Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1331/14.8YRLSB. S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: CONCURSO DE INFRACÇÕES
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
EXTRADIÇÃO
NON BIS IN IDEM
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Data do Acordão: 03/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: EXTRADIÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA EM MATÉRIA PENAL / EXTRADIÇÃO.
Doutrina:
- Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções –Caso julgado e Poderes de cognição do Juiz, pp. 331, 332.
- Fernanda Palma, citada por Miguez Garcia e Castela Rio, no “Código Penal” anotado, p. 172.
- Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, p.248.
- Gomes Canotilho e Vital Moreia, “Constituição da República Portuguesa”, comentário ao art.º 33.º, ed. Coimbra ed., 1993.
- Pires da Graça, “Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu”, pp. 69 e 71.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 26.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 15.º.
D.L. N.º 15/93, DE 22-1: - ARTIGOS 21.º, 24.º.
LEI N.º 144/99, DE 31-08: - ARTIGOS 1.º N.º S 1 A) E 2, 35.º.
LEI N.º 65/2003, DE 23/8.
Legislação Estrangeira:
DIREITO PENAL BRASILEIRO:
LEI N.º 11.343/2006, DE 23 DE AGOSTO: - ARTIGOS 33.°, 35.º, 40.º.
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA , CELEBRADA NA CIDADE DA PRAIA EM 23.11.2005, APROVADA PARA RATIFICAÇÃO PELA RESOLUÇÃO N.º 49/2008, DE 17.8, DA A.R.: - ARTIGOS 3.º N.º 1, D) , 4.º, AL. A), 10.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25.6.2009, P.º N.º 1087/09.6YRLSB.S1 E DE 18.6.2008, P.º N.º 2159/08.
Sumário :

I  -   A cooperação judiciária internacional rege-se pela Lei 144/99, de 31-08, que regula, entre outros, o processo de extradição, e, em via subsidiária, com as necessárias adaptações, outras formas de cooperação estabelecidas em tratados ou convenções vinculantes do Estado português.

II -  A cooperação judiciária em matéria penal entre Portugal e a República Federativa do Brasil foi vertida no Tratado de Extradição assinado em Brasília no dia 07-05-1991, sobrevindo-lhe a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, celebrada na cidade da Praia em 23-11-2005.

III - Essa Convenção como lei posterior revoga a lei anterior e como lei especial que é assume prevalência sobre aquele Tratado, posto que por ele se devem regular os pedidos de extradição.

IV - O princípio ne bis in idem, com o significado de que pelo mesmo facto ninguém pode ser julgado duas vezes, opera também, à luz da Convenção, como causa de recusa da extradição.

V - Para delimitar o conceito de mesmo facto tem-se em vista o facto complexo, formado pelo tipo de ilícito e de culpa, pelo que condutas parcelares integradas num conjunto não constituem razão para a não entrega do extraditando, além de que entrar na problemática da unidade e pluralidade de infracções representa uma proibida intromissão na jurisdição do Estado requisitante.

VI - Se os factos julgados em Portugal dizem respeito à importação de 5 800 g de cocaína, no Brasil são distintos, concitam um maior grau de culpa e de ilicitude, por respeitarem a uma grande quantidade de cocaína (70 592 kg), destinada a Portugal, onde não chegou a ser introduzida, por terem sido apreendida pela polícia brasileira.

VII - Como a recusa facultativa de extradição é uma faculdade de que só beneficia o cidadão nacional e como o recorrente não tem ligação à ordem jurídica portuguesa pelo vínculo da nacionalidade, não se antevê obstáculo à sua entrega à República Federativa do Brasil para julgamento.

VIII - Essa diferenciação de regime jurídico entre cidadão nacional e estrangeiro não ofende o princípio da igualdade, na medida em que a própria CRP excepciona do âmbito deste princípio os direitos de que apenas podem beneficiar os cidadãos portugueses.

