Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
161/14.1TAAMT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: RECURSO PENAL
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
DIREITO À HONRA
DIFAMAÇÃO
SENTENÇA CÍVEL
ARROLAMENTO
DIVÓRCIO
OPOSIÇÃO
FUNDAMENTO DE FACTO
JUIZ
Data do Acordão: 05/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / EXAME PRELIMINAR.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DE PERSONALIDADE – DIREITO DA FAMÍLIA / CASAMENTO / EFEITOS DO CASAMENTO QUANTO ÀS PESSOAS E AOS BENS DOS CÔNJUGES / REGIMES DE BENS / REGIME DA COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 1980, p. 426 e 439/440;
- Castro Mendes, Teoria Geral, 1967, 3.º, p. 486;
- Figueiredo Dias, em Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, (1982-1983), n.º 3697, p. 100 a 106 ; n.º 3698, p. 133 a 137 ; n.º 3699, p. 170 a 173;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, 4.ª edição, revista, 2007, p. 466;
- J. P. Frola, Das injúrias e difamações, tradução de Sousa Costa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1912, volume I, p. 318;
- Leal Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, volume II, p. 196;
- Luís Osório da Gama e Castro e Oliveira Batista, Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1924, volume III, p. 305 e 306;
- Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 1984, 2.ª edição, p. 261/2 ; 6.ª edição, 1992, p. 423/4 ; 8.ª edição, 1995, p. 656 ; 12.ª edição, 1998, p. 573;
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Novembro de 2006, p. 126;
- Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 1969, 2.º, p. 361;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1.º, p. 190;
- Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 301;
- Tiago Soares da Fonseca, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade - Um olhar sobre a jurisprudência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Lisboa, Janeiro de 2006, p. 230.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 417.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, N.º 1, 1688.º, 1722.º, N.º 2 E 1724.º, ALÍNEA A).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 26.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 10-12-1954, IN BMJ N.º 46, P. 456;
- DE 18-11-1955, IN BMJ N.º 52, P. 681;
- DE 16-10-1962, IN BMJ N.º 120, P. 354;
- DE 07-05-1980, IN BMJ N.º 297.º, P. 342;
- DE 18-09-2003, PROCESSO N.º 03B1993;
- DE 24-02-2005, PROCESSO N.º 04B4144, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-03-2007, PROCESSO N.º 06A4449, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - As palavras entendidas pela assistente e pelo MP como ofensivas da honra e reputação daquela foram proferidas numa acção cível, numa sentença que decidiu a oposição ao arrolamento. Uma sentença é uma declaração recipienda ou receptícia, não havendo dúvidas de que as palavras escritas pela arguida têm um destinatário que está presente na acção, que é parte no processo. A comunicação é, pois, directa, a relação é bipolar, não é de jeito enviesado, em tergiversação, não é feita em via indirecta, à revelia da visada. Sendo a alegada imputação de factos desonrosos feita de modo directo, dirigida à assistente (que não é terceiro), não se estaria perante uma difamação, mas antes face a uma injúria.
II - O texto onde se albergam as questionadas expressões corresponde ao que consta da fundamentação de facto e exame crítico da prova da sentença de 19 de Fevereiro de 2014, que decidiu a oposição ao arrolamento decretado em 4 de Julho de 2011, levando ao levantamento do decretado arrolamento. Está em equação uma primeira afirmação de que a assistente nunca trabalhou nem ganhou um só cêntimo na pendência do casamento, bem como uma outra afirmação no sentido de que a mesma se limita a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido.
III - Independentemente do acerto da decisão, da bondade técnica da solução que não está aqui em causa, a primeira afirmação é feita no exercício do dever de fundamentar a decisão, tendo-se para tanto, ancorado não só na dação de informação factual da requerente, como em depoimento prestado no incidente de alimentos provisórios, pelas irmãs daquela e no depoimento do irmão do requerido, aqui no que toca à exclusividade da origem do capital que frutificou. Pelo que, não estamos face a palavras desonrosas.
IV - Objecto do crime de difamação é a imputação a outrem de um facto ofensivo da honra e consideração. Este crime não é constituído apenas pelo acto material em si, mas também pelas circunstâncias que o rodeiam, pela intenção do agente e pelo fim que este teve em vista. Para a sua existência não basta a verificação do elemento objectivo ou material, antes se torna necessário que, além dele, se verifique ainda o elemento subjectivo ou ânimo de difamar, consubstanciado na vontade de ofender a honra e consideração alheias. Com a segunda expressão utilizada não quis a arguida atingir a honra e reputação da assistente, até porque no final não deixou de reportar a ajuda da mesma ao casal ao longo do tempo em que perdurou o matrimónio.
Decisão Texto Integral:
AA, ...., apresentou a participação de fls. 2 a 5, por si assinada, dirigida ao Senhor Procurador da República dos Serviços do Ministério Público de ..., contra a juíza de direito BB, em funções no ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ..., imputando-lhe a prática de crimes, p. e p. nos artigos 180.º, 181.º e 369.º do Código Penal.

       Por despacho da Exma. Procuradora Adjunta na Comarca de ..., de fls. 7/8, por carecer de competência material para dirigir o inquérito e realizar as necessárias diligências de investigação, foi ordenada a remessa dos autos de inquérito n.º 161/14.1TAAMT ao Tribunal da Relação do Porto, por ser este o competente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 12.º, n.º 3, alínea a) e n.º 6 do Código de Processo Penal e 15.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

       Após prestar declarações, a fls. 15/6/7, e na sequência destas, veio a participante, dez dias depois, aditar outros factos à queixa crime em requerimento subscrito por Mandatário, de fls. 18 a 20, realçando que a juíza teria tido clara intenção de a prejudicar, surgindo a decisão final no arrolamento como retaliação face às críticas ao seu desempenho, focando demoras processuais e protelamento das diligências na execução especial por alimentos.    

       Por despacho de 28-05-2014, a fls. 84, sem que se mostrasse comprovado o pagamento ou a concessão de isenção de taxa de justiça, a participante foi admitida a intervir nos autos como assistente. Mais tarde, entra no processo informação da Segurança Social, a fls. 190/1/2/3, datada de 25-06-2014, repetida a fls. 201/2/3 e a fls. 208/9/10 e ainda a fls. 214/5/6, onde se informa ter sido decidido que a requerente não tinha direito à obtenção de protecção jurídica nas modalidades requeridas.

       Por despacho de 2-10-2014, a fls. 195, foi ordenada a notificação da participante para explicar as razões que determinaram o não pagamento da taxa de justiça mesmo depois de lhe ter sido notificada a decisão de indeferimento, o que mereceu a resposta de fls. 199, insistência por despacho de 16-10-2014, a fls. 222, e finalmente a fls. 223/4/5/6, repetido a fls. 234 a 237, e informação de despacho datado de 20-10-2014, a conceder o benefício de protecção jurídica.

       A denunciada foi interrogada como arguida, como consta de fls. 119 a 122.

       O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto proferiu o despacho constante de fls. 126 a 130, pronunciando-se sobre se os indícios recolhidos eram susceptíveis de integrar a prática pela arguida do denunciado crime de prevaricação, embora detectando “uma certa inabilidade dos serviços judiciários nos atos que desenvolveram para alcançar, com êxito, a finalidade do arrolamento decretado” e referindo a “ineficácia do Tribunal neste caso concreto” e afastando ainda as demais imputações feitas no sentido de pretender prejudicar a participante, concluiu pela manifesta insuficiência dos indícios recolhidos quanto à verificação do crime de prevaricação ou denegação de justiça, ordenado o arquivamento dos autos nesta parte.

       No que toca às afirmações contidas na decisão de 19-02-2014, considera haver que distinguir nas palavras inseridas pela arguida, na sua decisão, duas situações.

       A primeira respeita à afirmação de que a queixosa nunca trabalhou nem ganhou um só cêntimo na pendência do casamento

       Quanto a este ponto entendeu não se indiciar a prática de qualquer crime, designadamente o de difamação, por a magistrada ter proferido tais afirmações no exercício do seu dever de fundamentar a sentença e como corolário da prova que foi produzida nos autos e que ela sintetiza em palavras imediatamente anteriores àquelas.

       A segunda respeita à parte em que afirma que a assistente se limitou a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido.

       Quanto a esta afirmação entende que a magistrada não pode invocar o seu direito de fundamentar a decisão, dado que no procedimento de arrolamento em que a mesma foi proferida não foi apurado quem gastava o dinheiro do casal nem a forma como o fazia.

       Apenas se procurou apurar a quem pertencia o dinheiro com o qual o requerido obteve os bens que se pretendia arrolar.

       Como a mencionada afirmação é objectivamente ofensiva da honra da pessoa visada, por fazer crer, em quem a ouvir, que a assistente não só vivia à custa do marido, como deliberadamente esbanjava o seu património, diz parecer-lhe indiciado neste ponto, com suficiência, um crime contra a honra, agindo a arguida com dolo eventual.

       Concluiu terem sido recolhidos indícios da prática, pela senhora magistrada arguida, de um crime de difamação, carecendo o M.º P.º de legitimidade para o exercício da acção penal, desacompanhado da competente acusação particular, determinando o cumprimento do disposto no artigo 285.º do CPP.

       Refira-se que ao longo do despacho o Exmo. PGA refere sempre arrolamento, como a fls. 127 “indeferir o pedido de arrolamento”, “decisão de indeferimento do arrolamento”, a fls. 129, in fine, “procedimento de arrolamento”, a fls. 130 “bens que se pretendia arrolar”, “decisão do arrolamento”, “contexto do arrolamento” e “decisão do arrolamento”.

       Acontece que as expressões em causa foram proferidas no âmbito da decisão que apreciando oposição ao arrolamento decretado, julgou aquela procedente, levantando o arrolamento. Por essa altura tinha havido decisão nos alimentos provisórios, peticionados na acção de divórcio, de que o arrolamento foi preliminar.  

                                                                    ***

       A assistente AA veio a fls. 139 a 143 e em original de fls. 146 a 154, deduzir acusação particular contra a arguida BB, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, p. p. nos artigos 180.º, n.º 1 e 182.º, do Código Penal e deduziu pedido cível de indemnização, pedindo a condenação da demandada no pagamento da quantia de 2.000,00 €.

                                                                  ***

       O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, a fls. 227, acompanhou a acusação particular, incluindo a modalidade de dolo directo, afastando-se da posição manifestada no despacho anterior, em que considerara apenas a formulação de dolo eventual.

                                                                  ***

       Cumprido o disposto no artigo 277.º do CPP, veio a arguida requerer a abertura de instrução, conforme consta de fls. 270 a 286, terminando por pedir seja proferido despacho de não pronúncia e arquivamento do pedido cível.

                                                                   ***

       Não houve lugar a produção de prova e teve lugar debate instrutório, como relata a acta de fls. 375/6/7.

       A assistente juntou então transcrição certificada em 27 de Janeiro de 2015 dos depoimentos das testemunhas CC, DD, EE e FF, para além de outras, prestados em 12 de Julho e 29 de Agosto de 2012, concluindo que nenhuma testemunha afirmou o que vem vertido na sentença.

       Juntou ainda certidão do requerimento de oposição ao arrolamento e do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-12-2014, que revogou a decisão recorrida.

       Na segunda sessão, o Ministério Público, conforme a acta de fls. 400, afirmou que, dados os novos elementos trazidos ao processo, entendia que teria ocorrido uma alteração não substancial dos factos imputados, consistindo a mesma no facto de ao incluir na sentença as expressões que são objecto do processo a Sra. Magistrada ter admitido como possível que estava a ofender a honra e a consideração devidas à assistente e não obstante conformou-se com tal resultado, tendo o crime sido cometido a título de dolo eventual.

       Tal alteração foi comunicada à arguida para eventual exercício do contraditório, tendo esta dispensado o prazo de resposta para a defesa.

       O M.º P.º concluiu no sentido da arguida dever ser pronunciada pelo crime de difamação praticado com dolo eventual.

       A assistente concluiu no sentido da pronúncia da arguida pelo crime de difamação de que vinha acusada.

       A arguida concluiu no sentido da não pronúncia.

       A arguida exerceu o contraditório quanto aos documentos juntos aquando do debate instrutório, nos termos constantes de fls. 379 a 381.

                                                                    ***

       Foi proferido pelo Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação do Porto, actuando como Juiz de Instrução Criminal, despacho de não pronúncia da arguida, datado de 25 de Fevereiro de 2015 e constante de fls. 387 a 399 do 2.º volume.

