobre factos que o arguido astuciosamente provocou, preenchendo assim os requisitos quanto a este ponto do tipo de crime previsto nos artigos 217,° n.° 1 e 218 .° n.° 2 a). F. Que na acusação é referido, ainda que sinteticamente, que efectivamente a N... emitiu uma nova garantia ao Banco Comercial Português, S. A., não violando assim a acusação o principio do acusatório, e por consequência o artigo 32 ° da Constituição da republica Portuguesa; G. Não se concordando com a interpretação de que esta acusação deveria ter sido rejeitada ao abrigo do artigo 311°, n.° 2 e 3 b) do Código de Processo Penal, pois a mesma, ainda que sinteticamente, relata os factos descritivos da conduta criminosa do arguido; H. Que o facto de se ter chegado à conclusão pela prova produzida em juízo, de que o prejuízo patrimonial da N..., derivava desta garantia e do pagamento desta ao Banco Comercial Português, S. A., não resulta em nenhuma das situações previstas nos artigos 358° e 359 ° do Código Processo Penal; I. Que relativamente ao pedido de indemnização cível, e tendo em conta a posição acima referida, ou seja, a condenação do arguido dos pela prática dos crimes descritos, se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, nos termos do artigo 483°, do Código Civil, e portanto o arguido deverá ser condenado no pedido de indemnização cível, conforme sentença do Tribunal de Primeira Instância. Nestes termos, devem pois ser revogado o Acórdão recorrido e ser o arguido condenado pela prática, em autoria material e em concurso efectivo (arts. 30.° e 77.°), um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.°, n.°l e 218.°, n.° 2, ai a ) do Código Penal e um crime de uso de documento falso, do art. 256.°, n.° 1, ai. e), anterior ai. c) do mesmo diploma legal, bem como ser condenado no pedido de indemnização civil deduzido pela demandante N... — Sociedade de Garantia Mútua, S.A.", contra o demandado e, em consequência, condenar este a pagar àquela a quantia de € 109.642,37 (€ 108 750,00 + € 892,37), conforme sentença emitida pelo Tribunal de Primeira Instância. O arguido apresentou a sua resposta, pugnando pelo acerto da decisão . Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos: 1) A “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” é uma sociedade que se dedica à realização de operações de natureza financeira. 2) No dia 21 de Julho de 2006, nesta cidade do Porto, a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, no exercício da sua actividade, celebrou um contrato com a sociedade “..., UNIPESSOAL, LDA.”, da qual o arguido é sócio gerente, no qual, entre o mais, se acordou que a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” prestaria uma garantia autónoma, à primeira solicitação, a favor da “V... ESPANHA, SA”, no valor de 200.000,00€, destinada tal garantia a garantir o bom pagamento do contrato de fornecimento de produtos fornecidos à “..., UNIPESSOAL, LDA.” 3) Sucede que, em data não concretamente apurada, mas situada entre 21 de Julho de 2006 e 20 de Março de 2008, igualmente nesta cidade, o arguido solicitou outra garantia à “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, desta vez a favor do “Banco Comercial Português, SA”. 4) Acontece que, a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” para prestar agora esta nova garantia, solicitou ao arguido a entrega de uma declaração emitida pela “V... ESPANHA, SA” e através da qual esta devia declarar que dava por extinta a garantia acima indicada. 5) Assim, no dia 14 de Maio de 2008, o arguido entregou pessoalmente tal declaração de extinção nas instalações da “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, localizadas na ... 6) Contudo, tal declaração não era autêntica. 7) Porém, a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” ficou convencida da veracidade de tal declaração, razão pela qual, emitiu nova garantia agora a favor do “Banco Comercial Português, SA”. 8) Já em 16 de Julho de 2008, a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” recebeu uma carta da “V... ESPANHA, SA”, a solicitar o pagamento dos 200.000,00€ garantidos. 9) Acontecendo que, a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” acabou por assumir tal prejuízo, pagando à “V... ESPANHA, SA”, a quantia em causa. 10) O arguido AA actuou livre, deliberada e conscientemente, levando a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” a crer na veracidade das suas palavras - utilizando para o efeito artifícios por si congeminados - sabendo perfeitamente que tal não correspondia à verdade, uma vez que a “V... ESPANHA, SA” nunca declarou extinta a garantia prestada a seu favor e causando dessa forma um prejuízo patrimonial à “N...”, correspondente ao valor da garantia concedida a favor do “Banco Comercial Português, SA”. 