Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | JORGE RAPOSO | ||
| Descritores: | RECURSO PER SALTUM ABUSO SEXUAL MEDIDA DAS PENAS PARCELARES MEDIDA DA PENA ÚNICA | ||
| Data do Acordão: | 11/26/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
| Sumário : |
I. Não se exige que dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena; porém o procedimento de determinação da pena, como autêntica aplicação do direito, não pode ser deixado a uma discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua íntima «arte de julgar». II. Consideram-se inexplicavelmente assimétricas e manifestamente excessivas as penas parcelares fixadas umas perto dos 3/4 da moldura penal, outras a 1/2 e entre 1/3 e 1/4 da respectiva moldura. III. Considerando todas as circunstâncias a que alude o art. 72º do Código Penal, justificam-se penas parcelares que se situem entre 1/5 e 1/4 das respectivas molduras penais, mantendo-se o mesmo critério quanto à pena única, por se afigurar equilibrado e conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I – RELATÓRIO Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo, o arguido AA, solteiro, ..., filho de BB e de CC, natural da República de Angola, de nacionalidade portuguesa, nascido a D.M.1976, residente na Praceta 1, foi julgado e a final: 1. Absolvido da prática de 16 crimes e abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos art.s 171° n° 1 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal, de 4 crimes de coacção sexual agravados, sendo um na forma tentada, p. e p. pelos art.s 163° n° 1 e 177° n°s 1, al. b) e 7 do Código Penal, de 2 crimes de violação agravada, p. e p. pelos art.s 164° n°s 1 e 2 al. a) e 177° n°s 1, al. b) e 7 do Código Penal, e de 1 crime de coacção agravada, p. e p. pelos art.s 154° n° 1 e 155° n° 1, al. b) do Código Penal; 2. Condenado: 2.1. Pela prática, como autor material, e na forma consumada, de 6 crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171° n° 1 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão por cada crime; 2.2. Pela prática, como autor material, e na forma consumada, de 3 crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171° n° 2 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal, na pena de 7 anos de prisão por cada crime; 2.3. Pela prática, como autor material, e na forma consumada, de 2 crimes de abuso sexual de criança agravados, p. e p. pelos artigos 171° n° 3 al. a) e 177° n° 1 al. b) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão por cada crime; 2.4. Pela prática, como autor material, e na forma consumada, de 1 crime de coacção agravada, p. e p. pelo art. 154° n° 1 e 155° n° 1, al. b) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão; 2.5. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 14 anos de prisão; 2.6. Nas penas acessórias previstas nos artigos 69°-B n° 2 e 69°-C n°s 2 e 3, do Código Penal, consistentes na proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, e inibição do exercício de responsabilidades parentais, todas pelo período de 15 anos; Foi julgado totalmente procedente, por totalmente provado, o pedido de indenização civil deduzido por DD, e, em consequência, condenado o demandado, AA, a pagar-lhe o valor de € 15.000, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão, e até integral pagamento, a título de ressarcimento de danos não patrimoniais. (…) * Inconformado, recorreu o arguido visando exclusivamente a medida da pena, apresentando a seguinte síntese conclusiva: 1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Juiz 5 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal- Juiz 5, pelo o qual condenou o arguido, ora recorrente, pelo cometimento de seis crimes de abuso sexual de crianças agravado em quatro anos de prisão por cada p.p. pelos artigos 171 nº1 e 177º nº 1 al b) do Código Penal, sete anos de prisão por cada um dos três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171º nº 2 e 177º nº 1 al. b) do Código Penal, a três anos de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos artigos 171º nº3 al. a) e 177º nº 1 al. b) do Código Penal, e a três anos de prisão pelo crime de coacção agravada p. e p. pelos artigos 154º nº 1 e 155 nº 1 al. b) do mesmo diploma legal. Em cúmulo jurídico a 14 (catorze) anos de prisão. O arguido foi ainda condenado nas seguintes penas acessórias num período de 15 anos: Proibição de exercer profissão, emprego, funções ou actividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores e, inibição do exercício de responsabilidade parentais. Por fim, foi julgado totalmente procedente por provado o pedido de indemnização civil e, em consequência foi o arguido condenado a pagar o valor de 15000,00 (quinze mil euros) acrescidos de juros moratórios, á taxa legal, contados desde a data da prolação do presente acórdão, e até integral pagamento, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais. 2. Cumpre analisar a medida das penas encontrada pelo Tribunal “a quo”, as quais se afiguram manifestamente injusta e desajustada. 3. Dada a personalidade do recorrente, as condições de vida – quer pessoais quer profissionais- a sua conduta anterior e posterior aos crimes pelos quais foi condenado – posto que embora o tribunal ter dado o que deu como provado, para alguma coisa há-de servir ter-se comprovado que: a) Actualmente o arguido reside com os progenitores, de 81 e 70 anos de idade em habitação propriedade destes, situada num meio social descrito como tendencialmente normativo; b) Do agregado fazem ainda parte dois irmãos mais velhos, um dos quais com problemas de toxicodependência; c) O arguido é natural de Angola, tendo vindo para Portugal com poucos meses de vida, e foi neste país que decorreu o seu percurso pessoal junto dos progenitores e irmãos, num contexto definido como afectivamente ajustado; d) Até ao ano 2017 o arguido desempenhava actividade profissional irregular, tendo nesse ano iniciado funções na área da distribuição/reposição na empresa Presença Brilhante Lda (armazém de mercadorias/produtos alimentares); em 2018 manteve as mesmas funções, mas com contrato de trabalho, mantendo-se vinculado á mesma empresa, tendo sofrido um acidente de trabalho há cerca de um ano, permanecendo desde então incapacitado para o exercício da actividade laboral; e) Desde Abril de 2025 que não aufere qualquer valor por parte da Segurança Social, pelo que apresenta uma condição económica limitada, beneficiando do apoio económico dos progenitores, que asseguram todas as despesas domésticas; f) O arguido apresenta um percurso laboral iniciado em idade precoce, após a conclusão do 6º ano de escolaridade, por não apresentar motivação para o processo de aprendizagem; g) Inicialmente desenvolveu actividade no ramo da construção civil, como ajudante de motorista, e posteriormente no ramo da restauração; h) Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. 