                                                                    ***

       O Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 402 a 410, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluídos os realces):

1. Ao contrário do decidido, as expressões: “nunca a requerente trabalhou nem ganhou um só cêntimo na pendência do casamento, outrossim limitando-se a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido” e “A requerente nunca trabalhou e todo o dinheiro que sempre gastou vinha do marido”, olhadas no seu conjunto, têm sentido pejorativo e ofensivo da honra devida à assistente, pois que a rotulam de parasita do marido.

2. Se o gastar dinheiro em abundância poderá resultar do teor dos diversos depoimentos prestados nos diversos procedimentos de natureza cível, o que é certo é que desses depoimentos não resulta de forma alguma que a assistente “se limitava” a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido. Tal juízo de valor, ao contrário do decidido, não assenta ou não assenta totalmente em factos.

3. Dizer-se, pura e simplesmente: “Por outro lado, a adequação social da expressão ou o princípio da insignificância impediria a existência do crime em causa, mesmo a considerar-se que tal expressão encerraria alguma carga pejorativa.” É puramente conclusivo, carecendo tal afirmação, em absoluto, da necessária justificação.

4. Se se pode extrair dos depoimentos parcialmente transcritos no douto despacho de não pronúncia, que a assistente gastava com abundância o dinheiro que o marido lhe dava, deles não se poderá extrair, como é bom de ver, que a assistente se limitava a gastar o dinheiro que o marido lhe dava.

Assim sendo, salvo o devido respeito, a arguida não demonstrou a verdade dos factos, pois deles extrapolou um juízo de valor que neles não tinha fundamento: que a assistente se limitava a gastar lautamente o dinheiro do marido.

5. Mas mesmo que se entendesse, por absurdo, que aquele juízo de valor referente à assistente - outrossim, limitava-se a gastar e a gastar lautamente - resultava do teor dos depoimentos prestados nos diversos procedimentos judiciais, nem por isso, a nosso ver, poderia ser formulado pela senhora magistrada aqui arguida e inserido, desnecessariamente, na fundamentação da sentença que indeferiu o arrolamento, sem sancionamento, porque, dessa forma, a senhora magistrada estava a invadir a esfera da intimidade da vida privada da referida a assistente.

6. Por outro lado, não se pode afirmar, como se faz na douta decisão sob recurso, que aquelas expressões tinham relevo na fundamentação de facto da decisão do arrolamento, pois bastaria afirmar, para que a finalidade da justificação fosse atingida, que resultava do depoimento do irmão do ex-marido da assistente que era este a única fonte de rendimento do casal.

7. Embora tivesse sido a assistente quem fez chegar ao Tribunal pormenores da sua própria situação patrimonial, nunca consentiu que alguém afirmasse que ela era uma parasita do marido, porque se limitava a gastar o dinheiro que ele lhe dava.

8. A senhora magistrada não se limitou a atuar no exercício de um poder-dever porque parece-nos manifesto que desrespeitou claramente o estatuído no artigo 607.º, do CPC, pois, ao decidir, extraiu um juízo de valor atentatório da honra e da consideração devidas à assistente, não alicerçado nos depoimentos que instruíram a ação que lhe competia decidir, nem nos depoimentos que instruíram os outros procedimentos que foram apensados, extravasando, assim, o seu poder dever de decidir, não sendo possível deixar de admitir-se que, fazendo-o, representava a possibilidade de ofender a honra e a consideração devidas à assistente e conformando-se com esse resultado.

9. Assim, a conduta da senhora magistrada arguida é passível de censura jurídico-penal, devendo, por isso, ser proferido despacho que a pronuncie como autora de um crime de difamação, com publicidade, cometido a título de dolo eventual.

      Termina pedindo a revogação do despacho sob recurso, fazendo-o substituir por outro em que se pronuncie a arguida.

                                                                ***

       A assistente AA veio interpor recurso, conforme fls. 416 a 433, de novo de fls. 437 a 454, e em original, de fls. 458 a 475, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluídos os realces):

1.ª O despacho recorrido procede ao fraccionamento das expressões utilizadas, descontextualizando-as e retirando-lhes precisamente a característica que lhes confere objectivamente uma capacidade ofensiva da integridade moral da Assistente.

2.ª O sentido objectivamente ofensivo apenas se retira de uma análise global das expressões, quando inseridas no contexto social em que a Ofendida se insere, uma vez que não está em causa a utilização do “palavrão” ou “calão” ou qualquer outra expressão tipicamente e isoladamente injuriosa.

3.ª Ao escrever “NUNCA A REQUERENTE TRABALHOU NEM GANHOU UM SÓ CÊNTIMO (...) LIMITANDO-SE A GASTAR E A GASTAR LAUTAMENTE O DINHEIRO DO MARIDO” quis e conseguiu a Mm.ª Juiz ofender a honra e consideração da Assistente, traduzindo um juízo de “mulher gastadora que não faz mais nada que esbanjar o património do marido”.

4.ª “Um só cêntimo” é uma ninharia; “limitando-se” permite concluir que a Assistente não fazia mais nada; “a gastar e a gastar lautamente” descreve a abundância e o luxo dos gastos; “o dinheiro do marido” torna-a uma dependente.

5.ª A expressão no seu conjunto, objectivamente analisada pela comunidade, apelida a Assistente de esbanjadora, estroina, estragadora, desgovernada, que não fazia mais nada a não ser gastar e que vivia “pendurada” no marido.

6.ª As expressões insertas pela Mm.ª Juiz Arguida na sua decisão encerram, objectivamente, uma “carga ofensiva” relevante e que em muito excede os limites da necessidade.

7.ª A expressão em causa não se trata de um juízo valorativo assente em factos, compatível com a função de “julgar”, pois que a forma como a Assistente utilizava o dinheiro não foi matéria levada à discussão na causa, nem pela Requerente, aqui Assistente, nem pelo Requerido, seu marido, na Oposição. Aliás, analisado o elenco dos 24 (vinte e quatro) factos dados como provados, nada consta quanto à forma como era empregue o dinheiro.

8.ª Descrever uma mulher como alguém “que se limita a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido” não é insignificante, nem há qualquer adequação desta conduta, pois a mesma não é socialmente tolerável, sendo antes rejeitada pela comunidade, e por qualquer um dos seus membros.

9.ª A expressão foi antes adequada a ofender a Assistente com conhecimento e vontade da sua autora, a Mm.ª Juiz Arguida, pois foi proferida num contexto em que esta reclamava naquele processo, além da morosidade das diligências necessárias a acautelar o património, o desaparecimento de cerca de DOIS MILHÕES DE EUROS de contas conjuntas arroladas, por “inércia do sistema judicial”.

10.ª Com aquelas expressões, a Mm.ª Juiz imputou à Assistente um rótulo de “mulher esbanjadora”, num espaço solene - o Tribunal - o que é suficiente desonroso, enquanto facto inequívoco, grave e lesivo de ponto a assumir uma “ressonância pessoal e social” que impõe a aplicação de uma pena e a intervenção do Direito Penal.

11.ª Não podia a Arguida reputar, em boa-fé, aquele juízo como verdadeiro pois que, pelo mesmo punho havia já escrito “Nunca exerceu qualquer profissão remunerada e dedicou a sua vida de casada a cuidar dos filhos, do marido e da casa”, e “Levava os filhos ao colégio e ao médico, ajudava-os a fazer os trabalhos de casa e mantinha a casa de morada de família em ordem, devidamente arrumada e limpa e as refeições atempadamente tratadas e bem confeccionadas.” e ainda que “réu entregava-lhe mensalmente, nos últimos anos, € 3.000 Euros”, com o que fazia face às despesas do lar e dos filhos (...). Entre esta decisão, de 22/03/2013 (proferida no incidente de fixação de alimentos), e a que encerra a descrição da Assistente como uma “mulher que se limita a gastar lautamente o dinheiro do marido”, de 19/02/2014, não teve a Mm.ª Juiz conhecimento de quaisquer novos factos que pudessem fazer evoluir o conhecimento da situação por parte da Mma Juiz Arguida.

12- A análise sobre os gastos do casal na pendência do casamento e certamente acordados ou pelo menos consentidos pelos cônjuges ao longo de cerca de três décadas de casamento e vida em comum, ou a forma como a Assistente gastava dinheiro, são dados manifestamente irrelevantes para uma decisão de manter ou revogar um arrolamento de bens do casal. Num arrolamento pretende-se acautelar o que existe, e não aquilo que eventualmente foi gasto. É de tal forma irrelevante que não foi matéria alegada, nem pela Requerente, nem pelo Requerido, com a sua Oposição e, assim, não consta da matéria de facto dada ou não como provada naquela decisão.

13.ª- As expressões são direccionadas para a personalidade da Assistente, apodando-a de gastadora. A personalidade encerra o domínio da privacidade de cas[d]a um. Nunca a Assistente consentiu na avaliação, por parte da Mm.ª Juiz, da forma como aplicava o dinheiro, tanto assim que foi matéria que as partes não conduziram ao processo, muito menos na providência cautelar de arrolamento.

14.ª No apenso em que porventura poderia ter esmiuçado a questão dos gastos da Assistente - a providência de alimentos - a Mma Juiz, e aí muito bem, limitou-se à constatação de factos objectivos, o que a levou a dar como demonstrado que “Nunca exerceu qualquer profissão remunerada e dedicou a sua vida de casada a cuidar dos filhos, do marido e da casa.”, e levava os filhos ao colégio e ao médico, ajudava-os a fazer os trabalhos de casa e mantinha a casa de morada de família em ordem, devidamente arrumada e limpa e as refeições atempadamente tratadas e bem confeccionadas.” e ainda que “réu entregava-lhe mensalmente, nos últimos anos, € 3.000 Euros”, com o que fazia face às despesas do lar e dos filhos (...)

15.ª Ao proferir as ditas expressões a Mm.ª Juiz não agiu nem no exercício de um direito, nem no cumprimento de um dever imposto por lei. Aliás, ao fazê-lo, violou as regras de urbanidade e de respeito para com um sujeito processual.

16.ª O dever de decidir aplica-se aos factos alegados pelas partes e, eventualmente, a outros necessários à decisão a tomar, o que, como vimos, aqui não ocorre.

17.ª O distanciamento na apreciação dos factos deveria impedir a Mma Juiz Arguida de tecer considerações sobre os hábitos consumistas da Assistente ou sobre de quem é que era o dinheiro auferido pelo marido da Assistente no seu trabalho - o que até fez de forma errada, já que, como decorre do art.° 1724° do Código Civil, o produto do trabalho dos cônjuges integra a comunhão de bens.

18.ª As expressões produzidas pela Mma Juiz Arguida são objectiva e subjectivamente integradoras do tipo legal do crime que lhe foi imputado na acusação particular formulada.

19.ª Justifica-se, pois, a intervenção do direito penal por se indiciar suficientemente, já nesta fase processual, a prática pela Arguida dos factos objectiva e subjectivamente integradores do crime de difamação, prevendo-se, com acentuado grau de probabilidade, que, após a sua plena discussão em julgamento, se irão tornar em juízos de certeza idóneos a conduzir à condenação da Arguida.

      Termina pedindo a revogação da decisão de não pronúncia e sua substituição por outra que pronuncie a arguida.

                                                                    ***

      Por despacho de fls. 481 foram admitidos ambos os recursos.

