Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
524/13.0TBTND-A.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: REQUERIMENTO EXECUTIVO
APRESENTAÇÃO
PAGAMENTO
AGENTE DE EXECUÇÃO
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
LIVRANÇA
VENCIMENTO
ABUSO DO DIREITO
CASO JULGADO
MATÉRIA DE FACTO
CONFISSÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
FACTOS PROVADOS
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
CUSTAS
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO – PROCESSO DE EXECUÇÃO / EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA / PROCESSO ORDINÁRIO / FASE INTRODUTÓRIA.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / TEMPO E REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS / PRESCRIÇÃO / INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / CONFISSÃO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 5ª Edição, p.435;
- Antunes Varela, RLJ, ano 114º, p. 75;
- Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, p. 55;
- Lebre de Freitas, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª Ed., Coimbra Editora, p. 184;
- Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3ª ed., p. 63 e 64;
- Menezes Cordeiro, Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Castanheira Neves, Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, p. 169 e 170;
- Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil Os Artigos da Reforma, Vol. II, Almedina 2014, p. 238;
- Vaz Serra, Abuso de Direito, BMJ nº 85, p. 253;
- Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2015, p. 226.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 682.º, N.º 3 E 724.º, N.º 6, ALÍNEA A).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 323.º, N.º 2 E 358.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-02-2011, PROCESSO N.º 1228/07.8TBAGH.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 07-02-2008, PROCESSO N.º 3934/07, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-07-2010, PROCESSO N.º 1173/10.0TBVIS;
- DE 08-10-2018, PROCESSO N.º 478/08.4TBASL.E1.S1.
Sumário :
I. Com a entrada em vigor, em 1 de setembro de 2013, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, a apresentação do requerimento executivo passou a fazer-se por via eletrónica e tornou-se obrigatório o envio por essa forma quando a parte esteja representada por mandatário, só sendo permitida a sua apresentação em suporte físico, por entrega na secretaria judicial ou remessa pelo correio, sob registo, ou por telecópia, no tribunal competente, quando haja justo impedimento para a prática do ato, ou seja, quando ocorra a impossibilidade de envio por a via eletrónica.

II. Uma vez apresentado o requerimento executivo por via eletrónica, com observância do estabelecido no art. 724º do Código de Processo Civil, após, a validação, pelo sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, do preenchimento pelo exequente de todos os campos de preenchimento obrigatório e, no caso o exequente não beneficiar de apoio judiciário na modalidade de atribuição de agente de execução, é automaticamente emitida uma referência multibanco referente ao pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução a título de honorários e despesas, da responsabilidade da Câmara dos Solicitadores, devendo o exequente proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias e considerando-se o requerimento executivo apresentado apenas na data desse pagamento, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 724.º do Código de Processo Civil.

III. Efetuado o pagamento da mencionada quantia,  a Câmara dos Solicitadores insere no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (SISAT), o comprovativo desta liquidação, só então surgindo  o processo eletrónico no tribunal, que é automaticamente distribuído.

IV. A  circunstância de se estabelecer,  no artigo 724º, nº 6, alínea a)  do Código de Processo Civil, que o requerimento executivo só se considera apresentado  na data do pagamento pelo exequente da quantia inicialmente devida ao agente de execução, a título de honorários e despesas, ou da comprovação da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de atribuição de agente de execução, não exclui a aplicação, ao processo de execução, do regime da interrupção da prescrição previsto no artigo  323º, nº 2 do Código Civil.

V. O efeito interruptivo da prescrição, estabelecido na norma do nº 2 deste artigo 323º, pressupõe a concorrência de três requisitos:

i) que o prazo prescricional ainda esteja a decorrer  e assim se mantenha nos cinco dias posteriores à instauração da ação;

ii) que a citação não tenha sido realizada nesse prazo de cinco dias;

iii) que o retardamento da citação  não seja devido a « causa não imputável ao requerente», devendo interpretar-se esta expressão em termos de causalidade objetiva, ou seja, no sentido de que a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha violado objetivamente a lei em qualquer termo processual até à efetivação da citação.

VI. Assim, quando a demora na citação resulta da desconjugação dos preceitos da lei de custas, de processo e de organização judiciária com as normas substantivas, o conflito deve solucionar-se no sentido da prevalência destas, sem que tal desconjugação possa imputar-se aos requerentes da citação.

VII. Vencendo-se livrança dada à execução em 15.10.2013, mas tendo a exequente apresentado o requerimento executivo, por via eletrónica, no dia 09.10.2013, e procedido ao pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução, a título de honorários e despesas, no dia 10.10.2013 e não se vislumbrando qualquer infração de regras processuais imputáveis à exequente, não se pode extrair qualquer consequência desfavorável para a mesma da circunstância de os executados/embargantes terem sido citados em data posterior a 15.10.2013, na medida em que isso ficou apenas a dever-se a razões de natureza processual, relacionadas com o novo regime da ação executiva.

Impõe-se, antes, considerar realizada a citação, para efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do artigo 323º, nº 2 do Código Civil, em 15.10.2013, antes, portanto, de esgotado o prazo de prescrição da livrança dada à execução.

VIII. Da circunstância da exequente ter dado entrada do requerimento executivo e de ter procedido ao pagamento da quantia devida ao agente de execução a título de honorários e despesas, com a antecedência de seis e cinco dias, respetivamente, em relação à consumação do prazo prescricional da livrança dada à execução, não se pode inferir, sem mais, que a mesma atuou com abuso de direito, pois, até que se operasse a prescrição  da livrança, podia a mesma a instaurar a execução no momento que tivesse por mais conveniente


IX. Os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente.


X. A confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena, nos termos do disposto no artigo 358º, nº 2 do Código Civil, ou seja, se resultar do documento em que se insere e quando for feita à parte contrária ou a quem a represente, sendo livremente apreciada em relação a terceiros.

XI. A contradição entre factos dados como provados capaz de inviabilizar a decisão jurídica do pleito e, por isso, relevante para efeitos do disposto no artigo 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, é aquela que traduz a existência entre eles de uma relação de exclusão, no sentido de estarmos perante factos inconciliáveis.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL

I. Relatório


1. AA, S.A. instaurou ação executiva, com forma de processos comum, para pagamento da quantia de € 1.490.181,35, contra os executados BB, CC, DD, Unipessoal, Lda, EE, Lda, FF - Gestão Imobiliária, Lda e GG Limited, com base numa livrança subscrita por FF, Lda e avalizada por HH, BB e CC, no valor de € 1.329.332,16, emitida em 24/9/2010, com data de vencimento em 15/10/2010, a favor do Banco II, S.A., e de que é portadora mercê do contrato de cessão de créditos celebrado entre ela e o Banco JJ, S.A., anteriormente denominado Banco II, S.A.


2. Vieram, então, os executados BB e CC deduzir oposição por embargos de executado, alegando, em síntese, a inoponibilidade da cessão de créditos entre o II, por nunca lhe ter sido notificada, a prescrição da ação cambiária, por a execução ter sido instaurada em 18.10.2013, quando já haviam decorrido três dias após a data de vencimento da livrança exequenda, o preenchimento abusivo desta livrança bem como o pagamento da quantia nela titulada por compensação.


3. Contestou a exequente/embargada, sustentando a improcedência das invocadas exceções.


4. Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi julgada improcedente a invocada exceção de inoponibilidade.


5. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou procedentes os embargos e extinta a execução.


6. Inconformada com esta decisão, dela apelou a exequente para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão proferido em 5 de junho de 2018, julgou procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgou improcedentes os embargos e executado e ordenou o prosseguimento dos autos.