4. O Tribunal deu ainda como provado que o recorrente não mostrou arrependimento, nem confessou os factos constantes da decisão do douto acórdão. 5. Na realidade o recorrente não confessou os factos dado que não os praticou. 6. Logo, consequentemente não poderia demonstrar arrependimento daquilo que não fez. 7. O recorrente tem juízo critico quanto a este tipo de crime, considerando extremamente grave, bem como, os danos irreversíveis provocados na vítima para o resto da sua vida. 8. No entanto, tal como afirma o Tribunal “a quo” o mesmo repetiu em sede das suas declarações em audiência e julgamento que não tinha praticado tais factos. 9. Tem noção, como sempre teve que a prova carreada aos autos e, que foi sustento da fundamentação desta decisão que ora se recorre, jamais conseguiria combatê-la. 10. Na realidade, é a versão da vítima contra a negação do recorrente. 11. Tem consciência o recorrente que foi condenado por factos que não praticou. 12. Com tal decisão não pode o recorrente conformar-se, no que refere às penas parcelares e, respectivo cúmulo jurídico, entendendo que as mesmas são extremamente elevadas. 13. E consequentemente o respectivo cúmulo jurídico. 14. Neste quadro, entende o recorrente que a pena a ser aplicada deveria ser reduzida e suspensa na sua execução. 15. Acresce que, a tentativa de socialização em que, como sabemos, deve traduzir-se a execução da pena, é claramente contrariada – e, nesta acepção, mais que “compensada” – pela forçosa dessocialização derivada do corte nas relações familiares e profissionais do condenado. 16. O Tribunal “a quo” ao ter decidido conforme o fez violou claramente as normas dos artigos 70, 71 e 72 do Código Penal e o artigo 32 da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente: a) Deverão V.Exas. reduzir as penas parcelares aplicadas ao recorrente e, consequentemente a pena única resultante do cúmulo jurídico; b) Deverá a pena que for aplicada ser suspensa na sua execução. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela improcedência do recurso: 1. As finalidades da punição encontram-se previstas no artigo 4.º, n.º 1, do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em face da gravidade dos crimes em apreço, o grau de ilicitude elevado; a culpa do arguido também elevada; o modo de execução, as consequências da sua conduta; o dolo directo e intenso com que actuou; os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes; o motivo subjacente à sua conduta; a conduta anterior e posterior aos factos, são demonstrativos das elevadas necessidades de prevenção, quer geral, quer especial, pelo que se nos afigura que a suspensão da execução da pena de prisão é desadequada à gravidade dos ilícitos e da culpa e não satisfaz as exigências de prevenção acentuadas. Por todo o exposto, consideramos, por conseguinte, que a pena é adequada e justa, subscrevendo o entendimento do Tribunal que, a nosso ver, não merece qualquer reparo. Pelo que deverá ser negado provimento ao presente recurso interposto pelo arguido AA. Porém, VOSSAS EXCELÊNCIAS, decidindo, farão como sempre a costumada JUSTIÇA! * O recurso foi admitido para subir directamente a este Supremo Tribunal. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que conclui: III. Uma vez que o recurso interposto tem por objeto, exclusivamente, o reexame da matéria de direito, o Senhor Juiz a quo mandou subir os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 432º, nº 1, al. c), e nº 2, do CPP (despacho com ref.ª .......11). IV. A Senhora Procuradora da República no Juízo Central Criminal de Lisboa apresentou fundada resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção integral da decisão recorrida. A resposta do Ministério Público junto do Tribunal a quo identifica detalhadamente todas as questões a dirimir, equacionando-as devidamente, e rebate de forma sólida os argumentos do recorrente, demonstrando a sua evidente falta de razão. Com efeito, ao contrário do que alega o recorrente, decorre claramente da leitura da decisão recorrida que o Tribunal a quo ponderou e aplicou devidamente os critérios e fatores que estava obrigado a levar em conta na determinação, quer das penas parcelares quer da pena única resultante do concurso. De acordo com o artigo 40º, nº 1, do Código Penal, “(…) a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Encontram-se, assim, expressas no referido preceito as finalidades subjacentes à aplicação de sanções de índole penal: • fins de prevenção geral e • fins de prevenção especial. A proteção de bens jurídicos (prevenção geral) traduz-se numa forma de prevenção positiva, com vista a dissuadir o agente da prática de futuros crimes. Como ensina Fernanda Palma, “a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”.1 Ora, no caso dos autos, e como muito bem afirma a Senhora Procuradora da República, “Em face da gravidade dos crimes em apreço, o grau de ilicitude elevado; a culpa do arguido também elevada; o modo de execução, as consequências da sua conduta; o dolo directo e intenso com que actuou; os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes; o motivo subjacente à sua conduta; a conduta anterior e posterior aos factos, são demonstrativos das elevadas necessidades de prevenção, quer geral, quer especial, pelo que se nos afigura que a suspensão