                                                                    ***

      A arguida apresentou contra alegações, conforme fls. 485 a 497, que rematou com as seguintes conclusões (em transcrição integral e realces do texto):

(i) Não demonstram os Recorrentes qual o momento em que existe a intenção, ainda que eventual, de ofender a honra ou consideração da Recorrente, e, por essa razão, não está

preenchido o tipo subjetivo do crime de difamação;

(ii) O fim visado com as afirmações proferidas foi o de expor e explicar objetivamente a opção decisória de levantar o arrolamento, por não poderem estar em causa bens comuns, já que toda a fonte produtora do dinheiro foi levada para o casamento e nele exercida apenas pelo marido, sempre e só por reporte a trabalho remunerado, não se vislumbrando na sentença intenção de ofender a honra e consideração da Recorrente, ou sequer, que tal tivesse sido representado como possível, tanto mais que na sentença de alimentos provisórios a Recorrida afirmou que a Recorrente cuidava dos filhos e da casa, não estando obviamente em causa, essa vertente do trabalho doméstico, na decisão sobre o levantamento do arrolamento;

(iii) De qualquer forma, se assim não se entender, verificam-se as duas causas de exclusão de ilicitude previstas no artigo 180°, n.º 2, do CP;

(iv) Desde logo porque a Recorrida formulou os juizos sub judice no cumprimento do seu dever de julgar, sendo que as afirmações tidas como ofensivas, mais não são do que a avaliação do pedaço de vida que a própria Recorrente quis submeter a juízo, um dos passos necessários para fundamentar a decisão de levantamento do arrolamento;

(v) Mais se verifica que a segunda causa de exclusão da ilicitude, concretamente, se o “agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”, dado que as expressões em causa foram baseadas e suportadas em vários depoimentos, sem esquecer a própria confissão da Recorrente de que nunca trabalhou (e para efeitos de arrolamento/levantamento do mesmo, só o trabalho remunerado interessa) e o relato da sua irmã que descreveu a sua vida de casada como faustosa, sinónimo de uma vida lauta. Significa isto que as afirmações ou expressões utilizadas estão apenas e só sustentadas por critérios objetivos dos elementos presentes no processo, e que, salvo melhor opinião, ficaram provadas no decurso da fase probatória do processo;

(vi) Não poderá, além do mais, colher o argumento de que os factos se reportavam à intimidade da vida privada da Recorrente porquanto: (i) os factos se referem à vida em sociedade da Recorrente, mormente quanto ao modo como vivia fora de casa e se relacionava economicamente com as outras pessoas; (ii) a revelação não foi feita num contexto público (no sentido comum), mas sim no âmbito de uma sentença judicial notificada às partes; e (iii) o seu relato é justificado pois foi a Recorrente que expôs ao Tribunal os aspetos económicos e financeiros da sua vida;

(vii) A Recorrida, na sua qualidade de Juíza, a Recorrida não poderá ser responsabilizada pelas suas decisões, salvo naturalmente as devidas exceções, não aplicáveis neste caso, como resulta do artigo 216º, nº 2, da CRP e do artigo 4º, nº 1, do EMJ;

(viii) Os presentes recursos devem ser julgados improcedentes porque conflituam claramente com o Princípio da unidade da ordem jurídica, plasmado no artigo 31°, nº 1, do CP, sendo o caso concreto nitidamente configurável com uma das causas de exclusão da ilicitude elencadas no nº 2 do referido artigo mais concretamente na sua alínea c);

(ix) As interpretações que são feitas pelos Recorrentes acerca das expressões utilizadas pela Recorrida são extrapolações do que foi efetivamente afirmado, nunca tendo a Recorrida pretendido apelidar a Recorrente de parasita, esbanjadora, estroina, estragadora, desgovernada, que não fazia mais nada a não ser gastar e que vivia “pendurada” no marido;

(x) Uma hipotética procedência do atual pedido de responsabilização criminal conflituaria com e violaria claramente estes princípios garantísticos da atividade dos juízes, titulares de um órgão de soberania, contaminando necessariamente o sentido pleno de um Estado de Direito Democrático.

       Termina pedindo que os recursos sejam julgados improcedentes, com as legais consequências.

                                                                    ***

       A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu douto parecer de fls. 507 a 515, referindo que “No contexto em que foram formuladas expressamente as interpretações sobre a vida da assistente parece-nos não poder afastar de imediato a existência de dolo ainda que eventual e a consequente prática do crime de difamação”. Acompanhando o recurso do M.º P.º, termina pronunciando-se no sentido de poder merecer provimento o recurso do Ministério Público e da assistente, devendo ser alterado o despacho de não pronúncia para despacho de pronúncia da arguida.

                                                                    ***

       Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a arguida respondeu conforme fls. 519 a 524, alegando deverem improceder as razões aduzidas no douto parecer do Ministério Público, devendo os recursos ser julgados improcedentes e a decisão instrutória mantida na íntegra.

                                                                    ***

 

       Apreciando.

       Em causa está a imputação à arguida de um crime de difamação, consubstanciado em escrito em sentença proferida no âmbito de oposição do requerido a arrolamento intentado pela requerente do procedimento cautelar, ora assistente.

       As palavras escritas ora em equação foram produzidas pela juíza arguida na decisão final proferida em 19-02-2014 na oposição ao arrolamento, em que declara sem efeito e revoga o arrolamento decretado, ordenando o seu levantamento sobre todos os bens, imóveis e contas bancárias à excepção do prédio rústico referido em 12 (denominado ... e descrito sob o n.º 823 ...).

       Difamação – O conceito - O contributo da sociedade civil 

       No Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, Lello Universal, em dois volumes, Lello & Irmão, Editores, 1980, Porto, de acordo com a Livraria Larousse, volume primeiro, a págs. 752, consta:

       Difamação (Latim diffamatione) - Acto ou efeito de difamar. Descrédito. Calúnia.

       A difamação é a acção de difamar ou desacreditar alguém, de viva voz, por escrito ou desenho publicado, ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe factos ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação (Cód. Pen., arts. 407 e segs.)

       Difamar: proveniente do latim diffamare. “Tirar a boa fama ou o crédito a. Desacreditar publicamente. Caluniar: Difamar um adversário político

       Em contraponto, pág. 435, define Calúnia - substantivo feminino oriundo do latim calumnia, como “Imputação falsa; ofensiva da reputação e crédito de alguém: A calúnia é a arma dos cobardes”.

       Em termos de enciclopédia, avançava-se com o seguinte: “Chamava-se calúnia o facto de se proceder com intenção vexatória, sabendo-se sem direito e só se esperando vencer, graças ao erro ou à iniquidade do juiz. A calúnia era punida quando formava a base de uma acusação judiciária. A pena era, na origem, a de talião, em caso da acusação capital, ou as de deportação ou de degredo. Mais tarde, a pena tornou-se arbitrária e foi proporcionada às circunstâncias. Na actualidade está compreendida juridicamente em difamação e injúria”.

       Caluniador como adjectivo: “Que calunia”, e como sm: “Aquele que calunia”: Um vil caluniador?   

       De seguida, define “Caluniar” como “Ofender com calúnias. Difamar por meio de acusações conscientemente falsas”.

       Chama à colação a frase de D. Basílio, no Barbeiro de Sevilha, onde se diz: “Caluniai, caluniai, que da calúnia sempre alguma coisa fica”.

       No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, 2001, sendo coordenador João Malaca Casteleira, I volume – A-F, na pág.1252, consta:

       Difamação – Acção de por em causa, publicamente, e por qualquer meio, a honra ou a reputação de alguém; acto ou efeito de difamar. = Calúnia. Detratação.

       Difamador: que desacredita, calunia publicamente alguém, pondo em causa a sua honra ou reputação; que difama.

 

                                                               ******

       Estando em causa a honra e reputação/consideração da assistente, começar-se-á por abordar a caracterização do crime imputado e o bem jurídico tutelado pelo tipo.  

      Bem jurídico tutelado

       A decisão acerca do carácter lesivo da honra/reputação da assistente, face ao escrito da autoria da arguida, ora em causa, sempre dependerá, em primeira linha, da determinação do bem jurídico protegido pela incriminação do imputado crime de difamação.

       Antes, porém, vejamos a configuração da honra como um dos direitos que enformam os direitos de personalidade.

 Honra e consideração/reputação como direito de personalidade

      

       O direito ao bom nome e reputação é um direito fundamental que encontra assento no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República, que estabelece:

       1 – A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

      O artigo 26.º, n.º 1, da lei fundamental consagra, de entre outros vários (oito) direitos de personalidade, o direito «ao bom nome e reputação». Como explicitação directa do princípio da dignidade humana integra este direito um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua protecção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa. O seu conteúdo é constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.

      Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, 4.ª edição, revista, 2007, pág. 466, “O direito ao bom nome e reputação consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social, mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação (cfr. Cód. Penal, arts. 164.º e 165.º). Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente, a liberdade de informação e de imprensa).

      [A referência aos preceitos indicados não se justifica desde 1 de Janeiro de 1983, devendo entender-se como sendo os artigos 180.º e 181.º].

O direito ao bom nome e reputação constitui um direito de personalidade, que encontra tutela civil no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, a celebrar o Cinquentenário, que estabelece:

       “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

       O n.º 2 do artigo 70.º estabelece que para além da responsabilidade civil, a pessoa ameaçada ou ofendida, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já consumada.

       Deste preceito retiram-se três formas de tutela, alternativas ou cumulativas, a saber:

       Responsabilidade civil; Providências preventivas e Providências atenuantes.

       (Assim, Tiago Soares da Fonseca, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Lisboa, Janeiro de 2006, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade - Um olhar sobre a jurisprudência, pág. 230).

       Para Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Novembro de 2006, pág. 126, “Os meios de tutela civil do direito subjectivo de personalidade são de duas ordens: as providências especiais de defesa da personalidade e a responsabilidade civil. A págs. 127, refere que da redacção do n.º 2 são de retirar três linhas de protecção dos direitos de personalidade: a responsabilidade civil, a tutela preventiva e a atenuação do possível, não estando no mesmo plano a responsabilidade civil e os remédios directos, sendo as providências decretadas em processo especial de jurisdição voluntária, regulado nos artigos 1474.º e 1475.º do CPC. [Actualmente, artigos 878.º, 879.º e 880.º do CPC em vigor].

       Disposição específica atinente à ofensa do crédito ou bom nome é o artigo 484.º do Código Civil, que estabelece: “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”.

       A afirmação ou divulgação de factos capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, constitui facto antijurídico especialmente previsto na lei, a par dos simples conselhos, recomendações ou informações, para além das omissões, como pressuposto da responsabilidade civil - Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 1980, págs. 426 e 439/440.

       Quanto à referência a pessoa colectiva, cfr. Pais de Vasconcelos, loc. cit.,  pág. 126.

 

      O crime de difamação na lei e na doutrina

       Como se colhe de Luís Osório da Gama e Castro e Oliveira Batista, Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1924, volume III, pág. 306, “Em direito Romano a palavra injúria pela lei das XII tábuas compreendia somente as ofensas corporais, depois estendeu-se a toda a ofensa intencional da pessoa e foram especialmente mencionadas o pulsare, o verberare e o domum vi introire, mas abrangia todas as ofensas ao corpo, como à liberdade, à honra e à situação jurídica.

       A palavra honra não tinha a compreensão que actualmente tem, pois significava pleno gozo dos direitos do cidadão Romano.

       O direito Romano não conheceu uma distinção entre os crimes de injúria semelhante à usada actualmente nos Códigos”.

 

Apenas as injúrias estavam previstas no Código Criminal, “intentado pela Rainha D. Maria I., com as provas”, sendo autor Pascoal José de Melo Freire, 3.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1844.

       Como consta das Provas (Provas em que o Autor do Código fundou as doutrinas da obra), pág. 113, as Ordenações desconheciam, não definiam, o verdadeiro conceito e ideia do que é injúria e suas diferentes espécies, e muito menos, penas fixas e certas contra os injuriantes.

       Como aí se dá notícia “A Lei Novíssima de 15 de Março de 1751 sobre o delicto dos cornos à porta dos homens casados só diz que é caso de devassa; mas sobre a sua pena guarda segredo”.

       Querendo suprir este e outros defeitos, disse o Autor no título [XXXV] “o que era injuria em geral e suas espécies, com diferença da pura e simples maledicência, verbal e real, á qual se reduz a que se faz por escrito ou pintura; simples e qualificada; em presença ou em ausência, assinando a cada a competente pena”.

       No Título XXXV - Das injúrias, dizia-se:

        “Chama-se injuria neste logar tudo o que se diz, faz, ou escreve com animo de offender, doestar, ou injuriar alguma pessoa, assim na sua presença, como em ausência”.

 

       As espécies de injúrias, respectivas penas e modo de execução, constam de 22 (vinte e dois) parágrafos, de que se extrai o teor dos cinco primeiros:

§ 1.º - A injuria, commetida directamente contra os filhos ou mulher, se julga também feita ao pai ou marido; e por elles póde ser prosseguida. 

§ 2.º - Os outros parentes, por mais conjunctos que sejão, e muito menos os estranhos, exceptos os tutores ou curadores a respeito dos menores entregues á sua guarda e tutela, não podem demandar as injurias alheias.

§ 3.º - O que se faz ou diz por brinco ou correcção dentro dos limites do officio e poder de cada um, não injuria.

§ 4.º - Nenhum feito, acção, ou palavras se devem dizer injuriosas, não sendo feitas e ditas com esse animo, ou podendo ter outra interpretação. 

§ 5.º - O que disser injurias com animo de injuriar, ainda que refira o seu auctor, e seja verdade o que diz, sempre se castigará, se não forem as injurias públicas e sabidas de todos.