11) O arguido actuou da forma descrita com o intuito de obter um enriquecimento ilegítimo para si - correspondente ao valor do prejuízo sofrido pela “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” – não ignorando ainda que causava, com tal conduta, um prejuízo patrimonial a esta. 12) Por sua vez, o arguido AA quis usar um documento, como usou, bem sabendo que o mesmo era falso. 13) Ao usar o aludido documento, que não correspondia à realidade, agiu o arguido de uma forma deliberada, livre e consciente, tendo-o feito com o intuito de induzir em erro a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, dessa forma causando um prejuízo à mesma e alcançando um beneficio. 14) Sabia ainda o arguido AA que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. 15) A assistente pagou à “V... ESPANHA, S. A.”, ao abrigo da garantia 2006.00385, em 01/09/2008, a quantia de € 200 000,00. 16) A assistente deixou de cobrar a comissão prevista na cláusula terceira n. 1 b) do contrato, entre o período de 21-07-2009 (data da suposta extinção da garantia) a 31-08-2009 (data da reactivação e pagamento total da garantia ao beneficiário), celebrado para a emissão da garantia 2006.00385, pois assumiu que esta se encontrava extinta - sendo o valor total destas comissões de € 474,08. 17) A assistente pagou o valor de € 108 750,00, ao abrigo da garantia 2008.00206, ao beneficiário Banco Comercial Português, S. A.. 18) Com a emissão da garantia 2008.00206, foi contratada com a ... Unipessoal, S. A. o pagamento de uma comissão ao abrigo da cláusula terceira n.° 1 a), no montante de 1,5% do valor vivo da garantia, sendo que, ao abrigo dessa cláusula a ... Unipessoal, S. A., não pagou o valor total de € 892,37. Mais se provou, relativamente às condições de vida do arguido: 19) Que o arguido nasceu em Angola, onde viveu até aos três anos de idade, altura em que, devido ao processo de descolonização, o agregado regressou definitivamente a Portugal. Inicialmente fixaram-se em casa de familiares em Barcelos e, quando AA completou seis anos, mudou-se juntamente com os pais e os três irmãos para os Arcos de Valdevez, onde passaram a residir. O seu pai era funcionário dos Serviços Municipalizados e de Saneamento Básico dos Arcos de Valdevez e a mãe, durante muitos anos, foi doméstica e estava essencialmente dedicada aos cuidados com os quatro filhos do casal, à organização da vida familiar e tarefas domésticas. Posteriormente, conforme os filhos foram crescendo e ganhando mais autonomia a mãe fui-se dedicando à costura em casa e já mais recentemente procurou outras actividades ou formação profissional como forma de obter algum rendimento e complementar o vencimento do marido. O seu agregado familiar de origem mantinha uma situação económico-financeira organizada, ainda que modesta, com rendimentos provenientes exclusivamente das actividades profissionais desenvolvidas pelos progenitores, existindo hábitos de trabalho que eram transmitidos aos descendentes, um estilo familiar educativo regrado, participativo e responsabilizador e um ambiente afectuoso e coeso. AA viveu com os pais até entrar no ensino superior, altura em que passou a residir na região do horto onde acabou por se fixar quando começou a trabalhar e, posteriormente, no período em que esteve casado. O arguido contraiu matrimónio aos 30 anos de idade após um namoro de dois. Apesar da esposa ser natural da Ponte da Barca, como o arguido já trabalhava na região do Porto, fixaram residência definitiva na área de Vila Nova de Gaia quando nasceu a única filha do casal em 2006. Ao longo do seu desenvolvimento, o arguido beneficiou de condições e foi sendo incentivado a prosseguir os estudos, tendo realizado, até completar o 12° ano, um trajecto bem sucedido ao nível académico. Em data que não precisou, mas por volta de 1993, após candidatura conseguiu colocação na licenciatura de Física na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. O arguido realizou quatro matrículas nesta licenciatura que não concluiu porque, no decurso do 3° ano, começou a trabalhar como formador na área da informática, actividade que manteve durante três ou quatro anos e que lhe permitia manter-se autónomo dos pais ao nível financeiro. Entretanto, surgiu uma oportunidade de emprego onde foi desenvolver projectos multimédia para uma empresa (E...) e a conclusão da sua formação académica fui ficando adiada para segundo plano. Ao fim de dois anos nessa actividade, lançou-se por conta própria com um projecto que deu origem, em 2004, à constituição da sua própria empresa - ..., Unipessoal, Lda- com actividade no sector informático, na qual para além da criação de projectos era responsável pela gestão. Em 2006 a empresa estava no auge, tinha vários funcionários e colaboradores e facturavam valores substancialmente elevados, o que lhe permitia manter um nível de vida superior. AA aparentemente ë uma pessoa com um estilo de vida