da execução da pena de prisão é desadequada à gravidade dos ilícitos e da culpa e não satisfaz as exigências de prevenção acentuadas. Por todo o exposto, consideramos, por conseguinte, que a pena é adequada e justa, subscrevendo o entendimento do Tribunal que, a nosso ver, não merece qualquer reparo.” Efetivamente, a prevenção especial concretiza-se através da aplicação de sanções penais que potenciem a reintegração do arguido na sociedade e o seu afastamento da prática de crimes, o que significa que a pena de prisão, suspensa na sua execução, que o recorrente pretende ver-lhe aplicada, seria irrisória e totalmente desadequada aos objetivos que acabámos de referir. Aliás, lido o acórdão recorrido à luz destas considerações, ressalta com evidência que ali se encontra expressa a correta ponderação feita pelo Tribunal a quo para encontrar, dentro dos limites da culpa e das finalidades de prevenção subjacentes à aplicação de sanções de índole penal, a medida adequada e proporcional ao caso. Conforme vem sendo jurisprudência constante do STJ, condensada no seguinte trecho extraído do acórdão de 14.12.2023, e relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves2, “A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial). Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua «arte de julgar». No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes). Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.” Analisada a decisão recorrida, afigura-se-nos que a pena única de 14 anos de prisão não excede a medida da culpa do recorrente e reflete adequadamente as exigências de prevenção geral e especial, que, como se refere no acórdão recorrido, são aqui elevadas. Reflete, também com rigor, o grau de ilicitude dos factos e o desvio aos valores impostos pela ordem jurídica que os crimes praticados pelo ora recorrente com dolo direto implicaram. Assim, e como atrás se disse, tendo o Tribunal a quo apreciado adequadamente todos os factos e circunstâncias que aqui lhe cumpria apreciar e tendo também aplicado corretamente as normas legais que regem a determinação da medida da pena única em concurso de crimes, “cumpre lembrar que o Supremo tem reafirmado que, também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, não se tratando de um re-julgamento da causa. Ou seja, o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção. E não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. E assim o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar. Direccionando-se a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso para esse desrespeito aos princípios gerais, às operações de determinação impostas por lei, à desconsideração dos factores de medida da pena, não abrangendo «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias,DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197), há que reconhecer que a decisão do acórdão se mostra justificada.”3 V. Examinados os fundamentos do recurso, sufragamos integralmente a argumentação da Senhora Procuradora da República na 1ª instância, que aqui damos por reproduzida e, por todo o exposto, emitimos parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. Não foi apresentada resposta ao parecer. * Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (art.s 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal). II – FUNDAMENTAÇÃO Recorre-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos dos nºs 2 e 3 do art 410º do Código de Processo Penal (art. 432º nº 1 al. c) e nº 2 do Código de Processo Penal), “competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas”4. É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. * O Recorrente não argui expressamente a existência de nulidades ou vícios, sendo certo que, analisado o acórdão recorrido, não se encontram nulidades ou vícios de conhecimento oficioso (art.s 379º e 410º do Código de Processo Penal). As questões a decidir são a medida das penas parcelares e única e a suspensão da execução da pena. *** Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada: FACTOS PROVADOS: 1. DD nasceu em D de M de 2008, sendo filha comum de EE e de FF, estes casados entre si; 2. DD é irmã germana de GG, nascida em D de M de 1998, e de HH, nascido em D de M de 2001; 3. DD e demais fratria são netos, por via materna, de II; 4. II passou a coabitar com o arguido, como se casados um com o outro fossem, em data não apurada do ano de 2002, fixando domicílio comum na Rua 1; 5. Desde muito tenra idade, quando frequentava o Io ano de escolaridade, DD passou a frequentar no dia-a-dia o domicílio comum da sua avó materna e do arguido, o que só deixou de ocorrer em data não apurada de 2020, posterior a 19 de Maio; 6. Nesse âmbito, por contingências de organização do respetivo agregado familiar nuclear, DD, no decurso dos dias úteis de semana, era conduzida de manhã, por seu pai, ao domicílio comum de II e do arguido, onde aguardava iniciar a sua jornada escolar em estabelecimento de ensino sito em ...; 7. No término de tal jornada escolar, já no período da tarde, DD regressava ao domicílio comum da sua avó materna e do arguido, aí aguardando ser recolhida por seus pais; 8. Quando ganhou mais autonomia, por volta dos dez anos de idade, DD passou a deslocar-se sozinha para tal residência, após o término de seu labor escolar diário; 9. No contexto de tais deslocações e permanências quase diárias na aludida habitação, DD e o arguido avistavam-se sempre que tal ocorria, sendo que, no contexto e fruto de tal convívio assíduo, aquela tratava o arguido por "AVÔ"; 10. Por força da vinculação amorosa com II e, bem assim, do assíduo convívio com DD, o arguido esteve sempre bem ciente da data de nascimento e da idade desta; 11. Ao longo do período compreendido entre o ano de 2016, quando DD contava oito anos de idade, e o ano de 2020, quando já tinha doze anos de idade, em diversas ocasiões, de datas não apuradas, no domicílio comum do arguido e de II, quando a menor aí se encontrava, o arguido interpelou-a, prevalecendo-se da ausência temporária das outras pessoas que aí residiam, ou de tais pessoas estarem em