       Código Penal de 1852/1886

       No Código Penal de 1886, aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886, usando da autorização concedida ao Governo pelo n.º 5 da carta de lei de 14 de Junho de 1884, passaram a estar previstos os crimes de difamação, no artigo 407.º, e de injúrias, no artigo 410.º.

       Integrado no Capítulo V “Crimes contra a honra, difamação, calúnia e injúria” do Título IV – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Dos crimes em especial, estabelecia o

                                                     

                                                          Artigo 407.º

                                                         (Difamação)

       “Se alguém difamar outrem publicamente, de viva voz, por escrito ou desenho publicado ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto ofensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação, será condenado a prisão até quatro meses e multa até um mês”.

       A redacção foi introduzida pela Nova Reforma Penal, de 1884, (aprovada por Decreto de 14 de Junho de 1884 e publicada por Carta de Lei da mesma data) em substituição do artigo 407.º do Código Penal de 1852 (aprovado pelo Decreto com força de lei de 10 de Dezembro de 1852), que dizia:

       “Se alguem diffamar outrem publicamente, de viva voz, ou por escripto publicado, ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto offensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação, será condemnado a prisão por seis dias a seis mezes, e mulcta correspondente”.

        (Texto extraído do Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 228. No Código Penal, oitava edição official, Imprensa Nacional, 1882, o texto é semelhante, com a única diferença de multa em vez de mulcta).

       Código Penal de 1982

   

       Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor, de acordo com o artigo 2.º deste diploma legal, em 1 de Janeiro de 1983.

        Integrado no Capítulo V “Crimes contra a honra” do Título I – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Parte especial, estabelecia o                                                     

                                                          Artigo 164.º

                                                           (Difamação)

1 - Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, será punido com prisão até 6 meses e multa até 50 dias.

2 – O agente não será punido:

a) Quando a imputação for feita para realizar o interesse público legítimo ou por qualquer outra justa causa;

b) Prove a verdade da mesma imputação ou tenha fundamento sério para, em boa fé, a reputar como verdadeira.

3 – A boa fé exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso imponham, sobre a verdade da imputação.

4 – Quando a imputação for de facto que constitua crime, será também admissível a prova, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado. 

Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 1984, 2.ª edição, págs. 261/2 e na 6.ª edição, 1992, págs. 423/4, (do mesmo modo mantida na anotação 3 na 8.ª edição, 1995, já face ao artigo 180.º, a págs. 656, bem como na 12.ª edição, 1998, pág. 573), afirma:

       “Há profundas divergências entre este artigo e o seguinte, relativo ao crime de injúrias, e os correspondentes artigos do código anterior (407.º e segs.). Assim, enquanto, por um lado, o código anterior fazia assentar a distinção entre difamação e injúrias no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, seguiu-se agora como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiros e sem a presença do ofendido, ou perante o ofendido. Por outro lado, enquanto o Código anterior não admitia, como princípio geral, a prova das imputações feitas (art. 408.º), parte-se agora do princípio oposto, embora com algumas excepções (n.º 3). Esta última alteração justificou-a o autor do Projecto, Prof. Eduardo Correia, com a ideia de que a paz social – que numa visão superficial deveria impor a proibição da prova – não deve ser conseguida com o sacrifício da verdade nas relações sociais, aliás a única base viável de uma paz autêntica entre os homens. Neste ponto, o Código seguiu agora uma tendência que se tinha sentido na moderna legislação, particularmente de imprensa. (Anotação presente na 18.ª edição, 2007, pág. 666).

       Adianta ainda: “3. Para além das diferenças já assinaladas, nota-se agora uma maior e mais pormenorizada descrição das condutas integradoras do ilícito, particularmente a referência à imputação do facto ofensivo sob a forma de suspeita, o que virá permitir mais fácil incriminação de condutas reprováveis, como as imputações indirectas e outras, sabendo-se, como se sabe, que aqui são usados artifícios e camuflagens para encobrir difamações e injúrias.

       Dentro desta orientação, ainda a consagração expressa de que a boa fé se exclui quando o agente não cumpriu o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.

      O artigo previa tão somente as difamações verbais, contendo o artigo 166.º outros meios de execução equiparáveis.

                                                            Artigo 166.º

                                         (Equiparação à difamação ou injúria)

À difamação ou injúria verbais serão equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

       Código Penal de 1995

       Com a revisão de 1995 operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 1 de Outubro seguinte, os crimes contra a honra foram deslocalizados.

       Integrado no Capítulo VI “Dos crimes contra a honra” do Título I – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Parte especial, passou a estabelecer o                                                     

                               

                                                         Artigo 180.º

                                                         (Difamação)

1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º deste Código, o disposto no número anterior não se aplica tratando-se da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

5 – Quando a imputação for de facto que constitua crime, é também admissível a prova da verdade da imputação, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado. 

                                                         

Artigo 182.º

                                                        (Equiparação)

À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

         Revisão de 1998

       Os artigos 180.º e 181.º foram alterados pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, que operou a 4.ª alteração ao Código Penal, sendo que, no que ora interessa, foi alterado o n.º 3 e revogado o n.º 5 do artigo 180.º, ficando a estabelecer assim:

                                                          Artigo 180.º

                                                         (Difamação)

1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa - fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

                                                                  *****

       Quando cometidos por meio de imprensa, os crimes de difamação e injúria eram considerados abuso de liberdade de imprensa, no termos dos artigos 10.º, 11.º e 13.º a 18.º da lei de liberdade de imprensa, aprovada pelo Decreto n.º 12.008, de 29-07-1926.

       Mais tarde, os abusos de liberdade de imprensa passaram a estar previstos no Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 181/76, de 9 de Março e pela Lei n.º 13/78, de 21 de Março prevendo crimes de abuso de liberdade de imprensa por difamação e injúria nos artigos 25.º, 26.º, 27.º, 28.º e 29.º.

       Actualmente rege a Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, rectificada pela Declaração n.º 9/99, de 4 de Março, e alterada pelas Leis n.º 18/03, de 211 de Junho, n.º 19/12, de 8 de Maio e n.º 78/2015, de 29 de Julho, prevendo a responsabilidade criminal nos artigos 30.º a 32.º   

                                                                *****

      Vistas as soluções legislativas, passemos à

 

       Doutrina

       Começar-se-á por apontar a resposta a uma consulta feita por um assinante à Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 41.º, n.º 1749 a 1787 (1908/1909), a qual dá nota das mudanças de paradigma do legislador, por onde se vê que a solução de 1982 já anteriormente havia sido adoptada.

       Numa primeira consulta, colocava-se a questão de saber se os crimes de injúria e difamação podiam ser cometidos por meio de carta missiva fechada, tendo a resposta sido positiva (referida RLJ, n.º 1769, a págs. 330/2).

       Numa segunda consulta a questão posta consistia em saber se as expressões contidas poderiam ser consideradas injuriosas.

       Na resposta, contida no n.º 1771, fazendo págs. 359 a 361, pode ler-se: “O critério diferencial entre a Difamação e a Injúria é o de o facto imputado ser determinado no primeiro crime e indeterminado no segundo”.

       De seguida, afirma-se: “Admitiu, assim, o nosso Código um critério de distinção entre a injúria e a difamação geralmente seguido pelas legislações modernas. Foram, pois, abandonados o de terem sido pronunciadas as palavras ofensivas na presença ou na ausência do ofendido, havendo injúria no primeiro caso e difamação no segundo, e o de se verificar ou não a publicidade, tendo lugar a difamação no primeiro caso e injúria no segundo”. (…)

       Para que o facto seja determinado não se torna necessário que ele se encontre especificado com todas as circunstâncias de tempo, lugar, modo, etc., pois a imputação da difamação contrapõe-se à vaga e genérica da injúria, não se tornando por isso necessário que o facto imputado seja determinado com todas as suas circunstâncias.

       A honra refere-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter, ao passo que a consideração se refere ao património do bom nome, de crédito e de confiança que cada um pode ter adquirido e que pode ser lesado sem se ofender a honra.
       A honra é, pois, a essência da personalidade humana, ao passo que a consideração é o seu aspecto exterior e superficial, pois provem do juízo em que somos tidos pelos nossos semelhantes.      

       J. P. Frola, Das injúrias e difamações, tradução de Sousa Costa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1912, volume I, pág. 318, afirmava: “A palavra irreverente pensada, e pelo espírito desejada, quer irrompa dos lábios, ou caia da pena, ou saia da oficina do tipografo, atingindo a pessoa a quem se refere, tem como resultado afectá-la na honra, na reputação ou no decoro.

      A honra pode com os Romanos definir-se: illesae dignitatis status, moribus ac legibus comprobatus; e nas relações externas, honrado é o homem que aos olhos dos outros se apresenta justo e íntegro, fiel aos bons costumes e às leis, observador das três regras fundamentais da moralidade: honeste vivereneminem laederejus suum cuique tribuere.

      A reputação é a auréola de estima ou reverência que em torno do homem se forma pelos seus dotes de homem e de cidadão e em alguns casos de profissional, relativamente aos seus méritos e talentos.   

      Logo, a reputação tem significado mais extenso do que a honra: pois que, alguém pode ser ofendido na reputação, ou seja, na estima que goza, ou como homem publico, ou como profissional, sem que seja lesado na sua honra”.

       Luís Osório da Gama e Castro e Oliveira Batista, Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1924, volume III, ao abrir a anotação ao Capítulo V, relativo a Crimes contra a honra, difamação, calúnia e injúria, a págs. 305/6, afirma: 

       “A honra ó o valor que tem uma pessoa em virtude das suas qualidades e do cumprimento dos seus deveres morais, sociais o legais. — Vid. M. Allfeld pág. 368; Erbermayer pág. 515 e Janka pág. 2l5.

      Mas isto é a honra em sentido intrínseco e esta não pode ser violada ou ofendida.

      Em sentido jurídico a honra deve consistir na opinião que os outros teem dêsse valor, pois que é essa opinião que pode ser modificada pelos delitos de injúria. — Vid. Liszt, pág. 349 e 2.º 61; M. Allfeld pág. 368.

      Em sentido subjetivo a honra é o conhecimento daquele valor e a vontade de o conservar. — Erbermayer pág. 517; M. Allfeld pág 368.

      Na noção de honra não se compreende portanto só o valor moral, mas também o valor social e por isso além da honra geral pode também haver uma honra social, determinada pela posição social do indivíduo. Daqui provém a justificação da honra de classe. — Vid. Liszt pág. 349 e 2.º 61; M. Allfeld pág. 368; Erbermayer pág. 517.

      A honra deriva não só das qualidades do indivíduo, mas do cumprimento dos seus deveres; àquela dá-se mais propriamente o nome de honra e a esta o de consideração.

      A honra refere-se propriamente á probidade, à retidão, à lealdade, ao caráter, ao passo que a consideração se refere ao património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido e que pode ser lesado sem ofender a honra. A honra é pois a essência da personalidade humana, ao passo que a consideração é o seu aspeto exterior e superficial, pois provêm do juízo em que somos tidos pelos nossos semelhantes — Rev. Leg. Jur. 41.º 360; Frola 1.° 138.

      A consideração entende-se especialmente da estima que cada um pode ter adquirido no estado que exerce, estima que é para ele uma propriedade preciosa e que a difamação poderia atacar sem ofender a sua honra: porque um homem honrado podo não ser difamado na sua honra, mas pode sê-lo nas outras qualidades morais que o fazem considerar na opinião pública como bom negociante, bom advogado, bom médico, etc. — Jordão 4.º 207.

      Estas incriminações protegem a honra no seu dúplice aspeto de sentimento da própria dignidade pessoal (honra subjetiva-dignitas) e de consideração social por parte da generalidade dos outros homens (honra objetiva, bom nome, estima, fama, reputação) e portanto ainda das possibilidades que derivam de uma boa reputação, de gozar de certas vantagens materiais (lado material da honra, confiança pessoal). — A. Rocco Og. del Reat. pág. 589.

      Mediante as incriminações dos deditos de difamação e do injúria a lei tutela o bem jurídico e complexivo da inviolabilidade da personalidade moral, quo se subdistingue nos bens da comum simpatia social, da honra, da reputação e do decôro. Quando se diz que a lei penal com as incriminações de que falamos tutela a honra das pessoas, afirma-se uma coisa duplamente inexata, quer porque a proteção penal não diz respeito só à honra, quer porque se atende ainda àqueles que não teem honra ainda em sentido moral. — Manzini 7.º 294.