      

     

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

 O Exm.º Magistrado do M.º P.º   junto da 9ª Secção , do Tribunal da Relação de Lisboa,  promoveu  a entrega de AA ,  de ... anos ,  nascido em Espanha, de onde é nacional ,   filho de ... e de ...,  detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa à ordem do processo 311/12.2 JELSB , da Comarca de Lisboa-Norte – Loures – Instância Central Secção Criminal - Unidade l (ex-2.ª Vara) - J2, à justiça brasileira,  como  requerido pelas autoridades  judiciárias da República Federativa do Brasil ,  a fim de ser submetido  a julgamento neste País,  no P.º  0802225-34.2013.4.02.5101,  que corre termos na 7ª Vara Criminal - Secção Judiciária,  do Rio de Janeiro - Brasil, aí acusado da  prática   de factos que integram a prática de  dois crimes de associação para o tráfico internacional de entorpecentes, previstos e punidos, respectivamente pelo artigo 33.°, com referência ao n.º 1 do artigo 40.° e pelo artigo 35.° com referência aos n.ºs I e IV do artigo 40, todos da lei 11.343/2006, de 23 de Agosto.

   

 A EXm.ª  Senhora Ministra da Justiça de Portugal considerou admissível o pedido de extradição de AA, em conformidade com o disposto nos artigos 31.º e 48.º da Lei 144/99, de 31 de Agosto, e nos artigos 1º e 2º da Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Convenção de Extradição/CPLP), por despacho de 21.10.2014.

O extraditando manifestou a sua intenção de se opor à extradição,  na audição que teve lugar nos termos dos artigos 51º e 54.º da Lei 144/9 9 , de 31/8 “ alegando , fundamentalmente , que:

 -não se deslocou ao Brasil no período temporal, da denúncia pelas Autoridades brasileiras a esse País

-Ao caso vertente é aplicável o regime da Lei 144/99 de 31 de Agosto, no seu Artigo 32° n.º 1 al. a)

- Por outro lado não há lugar a extradição, pois estamos inequivocamente perante os mesmos factos

-O artigo 29.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa estatui que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime".

- E uma vez mais, salvo melhor entendimento não existe nos autos nada que o contradiga.

-O artigo 11.° al. b) da Lei n.º 65/2003, prescreve que é causa de recusa do Mandado de Detenção Europeu o facto de "a pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado membro onde foi proferida a decisão".

-Por sua vez, o artigo 12.°, n.º 1 al. d) da Lei n.º 65/2003, prescreve que a execução do Mandado de Detenção Europeu pode ser recusada quando a pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro em condições que obstem ao ulterior exercício da acção penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11.°.

 -Preceitua o artigo 12.°, n.º 1 al. f) do mesmo diploma legal que a execução do Mandado de Detenção Europeu também pode ser recusada quando "a pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um país terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei portuguesa".

-Estes preceitos também consagram o princípio ne bis in idem a nível do instituto do Mandado de Detenção Europeu e/ou da extradição.

-A questão é saber também, se a noção de mesmos factos (idem factum) inserta nas normas de direito interno constantes do artigo 11.°, alínea b) e artigo 12.°, n.º 1, als. d) e f) da lei n.º 65/2003, e de facto exarada no artigo 6.°, n.º 1 do Código Penal, é compatível com a noção de mesmo crime do artigo 29.°, n.º 5 da Constituição

Entender o termo crime, empregue no n.º 5 do art. 29.° da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento seria permitir o que é inaceitável - que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (art. 43. o do CP) pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (art. 131.º do CP). IX - O que referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-03-2006, Processo 4403, www.gdemj.pt, pesquisado em 11-02-2009.

-O conceito de «mesmo crime», utilizado pela lei, tem tradicionalmente o sentido de enquadramento jurídico de um certo conjunto de factos e actos do agente (...) cf. Assento n.º 2/93, in DR n.º 58 -I Série A, 10-03-1993, p. 1109.

-Por mesmo crime deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspecto substancial, os elementos essenciais do tipo legal pelos quais o arguido foi julgado, cf. SILVA, Germano Marques da Curso de Processo Penal III. Verbo, Lisboa / São Paulo, 1994, p. 38.