saudável, sem hábitos aditivos ou vícios. Depois de 2006, a situação empresarial do arguido entrou em declínio, devido a dificuldades de mercado. No final de 2008 a empresa praticamente já não tinha actividade comercial e em 2010, concretamente em Março foi decretada a sua falência, decorrendo processo de liquidação judicial. Entre finais de 2008 e durante o ano de 2009, AA afirmou ter trabalhado em vários projectos comerciais ou empresariais, juntamente com familiares, que também não foram bem sucedidos pelo que, desde finais de 2009, trabalha como freelancer no sector da informática, prestando serviços na Empresa S..., Unipessoal, com sede em Arcos de Valdevez, cuja proprietária é a sua mãe. Aufere um ordenado que ronda o valor do salário mínimo nacional e a sua prioridade, em termos financeiros é pagar a prestação de alimentos à filha e uma dívida que está a ser assumida pela ex-mulher, através de penhora do ordenado daquela, mas que decorre de negócios da empresa do arguido que faliu. O arguido não assume quaisquer despesas de casa, que são suportadas pelos pais com os valores da reforma do pai (€1300/mês) e o vencimento da mãe (cerca de €510 /mês), e ainda está a ser apoiado financeiramente por estes que estão a assumir o pagamento de uma dívida bancária de AA no valor de cerca de €500 mensais. Actualmente, o volume de dívidas do arguido decorrentes da actividade empresarial, ronda os 4 milhões de euros, valor que assume não ter condições para liquidar. AA na sequência de problemas pessoais e conjugais, separou-se da esposa em Agosto de 2009 e em Março de 2010 foi decretado o divórcio. Desde que se separou reintegrou o agregado de origem e mudou a sua residência de Vila Nova de Gaia para os Arcos de Valdevez. Actualmente, encontra-se integrado familiarmente pelos pais, beneficiando de um contexto estável economicamente e emocionalmente coeso e suportivo onde tem tido um grande apoio. Com regularidade, a filha, de quatro anos, que se encontra à guarda da ex-mulher, vem passar o fim-de-semana com o arguido e com os avós paternos. Relativamente ao processo educativo e de desenvolvimento da filha, o arguido tem uma atitude presente, participativa e interessada, comparticipando nas suas despesas mensais. AA há cerca de meio ano estabeleceu novo relacionamento afectivo e o casal tem projectos de vida em comum que só pretendem concretizar após a estabilização da sua situação judicial, financeira e profissional. Na comunidade onde está inserido actualmente a sua situação é praticamente desconhecida e a sua família encontra-se bem integrada e goza de uma imagem social positiva. 20) O arguido não tem antecedentes criminais. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir : A questão prévia que se coloca , com repercussão no conhecimento do recurso na parte penal , pertine à admissibilidade do recurso da absolvição imposta em 2 .ª instância, em contrário da condenação imposta , porém revogada , pela Relação . Historicamente este STJ aprecia , em recurso , como regra, veredictos colegiais , e em tal conformidade a competência deste STJ mostra-se especificada , padronizada no art.º 432.º , n.º 1 c) , do CPP , que a cinge , no aspecto que nos ocupa , aos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo ou de júri , que apliquem pena de prisão superior a 5 anos , visando exclusivamente o reexame da matéria de direito . Do art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP, o legislador da reforma introduzida pela Lei n.º 48/97 , de 29/8 , fez consignar que não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas Relações , que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos. E do art.º 400.º n.º 1 d) , do CPP , resulta que não admissível recurso nos casos de acórdãos absolutórios da Relação confirmando a decisão de 1.ª instância, dupla conforme que se tem por excluída porque a Relação absolveu o arguido que antes fora condenado . Por outro lado dos acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que não apliquem pena de privação de liberdade não é admissível recurso para o STJ –art.º 400.º n.º 1 e) , do CPP . O propósito repetidamente afirmado pelo legislador no segmento dos recursos foi o de imprimir maior celeridade processual ao respectivo regime introduzindo-lhe modificações , em ordem a assegurar um “ processo mais ágil , que pudesse ir mais depressa da instauração do inquérito à decisão final “ , na afirmação do Ministro Alberto Costa , in DAR , I Série , N.º 59 , de 15/3 /2007 , reservando um segundo grau de recurso para o STJ aos casos de “ maior merecimento penal “ como figurava no preâmbulo da Proposta de Lei n.