      A honra, compreendendo o decôro e a reputação, como a liberdade, não é um direito subjetivo, mas um estado negativo (ausência de culpas morais, ou ainda simplesmente ausência da obrigação de se sujeitar a uma imoputação ou desqualificação), protegido pelo direito objetivo, que só pode dar lugar a direitos individuais quando venha positivamente desconhecido por qualquer pessoa. A lei penal tutela nos indivíduos o interesse concernente à honra, garantindo-o contra aquelas agressões que diminuem ou destruem a condição favorável relativa ao dito estado. (…)

      A dignidade é a qualidade absoluta da pessoa humana pela qual em todo o indivíduo é respeitada a própria natureza humana. A boa fama é o valor moral do indivíduo na consciência dos outros.

      A ofensa à honra não é uma violação daquele valor, mas uma manifestação de desistima dele que pode influir na opinião que os outros dele teem.

      A ofensa é a agressão sobre a honra de outrem mediante a exteriorização intencional e ilegal de menos prezo ou desprezo.

      A ofensa é a manifestação da vontade mediante a qual alguém exterioriza injustificadamente o menosprezo por outrem. 

       A propósito do termo genérico injúria, a págs. 308, afirma:

       “A injúria divide-se em difamação e injúria propriamente dita, conforme há ou não atribuição de um fato determinado, conforme se faz perante os outros uma apreciação depreciativa do valor moral do indivíduo, ou se apresenta um fato que determina nos outros esse julgamento depreciativo. (…)

 A difamação também se divide em calúnia e difamação propriamente dita, conforme são falsos, ou se não provam que o sejam, os fatos imputados”. 

      Ao comentar o artigo 407.º, na pág. 310, afirma: “Este artigo protege a honra e consideração de uma pessoa contra a imputação a alguém de fatos ofensivos da sua honra e consideração, assim como a reprodução da mesma imputação, desde que esses fatos sejam acompanhados de publicidade.

       Objecto da tutela penal é o interesse público relativo ao bem jurídico individual de incensurabilidade moral, enquanto a lei reconhece a todo o indivíduo o direito de não ser deminuido na avaliação ético-social da sua personalidade pela maledicência dos outros.

       Trata-se de um delito de perigo, não é necessária a efectivação de um dano, mas também esse dano não é excluído.

        Nem o direito Romano, nem a nossa antiga legislação consideraram especialmente o crime consistente em atribuir a alguém um determinado fato ofensivo da sua honra e consideração”, parecendo ter sido fonte deste artigo o artigo 13.º da lei Francesa de 17 de Maio de 1819.

José Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92.º (1959-1960), debruçou-se sobre o tema em Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria, n.º 3152, págs. 164 a 168, n.º 3153, págs. 180 a 185, n.º 3154, págs. 196 a 202 e n.º 3155, págs. 213 a 216.

      A págs. 164, versando os elementos constitutivos da difamação e injúria, diz que dentre eles são essenciais: a imputação a outrem de factos concretos e determinados, ofensivos da sua honra e consideração, como, por exemplo, dizer do ofendido que praticou certo desvio ou dissipação de dinheiro do Estado (difamação, art. 405.º). Ou então a afirmação genérica de que ele procede por forma reprovável (injúria, art. 410.º). É o que acontecerá, por exemplo se alguém diz de outrem que ele é um ladrão, um desavergonhado, um imoral.

      Há um elemento comum à difamação e à injúria: é que estas ofendem o sentimento da honra ou a reputação de outrem, isto é, as atingem ou podem atingir.

      A lei não exige como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento de honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Trata-se indubitavelmente de crimes de perigo, isto é, daqueles em que para a consumação não é necessário que se produza concretamente um dano.

A págs. 167 refere que “ (…) nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível

      Há pessoas com um amor próprio tal, com uma estima tão grande pelo eu, atribuindo um valor de tal maneira excessivo àquilo que possa tocá-los e ainda ao que dizem ou pensam os outros, que se consideram ofendidos por palavras ou actos que, para a generalidade das pessoas, não constituiriam ofensa alguma. Neste caso, não deve considerar-se existente qualquer difamação ou injúria.

        Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos, não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”.

      “Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”. 

      A págs. 167/8 sintetiza: As difamações e injúrias têm como objecto jurídico as duas ordens de interesses que se exprimem pelas palavras honra e consideração.

     A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale.

     A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público.

     A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente de um ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo”.

Adriano de Cupis, Os Direitos da Personalidade, Colecção «Doutrina», Livraria Morais Editora, Lisboa, 1961, com tradução de Adriano Vera Jardim e António Miguel Caeiro, págs. 111/2, considera o direito à honra como primário, em ordem de importância, entre aqueles direitos da personalidade que têm por objecto um modo de ser exclusivamente moral da pessoa.

      A «honra» significa tanto o valor íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal. Quando entendida unicamente no primeiro sentido, a honra está subtraída às ofensas de outrém e é alheia, por consequência, à tutela jurídica; entendida no segundo e no terceiro significados, está, pelo contrário, exposta às referidas ofensas. A opinião pública é bastante sujeita à recepção das insinuações e aos ataques de toda a espécie, produzidos contra a honra pessoal; assim também o sentimento da própria dignidade é diminuído, ferido, pelos actos referidos. Por consequência, o ordenamento jurídico prepara a reacção adequada. Podemos, pois, dar, no campo jurídico, a seguinte definição de honra: a dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa.

       Ao referir-se aos crimes de injúria e de difamação previstos nos artigos 594.º (o qual pune aquele que ofende «a honra ou o decoro de uma pessoa presente») e 595.º (o qual pune aquele que ofende «a reputação de outrem», em presença de mais pessoas, mas na ausência do ofendido) do Código Penal Italiano, referia, a págs. 112: “A característica distintiva destas duas infracções é constituída respectivamente pela presença e pela ausência da pessoa ofendida: estando presente a pessoa, dá-se o crime de injúria (equipara-se à presença o ser o facto cometido por comunicação telegráfica ou telefónica, ou por escritos ou desenhos dirigidos à pessoa ofendida); no caso contrário, verifica-se o de difamação.

 

Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, (1982-1983), n.º 3697, págs. 100 a 106; n.º 3698, págs. 133 a 137, n.º 3699, págs. 170 a 173, em Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, tece considerações sobre o tema das relações entre o direito de informação e a tutela da honra no moderno direito penal da imprensa português [O estudo procurou aprofundar ideia sugerida pelo Autor na comunicação que fez em Roma, em 25 de Novembro de 1978 ao «Convegno Giuridico Informazione-Diffamazione-Risarcimento»].  

       Começa por afirmar: “De uma Constituição como a portuguesa tão centralmente preocupada com a defesa da «dignidade humana» (art. 2.º), não podia deixar de esperar-se igualmente uma tutela efectiva da honra das pessoas. Por isso declara o artigo 26.º que «a integridade moral (…) dos cidadãos é inviolável» e o artigo 31.º, n.º 1, que «a todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar»”.

       O Autor versa o conflito entre as figuras jurídico-constitucionais do «direito à honra» e do «direito de informação», direitos em princípio de igual hierarquia, um e outro direitos fundamentais das pessoas constitucionalmente reconhecidos e garantidos ao mesmo título.

       A págs. 105, pode ler-se: “O sistema de protecção jurídico-penal da honra das pessoas – subsidiário, em larga medida, do Code Penal napoleónico, mas tendo sofrido notória influência do Código Criminal do Império do Brasil de 1830 e do Código Penal Espanhol de 1848 (reformado em 1850), bem como da lei francesa de 1819 – radica basicamente, como é sabido, na incriminação geral da difamação e da injúria, distinguindo essencialmente os dois tipos por no primeiro estar em causa a imputação de um facto determinado ofensivo da honra e consideração, no segundo, diferentemente, a produção de uma ofensa que se não concretiza em facto algum determinado. Mas já, seguindo via diferente, Os Projectos da Parte Especial do nosso Código Penal, de 1966 e 1979, distinguem os dois tipos, essencialmente, consoante a imputação ofensiva seja feita perante o próprio atingido (injúria) ou perante terceiro (difamação).

       Adianta ainda: “Seja como for quanto a este ponto, aqui importa assinalar particularmente que a jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico «honra», que o faça contrastar com o conceito de «consideração», também constante do artigo 407.º do Código Penal, ou com os conceitos jurídico-constitucionais de «bom nome» e de «reputação». Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da «honra» ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra. Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas”.

      

       Leal Henriques - Simas Santos, O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, volume II, versando o artigo 164.º, a págs. 196, dizem:

      “Doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, por conseguinte, que sejam ofensivos da reputação do visado.

      Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.

      HONRA «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter…».

      CONSIDERAÇÂO é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provem do juízo em que somos tidos pelos outros» (M.º P.º - Coimbra).

      Por outras palavras pode dizer-se que honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu.

       A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade cada cidadão – a opinião pública.

       Por isso afirmava Schopenhauer que a honra «objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjectivamente … o nosso receio diante dessa opinião» in Nélson Hungria, op. cit., Vol. VI, págs. 39 e 40).

       Os processos executivos do crime de difamação podem ser vários:

- imputação de um  facto ofensivo (ainda que meramente suspeito)

- formulação de um juízo de desvalor;

- reprodução de uma imputação ou de um juízo.

       Sendo da essência da difamação que a mesma seja levada a terceiros só se pode falar em lesão do bem jurídico da honra e consideração quando a imputação correspondente chegue ao seu conhecimento (repare-se que o artigo fala em «quem dirigindo-se a terceiros…»).

       Assim, quem se dirigir a outrem, por carta fechada, e lhe imputar algum facto desonroso, comete o crime de injúrias e não o de difamação. 

       No que toca ao dolo específico, os Autores estão de acordo com o M.º P.º no Distrito Judicial do Porto, no sentido da inexigência. «Nestes crimes tem de se verificar o dolo em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual), mas já não é exigível que haja a especial intenção, o propósito de ofender, sendo bastante a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém».   

 Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, ao abordar o conceito de honra, a págs. 301, afirma: “Entre os bens mais preciosos da personalidade moral tutelada no art. 70.º CC figura também a honra, enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal”.

       A págs. 303 afirma: A honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela Natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância e atributiva a todo o homem, para além de expressões essenciais, de uma honorabilidade média em todos os outros domínios, a não ser que os seus actos demonstrem o contrário. A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político. Engloba ainda o simples decoro, como projecção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social. E envolve, finalmente, o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem.

Estes bens são tutelados juscivilisticamente impondo às demais pessoas, não fundamentalmente específicos deveres de acção, mas um dever geral de respeito e de abstenção de ofensas, ou mesmo de ameaças de ofensas, à honra alheia, sob cominação das sanções previstas nos arts. 70.º, n.º 2 e 483.º do Código Civil. Assim, a tutela civil da honra não se limita às áreas específicas da honra cuja ofensa é mais gritante, como acontece no direito penal, antes abrange a globalidade desse bem. Por outro lado, a protecção juscivilística da honra não se restringe, como no direito penal, ao sancionamento de condutas dolosas mas também alcança a defesa face a condutas meramente negligentes.

 

       Para Maria Paula Andrade, Da ofensa do crédito e do bom nome, Tempus, 1996, pág. 97, o direito à honra, enquanto bem fundamental da personalidade, traduz-se “numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade”.

 

       José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, 1.ª edição, Coimbra Editora, Janeiro de 1999, §§ 3 e 4, págs. 602/3 (e §§ 3 e 4, págs. 905/6, na 2.ª edição de Maio de 2012), ao abordar o bem jurídico honra refere que as distinções e definições do mesmo podem ser agrupadas em duas concepções básicas: a concepção fáctica e a concepção normativa.

      Na primeira, há a distinguir a honra subjectiva ou interior, consistente no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra objectiva ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

      Na segunda, é possível distinguir entre o conceito normativo-social de honra, segundo o qual a honra nasce da consideração do conjunto de relações interpessoais, representando para Costa Andrade “a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” e o conceito normativo-pessoal de honra, tomando como decisivo na delimitação de honra uma dimensão pessoal. A honra é um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade - §§ 8, 9, 10 e 11, págs. 605/6 ( e §§ 8, 9, 10 e 11, págs. 908/9, na 2.ª edição de Maio de 2012).

       Para Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Novembro de 2006, pág. 76, “O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade. A honra é um preciosíssimo bem da personalidade. A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas.

       A honra existe numa vertente pessoal, subjectiva, e noutra vertente social, objectiva. Na primeira, traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa tem por si própria; na segunda traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na comunidade a que pertence. A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa. A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, neste caso, é lesada, mas não perdida. O respeito e consideração que a pessoa tem por si própria ou de que goza na comunidade, são então apenas diminuídos, agravados, feridos, mas não perdidos”.