7. Inconformadas com esta decisão, os embargantes CC e marido, BB dela interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1a Não se pode confundir constrangimentos técnicos do Citius com o ignorar por parte da exequente das regras processuais vigentes àquela data e que determinaram que a presente execução só viesse a dar entrada em Tribunal em 18 de Outubro de 2013.

2a O diploma que consagrou a invocação desses impedimentos técnicos só entrou em vigor a 14 de Outubro de 2014 (embora reportados os seus efeitos à data de 26-08-2014) e, por isso, em data posterior à da entrada da execução em juízo, que veio a ser distribuída em 18 de Outubro de 2013.

3a A incorrecta qualificação da forma do processo, também não pode servir como pretexto para a invocação de constrangimentos técnicos do Citius.

4a O mandato conferido pela exequente tem como data o dia 11.02.2011, como decorre da procuração junta com o requerimento executivo.

5a A prescrição do título em causa só ocorreu ao fim de 3 anos (em 15.10.2013) e o mandato dos autos foi conferido cerca de 30 meses antes de tal prescrição ter ocorrido (em 11.02.2011).

6a Sempre estaríamos no domínio do abuso de direito se se permitisse que 30 meses depois da outorga do mandato, se viesse a permitir um regime excepcional de alargamento do prazo para instauração de uma execução, porque a exequente, por sua inércia e desleixo, deixou que o prazo se esgotasse, para depois vir invocar uns eventuais constrangimentos técnicos.

7a Contrariamente ao que consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, não houve quaisquer constrangimentos técnicos do Citius relativamente a esta execução, sendo certo que não se pode estender as situações excepcionais porventura ocorridas em outros processos com os da presente execução (artigo 11° do Código Civil).

8a Após a entrada da execução, a referência de pagamento ao agente de execução que determina o prosseguimento da execução, só está ativa no dia seguinte, como foi o caso desta execução, sendo este um procedimento que existia e existe e nada tem a ver com os constrangimentos técnicos a que se faz referência no DL 150/2014 de 13/10.

9a A execução entrou cerca de dez meses antes da produção dos efeitos do DL 150/2014 de 13/10, pelo que se verifica existir um incorrecto enquadramento temporal do indicado Decreto-Lei no presente processo, por parte do Tribunal da Relação de Coimbra e, nessa medida, não sendo o mesmo aplicável a esta execução, deverá ser revogado tal acórdão, mantendo-se a decisão proferida pela 1a Instância. SEM CONCEDER:

10a Por virtude da perda da eficácia cambiária da livrança a AA não estava dispensada do ónus da respectiva prova de proceder à cabal identificação e contabilização do seu crédito, de modo a permitir aos executados que se desincumbissem do ónus probatório que sobre eles recaia.

11a Se os embargantes impugnam o montante aposto na livrança por excessivo, justificando-o com sentença e com articulados da própria credora a confessar outros valores, ao exequente incumbe a alegação e prova de como chegou a tal valor, enquanto ao executado incumbe a prova do teor do pacto de preenchimento bem como de que o preenchimento foi efetuado em contrário do acordado.

12a A isso não obsta a existência de uma cessão do crédito do primitivo credor a favor da exequente, uma vez que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, sendo que o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios directos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (cfr. art. 585° do C. Civil).

13a Resulta dos embargos deduzidos que foi impugnado o crédito da exequente AA e alegado expressamente o preenchimento abusivo da Livrança, não tendo sido considerado como devia ter sido:

 a) A petição inicial do Banco II, SA, no âmbito do processo n° 1173/10.0TBVIS do extinto … Juízo Cível do Tribunal Judicial de … a peticionar a Insolvência dos executados CC e de BB, junta com os embargos sob o doc. 1 do apenso A, onde consta que à data de 17 de Abril de 2010, o II confessava no artigo 2o, que o valor do seu crédito era de 738.379,57 €.

b) A sentença há muito transitada em julgado e proferida pelo Tribunal Judicial de … - …Juízo Cível, processo  nº 1173/10.0TBVIS, junta com os embargos do Apenso A sob o doc. 2, que constitui força probatória plena.

c) O documento 5 junto com a petição de embargos do Apenso A com data de 2010-09-24 em que era o próprio II, quem, relativamente àquele denominado "contrato de mútuo" se arrogava ser titular de um crédito de 1.134.689,54 € e solicitava à aqui embargante o seu pagamento até ao dia 15 de Outubro de 2010.

14a Considerando a regra da inseparabilidade da cessão de créditos que resulta do disposto no citado artigo 582° do CC, resulta por demais evidente e provado por sentença proferida pelo extinto Tribunal Judicial de …, confirmada por douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (sentença essa e trânsito em julgado aceites pela AA) que, em 17 de Abril de 2010 os embargantes do Apenso A eram credores do II.

15a A alegação e junção de uma sentença com trânsito em julgado, constituindo esta força probatória plena, é mais do que bastante para prova de um facto que impede/extingue o direito que a exequente pretendia fazer valer no processo.

16a A comunicação da intenção de preenchimento da livrança corporizada no documento 5 junto com a petição de embargos do Apenso A com data de 2010-09-24 em que era o próprio II, quem, relativamente àquele denominado "contrato de mútuo" se arrogava ser titular de um crédito de 1.134.689,54 € e solicitava o seu pagamento até ao dia 15 de Outubro de 2010, ainda mais adensa e evidencia tal preenchimento abusivo da livrança pelo valor de 1.329.332,16 €.

17a Nenhuma prova foi produzida em Audiência que justificasse a existência de qualquer crédito da exequente, pois nenhuma outra prova foi apreciada que pudesse destruir os efeitos probatórios daqueles documentos (donde resulta o trânsito em julgado de uma sentença e a sua força probatória plena e, ainda, a confissão do credor), ou que, de algum modo, pudesse fundamentar a prova de tal facto 3).

18a A decisão do Tribunal da Relação de Coimbra é contra todas as regras da lógica e da matemática ao acolher a tese de que um crédito que em 17 de abril de 2010 era de 738.379,77 €, passou a ser em 15 de Outubro de 2010 de 1.329.332,16 €, quando existiam aplicações financeiras geradoras de rendimentos, ascendendo os valores aplicados a 400.000€, 225,000€, 625,000€.

19a Existe contradição insanável entre os factos provados pelo Tribunal "quo" designadamente entre os pontos 3), 4) e 7) da fundamentação de facto, uma vez que se afirma no ponto 4) que o valor do empréstimo em 20/06/2008 foi de 1.748.500,00 €, referindo-se no ponto 7) que os executados não devolveram à exequente o capital mutuado e os juros vencidos sobre esse capital, mas concluindo-se no ponto 3) que o valor em dívida em 15/10/2010 era de 1.329.332,16 €.

20a Nunca se poderia ter dado como provado que o valor do crédito da exequente era de 1.329.332,16€ e deveria terem sido julgados inteiramente procedentes e provados os embargos deduzidos.

21a Foram violados designadamente e entre outros, os seguintes normativos legais: artigos 2o e 6o do Dec. Lei 150/2014 de 23 de Outubro, 11°, 342°, 344°, n° 2, 352°, 371°, 522°, 531°, 582°, 585°, 586° do Código Civil, 615° n° 1, alínea b), c) e d) do CPC.

Nestes termos, deve revogar-se o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, julgando-se inteiramente procedentes os embargos de executado e a execução julgada extinta».


8. A exequente/embargada respondeu, terminando as suas contra alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1.ª Alegam os Recorrentes que o Tribunal da Relação de Coimbra efetuou um incorreto enquadramento temporal do Decreto-Lei 150/2014 de 13/10 no presente processo, pelo que, não lhe sendo aplicável, deverá o acórdão ser revogado.