Na resposta à oposição,  a  EXm.ª Procuradora Geral Adjunta  defende, como na resposta ao recurso , em fundado parecer ,  que o pedido de extradição deve ser concedido, com excepção dos factos pelos quais o extraditando AA já foi julgado no processo 311/12.2JELSB,  da Comarca de Lisboa-Norte – Loures.

Discordando do acórdão da Relação  proferido,  autorizando , com reservas ,  a extradição  , o extraditando interpôs recurso para este STJ , apresentando as seguintes conclusões  na motivação :

Mostra-se violado o prescrito no art.º 3.º n.º 1 b) , do Tratado de Extradição entre Portugal e o Brasil , de 7.5.91 , e o 32.º n.º 1 a), da Lei n.º 144/99, de 31/8  .

A ter cometido os crimes por que está acusado  a sua prática só podia ter tido levada em  Portugal e nunca no Brasil ,  toda a actividade executiva ocorrendo no nosso País,   pois aqui residia  e trabalhava  .

Dada a natureza vaga e genérica dos termos constantes na acusação no processo pendente na justiça brasileira  , mostra-se violado o disposto no art.º 12.º  al.e) , do Tratado de Extradição entre Portugal e o Brasil  , de 7.5.91 .   

A ausência de indicação dos factos ,  local , circunstâncias da infracção e qualificação jurídica ,  é inconstitucional por violação  dos art.º s 8.º n.º 2 e 203.º ,da CRP.

O recorrente vive em Portugal há mais de 25 anos , sendo sujeito passivo das obrigações fiscais , residia permanentemente em Leça da Palmeira , há mais de 5 anos , com uma mulher de nacionalidade portuguesa , com quem mantém relação estável e séria ,  sendo portador de carta de condução , de marinheiro e  de patrão há inúmeros anos , além de que é gerente    de uma empresa de exportação alimentar com sede em Vila Nova de Cerveira .

A norma do art.º 32.º n.ºs 1 e 2 a) e b) , da Lei n.º 144/99 , de 31/8 , não permite a extradição de quem se ache em Portugal há mais de 6, 7, 8 , 10  anos.  E a interpretação em contrário atenta contra a CRP.   

O Estado português  pode , assim , recusar a entrega ao Estado peticionante , por violação dos art.ºs  8.º , 13.º n.º 2 ,  15.º n.º 1 , 32 .º e 203 .º .º , da CRP , 40.º , do CP .  

A extradição ofenderia o disposto no art.º 32.º n.º 1 b) , da Lei n.º 144/99 , de 31/8 , recusando-lhe tratamento  igual ao de qualquer cidadão português  , trazendo-lhe consequências graves em razão da idade , saúde e de carácter pessoal .

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O enquadramento jurídico –penal convocado no caso a decidir nenhuma  pertinência  mostra com o regime jurídico  do mandado de detenção europeu , aprovado para vigorar entre nós pela Lei n.º 65/2003 , de 23/8, a partir de 1.1.2004 ,  em cumprimento da Decisão-Quadro n.º 2002 /584 /JAI , do Conselho da Europa , de 13/6.

O MDE é o mecanismo  que  , substituindo-se   ao  regime jurídico de extradição , que se reconheceu  deficitário  em termos de   simplicidade  e celeridade processuais , deu  lugar a um processo de entrega  de pessoas condenadas ou para cumprimento de pena entre os Estado membros da CE , baseado num princípio de confiança e de reconhecimento  mútuo entre  os órgãos judiciário daqueles  Estados , em que  o mérito da pretensão não é discutido  ; o Estado requerido , nessa medida , tem como bom , fundado, o pedido de entrega , que se não é incondicional, sofre limites mínimos, relacionados com o respeito pelos direitos humanos  ou pelo acatamento de  coordenadas  constituindo  direito penal  internacional e universalmente   respeitadas ,  como por ex.º o princípio da especialidade  .