 

       Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 483, comentando o artigo 180.º, afirmam: 

        4. Distingue-se entre difamação e injúria (artigo 181.º) com base na «imputação [directa ou indirecta] de um facto, mesmo sob a forma de suspeita» ou na «formulação [directa ou indirecta] de um juízo», este e aquela «ofensivos da honra ou consideração», ou ainda na mera «reprodução [directa ou indirecta] de tal imputação ou juízo». Se o agente se dirige a terceiroimputação, juízo ou reprodução em via indirecta e ocorre difamação. Se, ao invés, o agente se dirige ao sujeito passivo, por «imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita» ou por «palavras» (que podem traduzir-se em juízo ou reprodução), estas e aqueles «ofensivos da honra ou consideração», age em via directa e temos injúria. Em nenhum destes casos, de resto, a lei exige aquilo que se costuma designar por dolo específico, isto é, animus diffamandi.

       Na nota 2 ao comentarem o artigo 181º, pág. 485, afirmam: a injúria «concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido. Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente aqueloutra [a difamação] que se realiza em uma relação triangular» (Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, 629).

       M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial, Almedina, 2014, pág. 742, afirmam:

       Nos arts. 180.º e 181.º, objecto específico da tutela penal é o bem jurídico pessoalíssimo e imaterial da honra e consideração.

       A ideia da honra é complexa e “esta complexidade espelha-se na forma como o conteúdo e os limites do bem jurídico que é a honra têm sido analisados, sobretudo a partir de um conceito dualístico, fáctico/normativo. Protege-se a chamada honra externa: o bom nome e a reputação que uma pessoa goza no seio da comunidade; mas também a honra subjectiva ou interior: a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (também Costa Andrade, 1996, p. 86; Pinto de Albuquerque, 2010, p. 568; arl Lacner , 1993, p. 924).

       No ponto 3, pág. 744, referem os Autores: “Os crimes contra a honra são reconhecidamente crimes de expressão. Exigem, como resultado, palavras e ações significativas no código da honra.

       E no ponto 4: “Antes de decidir se os critérios valorativos da imputação direta ou indireta dos factos ou juízos justificam a sua qualificação como desonrosos (injuriosos ou difamatórios) é inevitável passar pela compreensão do sentido exacto da palavra no contexto linguístico e social em que foi proferida”.

       E na pág. 750, ponto 9: O crime é doloso. Em relação ao conteúdo desonroso da afirmação exige-se, pelo menos, o dolo eventual. Não há um animus específico da difamação.

       Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, a págs. 495/6, na edição de Dezembro de 2008, págs. 568/9, na edição de 2010, e 3.ª edição, Novembro de 2015, pág. 723, afirma: “O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla conceção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa, aussere Ehre), mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna, innere Ehre).

      O crime de difamação é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da ação).

      O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é “dirigida”a terceiro, ao invés da injúria”. A injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido.

      O facto desonroso ou ofensivo da honra é o acontecimento da vida real cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. O facto pode ser do foro interno ou íntimo, uma valoração ou uma decisão, como sucede por exemplo na valoração propositadamente errada da prova por um juiz ou no julgamento com manifesta intenção de fazer improceder a acção (acórdão do TEHD Falter Zeitschriffen GMBH v. Áustria (n.º 2), de 18.9.2012, § 44, e os casos do acórdão do TRP, de 13.4.2100, processo 707/08.4TAMAI.P1, acórdão do TRG, de 28.2.2011, in CJ, XXXVI, 1, 317 e acórdão do TRL de 5.2.2103, in CJ, XXXVIII; 1, 129)

       No ponto 8, pág. 724 (pág. 569 na edição de 2010), consta: O tipo subjectivo admite qualquer modalidade do dolo (acórdão do TC n.º 113/97, referindo-se ao dolo eventual).

      Não se exige um animus diffamandi vel injuriandi.

                                                                 *****

    

       1982 – A mudança de paradigma; a profunda divergência

       A difamação como ofensa à honra cometida em via indirecta

    

       A partir de 1982 o crime de difamação é praticado quando alguém, dirigindo-se a terceiros, imputa a outra pessoa, mesmo que sob a forma de suspeita, um facto, ou formula sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduz tal imputação ou juízo.

       Como se viu acima, na resposta dada em 1908 pela RLJ, Ano 41.º, a consulta de assinante, reportando-se ao artigo 407.º do Código Penal de 1886, então em vigor, realçava-se o facto de se ter seguido então o critério de distinção geralmente seguido pelas ao tempo modernas legislações (facto imputado ser determinado na difamação e indeterminado na injúria).

       Abandonado fora o critério de as palavras ofensivas terem sido pronunciadas na presença ou na ausência do ofendido: no primeiro caso haveria injúria; no segundo, difamação.

       Donde decorre que poderia integrar um crime de difamação uma imputação dirigida directamente ao ofendido, feita na sua presença.

       Algo impossível a partir de 1 de Janeiro de 1983, data da entrada em vigor do Código Penal de 1982.

       Tomemos como exemplo o acórdão da Relação de Coimbra de 27-07-77, Colectânea de Jurisprudência, ano II, tomo 4, pág. 821.

       Ao tempo fazia sentido dizer o seguinte:

       “No crime de difamação imputa-se a alguém um facto certo e determinado: no de injúrias faz-se apenas uma imputação genérica.

       Integra difamação o dizer-se para a ofendida, frente a uma casa que construía, que esta tinha uma casa nova, mas era à custa de andar debaixo de uns homens e outros”.

       (Sublinhado nosso).

 A partir de 1983, o arguido para cometer difamação não verbalizaria a imputação directamente para a ofendida, teria de fazer uso de uma caixa de ressonância, a utilização de um terceiro, que se encarregaria de “levar a carta a Garcia”. 

      Apreciando a nova narrativa do legislador, pronunciaram-se:

 Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 1984, 2.ª edição, págs. 261/2 e na 6.ª edição, 1992, págs. 423/4, (do mesmo modo na anotação 3 na 8.ª edição, 1995, já face ao artigo 180.º, a págs. 656, bem como na 12.ª edição, 1998, pág. 573, e na 18.ª edição de 2007, na pág. 666), afirma:

      “Há profundas divergências entre este artigo e o seguinte, relativo ao crime de injúrias, e os correspondentes artigos do código anterior (407.º e segs.). Assim, enquanto, por um lado, o código anterior fazia assentar a distinção entre difamação e injúrias no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, seguiu-se agora como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiros e sem a presença do ofendido, ou perante o ofendido. (…)”. (Sublinhados nossos).

      Leal Henriques - Simas Santos, O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, volume II, versando o artigo 164.º, a págs. 196, dizem:

     (…) Sendo da essência da difamação que a mesma seja levada a terceiros só se pode falar em lesão do bem jurídico da honra e consideração quando a imputação correspondente chegue ao seu conhecimento (repare-se que o artigo fala em «quem dirigindo-se a terceiros…»).

       Assim, quem se dirigir a outrem, por carta fechada, e lhe imputar algum facto desonroso, comete o crime de injúrias e não o de difamação.

 

      Victor Sá Pereira, Código Penal, Livros Horizonte, 1988, pág. 217, após referir que está em causa a chamada honra subjectiva que na aliciante expressão de Nelson Hungria, corresponde ao «sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal», afirmava: “A distinção entre difamação e injúria não reside mais em haver ou não imputação de factos determinados. É costume acentuar-se, a propósito, que a diferença está em se produzir imputação, juízo ou reprodução perante terceiros ou perante o ofendido. Mas o dado decisivo é, de rigor, a presença do ofendido. Com esta, haverá injúria, na sua falta, será caso de difamação. O ofendido presente nunca deixa de ser destinatário. A difamação, em qualquer das respectivas modalidades, acontece sempre à revelia do difamado (artigo 165.º). (Sublinhados nossos).

      Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 483, comentando o artigo 180.º, afirmam: 

        4. Distingue-se entre difamação e injúria (artigo 181.º) com base na «imputação [directa ou indirecta] de um facto, mesmo sob a forma de suspeita» ou na «formulação [directa ou indirecta] de um juízo», este e aquela «ofensivos da honra ou consideração», ou ainda na mera «reprodução [directa ou indirecta] de tal imputação ou juízo». Se o agente se dirige a terceiroimputação, juízo ou reprodução em via indirecta e ocorre difamação. Se, ao invés, o agente se dirige ao sujeito passivo, por «imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita» ou por «palavras» (que podem traduzir-se em juízo ou reprodução), estas e aqueles «ofensivos da honra ou consideração», age em via directa e temos injúria. Em nenhum destes casos, de resto, a lei exige aquilo que se costuma designar por dolo específico, isto é, animus diffamandi.

      Na nota 2, ao comentarem o artigo 181.º, pág. 485, afirmam: a injúria «concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido. Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente aqueloutra [a difamação] que se realiza em uma relação triangular» (Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, 629). (Sublinhados nossos).

      José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Janeiro de 1999, § 16, pág. 608, ao abordar o tipo objectivo de ilícito afirma: “Para estabelecer a diferenciação essencial, dentro das infracções contra a honra – distinção entre difamação e injúria –, o legislador empregou uma técnica legislativa baseada na imputação directa ou indirecta dos factos ou juízos desonrosos. Forma de perceber o fenómeno da violação do bem jurídico da honra que, manifestamente, apresenta uma lógica material interna e que, por isso, se reflecte na definição das molduras penais abstractas de uma e de outra daquelas infracções. Digamo-lo em termos muito simples: uma coisa é a violação da honra perpetrada de maneira directa (na forma mais simples e comum: isto é, perante a vítima) outra será levar a cabo aquela mesma ofensa fazendo intervir uma terceira pessoa, operando uma tergiversação, instrumentalizando um terceiro para conseguir os seus intentos. Utilizando uma linguagem de sabor geométrico diremos que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular enquanto a injúria se basta por uma conexão bipolar”.

      Este texto é repetido na edição de Maio 2012, a págs. 911/2, aditando-se apenas: “(cfr. Acórdão do STJ de 18 de Janeiro de 2006, Proc. 05P4221)”. 

      Prossegue o Autor no § 17, pág. 608: “Nesta óptica, fácil é de entender que o ponto nevrálgico da difamação se centra, como de imediato ressalta mesmo com a mais desatenta das leituras do tipo, na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros.”

      Este texto é repetido no § 20, pág. 912, da edição de 2012, com o aditamento: “possibilitando, deste modo, a desconsideração externa”.

      Após afirmar que o crime matricial deveria ser a injúria e não a difamação, procurando obter resposta para esta sistemática, diz que a resposta se encontra na opção de fundo do legislador, traduzível na consideração de que os actos ofensivos da honra de outrem ganham uma maior densidade – constituindo-se assim em matriz – se praticados de jeito enviesado, se praticados de forma indirecta ou mediata. (§ 17, pág. 608, da 1.ª edição e § 20, pág. 912, da 2.ª edição).

      Abordando os elementos do tipo no § 18, pág. 609 (e § 21, pág. 913, na 2.ª edição), afirma: “De jeito sintético poder-se-á afirmar que esses elementos se estruturam em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja – logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo –, através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio, ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros. (Sublinhado nosso).

      Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, Novembro de 2015, nota 1, págs. 722/3 (pág. 495, na edição de Dezembro de 2008 e pág. 568, na 2.ª edição actualizada de Outubro de 2010), ao referir as fontes do artigo 180.º (antes 164.º), no que respeita à imputação de factos e formulação de juízos de valor diante de terceiros, afirma: “O legislador pretendeu romper com a tradição nacional. Com efeito, a nova formulação dos tipos da difamação e da injúria no CP de 1982 apresenta “profundas divergências”em relação aos tipos dos artigos 407.º e 410.º do CP de 1886, de que se destacam duas: “Por um lado, enquanto o Código Penal (de 1886) faz assentar a distinção entre difamação e injúria no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, o Anteprojecto segue como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiro e sem a presença do ofendido ou perante o ofendido. Por outro lado, enquanto o Código Penal (de 1886) não admite, como princípio geral, a prova das imputações feitas (artigo 408.º), o Anteprojecto parte do princípio oposto ainda que admitindo algumas excepções” (ACTAS CP/EDUARDO CORREIA, 1979: 94).

      E no ponto 4, pág. 723 (pág. 496, na edição de 2008, e pág. 569, da 2.ª edição), afirma:

      “O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é “dirigida”a terceiro, ao invés da injúria”. A injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido”.

       Extrai-se do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 617/09-5.ª, publicado na CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 242: “O crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria – a honra e consideração – distingue-se desta por a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria a imputação ou juízo ofensivos são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, do CP)”.