2.ª Ora, o douto acórdão considerou justificado o impedimento alegado pela Exequente e, assim, instaurada a ação executiva em 9 de Outubro de 2013, pelo que a prescrição se interrompeu decorridos cinco dias após a apresentação em juízo da petição inicial da ação executiva e, neste contexto, a ação cambiária não prescreveu, sendo a livrança válida como título executivo, ficando prejudicada a questão da fiança.

3.ª No recurso interposto da sentença proferida pela 1.ª instância, a agora Recorrida alegou, que uma das inovações introduzidas na tramitação da ação executiva aquando da entrada em vigor em 01 de Setembro de 2013 do novo Código de Processo Civil e da Portaria n.º 282/2013, de 29/08 foi a que resulta do disposto nos números 4 e 5 do art. 2.º da referida Portaria, que estabeleceu que após a validação pelo sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, o requerimento executivo é entregue no referido sistema e é lhe disponibilizada a referência multibanco referente ao pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução a título de honorários e despesas, sendo que o requerimento executivo considera-se apresentado apenas na data do pagamento da referida referência.

4.ª Sucede que, em nenhuma norma dos diplomas legais referidos ou de outros, é mencionado que apenas é possível proceder ao pagamento da referência multibanco gerada pelo sistema 24 horas após a mesma ser disponibilizada ao Exequente.

5.ª Pelo que a Exequente foi surpreendida aquando da apresentação do requerimento executivo em questão com o facto de não ser possível proceder ao pagamento no mesmo dia da quantia devida ao agente de execução utilizando a referência multibanco gerada pelo sistema para o efeito.

6.ª Atualmente é do conhecimento geral de todos os agentes da justiça que, eventualmente por limitações do próprio sistema, só é possível efetuar o pagamento inicial da quantia devida ao agente de execução no dia seguinte à instauração da execução.

7.ª No entanto, na data da instauração do requerimento executivo aqui em questão (09.10.2013), por ter decorrido pouco mais de um mês da entrada em vigor das novas regras, foi com total surpresa que a Exequente se confrontou com tal circunstância.

8.ª Com efeito, o que defendeu a Exequente na contestação apresentada aos embargos de executado e reiterou no recurso de apelação instaurado, é que o referido impedimento não lhe poderá ser imputável, devendo, assim, considerar-se a ação executiva instaurada em 9 de outubro de 2013, por conseguinte, que a prescrição se interrompeu.

9.ª No que se refere à prova do justo impedimento alegado a Exequente produziu a prova que lhe era possível, tendo junto com a contestação apresentada um documento comprovativo da tentativa de pagamento da vulgarmente designada Fase 1 de honorários do Agente de Execução com a indicação de que a referência está incorreta e uma comunicação dirigida à secção central do tribunal a dar conta de tal impedimento e a solicitar apoio na sua resolução (e à qual nunca foi obtida resposta).

10.ª A Exequente nunca deixou de reconhecer que a prescrição da livrança dada à execução estava eminente, motivo pelo qual, aliás, apresentou o requerimento executivo no dia 09.10.2013 com o pedido de citação urgente dos executados nos termos do disposto no artigo 561.º do CPC, com vista à interrupção do prazo de prescrição conforme previsto no art. 323.º, n.º 2 do Código Civil.

11.ª Só não previa a Exequente ser confrontada com a referida impossibilidade de efetuar o pagamento de que a lei faz depender a apresentação do requerimento executivo, uma vez que a mesma lei é totalmente omissa relativamente a tal constrangimento.

12.ª Deste modo, encontram-se devidamente alegados os fundamentos da existência de justo impedimento não imputável à Exequente, nem aos seus representantes ou mandatárias, devendo considerar-se o requerimento executivo apresentado em 9 de Outubro de 2013.

13.ª Com efeito, caso venha a ser julgada procedente, o que não se concede, a alegação dos Recorrentes de que não é aplicável à presente execução o Decreto-Lei 150/2014 de 13/10 invocado pelo Tribunal da Relação de Coimbra para fundamentar a existência de justo impedimento e que a ação cambiária não prescreveu, sempre deverá a fundamentação alegada pela Recorrida sobre esta matéria e, subsidiariamente, a questão da fiança também devidamente alegada e fundamentada no recurso instaurado da sentença proferida na 1.ª instância, ser apreciada.

14.ª Importa ainda fazer uma referência à alegação dos Recorrentes concernente ao facto de o mandato conferido pela Recorrida ter como data o dia 11.02.2011 e a conexão que aqueles pretendem fazer desse facto com a existência de um eventual abuso de direito e desleixo da Exequente.

15.ª Ora, a referida alegação carece de qualquer fundamento de facto ou de direito, uma vez que, como se verifica na mencionada procuração junta com o requerimento executivo, a mesma não foi conferida pela Exequente à sua mandatária em exclusivo para esta ação, mas para todos os processos judiciais que lhe forem atribuídos.

16.ª Não obstante, atendendo a que este fundamento não foi alegado pelos Recorrentes nos embargos deduzidos nem no recurso subordinado instaurado, não podem agora, em sede de recurso de revista, invocar factos/fundamentos novos.

17.ª Assim, a matéria alegada nos artigos 4º, 5º e 6º das conclusões do recurso de revista não devem ser conhecidas.

Mais.

18.ª Alegam ainda os recorrentes que o tribunal a quo não deveria ter dado como provado os factos que constam dos pontos 3) e 7) dos factos provados, pelo que nunca se poderia ter dado como provado que o valor do crédito da Exequente era de € 1.329.332,16.

19.ª Para fundamentar tal discordância, alegam os Recorrentes que não foram considerados como deveriam ter sido os seguintes documentos:

“a) A petição inicial do Banco II, SA, no âmbito do processo nº 1173/10.0TBVIS do extinto … Juízo Cível do Tribunal Judicial de … a peticionar a Insolvência dos executados CC e de BB, junta com os embargos sob o doc. 1 do apenso A, onde consta que à data de 17 de Abril de 2010, o II confessava no artigo 2º, que o valor do seu crédito era de 738.379,57 €.

b) A sentença há muito transitada em julgado e proferida pelo Tribunal Judicial de … – … Juízo Cível, proc. nº 1173/10.0TBVIS, junta com os embargos do apenso A sob o doc. 2, que constitui força probatória plena; e

c) O documento 5 junto com a petição de embargos do Apenso A com data de 2010-09-24 em que era o próprio II, quem, relativamente aquele denominado “contrato de mútuo” se arrogava ser titular de um crédito de 1.134.689,54 € e solicitava à aqui embargante o seu pagamento até ao dia 15 de Outubro de 2010.

20.ª Ora, ao contrário do que defendem os Recorrentes, os mencionados elementos foram devidamente apreciados, quer pela 1.ª instância, quer pelo Tribunal da Relação.

21.ª O tribunal de 1.ª instância pronunciou-se sobre esta matéria na douta sentença recorrida, designadamente, na parte da motivação quantos aos factos não provados sob os n.ºs 1 e 2, onde refere:

“ (…) a circunstância de, no processo n.º1173/10.0TBVIS, cujos termos correram pelo extinto … Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de …, se ter dado como provado que aqueles dispunham de aplicações financeiras de montante superior aos créditos concedidos pelo banco cedente, tal facto não faz caso julgado no âmbito dos presentes autos, tanto mais que neste processo não estão em causa as mesmas partes nem os mesmos créditos invocados naquele processo, bastando, para tanto, atentar que naquela ação estavam apenas em causa créditos dos identificados executados enquanto que, neste processo, estão em causa créditos da sociedade FF. Tudo, pois, para referir, que quanto a esta factualidade se impunha outro tipo de prova, o que a embargante não logrou, salvo o devido respeito, produzir.”