º 109/X, comenta Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código de Processo Penal , pág. 1185 . A versão actual do CPP, numa feição mais restritiva do direito ao recurso , quando confrontada com o regime antecedente , substituiu o critério da admissibilidade do recurso em função da pena aplicável pelo da pena efectivamente aplicada , afastando a admissibilidade do recurso da moldura da pena abstractamente aplicável , concentrada no regime antecedente . E assim se sustenta que em caso de dupla conforme, de confirmação de penas parcelares inferiores a 8 anos , pela Relação , mas em que a pena unitária imposta seja superior a 8 anos de prisão , só pode ser discutida esta pena unitária no STJ ( Cfr. Acs. de 16.12.2010, P.º n.º 893/05.5GAXL.L1.S1 , de 13.11.2008 , P.º n.º 3381 /08 , de 16.4.2009 , P.º n.º 491/0 e de 12.5.2010 , P.º n.º 4/05.7TACDV ), e mesmo neste STJ em caso de não haver dupla conforme , só haverá recurso da Relação desde que as penas parcelares sejam superiores a 5 anos de prisão ( P.º n.º 152/06.6GAPNC.C2 .S1) isto porque se quis , com a reforma do CP de 2007 estender o recurso aos casos de maior “ merecimento penal “ , como referenciado . Como se não ignora não está consagrado na lei um irrestrito direito ao recurso de todos os despachos e sentenças que afectem direitos ou interesses individuais , nem um esgotamento de todas as instâncias de recurso ou sequer um irrestrito direito ao recurso de todas as matérias versadas em audiência , muito particularmente de direito , subordinadas aos princípios da imediação e oralidade . Por outro lado das convenções internacionais sobre direitos humanos, mormente do art.º 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção para Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais , aprovada para ratificação pela Resolução do Presidente da Assembleia da República n.º 22/90 , de 27/9 e ratificada pelo Dec.º- Lei n.º 51/90 , apenas se impõe o reexame da causa por um tribunal de recurso , direito que pode , até , ser restrito aos casos de infracções de menor gravidade definidas por lei , quando se tenha sido julgado pela mais alta instância ou declarado culpado no seguimento de recurso contra a sua absolvição . O direito ao recurso deve , pois , ser sempre equacionado com o exercício de um duplo grau de jurisdição ; admitido este , não subsiste fundamento legal razoável para se impor um triplo grau de jurisdição de acesso ao STJ , em contrário dos valores proclamados como inspiradores da filosofia dos recursos , atingindo os valores da celeridade e paralisando o processo , mesmo quando o facto penal não traduz crime grave . À análise puramente literalista do art.º 400.º n.º 1 , do CPP , de alguns dos seus segmentos , conduzindo a resultados incongruentes , sobrepõe-se uma interpretação restritiva que se aplica sempre que se reconhece que o legislador , posto que se tenha expresso de modo genérico a certo tipo de relações , todavia o texto legal tal como redigido viria a contradizer o sistema legal , contendo uma contradição íntima em si , pelo que aplicando-se , sem restrições , ultrapassa o fim para que foi criado , no ensinamento do Professor Manuel de Andrade , in Ensaio sobre a Interpretação da Leis , pág. 150 . Impõe-se um propósito redutor sempre que , escreve Medina de Seiça , citado no Ac. deste STJ , de 29.4.2009 , P.º n.º 329/05 .1PTLRS.S1 , quando se trata não na defesa da lei, mas do próprio direito e da intenção de justiça que o constituiu, mas sempre até onde chegue a tolerância e a elasticidade do sistema é que se pode resolver pela interpretação que dê à lei um sentido justo e mais apropriado às exigências da vida , às realidades entretanto surgidas , presentes no espírito do legislador . Como já do antecedente resulta , dos acórdãos proferidos em recurso pelas Relações que não apliquem pena de privação de liberdade – por ex.º uma pena de multa ou pena de prisão com execução suspensa - não é admissível recurso para o STJ –art.º 400.º n.º 1 e) , do CPP - por isso que introduzindo na interpretação da lei una nota correctiva , de alcance limitativo , assegurado como está um grau de recurso –cfr. AC. do TC n.º 239/2011 , de 5.5.2011 , in P.º n.º 156/2011 -3 .ª Sec. – então em caso de absolvição pela Relação , por maioria de razão , de ordem lógico-racional, essa solução de irrecorribilidade , numa visão sistémica e integrada , se impõe , no aspecto penal . E sempre sem descurar , e em reforço da solução da inadmissibilidade , que é reservada ao STJ esfera de competência aos casos de maior gravidade , aferida em função da concreta pena aplicada e , de um ponto de vista orgânico diferenciado , da espécie e natureza do tribunal , tomando como modelo , como padrão de referência , norma incontornável , o art.º 432.º n.º1 c) , do CPP . De resto o recurso para o STJ , visto o que se preceitua no citado artº 432 .º , tem como pressuposto , puro derivado da lei , uma condenação , materialmente ausente , por isso não cabe recurso da parte penal do acórdão absolutório da Relação . Não significa , isso , porém , que os autos não prossigam para apreciação da responsabilidade cível , requerida no recurso pela assistente , visto o que se preceitua no art.