dependências da residência que não aquela em que mesma e o arguido se encontrassem; 12. Nessas circunstâncias, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a DD ainda não contava catorze anos de idade, o arguido colocava as suas mãos sobre as nádegas da menor, apertando-lhas, sendo que também lhe agarrava e afagava os seios e a vagina, tanto por cima como por debaixo da roupa que a mesma envergava, em contacto directo com a pele; 13. Nessas circunstâncias, o arguido não se coibia de, com as mãos, afagar as pernas da menor; 14. Em pelo menos uma ocasião, de data não apurada, compreendida no aludido hiato temporal, na referida habitação, o arguido interpelou a menor; 15. De seguida, o arguido introduziu os seus dedos na respetiva boca, humedecendo-os com saliva; 16. Acto contínuo, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a menor tinha menos de catorze anos, o arguido passou tais dedos humedecidos pelo corpo da mesma, conduzindo-os até à sua zona vaginal; 17. Então, o arguido introduziu tais dedos na vagina da menor, causando-lhe dores e desconforto; 18. No sobredito contexto, em pelo menos uma ocasião, em data não apurada, compreendida no aludido hiato temporal, na referida habitação, o arguido interpelou a menor; 19. Então, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a mesma tinha menos de catorze anos, o arguido retirou o seu pénis da roupa que envergava, expondo-o perante a menor; 20. De seguida, o arguido agarrou o seu pénis e iniciou sucessivos movimentos de fricção sobre o mesmo, em acto masturbatório, fazendo menção a que a menor de tanto ficasse ciente; 21. De seguida, o arguido agarrou uma das mãos da menor e levou tal mão a agarrar-lhe o pénis; 22. Então, enquanto mantinha uma das suas mãos pousadas sobre tal mão da menor, assim a segurando e impedindo-a de se afastar ou mover-lhe qualquer resistência, o arguido fez a sua mão mover-se em sucessivos movimentos de vaivém, assim forçando, por força muscular, tal mão da mesma a friccionar, em consonância, o pénis do arguido, em acto masturbatório, não ignorando nem pudendo ignorar que a menor DD não desejava participar em tal acto, e que procedia assim contra a sua vontade, só o fazendo por ser assim forçada; 23. No sobredito contexto, em pelo menos duas ocasiões, de datas não apuradas, compreendidas no aludido hiato temporal, o arguido interpelou a menor DD; 24. Então, nessas ocasiões, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a menor tinha menos de catorze anos de idade, o arguido retirou o seu pénis da roupa que envergava, e introduziu-o na boca da mesma; 25. De seguida, enquanto, com as mãos, segurava na cabeça da menor, assim a mantendo imobilizada e impossibilitada de lhe oferecer qualquer resistência ou de encetar fuga, o arguido impeliu o seu pénis em sucessivos movimentos de vaivém no interior da boca da mesma, até aí ejacular, constrangendo, pela dinâmica de tal movimento penetrativo, a menor DD a ingerir o esperma emitido, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que assim procedia contra a vontade desta, e que a mesma só participava em tais actos por ser assim forçada; 26. Em pelo menos uma ocasião de data não apurada, compreendida no aludido hiato temporal a menor DD, o arguido e II encontravam-se nas instalações de um talho sito na Rua 1, em Lisboa, quando tal estabelecimento estava fechado ao público; 27. Nessas circunstâncias, o arguido e II desempenhavam tarefas de limpeza de tal espaço comercial; 28. II limpava a zona de atendimento, enquanto o arguido o fazia nas instalações sanitárias; 29. Nessa ocasião, na casa-de-banho do dito estabelecimento, o arguido agarrou e afagou as nádegas da menor DD, por cima da roupa que esta trazia, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a mesma ainda não contava catorze anos de idade; 30. Nessa ocasião, o arguido afagou ainda a menor na vagina; 31. Em ocasião de data não apurada, compreendida no aludido hiato temporal, a menor DD, o arguido e II encontravam-se nas instalações de tal talho, em Lisboa, quando tal estabelecimento estava fechado ao público; 32. Nessas circunstâncias, o arguido e II ali desempenhavam tarefas de limpeza de tal espaço; 33. Nessa ocasião, II limpava a zona de atendimento, enquanto o arguido o fazia nas instalações sanitárias; 34. Nessa ocasião, na casa-de-banho do estabelecimento, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a vítima tinha menos de catorze anos, o arguido retirou o seu pénis da roupa que envergava, expondo-o perante a menor DD; 35. De seguida, o arguido agarrou o seu pénis, e iniciou sucessivos movimentos de fricção sobre o mesmo, em acto masturbatório, fazendo menção a que a menor de tanto ficasse ciente; 36. De seguida, o arguido agarrou uma das mãos da menor e levou tal mão a agarrar-lhe o pénis; 37. Então, enquanto mantinha uma das suas mãos pousadas sobre tal mão da menor, assim a segurando e impedindo-a de se afastar ou mover-lhe qualquer resistência, o arguido fez a sua mão mover-se em sucessivos movimentos de vaivém, assim forçando, por força muscular, tal mão da menor a friccionar em consonância o seu pénis, em acto masturbatório, não ignorando nem podendo ignorar que a menor DD não desejava participar em tal acto, e que só o fazia por ser assim forçada; 38. No dia 25 de Dezembro de 2019, a menor DD, seus pais, seus irmãos HH e GG, sua avó materna II e o arguido encontravam-se na Rua 2, correspondente ao domicílio comum da menor, demais fratria e seus pais, todos celebrando as festividades natalícias; 39. Nessas circunstâncias, o arguido e a menor DD encontravam-se em dependência distinta daquela em que estavam os demais convivas; 40. O arguido puxou a gola da camisola que a menor envergava, tentando espreitar o seu corpo, mormente os seus seios, por tal fresta; 41. A menor tentou então afastar-se, momento em que o arguido a agarrou e puxou para si, atingindo-a ainda nas costas com uma pancada com a mão aberta, com o propósito de, assim a mantendo imobilizada e incapaz de lhe oferecer qualquer resistência, a apalpar no corpo, mormente nas nádegas, pese embora bem