22.ª Por sua vez, o Tribunal da Relação de Coimbra efetuou uma exaustiva e eficaz análise sobre a eficácia probatória dos factos descritos na aludida sentença proferida no proc. nº 1173/10.0TBVIS, tendo concluído que os factos descritos na sentença absolutória não relevam, quer através do caso julgado, quer como prova plena, para esta ação.

23.ª Salientou também o Venerando Tribunal da Relação, no douto acórdão recorrido, que “na petição inicial da ação n.º 1173/10 (cf. fls. 20 34) não está sequer referenciado o crédito exequendo, constante da livrança exequenda (as mencionadas reportam-se a montantes e datas diversas) e, pelas razões enunciadas, tal alegação não tem o valor de confissão extrajudicial. Aliás, a petição inicial data de 17/4/2010 e a livrança dada à execução foi preenchida em 15/10/2010, logo em momento posterior”.

24.ª No que respeita ao invocado “documento 5 junto com a petição de embargos”, correspondente a uma carta enviada pelo II, com data de 24.09.2010, é referido no douto acórdão recorrido que “na carta de 24/9/2010 dirigida à executada CC (fls. 52) é mencionado o crédito com o valor de € 1.134.689,54, mas a verdade é que posteriormente o II endereçou a carta de 12/11/2010 (fls. 118) a retificar expressamente tal montante, pelo naquela jamais pode operar a confissão extrajudicial.”

25.ª Assim, ao invocarem os referidos documentos, os Recorrentes agem com evidente má-fé, porquanto bem sabem que não lhes assiste razão, correspondendo tais alegações a uma censurável tentativa de se eximirem das responsabilidades que conscientemente assumiram perante o Exequente.

26.ª Nesta conformidade, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra fez a devida interpretação do direito aplicável, não padecendo a decisão proferida de qualquer nulidade ou censura.


9. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:


1ª- prescreveu o direito da exequente instaurar a execução de que os presentes embargos de executado são apenso;


2ª- a conduta da exequente constitui abuso de direito;


3ª- existe erro na apreciação dos meios de prova  pelo Tribunal da Relação; 


4ª- existe contradição insanável entre os factos dados como provados nos pontos 3, 4 e 7;


5ª- o acórdão recorrido padece das nulidades previstas no art. 615º, nº1, alíneas b), c) e d)  do CPC.



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:


1) O “Banco JJ, S.A”, anteriormente denominado Banco II, S.A. celebrou com a exequente "AA, S.A.", em 30 de Dezembro de 2010, escritura pública mediante a qual cedeu a esta, que aceitou, um conjunto de créditos que aquele banco havia concedido a diversos mutuários.

2) Esta operação incluiu a cessão para a exequente, entre outros, do crédito em execução nos presentes autos, acompanhado dos respetivos acessórios e garantias.

3) Em razão do referido acordo, a exequente é dona e legítima portadora da livrança dada em execução com o valor de 1.329.332,16 € (um milhão trezentos e vinte e nove mil trezentos e trinta e dois euros e dezasseis cêntimos), vencida em 15/10/2010, subscrita pela sociedade Executada “FF – GESTÃO IMOBILIÁRIA, LDA.”, avalizada pelos executados BB, CC e HH, este último declarado insolvente.

4) A referida livrança titula um financiamento bancário efetuado à subscritora, pelo banco cedente, no exercício da sua atividade comercial, designadamente um mútuo concedido, no valor inicial de 1.748.500,00€ (um milhão setecentos e quarenta e oito mil e quinhentos euros) à mencionada sociedade FF, que dele se confessou devedora, celebrado em 20/06/2008 e que se destinou à reestruturação do crédito bancário da mutuária.

5) A quantia foi entregue à sociedade e foi estipulado entre as partes que o empréstimo seria pago em 180 prestações mensais e sucessivas, vencendo juros à taxa EURIBOR a 3 meses, acrescida de um spread de 2,5% e nas demais condições constantes do contrato e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6) Para garantia deste empréstimo foi entregue a livrança que ora se dá à execução e que os executados BB, CC e a sociedade FF autorizaram expressamente a exequente a preencher, apondo-lhe a data de vencimento, o local de pagamento e a importância pelo valor correspondente ao capital mutuado e em dívida, aos juros convencionados e demais encargos e penalizações contratualmente estabelecidos.

7) Os referidos executados não devolveram à exequente, até ao termo do prazo contratualmente estabelecido, o capital mutuado e não procederam ao pagamento dos juros vencidos sobre aquele capital.

8) Apresentada a livrança a pagamento, na data do respetivo vencimento, a mesma não foi paga, naquela data, nem posteriormente e até ao presente.

9) A dívida em execução encontra-se garantida por hipotecas voluntárias genéricas constituídas por escrituras públicas outorgadas em 8 de Abril de 2002, 3 de Outubro de 2002 e 18 de Março de 2004 (juntas aos autos principais e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais) relativamente aos seguintes imóveis:

a) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º1069/19960311 e inscrito na matriz sob o artigo 273.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 261.515,00€ (duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 4 de 2002/03/05, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2955 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º9);

b) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º684/19931012, e inscrito na matriz sob o artigo 1.971.º, sendo o  montante máximo do crédito e acessórios de 344.365,00€ (trezentos e quarenta e quatro mil trezentos e setenta e cinco euros) – hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 40 de 2002/08/21, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2947 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º10);

c) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º218/19960212, e inscrito na matriz sob o artigo 551.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 647.500,00€ (seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 10 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2986 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º11);

d) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º529/20021119, e inscrito na matriz sob o artigo 554.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 647.500,00€ (seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 10 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2986 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento 12);

e) Prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º541/20030409, e inscrito na matriz sob o artigo 553.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 647.500,00€ (seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 10 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2986 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º13);

f) Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º36/19870709, e inscrito na matriz sob o artigo 207.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 647.500,00€ (seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 10 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. 2986 de 2011/01/06 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º14);

g) Prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 392/19990420 e inscrito na matriz sob os artigos 152.º e 552.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 647.500,00€ (seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 10 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente  pela Ap. 2986 de 2011/01/06 (cfr. Certidão predial junta aos autos principais como documento n.º15);

h) Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 2964/19991109 e inscrito na matriz sob o artigo 514.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de 261.515,00€ (duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros) - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. 15 de 2002/03/05 (cfr. certidão predial junta aos autos principais como documento n.º16).

10) Os imóveis identificados nas alíneas a) e h) foram posteriormente adquiridos pela sociedade executada KK - Empreendimentos Imobiliários, Lda, atualmente denominada EE, Lda.

11) Os imóveis identificados nas alíneas d), e) e g) foram posteriormente adquiridos pela sociedade executada DD, UNIPESSOAL, LDA.

12) O imóvel identificado na alínea f) foi adquirido pela sociedade executada GG LIMITED.

13) O crédito da exequente encontra-se também garantido pelo seguinte penhor constituído pelos executados BB e CC:

a) 2250 obrigações “rendimento mais – 1.ª Emissão”, no valor de 100€ cada, emitidas em 16.06.2003, com vencimento para 16.06.2013, o qual foi constituído para garantia de todas e quaisquer obrigações constituídas ou a constituir pela sociedade FF até ao limite global de capital de 225 mil euros. Penhor subscrito a 26.10.2005 –

14) Os executados BB e CC para além das aplicações financeiras referidas no ponto anterior eram também titulares das seguintes apólices: a apólice nº 6…/00…6, apólice nº 6…/00…0, a apólice nº 6…/01…8, a apólice nº 4../15…1, apólice nº6…/0…4, apólice nº 6…/00…2, apólice nº 6…/00…3, apólice nº 6…/00…3.

15) O II comunicou à mutuária FF a resolução do contrato referido em 4) no dia 19.05.2009.