º 400.º n.º 3 , do CPP , que estabelece uma quebra ao princípio da adesão, ao consentir que mesmo em caso de absolvição em sede penal , é facultado recurso no que respeita à indemnização cível , tendo presente o valor do pedido e a sucumbência , que se não questionam . Em princípio a indemnização por danos resultante de facto ilícito ou baseada no risco deve ser deduzida , princípio que comporta excepções , no processo penal , nos termos do art.º 71.º , do CPP . Num sistema de alternatividade ou de opção livre a reparação por perdas e danos assume natureza puramente cível , mas entre nós em que o sistema de dedução da indemnização cível assume natureza interdependente , ou seja em que o lesado adere , juntando –se à acção penal , aquela natureza dificilmente se sustentará , tanto mais que surge como efeito penal da condenação , uma terceira pena , segundo alguns , reforçando o valor da sanção penal , e não como “ coisa cível “ , na tese civilista , no dizer de Cavaleiro de Ferreira , Gomes da Silva e Pereira Coelho , citados pelo Prof. Figueiredo Dias , dessa natureza discordando , in Direito Processual Penal , I , 545 , nota 11 ( não 22) . Num sistema de adesão , como o nosso , aceita-se o ritualismo processual , a tramitação , com as especificidades próprias vertidas nos art.ºs 73 .º e segs . , do CPP , obedecendo às regras de processo penal , mas recebe-se por incorporação , nos termos do art.º 129 .º , do CP , os pressupostos de direito material , substantivo , fundantes da responsabilidade aquiliana , enunciados no art.º 483.º , do CC , a considerar oportunamente . Os factos a considerar na fixação da reparação por perdas e danos são os fornecidos pelo processo penal , os que se provam e os que se não provam , bem como os fornecidos em enxerto cível , movendo-se o tribunal no seu âmbito , sobre eles se formando caso julgado , com foros de imutabilidade , como regra . O Colectivo deu como provado que o arguido começou por solicitar à “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” , sociedade que se dedica à realização de operações de natureza financeira, no dia 21 de Julho de 2006, na cidade do Porto, uma garantia autónoma, a favor da “V... ESPANHA , SA”, no valor de 200.000,00€, destinada tal garantia a assegurar o bom pagamento do contrato de fornecimento de produtos à “..., UNIPESSOAL, LDA.” , de que o arguido é sócio , firmando acordo nesse preciso sentido . Em data não concretamente apurada, mas situada entre 21 de Julho de 2006 e 20 de Março de 2008, igualmente o arguido solicitou outra garantia à “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, mas desta vez a favor do “Banco Comercial Português, SA”. A “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” condicionou prestar, agora, esta nova garantia, rogando ao arguido a entrega de uma declaração emitida pela “V... ESPANHA, SA” e através da qual esta devia declarar que dava por extinta a garantia acima indicada. No dia 14 de Maio de 2008, o arguido , acordando no peticionado , entregou pessoalmente tal declaração de extinção nas instalações da “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, localizadas na Avenida da Boavista, n.°2121, no Porto. A“N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” ficou convencida da veracidade de tal declaração, razão pela qual emitiu nova garantia ao arguido a favor do “Banco Comercial Português, SA”. Mas tal “ declaração não era autêntica “ , disse –se no elenco dos factos provados , evidente sendo que quando assim se diz não se usa o termo no sentido técnico jurídico , normativo , com o alcance previsto no art.º 369.º , do CC, mas no seu significado corrente , comezinho , normal , usual , como ressalta de uma visão contextualizada daqueles factos , de documento não verdadeiro , bem se compreendendo , o que parece não suceder com a Relação , o seu sentido . O arguido AA sabia perfeitamente que ao apresentá-la à assistente “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA” , tal não correspondia à verdade, uma vez que a “V... ESPANHA, SA” nunca declarou extinta a garantia prestada a seu favor, causando dessa forma um prejuízo patrimonial à “N...”, correspondente ao valor da garantia concedida ao seu cliente e em benefício do “Banco Comercial Português, SA” , a quem teve , por consequência , que pagar tal importância , é facto que este STJ não sindica . Por sua vez, o arguido AA quis usar um documento, como usou, bem sabendo que o mesmo era falso , não correspondente à verdade o teor da declaração e fê-lo com o intuito de obter um enriquecimento ilegítimo para si , correspondente ao valor do prejuízo sofrido pela “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, não ignorando ainda que