      Explicita: “Essa razão tem levado vários autores a afirmar que, na difamação, se ataca a honra do visado sobretudo no seu aspecto de consideração social (honra em sentido objectivo), pois que interfere nas relações intersubjectivas, e na injúria , se atinge primacialmente a honra no que ela tem de sentimento para o ofendido da sua própria honorabilidade e respeitabilidade pessoal (Assim, Nelson Hungria, “Comentários ao Código Penal”, Rio de Janeiro 1956, Vol. 6.º, 3.ª edição, pág. 85; Borciani, “As ofensas à honra”, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1950, pág. 16; e Alfreddo Piromallo, “Ingiuria e Diffamazione”, Unione Tipográfico-editrice Torinese, pág. 170).      

      O elemento material do referido crime consiste, pois, na ofensa à honra e consideração de uma pessoa materialmente presente ou por meio de comunicação com ela através de telefone, telefax, escritos, desenhos ou outro qualquer meio semelhante, desde que dirigido à própria pessoa. É o chamado tipo objectivo do ilícito”.

      Revertendo ao caso concreto.

      Face ao que fica exposto, poderá considerar-se que, a terem-se por ofensivas as palavras escritas pela arguida (o que ora se coloca apenas por facilidade de raciocínio), a conduta em apreciação integraria um crime de difamação?

      Atento o critério adoptado pelo legislador de 1982, em ruptura com o passado, e mantido pelo de 1995, com a única diferença de referir “terceiro” em vez de “terceiros”, propendemos para resposta negativa.

      As palavras entendidas pela assistente e pelo Ministério Público como ofensivas da honra e reputação daquela foram proferidas numa acção cível, numa sentença que decidiu a oposição ao arrolamento.

      Uma sentença é uma declaração recipienda ou receptícia.

      Não há dúvida de que as palavras escritas pela arguida têm um destinatário que está presente na acção, que é parte no processo. Requerente no arrolamento. Requerida na oposição deduzida ao mesmo. A comunicação é directa, a relação é bipolar, não é de jeito enviesado, em tergiversação, não é feita em via indirecta, à revelia da visada.

      Mesmo que eventualmente se possa defender que o requerido, marido ou ex-marido da assistente (dos autos não consta a sentença de divórcio), ou inclusive, os Exmos. Mandatários, sejam terceiros, esse facto nunca excluiria um outro dado absolutamente incontornável: a imputação não é feita em via indirecta, através da intromissão de terceiro, não é feita à revelia da visada, mas (no caso figurado da consideração daqueles como terceiros), também directamente à requerente do arrolamento.

      A consideração da presença de terceiros não terá a virtualidade de apagar ou ofuscar a verdadeira posição da assistente, que não é claramente terceiro, nem passa a sê-lo por um qualquer fenómeno de mutação em razão daquela consideração, mantendo a sua identidade, sendo certamente, decididamente, a destinatária directa da imputação.

      Sendo a alegada imputação de factos desonrosos feita de modo directo, dirigida à assistente (que não é terceiro), não se estaria perante uma difamação, mas antes face a uma injúria.

 

      Passando à frente.

       Mesmo que assim se não entenda, ou seja, considerando-se ser possível a configuração do crime de difamação, ou para figurar caso de injúria, vejamos se o texto escrito pela arguida se pode considerar como desonroso para a assistente.

       Nessa apreciação há que atentar obviamente ao texto, mas igualmente ao contexto em que foram produzidas as afirmações questionadas.

      Começando pelo texto.

      Sabido que o mesmo dimana de um processo cível, como é evidente, deve ser relacionado com os demais, sendo esse o contexto. 

      Antes, porém, e exactamente por isso, convirá alinhar a indicação dos processos que adjectivam o litígio entre a assistente e consorte.

      Até porque, como veremos, a arguida, na fundamentação de facto e no exame crítico da prova, convoca o conhecimento de prova adquirido noutra providência (alimentos provisórios).

       Vejamos, pois, o enquadramento e contexto processual em que foram proferidas as expressões ora em causa.

      ACÇÕES

      A decisão proferida pela arguida insere-se num conjunto de processos emergentes de ruptura familiar, em que há testemunhas arroladas na acção principal e igualmente nos incidentes, designadamente familiares. 

      1 – A participante instaurou acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges contra GG, requerendo, nos artigos 91 a 114, a fixação de um regime provisório quanto a alimentos, com pensão provisória não inferior a 2.500,00 €, nos termos da petição inicial, que consta de fls. 290 a 302 destes autos, a que coube o n.º 1312/11.3TBAMT.

      2 – Como preliminar desta acção de divórcio a Autora intentara procedimento cautelar de arrolamento, distribuído ao 3.º Juízo da Comarca de Amarante, registado com o n.º 1130/11.9TBAMT, o qual, após apensação à acção de divórcio, corre sob o n.º 1312/11.3TBAMT-A.

      Por decisão proferida em 04-07-2011, a fls. 37/8/9, repetida a fls. 42/3/4 e fls. 103/4/5, foi decretado o arrolamento nos bens indicados, sem audiência prévia do requerido. O arrolamento das contas bancárias e eventuais títulos nelas depositados deveria efectuar-se mediante notificação ao Banco de Portugal.

      3 – Por sentença de 22-03-2013, foi julgado parcialmente procedente o incidente de regime provisório de alimentos, tendo sido o requerido condenado a pagar à requerente, a título de alimentos provisórios, a pensão mensal de € 800,00, a partir do primeiro dia do mês subsequente à data da dedução do respectivo pedido -  fls. 155 a 170 e certidão de fls. 262 a 269 verso.(Consta dos autos, mas não está certificado, que a Relação do Porto terá baixada a pensão para € 500,00 mensais).

      4 – O requerido deduziu oposição ao arrolamento, conforme fls. 340 a 351.

      5 – Por sentença de 19 de Fevereiro de 2014, a fls. 31 a 35 verso e repetida a fls. 106 a 115, e a fls. 312 a 321, foi declarado sem efeito e revogado o arrolamento decretado, ordenando-se o seu levantamento sobre todos os bens, imóveis e contas bancárias, à excepção do prédio rústico referido em 12 (denominado ... e descrito sob o n.º 823-...).

      6 – A requerente do arrolamento interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que por acórdão de 17-12-2014, de fls. 358 a 374, altera matéria de facto e conclui que não havia razão para ordenar o levantamento do arrolamento e julgando o recurso procedente, revoga a decisão recorrida (que ordenou o levantamento do arrolamento), mantendo-se a decisão que ordenou o arrolamento dos bens indicados pela recorrente.

      Posto isto.

      O texto onde se albergam as questionadas expressões corresponde ao que consta da fundamentação de facto e exame crítico da prova da sentença de 19 de Fevereiro de 2014, que decidiu a oposição ao arrolamento decretado em 4 de Julho de 2011, levando ao levantamento do decretado arrolamento.

       Na decisão foram considerados indiciados, para além de outros, os seguintes factos:

1 – A requerente AA casou catolicamente com o requerido GG no dia 21 de Março de 1982, conforme assento de casamento n.º 52, de cópia a fls. 21 destes autos, sem celebrar convenção antenupcial.  

2 – Quando o casal se consorciou a requerente não tinha actividade profissional e depois de casar continuou sem ter actividade profissional remunerada.

3 – Foi sempre o requerido quem teve actividade profissional e quem suportou todas as despesas do casal.

19 – E [O requerido] sempre foi remunerado pelo seu trabalho.

24 – Na conta do BPI que têm a mulher, o requerido e o irmão deste a requerente levantou nos últimos 2 anos € 217 000,00.

 

       É o seguinte o texto relativo à fundamentação, que se encontra no primeiro volume destes autos, por três vezes, de fls. 32 a 34 verso, de fls. 108 a 113 e de fls. 314 a 319, sendo de nossa responsabilidade os realces.

      FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

      Analisou o Tribunal o abundante acervo documental, com ênfase para a matrícula do requerido como comerciante individual, no dia 1 de Agosto de 1980 (NO ESTADO DE SOLTEIRO) inserta a fls. 203, cartão de empresário em nome individual a fls. 204, certidão da sociedade anónima de fls. 205, onde consta a transformação societária, certidão do notariado privativo do Município de Fafe da empreitada de Revelhe que atesta o dinamismo empresarial do requerido, certidões das escrituras de aquisição dos imóveis a fls. 260 e seguintes que espelha o giro imobiliário da firma do requerido, elementos contabilísticos da empresa onde constam nos mapas os imóveis adquiridos, e somatórios dos levantamentos da conta do BPI.

      Foram ouvidas as seguintes testemunhas:

      CC - TOC das empresas do requerido e que já o era na sociedade por quotas, que bem revelou saber da origem única e proveniência únicas do dinheiro, não sendo custoso para o Tribunal, acreditar que num longevo casamento onde só o marido trabalhava e trabalhando o requerido na mesma actividade de construção civil que trazia já de solteiro, apurar a origem da riqueza. Além disso o TOC sustentou de forma estrénua que todo o dinheiro nas mãos do casal só teve um ponto de partida, a actividade próspera que o requerido já trazia e impulsionou na sua juventude e ainda como rapaz solteiro, nunca se conhecendo, como a própria requerente admite e confessa na petição de divórcio e na de alimentos provisórios, uma só fonte de rendimentos à mulher do requerido. Como tal todos os imóveis foram, comprados com dinheiro que as sociedades libertaram e sociedades estas que substituíram a empresa em nome individual, até porque o alvará de construção, bem mais valioso ia transitando entre as diversas formas empresariais. Sublinhou reiteradas vezes que todos os dinheiros e imóveis só tinham uma fonte, o capital e a empresa que gerou e criou em solteiro. O requerido dedica-se à construção de grandes obras, estruturas de grande fôlego, obras para as autarquias. A empresa em nome individual foi matriculada em 1980. A sociedade “... & Irmão, S.A.” sucedeu à sociedade por quotas, os empregados e os equipamentos foram transferidos, estes por venda. Foi tudo absorvido da empresa em nome individual, há uma sucessão, uma continuidade no património, clientes, débitos e créditos, bem como todos os trabalhadores. A regra de divisão 2/3,1/3, já vem entre os dois irmãos, desde a empresa em nome individual. Sempre foi esta a repartição dos lucros. O capital social foi constituído com dinheiro deles que vinha da empresa em nome individual. A fonte era a empresa em nome individual. Todos os prédios foram adquiridos com dinheiro da empresa em nome individual e particularizou com os prédios das alíneas a) e b) - dação em cumprimento da autarquia d e Fafe, alínea c) - encontro de contas no loteamento de Cepelos feito pela firma individual, alínea d) - encontro de contas no loteamento das Murtas feito pela empresa em nome individual, alínea e) -estaleiro da empresa comprado pela empresa individual, alíneas f) e g) - um só prédio misto, escritor os, armazéns e oficinas, adquirido como contrapartida da terraplanagem em Fregim feita para a Metalocardoso, alínea h) - comprado pela empresa individual e hoje está afecto a estaleiro da empresa, alínea i) - comprado à SCM em nome da empresa individual; alínea j) - doação dos pais, alínea 1) - aquisição pela firma individual, alíneas m) a r) comprados à SCM pela empresa individual; os proventos vinham todos da empresa original. A “... Lda.” é a fonte de obtenção do crédito e a fonte produtiva de receitas, o centro de gravidade do sistema empresarial. A ... foi constituída com os dinheiros da ... Lda. Sempre financiou as outras empresas até estas poderem obter crédito bancário. A percentagem de auferir lucros era sempre 2/3, 1/3. 0 Sr. GG exerceu sempre a actividade em nome individual até à constituição da sociedade por quotas, até porque o fulcro da actividade era o alvará de construção que lhe permitia executar as numerosas obras públicas. Os prédios são preços das empreitadas do GG empresário singular. Até há fluxos na contabilidade que mostram que o dinheiro da empresa saía para aquisição de imóveis antes da celebração das escrituras respectivas. Foi uma espécie de trespasse que ocorreu entre as duas empresas e sempre que se recebia de uma autarquia o dinheiro entrava na empresa individual. A empresa individual ainda sobreviveu até 2000 só para propiciar a obtenção de novo alvará à sociedade.

       - DD, irmão do requerido que foi uma testemunha isenta, pois, apesar de chocado com o comportamento da cunhada ao levantar o dinheiro da conta comum, sempre aparentou a maior seriedade, demonstrando pela longevidade e companheirismo que lhe são aportadas pelo início da actividade desenvolvida com o irmão, falar com a mais pura verdade. Descreveu minuciosamente todo o desabrochar e desenvolvimento da empresa e a percentagem societária acordada entre ambos.