O travejamento da cooperação  judiciária internacional   rege-se pela Lei n.º 144/99 , de 31/8 , que regula , entre outros , o processo de extradição ,  e , em via subsidiária ,com as necessárias adaptações   outras formas de cooperação estabelecidas em tratados ou convenções vinculantes do Estado Português –art.º 1.º n.º s 1 a)  e 2, daquela Lei .

A cooperação judiciária  em matéria penal entre  Portugal e a República Federativa do Brasil  foi vertida no Tratado  de Extradição  assinado em Brasília no dia 7/5 /91 , aprovada pela Resolução n.º  5 , da Assembleia da República ,      sobrevindo-lhe a    Convenção de Extradição entre os Estados Membros   da Comunidade dos Países  de Língua Portuguesa ,  celebrada na cidade da Praia em  23.11.2005 , aprovada para ratificação pela Resolução n.º 49/2008 , de 17.8 , da AR e  que foi assinada, além do mais ,  pelo Estado Português e pela República Federativa do Brasil .   

Essa Convenção como lei posterior revoga a lei  anterior e  como lei especial que é , vocacionada para agilizar a cooperação judiciária entre as nações que a subscreveram  , nascente de um passado histórico comum  e dos laços correspectivamente criados   ,   assume prevalência sobre aquele Tratado , por  ele se devendo regular, especificamente ,  o presente  pedido de extradição .

Donde o recurso à disciplina do MDE  e ao Tratado entre os dois países   se mostrar sem cabimento .

A petição de entrega  de AA visa assegurar o  seu julgamento por AA no processo 0802225-34.2013.4.02.501, pendente na 7ª Vara Criminal - Secção Judiciária,  do Rio de Janeiro – Brasil, por factos que tipificam  integram dois crimes de associação para o tráfico internacional de entorpecentes, previstos e punidos pelos artigos 33°, com referência ao n° 1 do artigo 40° e pelo artigo 35°, com referência aos nºs I e VII do artigo 40°, todos da Lei 11.343/2006, de 23 de Agosto, a que corresponde,  no nosso ordenamento jurídico,  o crime de tráfico de estupefacientes agravado , p . e p. pelos  art.ºs   21 e 24.º , do Dec.º_lei n.º 15/93 , de 22/1 .

Em tal processo o Exm.º Magistrado do M.º P.º  acusa o recorrente , conhecido por “  ... “ ,  ( o 6.º acusado ) , com  BB (1ºacusado), CC (2º acusado), DD (3º acusado) EE (4º acusado) FF (5º acusado), GG, vulgo El Negro (7º acusado), HH (8º acusado), II (9º acusado) e JJ (10º acusado),  de , pelo menos,  a partir de  Junho de 2012, de se terem associado ,  de forma estável e permanente , voluntária e conscientemente ,  para a prática de tráfico internacional  de estupefacientes , enviando cocaína   para Portugal , para o que se propunham  introduzi-la em sacos de gel usados  na conservação de pescado a exportar  para Portugal, a partir do Aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre - RS, após prévia  preparação e acondicionamento realizados na cidade de Rio Grande do Sul .

O recorrente , com outros ali acusados ,  também financiaram e custearam a estrutura montada para as operações de exportação sediada em Rio Grande - RS, procedendo a  sucessivos depósitos em contas correntes da empresa propriedade de um dos acusados ( o segundo ):  Mar Atlântico Comércio de Pescados Importação e Exportação, Ltda.

 E assim , na execução desse  conjunto desígnio  criminoso ,em  16 de Outubro de 2012, o recorrente  , com mais cinco ,  executaram operação de transporte, com destino a Portugal, de uma carga de corvina em cujas caixas acondicionadoras foram insertos  sacos de gel,  contendo cerca de 400 gramas de cocaína ocultados em cada caixa,   num total  de  70,592Kg distribuídos no  meio da  mercadoria, tendo sido o produto estupefaciente apreendido  por força de intervenção policial no Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre - RS;

Obedecendo , ainda ao mesmo projecto ,  no dia 1 de Novembro de 2012, o primeiro a sexto, nono e décimo acusados, agindo com vontade e consciência, em unidade de desígnios, executaram a  operação de transporte, com destino a Portugal, de carga de cocaína preparada e acondicionada em sacos de gel utilizados para conservação de corvina, despachada a partir do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre – RS,  tendo o  resultado  pericial   logo  revelado ser  cocaína seguindo o restante em acção controlada com autorização judicial até Portugal, onde foi  preso o “  AA “   e apreendidos 5,8 Kg de cocaína, camuflados nos sacos de gel que acompanhavam o pescado.