16) Em resultado da resolução do referido contrato, o II amortizou ao valor em dívida a quantia global de 870.674,28€, correspondente às apólices/aplicações financeiras n.º6…/3…3, n.º6…/3…6 e n.º6…/1…0.

17) Os embargantes BB e CC continuam a dispor de aplicações financeiras referentes a ações SLN Rendimento Mais no valor global de 400 mil euros e Obrigações Rendimento Mais no valor global de 225 mil euros.

18) A exequente apresentou o requerimento executivo no dia 09.10.2010, com pedido de citação urgente dos executados nos termos do disposto no artigo 561.º do Código de Processo Civil, e procedeu ao pagamento da quantia inicialmente devida ao Agente de Execução a título de honorários e despesas no dia 10.10.2010.


Factos não provados


1) Todas as operações de financiamento realizadas pela sociedade FF junto do II foram garantidas por aplicações financeiras de montante superior aos créditos concedidos.

2) O crédito em execução nos presentes autos se encontre também garantido pelos seguintes penhores constituídos pelos executados BB e CC: a) 3750 obrigações “rendimento mais – 1.ª Série”, no valor de 100€ cada, emitidas em 16.06.2003, com vencimento a 16.06.2013, para garantia de todas e quaisquer obrigações da FF por via do financiamento de 16.06.2013, no montante de 375 mil euros. Penhor subscrito a 16.06.2003.

b) 2250 obrigações “rendimento mais – 1.ª Emissão”, no valor de 100€  cada, emitidas em 16.06.2003, com vencimento a 16.06.2013, para garantia de todas e quaisquer obrigações da FF por via do financiamento de 16.06.2013, no montante de 375 mil euros. Penhor subscrito a 22.09.2004.

c) 2250 obrigações “rendimento mais – 1.ª Emissão”, no valor de 100€ cada, emitidas em 16.06.2003, com vencimento a 16.06.2013, o qual foi constituído para garantia de todas e quaisquer obrigações constituídas ou a constituir pela sociedade FF ou pela sociedade LL, Lda., até ao limite global de capital de 225 mil euros. Penhor subscrito a 20.06.2008.

d) 8 obrigações “SLN Rendimento Mais 2004”, no valor de 50 mil euros cada, emitidas em 25.10.2004, com vencimento para 27.10.2014, para garantia de todas e quaisquer obrigações constituídas ou a constituir pelos executados BB e CC.

3) As apólices com os nº 6…/01…8, nº 4…/15…1, n.º6…/00…04, nº 6…/00…2 e nº 6…/00…3 garantissem o pagamento dos créditos reclamados na ação executiva e/ou o II estivesse na disponibilidade das mesmas e/ou as pudesse vender ou fazer suas para liquidar o crédito exequendo.

4) As aplicações financeiras identificadas nos factos provados tivessem um rendimento líquido garantido de 6,25%.

5) Os embargantes BB e CC com o aval que prestaram tivessem pretendido constituir-se fiadores das obrigações do contrato subjacente à livrança dada em execução.

6) As obrigações da SLN Rendimento Mais 2004 referidas em 17) dos factos provados estejam a garantir outros créditos que não o aqui peticionado e não têm praticamente qualquer valor comercial.

7) A exequente tivesse diligenciado no próprio dia 09.10.2013 pelo pagamento dos valores a que alude o artigo 2.º, n.º5 da Portaria n.º282/2013, de 29.08, e que apenas não o conseguiu devido a problemas do sistema informático, que não disponibilizou de imediato os dados necessários a esse pagamento.



***



3.2. Fundamentação de direito


3.2.1. Conforme já se deixou dito no presente recurso está em causa, essencialmente, saber se prescreveu o direito da exequente instaurar a execução contra os ora embargantes com base na livrança exequenda, o que nos remete para a questão de saber se, nas circunstâncias dos autos, existe fundamento para a exequente/embargada beneficiar da interrupção do prazo de prescrição prevista no art. 323º, nº 2 do C. Civil.


No sentido afirmativo, pronunciou-se o acórdão recorrido, considerando, por um lado, que tendo o requerimento executivo sido apresentado por via eletrónica em 9 de outubro de 2013, de harmonia com o disposto no art. 3º, nº 1 do DL nº 150/2014, o justo impedimento é oficioso e automático, não carecendo de alegação e prova, por se tratar de regime especial, em relação ao previsto no art. 140º do CPC.

E, por outro lado, que, não sendo imputável à exequente a demora da citação dos executados, nos termos do art. 323º, nº 2 do C. Civil, a prescrição interrompeu-se decorridos cinco dias após a apresentação em juízo do requerimento executivo. 


Insurgem-se, porém, os embargantes/recorrentes contra este entendimento, sustentando que o regime do DL nº 150/2014, de 13.10 não tem aplicação ao caso dos autos, pelo que se impõe a revogação do acórdão recorrido e, consequentemente, a manutenção  da  decisão proferida pelo Tribunal de 1ª instância, já que, nos termos do disposto no art. 724º, nº 6 do CPC, deve considerar-se que o requerimento executivo foi apresentado na data do pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução a título de honorários e despesas e, portanto,  já fora do prazo a que e reporta o art. 323º, nº 2 do C. Civil.    

 

Que dizer?


Desde logo que se reconhece assistir razão aos recorrentes quando afirmam a inaplicabilidade do DL nº 150/2014, de 13.10 aos presentes autos, porquanto, à data da apresentação, por via eletrónica, do requerimento executivo (09.10.2013), ainda nem sequer existia o citado decreto-lei, que foi publicado em 13.10.2014 e entrou em vigor em 14.10.2014 ( cfr. art. 6º, nº1 do mesmo diploma).  

Todavia, o mesmo já não se poderá dizer quanto ao demais.

Vejamos. 

Como é consabido, o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho e entrado em vigor em 1 de setembro de 2013 (cfr. art. 8º da citada lei), ditou a revisão e a simplificação de algumas matérias no âmbito da ação executiva, estabelecendo no nº 1 do seu art. 712º, que «A tramitação dos processos executivos é, em regra, efectuada eletronicamente, nos termos do disposto no art. 132º e das disposições regulamentares em vigor» e, no nº 2 deste mesmo artigo, que «o modelo e os termos de apresentação do requerimento executivo são definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça».

Daí que, em 1 de setembro de 2013, tenha também entrado em vigor a Portaria nº 282/2013, de 29 de agosto (cfr. seu art. 63º), que regula vários aspetos da tramitação eletrónica dos processos judiciais e que, na parte com interesse para a decisão do presente litígio, estatui, no art. 2º, nº 1 (da sua versão primitiva, por ser a aplicável aos caso) que: «

O requerimento executivo é apresentado por mandatário judicial através do preenchimento e submissão do formulário eletrónico de requerimento executivo constante do sítio eletrónico http://citius.tribunaisnet.mj.pt, nos termos do artigo 132.º do Código de Processo Civil e de acordo com os procedimentos e instruções aí constantes, ao qual se anexam os documentos que o devem acompanhar».

De salientar que, conforme o disposto o art. 3º, nº 1 desta mesma portaria, estando o exequente representado por mandatário judicial, o requerimento executivo só poderá ser apresentado em suporte físico, por entrega na secretaria judicial ou remessa pelo correio, sob registo, ou por telecópia, no tribunal competente, quando haja justo impedimento para a prática do ato nos termos do artigo anterior,  ou seja, quando ocorra a impossibilidade de envio por a via eletrónica.

Uma vez apresentado o requerimento executivo por via eletrónica, com observância do estabelecido no art. 724º do CPC, e, após, a validação, pelo sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, do preenchimento pelo exequente de todos os campos de preenchimento obrigatório e, no caso o exequente não beneficiar de apoio judiciário na modalidade de atribuição de agente de execução, é automaticamente emitida uma referência multibanco referente ao pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução a título de honorários e despesas (cfr. nº 4 do art.2º da referida portaria), da responsabilidade da Câmara dos Solicitadores, devendo o exequente proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias e considerando-se o requerimento executivo apresentado apenas na data desse pagamento, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 724.º do Código de Processo Civil (cfr. nº 5 do  art.2º da referida portaria).