soubesse e não pudesse ignorar que a menor não desejava ser sujeita a tal acto, e bem assim que a mesma tinha idade inferior a catorze anos; 42. Pese embora tal actuação do arguido, a menor logrou afastar-se do mesmo, antes que este conseguisse apalpá-la nas nádegas, buscando refúgio junto das outras pessoas presentes na habitação; 43. Em pelo menos uma ocasião, de data não apurada, compreendida no aludido hiato temporal, entre os anos de 2016 e 2020, o arguido, com foros de seriedade, declarou à menor DD que, se esta relatasse aos respetivos pais as condutas sexualizadas que o mesmo lhe dirigia, faria mal à própria, a seus pais, a sua avó e a seus irmãos, assim visando causar-lhe medo e inquietação, fazendo-a recear o que o arguido lhe pudesse fazer, ou fazer aos aludidos familiares, caso fizesse tais relatos, e desta forma constrangê-la a não os verbalizar, resultado que quis e logrou; 44. Em todas as ocasiões descritas, em que dirigiu actos sexualizados à vítima DD, bem sabia e não podia ignorar o arguido a idade da mesma, mormente que tinha menos que catorze anos; 45. Em todas essas ocasiões, não ignorava nem podia ignorar o arguido que coabitava com II, avó materna da menor DD, como se casados fossem, tendo sobre esta o ascendente resultante da inerente relação familiar, o que lhe propiciava proximidade quotidiana com a mesma, circunstâncias de que se prevaleceu para concretizar os seus instintos libidinosos; 46. Ao proceder da forma supra descrita, no domicílio comum do arguido e II, e bem assim no aludido talho, afagando os seios, nádegas, vagina e pernas da vítima, o arguido bem sabia e não podia ignorar que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e logrou; 47. Ao proceder da forma descrita na supra aludida ocasião, penetrando a vítima na vagina com os dedos, o arguido bem sabia e não podia ignorar que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da menor na esfera sexual, o que fez com vista a satisfazer os seus instintos libidinosos, o que quis e logrou; 48. Ao actuar da forma supra descrita, na residência comum do arguido e de II, e bem assim no aludido talho, o arguido quis e logrou constranger a vítima a agarrar-lhe o pénis, e a friccioná-lo, em acto masturbatório, mantendo a mesma imobilizada e impedida de se afastar enquanto assim procedia, bem sabendo e não podendo ignorar que assim procedia contra a vontade da mesma e punha em causa o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, o que fez para satisfazer a sua lascívia, não se coibindo de usar violência para tanto; 49. Ao proceder da forma supra descrita, no dia 25 de Dezembro de 2019, actuou o arguido com o propósito de apalpar a vítima nas nádegas, bem sabendo que assim procedia contra sua vontade, propósito que só não logrou por facto exterior a sua volição, não se coibindo de usar de violência para o efeito; 50. Ao proceder da forma supra descrita, o arguido quis e logrou constranger a vítima a sofrer, contra a sua vontade, a introdução bucal do pénis daquele, assim com a mesma praticando coito oral, não se coibindo para tanto de utilizar força física contra a vítima, assim afastando qualquer possibilidade de esta lhe oferecer qualquer resistência eficaz, desta forma satisfazendo os seus instintos libidinosos, bem sabendo que assim procedia contra a sua vontade; 51. Ao proceder da forma descrita supra descrita em 43., dirigindo à menor expressões que sabia idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação, o arguido quis e logrou constrangê-la a não relatar a seus pais os actos sexualizados que lhe dirigia; 52. Bem sabia e não podia ignorar o arguido que, por força da tenra idade da menor DD e da sua inerente fragilidade, a mesma não tinha qualquer capacidade séria de lhe oferecer resistência, circunstâncias de que se prevaleceu para prosseguir tal desiderato criminoso; 53. O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei; Do pedido de indemnização civil: 54. Por força das condutas do demandado, supra descritas, a demandante DD passou a apresentar um comportamento temeroso, ansioso e antissocial; 55. Por força das condutas do demandado, supra descritas, a demandante DD passou a apresentar perturbações no sono, crises de ansiedade, oscilações de humor, medo, inquietação e dificuldades de concentração Mais resultou provado que: 56. Actualmente o arguido reside com os progenitores, de 81 e 70 anos de idade em habitação propriedade destes, situada num meio social descrito como tendencialmente normativo; 57. Do agregado fazem ainda parte dois irmãos mais velhos, um dos quais com problemas de toxicodependência; 58. Desde há cerca de um ano que mantém relacionamento afetivo com JJ, ainda que sem vivência conjugal, sendo o relacionamento descrito como gratificante; 59. O arguido é natural de Angola, tendo vindo para Portugal com poucos meses de vida, e foi neste país que decorreu o seu percurso pessoal junto dos progenitores e irmãos, num contexto definido como afectivamente ajustado; 60. Até ao ano de 2017 o arguido desempenhava actividade profissional irregular, tendo nesse ano iniciado funções na área da distribuição/reposição na empresa P..., Lda (armazém de mercadorias/produtos alimentares); em 2018 manteve as mesmas funções, mas com contrato de trabalho, mantendo-se vinculado à mesma empresa, tendo sofrido um acidente de trabalho há cerca de um ano, permanecendo desde então incapacitado para o exercício de actividade laboral; 61. Desde Abril de 2025 que não aufere qualquer valor por parte da Segurança Social, pelo que apresenta uma condição económica limitada, beneficiando do apoio económico dos progenitores, que asseguram todas as despesas domésticas; 62. O arguido apresenta um percurso laboral iniciado em idade precoce, após a conclusão do 6.