causava, com tal conduta, um prejuízo patrimonial a esta. Ao usar o aludido documento fê-lo com o intuito de induzir em erro a “N... - SOCIEDADE DE GARANTIA MÚTUA, SA”, dessa forma causando um prejuízo à mesma e alcançando um beneficio pessoal ilegítimo . A Relação, com base em carência de factos vertidos na acusação pública integrantes da falsificação imputada e , também de artificio fraudulento , constituinte da burla , não passando de juízos conclusivos os vertidos nos factos provados , ancorados na acusação pública , de onde factualmente nada de relevante em termos de tipicidade se podendo extrair, o que devia até ser fundamento de rejeição da acusação pública , segundo disse , absolveu . Com a incriminação da falsificação prevista nos art.ºs 256.º e segs . do CP , visa-se acautelar o valor probatório dos documentos , que são “ uma voz morta “ , no dizer de Luis Romero Soto , Studios de Derecho , Ano XXI , 2 .ª Época , Setembro de 1960 , vol. XIX, n.º 58 , prolongando a vontade e o pensamento do seu autor para além do tempo da sua materialização , por isso a protecção dispensada a esses meios de prova visa assegurar e se propõe assegurar a confiança e a fé pública , garantindo-se o desenrolar da vida em sociedade , das relações mútuas, naquele clima . E quer se trate de documento particular quer público em relação ambos o Estado deve propiciar a sua genuidade na circulação documental como garantia de estabilidade nas relações humanas . Um documento é falso quando não corresponde à realidade . Na falsidade intelectual existe divergência entre o que o documento relata e o que de facto aconteceu –cfr. Marques Borges , Dos Crimes de Falsificação de Documentos , Moeda , Pesos e Medidas, pág.30 ; a falsidade repousará , então , num substracto ético-psicológico : a mentira , a inverdade ( cfr. Helena Moniz , O Crime de Falsificação de Documentos, pág. 134 ) ; cria-se um documento , no todo ou em parte , integrando-se nele um elemento declarativo diferente do que foi realizado; na falsidade material o documento é genuíno originariamente , mas posteriormente alterado; não há correspondência ao genuíno na parte extrínseca –cfr., ainda , Marques Borges , op . e loc. cit . Na citada e apresentada declaração de extinção da garantia – que é o doc. de fls . 78 – “ declara “ a V... , por intermédio de alguém que assina como seu director financeiro , que a garantia n.º 2006.00385 , do valor de 200.000 € , emitida pela assistente e prestada em favor daquela está extinta desde 28.4.2008, mas essa declaração não corresponde à verdade , á realidade do acontecido ; o arguido , a quem não é imputada a prática de actos materiais de falsificação especificados no art.º 256.º n.º 1 a) a d) , do CP ( versão actual ) ou 256.º n.º 1 a) a b ) , do CP , sua versão antecedente , seu apresentante à assistente, sabia perfeitamente que assim não sucedia . Mas a indagação de terceiro autor material da falsificação , dos correspondentes actos , é absolutamente irrelevante , porque o que sobreleva , à evidência , é que o arguido , e disso o Colectivo não teve dúvidas , sabia daquela desconformidade e serviu-se do documento assim integrado para obter efeitos jurídicos relevantes , uma nova garantia , com o que sabia causar prejuízos à assistente , que se conhecesse da não extinção , da manutenção , da anterior declaração, não teria prestado em segunda, não teria pago o seu valor , e o uso de tal declaração desse teor constitui crime , crime de uso de documento falso , p. e p . pelo art.º 256.º n.º1 d) e e ) , do CP . O facto de se não ter provado que tenha sido o arguido que procedeu à falsificação não invalida a sua punição apresentando aquele documento viciado, sob pena de ficar sem punição , conduta que , à face da lei , o é . O crime de falsificação é um delito de perigo abstracto , na previsão das als. a ) a d) ou a) a b) , do art.º 256.º n.º 1 , do CP , redacção actual e anterior , respectivamente , em que a simples falsificação do documento constitui já uma situação que torna possível uma futura lesão de valores jurídico-criminais protegidos , donde o tipo legal conter uma malha alargada de previsão , tornando punível o uso e , até , o simples facultar ou deter documento falsificado, sendo nestas duas hipóteses de dano , consumando-se o crime quando o documento é colocado em circulação . Ao arguido foi imputada a prática de um crime de burla , de execução vinculada em que a lesão do bem jurídico decorre da consequência de uma muita particular e específica forma de comportamento , que se traduz na utilização de um expediente tendente a induzir outra pessoa em erro ; não basta o emprego de um simples meio enganoso , antes que seja causa efectiva do erro em que se encontra a vítima . Revestindo a natureza de um crime material ou de resultado a sua consumação passa por um duplo nexo de imputação objectiva : entre a conduta enganosa do arguido e a prática pelo burlado de actos tendentes a uma diminuição do património , próprio ou alheio , e , depois , entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial –cfr . A. M. Almeida Costa , in Comentário Conimbricense do Código Penal , II , pág . 