De considerar que , e em sequência   :

 O extraditando foi condenado no processo 311/12.2JELSB da Comarca de Lisboa-Norte – Loures, em Portugal, por "importação" de 5700 gramas de cocaína, por via aérea, a partir de Porto Alegre - Brasil, dissimuladas em carga que foi recuperada no terminal de carga aérea do Aeroporto de Lisboa no dia 2.11.2012.

Esses factos correspondem  aos descritos na acusação do Tribunal brasileiro como praticados pelo extraditando em conjunto com o novo e o décimo acusados em 01.11.2012: uma operação de transporte para Portugal no qual as autoridades portuguesas vieram a deter o extraditando , apreendendo  5,8 Kg de cocaína.

O recorrente invoca a violação do princípio constitucional  “ ne bis in idem “   que opera   , também,  à luz  da  Convenção   como causa de recusa da extradição , no art.º 1 .º , princípio com o significado de que pelo mesmo facto ninguém pode ser julgado duas vezes , por evidentes razões de segurança jurídica , com consagração no direito francês , desde 1791  .

O rigor do princípio exige que  se demonstre que o procurado  ainda não foi condenado , definitivamente , pelos mesmo(s )facto( s)  no Estado requerido  , nos termos do art.º 3.º n.º 1 d) , da Convenção , por razões de segurança jurídica , como obstáculo ao exercício do poder punitivo , que é irrepetível, correspondendo a um princípio de proporcionalidade , e de justiça ,  sendo respeitado no TPI , como afirmação de respeito   das liberdades e garantias .

E quando se intenta delimitar o conceito de mesmo facto ou factos   tem-se em vista o facto complexo , formado pelo tipo de ilícito  e de culpa (Neste sentido cfr. Prof. Figueiredo Dias , in  Direito Penal , Parte Geral , I , 248 )  o que leva à conclusão de que condutas parcelares integradas num conjunto não constituem razão para a não  entrega , além que representativa de   uma proibida  intromissão na jurisdição do Estado requisitante entrar na problemática da unidade e pluralidade de infracções ,  no mérito da causa ,  visto o tipo legal de crime de tráfico de estupefacientes , considerado pelos autores alemães de crime exaurido ou de empreendimento em que o crime se consuma com a prática de um só acto –cfr. Acs. deste STJ , de 25.6.2009 , in P.º n.º 1087 /09 6Y RISB.S1 e de 18.6.2008 , P.º n.º 2159/08 e Cons.º Pires da Graça ,  in Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu, págs . 69 e 71 .

É , pois , fundamental , quando se trata de definir a identidade do facto  constante da acusação e  o julgado  referi-los ao um tipo legal de crime; se o acontecimento exterior que corresponde à conduta típica  é idêntico  ; se há coincidência entre os elementos substantivos e  o acontecimento histórico descrito apreciado , está verificada a identidade –cr. Prof. Eduardo Correia , in Unidade e  Pluralidade de Infracções –Caso julgado e Poderes de cognição do Juiz , pág. 332 .

Tudo para concluir que os factos pelos quais foi julgado em Portugal , desconhecendo-se se com trânsito , não são materialmente idênticos, sequer naturalísticos  , se bem que o critério da identidade naturalística não defina a identidade , havendo que apelar a critérios normativos , no dizer de Belling  e Liu ,  op. cit. , pág. 331 .