° ano de escolaridade, por não apresentar motivação para o processo de aprendizagem; 63. Inicialmente desenvolveu actividade no ramo da construção civil, como ajudante de motorista, e posteriormente no ramo da restauração; 64. O arguido não evidencia juízo crítico ou de auto-censura face aos factos a que se reportam os presentes autos, nem se encontra arrependido da sua prática; 65. Não lhe são conhecidos antecedentes criminais. Quanto à “determinação da medida das penas”, incluindo a pena única, o acórdão recorrido ponderou: DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DAS PENAS: Estabelecido o quadro factual e o respectivo enquadramento jurídico, importa determinar a medida concreta das penas a aplicar. O arguido cometeu, em autoria material, e em concurso real: - 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171°, n° 1, e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal, sendo cada um deles punível com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses; - 3 (três) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171°, n° 2, e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal, sendo cada um deles punível com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses; - 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171°, n° 3, al. a), e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal, sendo cada um deles punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos de prisão; e - 1 (um) crime de coacção agravada, p. e p. pelos arts. 154°, n° 1, e 155°, n° 1, al. b), do Código Penal, com pena de prisão de 1 a 5 anos. A nível de prevenção geral, há que acautelar a frequência com que este tipo de ilícito é praticado, atento o valor fundamental tutelado pelo bem jurídico em causa, radicado na dignidade da pessoa humana, na sua vertente de tutela do desenvolvimento sexual pleno e harmonioso das crianças e jovens, pelo que é manifesto que as exigências de prevenção geral são muito elevadas. Quanto às exigências de prevenção especial, as mesmas afiguram-se, no caso em apreço, igualmente elevadas, tendo em conta que o arguido, ao actuar do modo como actuou, revelou desprezo pela dignidade da vítima, uma criança a quem travava como neta, levando-a a suportar actos sexuais de relevo para os quais não tinha, em razão da sua idade, qualquer tipo de maturidade, revelando, por conseguinte, uma personalidade dirigida à satisfação dos seus impulsos sexuais que, no futuro, poderá ver-se tentado a repetir. No seu conjunto a gravidade dos factos é, também, muito elevada, tendo o arguido actuado com dolo, na sua modalidade mais intensa - de dolo directo. Ora, tendo em consideração a medida abstracta das penas de prisão aplicáveis, cumpre atender, designadamente, em ordem à determinação da medida concreta da pena, ao modo de execução dos crimes, à intensidade do dolo, à culpa do arguido, à ilicitude dos factos, à gravidade das consequências, e às referidas exigências de prevenção geral e especial positivas, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor da arguida ou contra ela (Art. 71°, n°s 1 e 2, do Código Penal). Nesta quantificação, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (Artº 40° n° 2 CP), a qual é entendida como elemento do conceito de crime, ou seja, o juízo de censura ético-jurídica que é possível dirigir ao agente por não se ter comportado, como podia, de acordo com as normas concretamente infringidas. Ponderados todos os elementos a que mandam atender os aludidos preceitos legais, há que considerar o facto de o arguido ter agido, como se disse, com dolo directo, porquanto actuou com intenção de praticar os crimes em análise, e com consciência da elevada ilicitude dos seus comportamentos. Há que atender, ainda, ao facto de o arguido manter, à data dos factos, com a menor DD, uma relação familiar, pois que era companheiro da sua avó materna, que o tratava por "avô", tendo desprezado tal laço afectivo para, na prossecução do seu instinto sexual, levar esta criança de tenra idade a suportar actos de extrema violência na sua dignidade e integridade moral, física e sexual. Em todas as situações o arguido aproveitou-se da relação próxima que tinha com a menor, bem como do seu ascendente sobre esta, indiferente ao carácter repugnante dos seus actos. Impõe-se atender, pois, tendo em conta as características de personalidade desviante que ressaltam dos actos do arguido, às elevadas necessidades de prevenção especial que se verificam, não obstante não lhe serem conhecidos antecedentes criminais. É que, quanto a este ponto, tal circunstância em nada pode ser considerada abonatória do carácter de um cidadão, pois que a todos se impõe que procedam de acordo com a lei, não sendo premiável o facto de nenhuma condenação por crime anterior constar registada. Atentas estas considerações, e atendendo, por um lado, ao elevado grau de culpa do arguido no cometimento dos factos, à extrema gravidade dos mesmos, às necessidades de prevenção especial concretamente sentidas, à ausência de arrependimento manifestada pelo arguido, ao sofrimento que causou à vítima, à ausência de auto-crítica e à incapacidade censurável de compreender a gravidade dos seus actos, à culpa elevada com que sempre actuou, à medida abstracta das penas aplicáveis, à forte censura comunitária que tais actos suscitam, ao evidente perigo de reincidência na prática de condutas semelhantes, dado que, como é comummente consabido, a prática de actos sexual com crianças constitui parafilia tendencialmente compulsiva, é justa e adequada a fixação concreta das penas nos seguintes termos: - 4 (quatro) anos de prisão por cada um dos seis crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171°, n° 1, e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal; - 7 (sete) anos de prisão por cada um dos três crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171°, n° 2, e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal; - 3 (três) anos de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos arts. 171°, n° 3, al. a), e 177°, n° 1, al. b), do Código Penal; e - 3 (três) anos de prisão pelo crime de coacção agravada, p. e p. pelos arts. 154°, n° 1, e 155°, n° 1, al. b), do Código Penal. * Do cúmulo jurídico das penas: Nos termos do artigo 77°, n° 1, do CP, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer um deles, é condenado numa pena única, sendo considerados em conjunto, na fixação da medida da pena, os