Efetuado o pagamento da mencionada quantia, nos termos previstos no nº 7 do citado art 2º, a Câmara dos Solicitadores insere no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (SISAT), o comprovativo desta liquidação, só então surgindo o processo eletrónico no tribunal, que é automaticamente distribuído.



*



Traçado este quadro procedimental e porque nos caso dos autos, ficou provado que a exequente apresentou o requerimento executivo, por via eletrónica, no dia 09.10.2013 (e não 09.10.2010, como por mero lapso de escrita ficou a constar dos factos dados como provados e supra descritos no ponto 18 e que agora se retifica, ao abrigo do disposto no art. 614º, nº1, aplicável ex vi arts. 666º, nº1 e 685º, todos do CPC), com pedido de citação urgente dos executados nos termos do disposto no artigo 561.º do Código de Processo Civil, e procedeu ao pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução a título de honorários e despesas no dia 10.10.2013 (e não 10.10.2010, como por mero lapso de escrita ficou a constar dos factos dados como provados e supra descritos no ponto e que agora se retifica, ao abrigo do disposto no art. 614º, nº1, aplicável ex vi arts. 666º, nº1 e 685º, todos do CPC), vejamos que consequências tem, designadamente para o efeito de interrupção da prescrição, nos termos do art. 323º, nº 2 do C. Civil, a circunstância de se estabelecer, expressamente, no art. 724º, nº 6, al. a) do CPC, que o requerimento executivo só se considera apresentado na data do pagamento pelo exequente da quantia inicialmente devida ao agente de execução, a título de honorários e despesas, ou da comprovação da concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de atribuição de agente de execução.

Trata-se de questão que não é consensual no seio da doutrina.

Assim, enquanto Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo[2] e Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[3], defendem que a norma do citado art. 724º, nº 6, al. a) afeta os direitos subjetivos (substantivos ou adjetivos) exercidos pelo credor, podendo a circunstância de não se considerar apresentado o requerimento executivo, por falta de pagamento da quantia inicialmente devida ao agente de execução, relevar designadamente para efeito de interrupção da prescrição, nos termos do art. 323º, nº 2 do C. Civil, já Lebre de Freitas[4], sustenta a tese de que aquela norma releva «para o efeito do prosseguimento do processo», mas «não no que respeita aos efeitos substantivos dela derivados, diretamente (como acontece com a caducidade) ou indiretamente (como é o caso da interrupção da prescrição)[5].

Não entraremos, porém, na discussão desta problemática, pelo simples facto de que, no caso dos autos, a opção por uma ou outra das teses, em nada altera a solução a dar à questão da interrupção da prescrição, nos termos do art. 323º, nº 2 do C. Civil.

Senão vejamos.

No que respeita à prescrição da obrigação cambiária, decorre do estabelecido nos arts. 32º, 1º parágrafo, 70º, 1º parágrafo, 77º e 78º, nº1, todos da LULL, que o prazo prescricional da ação cambiária contra o avalista da livrança, é de três anos, a contar da data do respetivo vencimento.

Por sua vez, dispõe o art.323, nº 1 do C. Civil, que «a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente».

E estabelece o nº 2 deste mesmo artigo que «Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias».

Trata-se de uma ficção legal, que funciona como uma verdadeira exceção ao mecanismo da interrupção da prescrição por via da citação ou notificação judicial e que tem a sua razão de ser na necessidade de proteger o titular do direito, quando este requereu antecipadamente a citação (ou a notificação) judicial do devedor, e esta se atrasou sem culpa sua[6].

O efeito interruptivo da prescrição, estabelecido no nº 2 do citado art. 323º, pressupõe, assim, a concorrência de três requisitos:

i) que o prazo prescricional ainda esteja a decorrer  e assim se mantenha nos cinco dias posteriores à instauração da ação;

ii) que a citação não tenha sido realizada nesse prazo de cinco dias;

iii) que o retardamento da citação  não seja imputável ao requerente[7].    

E sobre a interpretação a dar à expressão «por causa não imputável ao requerente», é jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que esta expressão legal deve ser interpretada em termos de causalidade objetiva, ou seja, a conduta do requerente só exclui a interrupção da prescrição quando tenha violado objetivamente a lei em qualquer termo processual até à efetivação da citação[8].

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 03.02.2011 (processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1)[9], o que é essencial para a aplicação do regime da citação «ficta» em 5 dias é que a conduta do requerente não haja implicado qualquer violação culposa de normas procedimentais ou adjetivas, radicando nessa infração objetiva – e só nela – a preclusão do benefício emergente do referido nº 2 do art. 323º.

Assim, a demora será imputável ao requerente quando se demonstre existir um nexo objetivo de causalidade entre a conduta do requerente, posterior ao requerimento para a citação, e o resultado de a citação ter sido efetivada para além do quinto dia posterior à apresentação daquele[10].

Do mesmo modo, constitui entendimento pacífico na jurisprudência deste Supremo Tribunal que, quando a demora na citação resulta da desconjugação dos preceitos da lei de custas, de processo e de organização judiciária com as normas substantivas, o conflito deve solucionar-se no sentido da prevalência destas, sem que tal desconjugação possa imputar-se aos que requerem as citações[11].

E ainda que, sendo a ação proposta com a antecedência mínima de 5 dias em relação à consumação do prazo prescricional, nem necessita o autor de requerer a citação antecipada para poder aproveitar do artigo 323º, nº 2 do Código Civil[12], pois, como se afirma no citado Acórdão do STJ de 03.02.2011, o que «releva decisivamente na aplicação do dito regime legal é o eventual cometimento pelo autor de uma infracção a regras procedimentais a que estava vinculado e que tenham sido causais da demora na consumação do acto de citação – e não uma «omissão» de actos ou diligências aceleratórias – que, porventura a terem sido adoptadas, poderiam permitir um curso mais célere do processo na sua fase liminar mas que constituem uma faculdade e não um dever ou ónus do autor».

Ora, transpondo estas considerações para a situação dos autos, verifica-se que, tendo a livrança dada à execução vencimento em 15.10.2010, o prazo de 3 anos de prescrição da ação cambiária ocorreria a 15.10.2013, pelo que ao apresentar o requerimento executivo, por via eletrónica, no dia 09.10.2013, a exequente fê-lo com uma antecedência de 6 (seis) dias em relação à consumação do dito prazo prescricional.

E mesmo considerando, por força do disposto no art. 724º, nº 6 do CPC, que o requerimento executivo só se considera apresentado na data do pagamento pelo exequente da quantia inicialmente devida ao agente de execução, a título de honorários e despesas, a verdade é que, tendo a exequente procedido a tal pagamento no dia 10.10.2013, sempre seria de considerar que a ação executiva foi instaurada com a antecedência mínima de 5 dias em relação à consumação daquele prazo prescricional, respeitando, portanto, inteiramente o prazo de 5 dias que funciona como condição essencial de aplicação do regime de citação «ficta» contido no nº 2 do art. 323º do C. Civil.

E se é certo resultar dos autos ( cfr. doc. 3, constante de fls.50) que a execução deu entrada em tribunal apenas em 18.10.2013, portanto, já depois de esgotado o referido prazo prescricional, a verdade é que não se vislumbra, na tramitação da causa na fase liminar, qualquer infração de regras processuais imputáveis à exequente, não podendo, de igual modo, extrair-se qualquer consequência desfavorável da circunstância de os executados/embargantes  terem sido citados em data posterior a 15.10.2013, na medida em que isso ficou apenas a dever-se a razões de natureza processual, relacionadas com o novo regime da ação executiva.