293 . Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais . Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a um diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial (cfr. , ainda , autor citado in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág. 292-293). No essencial trata-se de indagar o valor ou o conteúdo comunicacional , globalmente considerado , na relação desenvolvida . É que podendo a burla consumar-se através de declarações ou palavras , inferir-se de actos concludentes , ou de omissão , a atitude externa do agente só passa a integrar aquele delito quando assume um especial conteúdo , caindo então na alçada penal . Apesar da imoralidade que pode acompanhar a celebração de certos negócios , que, pelo empolar de qualidades , o objecto negocial não preenche , ou o seu preço não justifica ou as circunstâncias negociais não legitimam , o acto praticado pode ser analisado à luz de um dolo civil , afastando-se o criminal . Este só se ajusta à “ fattispecie “ penal quando o burlão pelo recurso à mentira , à maquinação , no intuito de prejudicar o burlado ou terceiro , usa de astúcia , enquanto instrumento de deslocação patrimonial indevida . A astúcia é, materialmente , algo mais que aquela mentira ; é um “ plus “ que lhe acresce e que lhe empresta , sob a forma de cenário adrede criado , uma “ mise- en- scéne “ , que tem por fim dar crédito à mentira e inevitavelmente enganar , escreve Garraud , citado pelo Prof. Beleza dos Santos , in Estudo publicado na R L J , ano 76 , n.º 27 , 278 . A palavra “ astuciosamente “ empregue no preceito citado , com fonte no CP suíço , tem o sentido de artificiosamente , acrescendo à mentira , funcionando como seu reforço , manifestado habilmente sob a forma de factos , atitudes e aproveitamento das circunstâncias , que aquela inverdade tornem crível . A astúcia torna a mentira , já de si condenável , em verdade intransponível . A burla configura uma hipótese de “ auto-lesão “ , estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio de facto do “ homem de trás “ deriva do estado de erro do lesado acerca do circunstancialismo em que actua ( cfr. Comentário , cit. , pág . 289 -299 ) . No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Ora o arguido conhecia que a declaração corporizada na declaração apresentada não era verdadeira , real , também não podia ignorar a essencialidade da sua apresentação à assistente , que só emitiria a segunda se daquela estivesse desobrigada , induziu –a com a apresentação em erro, pelo processo engenhoso descrito , manipulando a sua decisão , fazendo , falsamente , crer que a primeira garantia estava extinta e tanto basta para se concluir pela astúcia de que lançou mão , estando caracterizado, embora de forma parcimoniosa , mas bastante , o processo fraudulento descrito no art.º 217.º n.º 1 , do CP . E isto mesmo se conclui sem realização de exame pericial , porque a desconformidade foi alcançada , sem recurso a exame exigindo conhecimentos especiais , técnicos e científicos , pressupostos na prova pericial –art.º 151.º , do CPP -, pois que como se alcança da fundamentação a fls . 338 a testemunha Vânia Osório de Castro declarou em audiência de julgamento que a declaração “ não foi emitida pela “ V... “ , sendo o timbre da sociedade e assinaturas apostas naquele documento manifestamente falsos . Confrontada com o documento de fls . 40 , a testemunha diz que este sim é um documento verdadeiro e autêntico daquela empresa . E não denotou dúvida, titubeando , a inferir da acta de audiência . A assistente peticionou o pagamento da importância , além do mais , de 200.000 € , correspondente à primeira garantia , mas o Colectivo excluiu a obrigação de o arguido indemnizá-la , porque sufragou o entendimento de que ela foi prestada voluntária e livremente , no âmbito da pura responsabilidade contratual , ao arrepio de qualquer processo fraudulento . Cinge, antes , a obrigação de indemnizar no que concerne ao prejuízo patrimonial causado pela garantia n.º 2008.00206 ( subsequente à emissão da garantia n.º 200600385 , que teve-indevidamente - por extinta ) a pedido de ... Unipessoal , Ld.ª , de que é sócio gerente o arguido , a favor do Banco Comercial Português , S A , do montante de 108.750 .000€ e como a anterior garantia não fora extinta ( “ ainda estava viva “ , diz o acórdão de 1.ª Instância a fls . 348 ) , contra o que arguido fizera crer , teve a assistente que pagar aquela soma . A inferir dos autos tratava-se de uma garantia de financiamento feito à sociedade representada pelo arguido prestada pela assistente ao BCP e que teve que pagar . Da acusação pública constam factos que , devidamente contextualizados , permitem inferir que , e citamos fls . 