factos e a personalidade do agente. Atento o n° 2 do mesmo preceito, tal pena única terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar os 25 anos, tratando-se de pena de prisão. No caso em apreço, verifica-se que a pena única abstractamente aplicável ao arguido, atento o disposto no n° 2 do art. 77° do CP, se situa, no seu limite mínimo, em 7 (sete) anos e de prisão e, no seu limite máximo, em 25 (vinte e cinco) anos de prisão, pois que o somatório material das penas parcelares atingiria limite substancialmente superior. Na determinação da medida concreta da pena única a aplicar deve considerar-se, em conjunto, os factos praticados e a personalidade do agente. Ora, atentas as considerações supra efectuadas quanto à determinação da medida concreta das penas parcelares, e nos termos do art. 77°, n°s 1 e 2 do CP, atenta a gravidade dos factos praticados, a personalidade do arguido, totalmente desconforme à normalidade social e jurídica, a culpa elevada que sempre norteou as suas condutas e tendo em vista prevenir a sua reincidência, atento o carácter tendencialmente compulsivo de quem apresenta semelhante parafilia, é justa e adequada a sua condenação, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 (catorze) anos de prisão. *** Como se alcança das conclusões do recurso, são colocadas em causa as penas parcelares e única por serem “extremamente elevadas”, “manifestamente injusta e desajustada”, violadoras do disposto nos art.s 70º, 71º e 72º do Código Penal e 32º da Constituição da Republica Portuguesa e pretende-se a suspensão da execução da pena. O Recorrente centra a sua argumentação: na valoração das circunstâncias pessoais, familiares, de inserção social, constantes dos factos provados 56 a 63 e 65 (i); oferecendo como explicação para o que consta do facto provado 64 -“não evidencia juízo crítico ou de auto-censura face aos factos a que se reportam os presentes autos, nem se encontra arrependido da sua prática”- a circunstância de não ter confessado os factos (ii); e, sustentando a necessidade de abaixamento da pena única, pela necessidade de atender às necessidades de socialização (iii). * Relativamente às penas parcelares, o tribunal a quo salientou, nos termos transcritos, as exigências de prevenção geral muito elevadas, as exigências de prevenção especial elevadas, a personalidade do arguido dirigida à satisfação dos seus impulsos sexuais, a gravidade dos factos muito elevada, a actuação com dolo directo para depois, salientando os critérios definidos pelos art.s 71º nºs 1 e 2 e 40º nº 2 do Código Penal fixar as penas parcelares, atendendo a esses critérios e a toda a factualidade provada que aprecia criticamente. Elencou na factualidade provada todas as circunstâncias pertinentes (com pendor atenuante e agravante) a que alude o nº 2 do art. 71º do Código Penal. Respeitou como se impunha, os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena. Quanto à pena única, o acórdão recorrido ponderou “a gravidade dos factos praticados, a personalidade do arguido, totalmente desconforme à normalidade social e jurídica, a culpa elevada que sempre norteou as suas condutas e tendo em vista prevenir a sua reincidência, atento o carácter tendencialmente compulsivo de quem apresenta semelhante parafilia”. Vejamos. É jurisprudência consensual deste Supremo Tribunal que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas, de acordo com Figueiredo Dias5 não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada”6 reconhecendo-se, assim, uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável se não mesmo impossível de sindicar7. Importa, assim, analisar a proporcionalidade das penas parcelares e única fixadas. Quanto às penas parcelares aparece como inexplicada a assimetria ou falta de harmonia das penas fixadas dentro dos limites das respectivas molduras: • A pena de 4 anos de prisão por cada um dos seis crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s. 171° n° 1 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal (punível com pena de prisão de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses) encontra-se no ponto médio entre 1/3 e 1/4 da moldura penal; • A pena de 7 anos de prisão por cada um dos três crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 2 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal (punível com pena de prisão de 4 anos a 13 anos e 4 meses) encontra-se perto do 1/3 da moldura penal; • A pena de 3 anos de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 3 al. a) e 177° n° 1 al. b) do Código Penal (punível com pena de prisão de 1 mês e 10 dias a 4 anos de prisão) encontra-se perto dos 3/4 da moldura penal; e • A pena de 3 anos de prisão pelo crime de coacção agravada p. e p. pelos art.s 154° n° 1 e 155º n° 1 al. b) do Código Penal (punível com pena de prisão de 1 a 5 anos de prisão) encontra-se perto do 1/2 da moldura penal. Se é certo que não se exige que dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena, também se impõe lembrar que o procedimento de determinação da pena, como autêntica aplicação do direito, não pode ser deixado a uma discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua íntima «arte de julgar»8. Destarte, considerando todas as circunstâncias a que alude o art. 72º do Código Penal, incluindo os factores constantes dos factos provados 56 a 65 – designadamente o seu percurso laboral adequado embora, actualmente, após acidente de trabalho, se encontre sem meios de subsistência, vivendo em ambiente afectivamente ajustado com os progenitores e irmãos, com o apoio económico daqueles e um percurso aparentemente normativo – bem como os demais factores expostos no acórdão recorrido, consideram-se as penas parcelares inexplicavelmente assimétricas e manifestamente excessivas, justificando-se penas que se situem entre 1/5 e 1/4 das respectivas molduras penais e que, assim se fixam: • Em 3 anos e 2 meses de prisão por cada um dos seis crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s. 171° n° 1 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; • Em 6 anos de prisão por cada um dos três crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 2 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; • Em 1 ano de prisão por cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 3 al. a) e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; e • Em 2 anos de prisão pelo crime de coacção agravada p. e p. pelos art.s 154° n° 1 e 155º n° 1 al. b) do Código Penal. Os critérios para a fixação da pena única devem reflectir uma ponderação das “características da personalidade do agente, em termos de revelar ou não tendência para a prática de crimes ou de determinado tipo de crime, devendo a pena única reflectir essa diferença em termos substanciais”, sendo essencial considerar o tipo de criminalidade em causa e efectuar uma “conveniente avaliação da totalidade dos factos como unidade de sentido, enquanto reportada a um determinado contexto social, familiar e económico e a uma determinada personalidade”. “Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.» Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita” 9. O Tribunal a quo ao enquadrar a determinação das penas concretas e única, enfatizou as muito fortes exigências de prevenção geral. É essa, aliás, a linha trilhada pela jurisprudência deste Tribunal10 que merece a nossa concordância. Como se afirma no acórdão referido, “a necessidade de protecção do bem jurídico protegido pelo disposto nos arts. 171.º e 176.º, do CP, releva com particular intensidade relativamente a menores de 14 anos de idade, face, não apenas à fragilidade das vítimas, também do impacto da conduta delitiva na sua orientação de vida, seja na vertente da sexualidade, seja ainda no são desenvolvimento físico e psíquico desses (irrepetíveis) seres humanos”. Exactamente por isso e pelo carácter muitas vezes compulsivo destas condutas, assinalado pelo acórdão recorrido, pela duração das condutas em apreço (cerca de 4 anos) é que, embora a factualidade não aponte directamente para uma tendência criminosa, uma avaliação conjunta dos factos à luz da personalidade que os mesmos revelam também afasta o comportamento do arguido de uma mera pluriocasionalidade. Assim, mantendo-se o critério (pena a fixar entre 1/5 e 1/4 da moldura do concurso com o mínimo de 6 anos e o máximo de 25 anos) por se afigurar equilibrado, aparece como justa – adequada, necessária e proporcional - uma pena única de 10 anos de prisão – a qual se mostra conforme aos critérios plasmados nos art.s 71º e 77º do Código Penal, na consideração do facto global, da gravidade desse ilícito global e por referência à personalidade unitária do arguido, ora Recorrente. A pena assim fixada está de acordo com a jurisprudência deste tribunal11. * Face ao exposto, porquanto o art. 50º nº 1 do Código Penal apenas admite a possibilidade de suspensão de penas de prisão aplicadas em medida não superior a cinco anos, não é admissível a suspensão da execução da pena de prisão, consistindo um exercício inútil a ponderação sobre a possibilidade de formular um juízo de prognose positivo subjacente e essa suspensão. Todavia, tendo em atenção a tese do Recorrente, relativamente aos fins de ressocialização das penas constantes do art. 40º nº 1 do Código Penal, importa esclarecer que o fim primeiro da reacção penal é a protecção ou tutela de bens jurídicos “e, [só] na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, pelo que, em caso algum, a defesa da ordem jurídica pode ser postergada por preocupações de socialização em liberdade”12. Neste contexto, não poderia a pena de prisão aplicada ao Recorrente ser suspensa na sua execução. III – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, em fixar: • Em três anos e dois meses de prisão a pena por cada um dos seis crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s. 171° n° 1 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; • Em seis anos de prisão a pena por cada um dos três crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 2 e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; • Em um ano de prisão a pena por cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.s 171° n° 3 al. a) e 177° n° 1 al. b) do Código Penal; e • Em dois anos de prisão a pena pelo crime de coacção agravada p. e p. pelos art.s 154° n° 1 e 155º n° 1 al. b) do Código Penal. • Em cúmulo jurídico das penas parcelares, fixar a pena única em dez anos de prisão. Sem custas. Lisboa, 26 de novembro de 2025 Jorge Raposo (relator) José Carreto Maria da Graça Silva ___________ 1. in As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva», nas «Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25 2. Disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9c34f90a2162c1e2802 58a86 002e8ae5?Open Document 3. Ac. STJ de 03.07.2024, ao que sabemos ainda inédito. Relatora Ana Barata de Brito, processo 72/73.0GCPBL.C1.S1 4. Acórdão de Fixação de Jurisprudência 5/2017 publicado na Iª série do Diário da República de 23.6.2017. 5. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, §255, pg. 197. 6. Neste sentido também os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.10.2008 e 11.7.2024, respectivamente nos proc.s 08P1964 e 491/21.6PDFLSB.L1.S1. 7. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.3.2004, CJ 2004, 1, pg. 220 e de 20.2.2008, proc. 07P4639. 8. Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2023, no proc. 130/18.2JAPTM.2.S1, citado no parecer. 9. Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa em “O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, texto disponível in http://www.stj.pt/ficheiros/estudos /rodrigues_costa_cumulo_juridico. pdf, pg. 12. 10. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.11.2020, no proc. 114/18.2TELSB.S1. 11. Por todos, o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.7.2025, no proc. 236/24.9JABRG.S1 e a resenha jurisprudencial constante da sua fundamentação. 12. Conforme jurisprudência constante, designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.3.03, no proc. 03P612; no mesmo sentido, a fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.6.2014, no proc. 262/13.3PVLSB.L1.S1. |