Portanto, tendo a execução sido instaurada em 10.10.2013 e não sendo imputável à exequente a causa da não citação dos executados dentro dos cinco dias subsequentes, a citação considera-se realizada, para efeitos de interrupção da prescrição, nos termos do artº 323º, nº 2 do Cód. Civil, em 15.10.2013, antes, pois, de esgotado o prazo de prescrição da livrança dada à execução.

Daí que, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 32º, 1º parágrafo, 70º, 1º parágrafo, 77º e 78º, nº1, todos da LULL e 323, nº 2 do C. Civil, se imponha concluir pela não verificação da prescrição  da ação cambiária instaurada contra os recorrentes improcedendo, nesta parte, o recurso.



*



3.2.2. Abuso de direito

A este respeito, sustentam os recorrentes que tendo a exequente constituído mandatário em 11.02.2011, ou seja, cerca de 30 meses antes do termo do prazo de prescrição da livrança exequenda , sempre estaríamos no domínio do abuso de direito se se viesse a permitir um regime excecional de alargamento do prazo para instauração de uma execução com fundamento  em eventuais constrangimentos técnicos.

Impõe-se, por isso, indagar se a atuação da exequente/embargada consubstancia abuso de direito, visto estarmos perante questão que é de conhecimento oficioso já que ofensivo do princípio de interesse e ordem pública.

Segundo o disposto no artigo 334º do C. Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito.

Perante o preceituado neste artigo e na esteira dos ensinamentos de Manuel de Andrade[13], Vaz Serra[14] e Antunes Varela[15], poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé[16], pelos bons costumes[17] ou fim social ou económico desse direito.

Para Menezes Cordeiro[18], a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjetiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso de direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjetivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram.

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07)[19], o instituto do abuso de direito representa  o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjetivos privados e surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

A boa fé, no dizer de Jorge Coutinho de Abreu[20], significa que, no exercício dos seus direitos e deveres, nomeadamente em cumprimento dos seus compromissos contratuais, as pessoas devem assumir um comportamento honesto, correto e leal, tudo por forma a não defraudar a legítima confiança ou as expetativas de outrem.

Ora, analisando, neste pano de fundo, a situação acima descrita pelos recorrentes, não se descortina que a mesma indicie que a exequente tenha, de algum modo, atuado com abuso de direito.

Com efeito, até que se operasse a prescrição da livrança exequenda, a exequente podia instaurar a execução no momento que tivesse por mais conveniente, não se vislumbrando que da demora em fazê-lo, se possa inferir, sem mais, que a exequente não agiu de boa fé.

E muito menos se vê que da circunstância de ter dado entrada do requerimento executivo e de ter procedido ao pagamento da quantia devida ao agente de execução com a antecedência de seis e cinco dias, respetivamente, em relação à consumação do prazo prescricional da livrança dada à execução, se possa extrair que a exequente violou o princípio da tutela da confiança.

É que se é certo ter a citação dos recorrentes ocorrido após a consumação do referido prazo prescricional, a verdade é que, tal como já se deixou dito, isso aconteceu porquanto beneficiou a mesma, justificadamente, da aplicação do regime da citação «ficta» previsto no art. 323º, nº 2 do C. Civil.


Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto.



*



3.2.3. Erro na apreciação da prova   


Sustentam os recorrentes que o Tribunal da Relação não podia considerar como  provados os factos constantes do ponto 3 ( ou seja, que em razão do referido acordo, a exequente é dona e legítima portadora da livrança dada em execução com o valor de 1.329.332,16€ (um milhão trezentos e vinte e nove mil trezentos e trinta e dois euros e dezasseis  cêntimos), vencida em 15/10/2010, subscrita pela sociedade Executada  “FF, LDA.”, avalizada pelos executados BB, CC e HH, este último declarado insolvente), na medida em que os mesmos são infirmados, quer por força da  autoridade do caso julgado  formado pela sentença há muito transitada em julgado e proferida, em 22.07.2010, no  processo  n° 1173/10.0TBVIS, do … juízo Cível do Tribunal Judicial de …, que goza, assim, de força probatória plena, quer pela força probatória da confissão extrajudicial documentada no doc junto a fls. 20 a 34 ( requerimento do pedido de declaração de  Insolvência dos executados CC e de BB  formulado pelo Banco II, SA, no âmbito do processo n° 1173/10.0TBVIS do extinto … Juízo Cível do Tribunal Judicial de … e onde o próprio II  afirma que, à data de 17 de Abril de 2010, o  valor do seu crédito era de 738.379,57 € ) e do documento junto a fls. 52 (carta  de 24.09.2010, dirigida pelo II à executada CC e em que, relativamente àquele denominado "contrato de mútuo", o mesmo arrogava-se  titular de um crédito de 1.134.689,54 € e solicitava o seu pagamento até ao dia 15 de Outubro de 2010).


*


Vejamos, então, se lhes assiste razão, tendo em conta que, nesta matéria, cabe apenas ao Tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação, no desempenho daquela sua função, observou, quer a disciplina processual a que aludem os arts. 640º e 662º, nº 1, quer o método de análise crítica da prova prescrito no art. 607º, nº 4, aplicável por força o disposto no art. 663º, nº 2, todos do CPC, sem imiscuir-se na valoração da prova feita pelo Tribunal da Relação, segundo o critério da sua livre e prudente convicção.

De salientar ainda que não compete ao Tribunal de revista sindicar o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a utilização desse critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade, casos em que, como escreve Abrantes Geraldes[21], defrontámo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspetiva, se integram também na esfera de competências do Supremo.


*



Ora, no caso dos autos, o que se constata do acórdão recorrido é que, em sede de apreciação da impugnação da factualidade constante do referido artigo 3º, o Tribunal da Relação decidiu manter a decisão do Tribunal de 1ª Instância, porquanto considerou:

i) no que respeita à força probatória da sentença absolutória proferida, em 22.07.2010, no  processo n° 1173/10.0TBVIS, do extinto … juízo Cível do Tribunal Judicial de …, que os factos descritos nesta sentença não adquirem valor de caso julgado quando autonomizados da respetiva decisão judicial, e que a sentença, enquanto documento público, apenas faz prova plena  da realização do julgamento (dos atos praticados pelo juiz), mas não quanto à realidade dos factos dados como provados, concluindo, por isso, que tais factos  « não relevam, quer através  do caso julgado, quer como prova plena, para esta acção» .

ii) relativamente ao documento  junto a fls. 20 a 34, que a declaração feita pelo II no requerimento do pedido de declaração de  Insolvência dos executados CC e de BB formulado no processo n° 1173/10.0TBVIS do extinto … Juízo Cível do Tribunal Judicial de … no sentido de que, à data de 17 de Abril de 2010, o valor do seu crédito era de 738.379,57 €, não vale como confissão extrajudicial, nos termos do art. 358º, nº 2 do C. Civil, quer por dela não constar qualquer referência ao crédito reclamado na execução e constante da livrança exequenda, quer por a mesma ser dirigida a terceiros e não aos ora recorrentes.

iii) quanto ao documento o junto a fls. 52, que o mesmo não pode valer  como confissão extrajudicial, pois se é certo que, nesta «carta de 24/9/2010 dirigida à executada CC é mencionado o crédito com o valor de € 1.134.689,54, a verdade é que, posteriormente o II endereçou a carta de 12/11/2010 (fls. 118) a rectificar expressamente tal montante».  