180 , ao usar esse documento , com intuito de induzir em erro a assistente , lhe causou prejuízo , alcançando um benefício , mas não vem indicado o montante do prejuízo - € 108.750 , adidos da comissão – que , no entanto , figura nos factos que integram o enxerto cível, socorrendo-se deles o Colectivo para configurar mais completamente o elemento objectivo do crime de burla na decisão que proferiu . O arguido vinha acusado de um crime de burla agravada, porém reportado ao valor da emissão da primeira garantia de 200.000 € , mas dizendo-se que, no contexto fraudulento da emissão da segunda , a assistente sofreu prejuízos , que não foram indicados , está-se perante uma alteração não substancial dos factos –art.º 358.º , do CPP - , que não foi objecto de arguição ou de declaração oficiosa - n.º 1 , daquele preceito - nulidade que se tem , em absoluto, por sanada , com o trânsito em julgado da parte penal , a partir da sua irrecorribilidade , por isso que nada invalidando que este STJ , no domínio da insindicância do facto , nos termos do art.º 434.º , do CPP , tome esse valor enquanto pressuposto de ressarcibilidade , também ele elemento objectivo do crime , demonstrado como se mostra o elemento subjectivo . A obrigação de indemnizar por facto ilícito , propõe-se cobrir todo o dano real à custa do lesante nos termos do art.º 562.º , do CC , não bastando a prática de acto que prejudique interesses de outrém , sendo imperativo que a acção naturalística seja ilícita , violando direito subjectivo de outrém , o mais frequente dentre eles o de propriedade , emparceirando os de personalidade , familiares , etc , nos termos do art.º 483.º , do CC. Ao lado da violação desses direitos subjectivos ainda refrange ilicitude a infracção de norma destinada a proteger interesse alheio , mas sem conferir um verdadeiro direito subjectivo ao lesado –cfr. Prof . Antunes Varela , in Das Obrigações em Geral , 411 . A asserção de que a obrigação de indemnização remove o dano real , através da restauração natural ou do equivalente pecuniário , só é válida para o dano patrimonial e não já para o dano não patrimonial , em que a indemnização se propõe , pela atribuição de ma soma em dinheiro , compensar o mal causado . Posto que a responsabilidade por facto ilícito extracontratual assuma essencialmente uma feição reparadora , ela reveste , ainda , função preventiva , sancionatória ou mesmo repressiva , por isso que não abdica da culpa , na modalidade de dolo ou mera culpa do agente , que introduzem limite ao montante do dano , seus pressupostos em concurso como facto e a ilicitude ; o dolo ou a mera culpa expressam o maior ou menor grau de reprovabilidade ou censurabilidade do facto ao agente . O pressuposto do nexo de imputação do facto ao agente e a causalidade entre o facto e o dano , esta determinante da latitude material da obrigação de reparação na justa medida em que delimita a reparação dentro dos limites dos danos efectivamente causados pelo agente , que no caso vertente são , apenas , de índole patrimonial , fecham o elenco dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito . O dano é o prejuízo sofrido pela lesada com a diminuição do seu património, tendo que desembolsar a importância da garantia , na forma de dano emergente , e lucro cessante titulado pelo não pagamento de uma comissão de 1,5 % do valor “ vivo “ da garantia , no montante de 892, 37 € . O arguido , enganando , consciente e voluntariamente , de forma reprovável , a assistente , pelo mencionado processo , provando-lhe , em consequência , um concreto desfalque patrimonial , incorre , em responsabilidade penal pelos factos descritos , também eles fonte de responsabilidade civil , ao abrigo dos art.ºs 483 .º , 562.º , 563 .º , 564 .º e 566.º , do CC. O acórdão da Relação , se não pode ser objecto de revogação em sede penal pois está a coberto do caso julgado , é –o na parte cível , apreciada autónoma e destacadamente daquela –art.º 403 .º n.º2 a) e b) , do CPP , desde que o CPP ,pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 . Consequentemente se decide : Não conhecer do recurso interposto pela parte penal pela assistente , por não ser caso de admissibilidade legal . Em procedência parcial , quanto à questão cível , provendo-se ao recurso , revogando-se o Ac. da Relação , condena-se o arguido ao pagamento da indemnização nos exactos moldes arbitrados na 1 .ª instância , à assistente , ou seja da soma de 109.642,37 (€ 108 750,00 + € 892,37). Tributação : Taxa de justiça : 5 Uc,s , acrescendo 3 Uc,s , a cargo da assistente. Custas pelo arguido quanto ao pedido cível indemnizatório .
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