Os factos julgados em Portugal  dizem respeito à “ importação de 5.800 grs . de cocaína ;  no Brasil são distintos ; a acusação é outra ; na acusação inserta no Pro.º do Tribunal do Rio de Janeiro , n.º  0802225-34.2013.4.02.501,  da 7ª Vara Criminal - Secção Judiciária, os factos  concitam um maior grau de culpa e de ilicitude , por respeitarem  a uma grande quantidade de cocaína (70,592Kg )  , com destino a Portugal , onde não chegaram a ser  introduzidos , por apreendidos pela Polícia Brasileira ,   prática num contexto factual também  diferenciado .

O recorrente alega ter  permanecido em Portugal , que se não deslocou ao Brasil ,  para efeitos de lhe não poder ser imputado o crime de tráfico de estupefacientes , indagação que,  “ hic et nunc “,  não cumpre indagar . O crime  de tráfico de estupefacientes , segundo o descritivo matriz , conforme o art.º 21.º do Dec.º -Lei n.º  15/93 , de 22/1, não pressupõe um contacto físico com o produto , basta a imputação adequada e alargada    dos factos previstos no tipo,  desde o deter , ao ceder , produzir  transportar , põr à venda ,   mas também  preparar,  importar , exportar, etc,    isto porque em se tratando de crime de perigo abstracto o legislador  antecipa a prática  de semelhante  ílícito para um momento anterior ao resultado material , e , por isso , enumera num vasto leque de  actos que configuram o  amplo segmento de previsão    preordenados  a   inescapável da punição .

Evidente se torna que , à luz das regras da vida e da experiência , ou seja do “ id quod plerumque accidit “ que está longe de ser necessário o recorrente  deslocar-se ao país de “ exportação desse produto ( ou de outro ) para o importar. Dúvidas não têm lugar . 

Este crime move-se , de resto,  no mundo subterrâneo dos interesses obscuros , cujos mentores se guardam das vistas , fazendo-se  interferir à distância , por razões de segurança e de não  perseguibilidade penal .  

Ora vem indiciado que o recorrente  com  outros  se associaram  com vista ao tráfico de cocaína para o nosso País , a partir do envio  por via aérea, através de engenhoso processo , de esconder a cocaína em sacos de gel , usados para conservação de partidas de peixe , corvina ,  a exportar, em caixas ,  para Portugal,  operação que  o recorrente custeou , financeiramente,  com outros , depositando dinheiro em contas bancárias e que se saldou pela sua prisão no terminal    do Aeroporto Internacional de Lisboa , após a entrada do estupefaciente em Portugal .

 O  processamento  da  elevada  quantidade de  70,592Kg , apreendida quando se achava no Aeroporto Salgado Filho , de Rio Grande do Sul  , o recorrente não foi detido  no Brasil ,  mas isso não exclui a sua comparticipação criminosa , o  elemento subjectivo  da sua co-autoria  , co- assumindo o resultado, a inferir  de uma actividade  conjunta, concertada e por si também querida , de que tinha o domínio ,  não sendo imprescindível o tomar parte em todos actos materiais de execução do crime -art.º 26.º , do CP . Ao acusar-se o recorrente que se associou para  a prática do crime e que ,  com outros acusados ,   financiou e custeou  a estrutura montada para as operações de exportação sediada em Rio Grande - RS, procedendo a  sucessivos depósitos em contas correntes da empresa propriedade de um dos acusados ( o segundo ):  Mar Atlântico Comércio de Pescados Importação e Exportação, Ltda, estes actos de execução  não deixam de ser cometidos no Brasil.

 O co-autor –art.º 26.º , do CP- na medida em que se mostre de acordo com o plano comum,  no alcance da solução global , deve ser imputada a  cada  como se sua e própria; é como se se tratasse de uma pessoa com muitas mãos , pés , muitas línguas …., no dizer de Fernanda Palma , citada no CP anotado por Miguez Garcia e Castela Rio,  172 .  

Da acusação constam com suficiência a menção dos factos,   local do crime , data e suas  condições , bem como o “ nomen juris “  ,  tanto bastando para se darem  como cumpridas as exigências  previstas no art.º 10.º , da Convenção .  