Mas sendo assim, torna-se claro que o Tribunal da Relação, na utilização destes critérios de valoração, não só não ofendeu qualquer disposição legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova, designadamente o disposto no art. 619º, nº1 do CPC e no art. 358º, nº 2 do C. Civil, como seguiu orientação conforme na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que, por um lado e tal como se afirmou no recente Acórdão do STJ, de 08.10.2018 (processo nº 478/08.4TBASL.E1.S1) [22] «os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram» e «nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objetivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo»[23] .

E, por outro lado, de que a confissão extrajudicial escrita (enquanto declaração receptícia) apenas assume força probatória plena se resultar do documento em que se insere e ainda quando for feita à parte contrária ou a quem a represente, sendo livremente apreciada em relação a terceiros[24].

Por tudo isto e porque, de harmonia com o disposto nos arts. 682.º, n.º 2 e 674º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil, está este Supremo Tribunal impedido de sindicar o julgamento que a Relação fez, em sede de livre apreciação, sobre a factualidade vertida no ponto 3 acima em referência, improcede também, neste segmento, o recurso interposto.


*


3.2.4. Contradição entre os factos dados como provados.


Argumentam os recorrentes existir contradição insanável entre os factos provados e supra descritos nos pontos 3, 4 e 7 da fundamentação de facto, uma vez que se afirma no ponto 4 que o valor do empréstimo, em 20/06/2008, foi de 1.748.500,00 €, referindo-se no ponto 7 que os executados não devolveram à exequente o capital mutuado e os juros vencidos sobre esse capital, mas concluindo-se no ponto 3 que o valor em dívida, em 15/10/2010, era de 1.329.332,16€.

Nesta matéria constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a contradição entre factos dados como provados capaz de inviabilizar a decisão jurídica do pleito e, por isso, relevante para efeitos do disposto no art. 682º, nº 3 do CPC, é aquela que traduz a existência entre eles de uma relação de exclusão, no sentido de estarmos perante factos inconciliáveis.

Mas se assim é, evidente se torna não existir qualquer contradição entre o facto de o mútuo concedido à subscritora da livrança dada à execução ser do valor inicial de € 1.748,500,00, o facto desta livrança ser do montante de € 1.329.332,16 e o facto de os executados e ora recorrentes não terem procedido ao pagamento do capital mutuado e dos juros vencidos sobre aquele capital.

Por tudo isto e porque os executados embargantes, na qualidade de avalistas da livrança exequenda e intervenientes no pacto do respetivo preenchimento, não lograram provar, tal como lhes competia, nos termos do disposto no art. 342º, nº 2 do C. Civil, o alegado preenchimento abusivo da livrança em causa, evidente se torna nenhuma censura merecer o acórdão recorrido ao julgar improcedentes os presentes embargos.


3.2.5. Nulidades do acórdão.


Finalmente, sustentam os recorrentes padecer o acórdão recorrido das nulidades previstas no art. 615º, nº 1, als. b), c) e d) do CPC.  


Nos termos do art, 615º, nº 1, aplicável por força do art. 666º, ambos do CPC, que é nulo o acórdão quando:

«Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justifiquem a decisão»[( al. b) ];

 «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível» [( al. c) ];

«Quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» [( al. d) ].


Posto que nada disto acontece nos autos, sendo certo que os recorrentes nem sequer caracterizam qualquer situação evidenciadora de qualquer uma destas nulidades, impõe-se, em necessidade de maiores considerações, concluir pela falta de fundamento da sua invocação.


Improcedem, pois, todas as conclusões de recurso não merecendo qualquer censura acórdão recorrido que, por isso, será de manter.



***



III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido ainda que com base em fundamentação não inteiramente coincidente.

As custas do recurso ficam a cargo dos recorrentes.



***



Supremo Tribunal de Justiça, 24 de janeiro de 2019

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

José Manuel Bernardo Domingos

___________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In, “ A Ação Executiva Anotada e Comentada”, Almedina 2015, pág. 226. 
[3] In, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil  Os Artigos da Reforma, Vol. II, Almedina 2014, pág. 238. 
[4] In, “ A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 6ª Ed., Coimbra Editora, pág. 184.
[5] No mesmo sentido parece posicionar-se Rui Pinto quando afirma, in, “ A Ação Executiva”, AAFDL Editora, Lisboa/2018, págs 89 e 90, que  se trata « manifestamente , de um modo indireto de lidar com a questão, mas que é de constitucionalidade duvidosa, em face do direito de ação garantido pelo art. 20º, nº1 da CRP» .
[6] Cfr. Cunha de Sá,  “Modos de Extinção das Obrigações”, in Estudos de Homenagem  ao Prof. Doutro Inocêncio  Galvão Telles, vol. I, pág. 256.  
[7] Neste sentido, cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 24.01.2007 (processo nº 06S3757); de 03.10.2007 (processo nº 07S359); de 04.03.2010 (processo nº 1472/04.OTVPRT-C.S1); de 03.02.2011 (processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1) e de 03.07.2018 (processo nº 1965/13.8TBCLD-A.C1.S1), todos acessíveis acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[8] Neste sentido, cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 09.02.1995, in, BMJ, nº 444, pág. 570; de 04.03.2010 (processo nº 1472/04.OTVPRT-C.S1); de 03.02.2011 (processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1); de 23.01.2014 (processo nº 8021/04.8YYLSB-A.L1.S1); de 29.11.2016 (processo nº 448/11.5TBSSB-A.E1.S1) e de 03.07.2018 (processo nº 1965/13.8TBCLD-A.C1.S1), acessíveis acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[9] Acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[10] Cfr, entre outros, os Acórdãos do STJ de 08/07/1980, in BMJ, nº 299, pág. 294; de 27/07/1982, in BMJ, nº 319, pág. 265; de 05/05/1987, in BMJ, nº 367, pág. 507; e de 04/11/1992, in BMJ, nº 421, pág. 262.
[11] Cfr, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 17.061998 (processo nº 457/98); de 10.02.1981 (processo nº 068766), acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[12] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 10/01/2006 (processo nº 3298/05), in Sumários dos Acórdãos do STJ – Janeiro 2006; de 03.02.2011 (processo nº 1228/07.8TBAGH.L1.S1), acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[13] In, “Teoria Geral das Obrigações”, 3ª ed., págs. 63 e 64.
[14] In, “ Abuso de Direito”, BMJ nº 85, pág. 253.
[15] In, RLJ, ano 114º, pág 75.
[16] Agir de boa fé é agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, e ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar. Neste sentido, vide, Antunes Varela, in, CJ, ano 1986, tomo III, pág. 13; Almeida Costa , in, obra citada, págs. 846 e Vaz Serra, in, BMJ, n.º74, pág. 45.
[17] Entendidos estes como um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e corretas aceitam comummente, contrários a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social – Vide, Almeida Costa, in, obra citada, pág. 66 e Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil Anotado”, Vol. I, notas ao artigo 280º.
[18] In, “ Do abuso de direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem  ao Prof. Doutor Castanheira Neves”, Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez 2008, pág. 169 e 170.
[19] Acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[20] In, “ Do Abuso de Direito”, pág. 55.
[21] In, “Recursos  no Novo Código de Processo Civil”, 2017- 5ª Edição, pág.435. 
[22] Ainda não publicado.
[23] Neste mesmo sentido, cfr. entre outros, Antunes Varela, “ Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, pág. 697; Remédio Marques, “Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 2007, pág. 447; Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, págs. 578- 580 e, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do STJ, de 02.03.2010 (revista nº 690/09.9YFLSB), não publicado, e de 17.05.2018 (processo nº 3811/13.3TBPRD.P1.S1) acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[24] Neste sentido, cfr. a título meramente exemplificativo, o Acórdão do STJ, de 02.03.2011 (processo nº 888/07), acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj e Manuel de Andrade, in, “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 247 e 255..