Os dois argumentos em causa não procedem .

O  recorrente  não é portador da nacionalidade portuguesa ; é estrangeiro , sem ligação à ordem jurídica nacional pelo vínculo da nacionalidade , e por isso , não se antevê obstáculo à sua entrega à Republica Federativa do Brasil  para julgamento .

Ser nacional de um Estado  é ser titular de um conjunto  de  direitos , mas também de direitos , entre os quais o de participar na defesa do Estado em caso de guerra ; a exigência da prestação de serviço militar é o mais sagrado dever a cumprir  pelos  nacionais-não já estrangeiros , afirmava o Prof.  Machado Vilela , nos primórdios do séc.XX.  

 Ora a Convenção  de Extradição   entre a mencionada comunidade de Estados propôs-se ultrapassar dificuldades , barreiras à  extradição , por ex.º  de Portugal que sempre mostrou relutância em extraditar os seus nacionais, vindo a  esbater essa proibição, quanto a eles , mercê da Revisão da CRP , de 1997,  nos casos excepcionados no art.º32.º n.º2  a) , b) e c) , da lei n.º 144/99 , de 31/8,  continua pela Convenção  a não ser obrigado a extraditar o seu nacional se residente no seu território , sendo motivo de recusa facultativa ( art.º 4 al.a ) )   nas circunstâncias aí previstas .

Mas essa recusa facultativa é uma faculdade de que beneficia , e só , o cidadão nacional , pressuposto que o recorrente não recolhe .

E não se veja nessa diferenciação  de regime  jurídico entre cidadão nacional e    estrangeiro qualquer discriminação , ofensa ao princípio da igualdade  , pese embora a CRP, nos art.ºs  13 .º e 15.º ,  asseverar igualdade direitos e deveres , porque a CRP logo   excepciona  do âmbito desse princípio os direitos de que apenas podem beneficiar os cidadãos  portugueses ,  previstos na lei e na CRP ,  –art.º 15.º n.º 1 , da CRP .  

O estatuto do estrangeiro não lhe confere , em absoluto , o direito a permanecer no nosso Pais , a não  ser extraditado  ,  e , em certos casos , a não ser expulso ,  é o comentário  dos Profs . Gomes Canotilho e Vital Moreia   , ao art.º 33.º , da CRP , ed. Coimbra ed. , 1993 .

Por fim sublinhe-se que a invocação de prejuízo à saúde  da pessoa reclamada em caso de extradição podendo ser motivo  de diferimento da entrega , ut  art.º 35.º , da Lei n.º 144/99, de 31/8 ,  como pode ser causa de  recusa facultativa não poder ser objecto de procedimento criminal em razão da idade,-art.º 4.º , da Convenção, mas este condicionalismo está fora de comprovação , não podendo ser atendido.    

Pelo exposto se decide neste Supremo Tribunal de Justiça, confirmar o Acórdão da Relação de Lisboa , e assim , negar  provimento ao recurso :   .

a) Autorizando-se  a extradição de AA para ao República Federativa do Brasil, a fim de ser julgado pelos factos que lhe são imputados na acusação deduzida contra ele no processo 0802225-34.2013.4.02.5101 que corre termos na 7ª Vara Criminal - Secção Judiciária do Rio de Janeiro .

b) Excluir dessa autorização os factos que, segundo essa acusação, ele terá praticado em 01.11.2012, pelos quais AA já foi condenado em Portugal no processo 311/12.2JELSB,  da Comarca de Lisboa-Norte – Loures.

c) A entrega às autoridades judiciárias do Brasil terá lugar , apenas ,  depois de cumprida a pena   imposta  no Processo a que se faz alusão em b)  .

Sem  tributação . Comunicações legais , incluindo ao EP , bem como à justiça do Estado requisitante .

Armindo Monteiro (Relator)

       Santos Cabral (“Vencido de acordo com declaração que junto”)

       Pereira Madeira (“Com voto de desempate a favor do Exmo. Conselheiro Relator”)