O irmão, em Fevereiro de 79 começou a trabalhar por conta própria e deu-lhe sociedade até hoje. O irmão nunca teve outras actividades nem outras fontes de rendimento. Mais tarde formam a sociedade por quotas e não foi uma sociedade nova, não desligam da antiga, tudo passou de uma empresa para outra, clientes, fornecedores, pessoal. O irmão só tinha de seu o que frutificou da empresa original. Especificou que não houve hiatos, todos os bens individuais, contratos, obras em curso, clientes, equipamentos passaram para a sociedade por quotas. Começou a trabalhar com o irmão como dois sócios, o GG mais nas obras e ele no escritório, sendo duas partes do irmão e uma parte dele e assim sempre dividiram os lucros nessa rácio.

O irmão nunca teve outras actividades nem outras fontes de rendimento. Tudo da empresa individual passou para a sociedade por quotas e desta para a sociedade anónima. Os prédios que o irmão comprava muitas vezes eram contrapartidas das obras feitas, sabendo-se como se sabe que tal procedimento é usual entre outras empresas desta comarca.

Pronunciou-se especificadamente sobre a origem de todos os imóveis, faziam loteamentos e pagavam parte em dinheiro e em lotes. Os estaleiros da empresa foram comprados no tempo da sociedade por quotas e foi comprado com dinheiro da empresa individual até porque sendo ele o sócio financeira era ele que passava os cheques. Em síntese, todo o dinheiro era empresarial e da empresa que os dois criaram, no longínquo ano de 1979, com o GG no estado de solteiro. Demonstrou saber, com pormenor, minúcia e de forma sugestiva todas as peripécias aquisitivas dos prédios, tal detalhe só é compatível com a linguagem da verdade, tanto mais que o Tribunal já julgou outra providência de alimentos provisórios peticionados pela requerente e onde ficou amplamente demonstrado que nunca a requerente trabalhou nem ganhou um só cêntimo na pendência do casamento, outrossim, limitando-se a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido. Perguntado sobre a proveniência dos imóveis relatou ao pormenor as obras de que os mesmos constituíram contrapartida, todos com dinheiro e obras da empresa individual. Por outro lado, nunca perdeu a seriedade nem a compostura o que até podia acontecer em face da sua estreita ligação ao irmão, de afecto e profissional. Questionado sobre a origem da aquisição nunca silenciou nada e demonstrou pela vivacidade e riqueza descritiva que falou só a verdade. Ademais, quando as exigências do giro industrial apontaram para a criação de outras sociedades foi com o dinheiro da empresa inicial injectado na sociedade por quotas que as criaram, por exemplo, a .... A cunhada nunca trabalhou nem ganhou um só cêntimo. Ao final do ano as empresas libertaram lucros e criaram depósitos, inclusive no Banco Santander, tudo com dinheiro da firma GG e Irmão, não havia dinheiro que não tivesse a marca original. Quanto aos imóveis esmiuçou que a Câmara de Fafe deu o loteamento de Revelhe em pagamento de uma obra que o GG fez em Fafe. O estaleiro da empresa foi adquirido com trabalhos que a empresa efectuou. Os prédios das alíneas f) e g) são uma duplicação mas incorporam o estaleiro da empresa. Todos estes bens são afectos à empresa e pagos com dinheiro empresarial. O prédio da alínea i) foi comprado há 20 anos à SCM e só agora foi escriturado. O prédio da alínea j) foi doado pelos pais e foi onde começou o escritório da empresa, foi aí que começou tudo com os dois irmãos ainda solteiros. O prédio da alínea 1) foi a paga de trabalhos executados para a empresa Caslinha. Não tem dúvidas - e o Tribunal também não vista a ausência de outra fonte de receitas - que tudo foi pago com dinheiro da firma individual e todos estes imóveis estão afectos à actividade empresarial. A conta do Santander é sua e do seu irmão e esse dinheiro saiu todo da firma, sendo que o dinheiro lá permanece para garantir as necessidades de financiamento das suas empresas. Percute que tudo é dinheiro da firma pois não havia outra “source”.

       - HH, economista e Revisor Oficial de Contas da “GG & Irmão, S.A”, que prestou o seu depoimento em rigorosa consonância com a outra testemunha economista.

       Exame crítico da Prova:

       Não é a primeira vez que somos concitados a ouvir estar prova, já o tendo feito na outra providência cautelar e um dado é certo não há uma só alma que se atreva a negar aquilo que aliás a requerente confessa nestes in folio, que a única fonte do dinheiro do casal foi a actividade industrial desenvolvida pelo requerido e que já vinha do seu trabalho em solteiro. A requerente nunca trabalhou e todo o dinheiro que sempre gastou vinha do marido e da sua próspera actividade e engenho empresarial, tendo esse dinheiro ido frutificar aquele que ele já levara para o casamento como empresário individual.

      O contexto em que foi produzido o texto.

      As expressões em causa foram proferidas em sede fundamentação de facto, segmento da sentença onde o juiz fixa os factos e dá a conhecer as razões que conduziram ao eleito assentamento da facticidade e não outro. Daí, que se passe a abordar a 

        Fundamentação das decisões judiciais

        Contingências da objectivação da convicção e a motivação da decisão de facto

      Na lição do Professor João de Castro Mendes, em Direito Processual Civil, 1972, a sentença podia ser vista como um acto jurídico.

       A sentença proferida num processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras regulamentadoras dos negócios jurídicos, de tal modo que as regras que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença ou acórdão - artigo 236.º do Código Civil, por remissão do artigo 295.º; a interpretação de uma sentença deve obedecer aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos.

      Assim se pronunciaram, v. g., os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-03-1969, processo n.º 62.575, BMJ n.º 185, pág. 232 (É questão de direito a interpretação de decisão judicial); de 06-12-1984, processo n.º 72.065, in BMJ n.º 342, pág. 375; de 28-05-1991, processo n.º 80.218, in BMJ n.º 407, pág. 446 (A interpretação de decisão judicial constitui matéria de direito, devendo fazer-se de acordo com as regras legais previstas para a interpretação da declaração negocial); de 18-09-2003, processo n.º 03B1993/ITIJ; de 24-02-2005, processo n.º 04B4144.dgsi.Net.

      Mas importará ter em consideração que não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não se traduz numa declaração pessoal da vontade do julgador, mas antes exprimindo uma “injunção aplicativa do direito”, uma “vontade da lei no caso concreto”, situando-se o declarante numa específica área técnico jurídica - com esta especificação pronunciou-se o acórdão do STJ de 22-03-2007, proferido no processo n.º 06A4449.dgsi.Net.

           

       Estabelece o artigo 295.º do Código Civil: «Aos actos jurídicos que não sejam negócios jurídicos são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, as disposições do capítulo precedente». 

    

      O acto jurídico pode ser definido como acto não negocial em relação ao qual apenas se exige que o agente tenha querido a conduta, independentemente da previsão ou volição do resultado jurídico, ou noutra perspectiva, como manifestação de vontade que como tal, produz efeitos de direito.

      Sobre a distinção entre negócios jurídicos e simples actos jurídicos, podem ver-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1.º, pág. 190; Castro Mendes, Teoria Geral, 1967, 3.º, pág. 486.

      Esta norma – única – com a designação “Disposições reguladoras”, integradora do Capítulo II, subordinado à nomenclatura “Actos jurídicos”, remete para o precedente Capítulo I, versando o “Negócio jurídico”, do Subtítulo III “Dos factos jurídicos”, constante dos artigos 217.º a 294.º, que rege sobre o negócio jurídico em geral, maxime, a Subsecção III, que rege sobre a “Perfeição de declaração negocial” - artigos 224.º a 235.º - e a Subsecção IV sobre “Interpretação e integração” - artigos 236.º a  239.º.

      Mas para o aspecto que ora nos interessa apenas apelaremos à norma do artigo 224.º, n.º 1, que estabelece: “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou dele é conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.     

      O que se pretende significar com esta aproximação com a teoria do acto e do negócio jurídico é apenas que é de primacial importância para o julgador da matéria de facto que tenha a noção exacta de que ao exprimir uma sua livre, ponderada e motivada convicção sobre o sucesso submetido a seu juízo, formulada a partir de elementos exógenos, que interiorizou e sobre os quais reflectiu, dando corpo a um ser existencial autónomo, valente per se, diferenciado das bases de cognição em termos quantitativos ou qualitativos, e enformador enfim de uma decisão compositora e definidora final de um litígio, esteja a emitir uma declaração receptícia ou recipienda, ou seja, a declaração que para sua completa relevância e eficácia carece de ser dada a conhecer a um destinatário, mas aqui com a noção de que se trata de um destinatário, não só no âmbito de uma relação obrigacional de direito privado, porventura sinalagmática, ou de responsabilidade aquiliana, mas também, no que ao plano criminal respeita, de um cidadão em relação ao qual o Estado exerce o jus puniendi, definindo a sua responsabilidade criminal, devendo a mensagem ser clara e de imediata e fácil apreensão, de acessível cognição.

      Sendo obviamente diferentes os parâmetros, a aproximação de que neste plano se trata, significará apenas a necessidade de a declaração de composição do litígio ser transparente, clara, perceptível e facilmente assimilável pelo destinatário, o que obviamente inclui a sua motivação, apenas neste aspecto se perfectibilizando a eficácia da mensagem da declaração final, de modo a que, na sequência, o vencido ou o condenado no processo criminal possa usar das armas de impugnação ao dispor, maxime, da impugnação em sede de matéria de facto dada por provada.   

           

     O juiz, ao fixar a matéria de facto e ao motivar a opção de fixação da mesma em certo sentido e não noutro, tem de ser um comunicador.

      Na contingência da aquisição do acervo fáctico histórico de determinado sucesso, que o encarregado de “dizer o direito” não presenciou e sobre o qual é chamado a pronunciar-se, sempre em momento posterior, após a consumação, face aos elementos disponíveis sobre o concreto pretérito “pedaço de vida” em análise, por vezes, por razões várias, tem de dedicar-se a uma actividade de recomposição do passado, por vezes remoto, qual arqueólogo, escavando nas memórias do tempo e das remotas lembranças (como nas acções de aquisição por usucapião com testemunhas por vezes septuagenárias ou octogenárias), ou actuando como um escultor, procurando nos materiais trazidos até si esculpir a verdade (a verdade possível e reconstruída, com cuidado e paciência, do passado), ou como alguém a visionar e debitar sobre uma fotografia com algum tempo, de que não tem a paternidade, mas procurando, a partir de contributos e achegas de terceiros, presentes na vivência do evento fotografado, reconstituir ou recompor os sinais de vida e de interacção vividas ao tempo real entre os personagens fotografados, de que a fixação do instantâneo é retrato, dando-lhes uma nova luz e procurando “por em movimento” o estático espelho, reflector de um momento de outrora, que há que analisar e entender agora, ou visionando um filme, ou em diversa versão de colheita de imagens do real, um documentário, trazido pelas vozes de outrem, ou fazendo ainda de mineiro, procurando nas jazidas do tempo a prescrutação do evento mais remoto, ou do pescador, procurando trazer à tona a verdade de um pescado, de um ignoto peixe de fundo, ou de um encarregado de casting, optando pelos actores principais na senda de descoberta da verdade, de um técnico de iluminação, conferindo as luzes da ribalta a alguns personagens, relegando para a penumbra outros de menor poder convincente, depois no papel de um arquitecto, buscando um arquétipo de inserção do social vivenciado, mas com base real, mas também agindo com algo de psicólogo, analisando os compassos de espera, as retracções, as ruborizações, os trejeitos dos depoentes, também de antropólogo, ou ainda de sociólogo, na busca da compreensão de fenómenos que têm a ver com variadíssimas problemáticas, como o fenómeno da violência doméstica, como a questão de igualdade de género, de relações de família, de imputabilidade, do comportamento de um serial killer, do abusador sexual, ou com os parâmetros da concorrência, nas questões de concorrência desleal e de tutela de marcas, de defesa de direitos autorais, da defesa do consumidor, da defesa de interesses difusos, como os relacionados com o ambiente, ou interesses comunitários, como os da honra de comunidades vicinais ou de autarquias, como no caso de defesa da honra de um colectivo de munícipes com particular idiossincracia, no concreto, relacionada com as touradas de morte, ou a dirimir litígios no plano laboral, ou simples questões de cobrança de dívidas, ou ainda na oposição à execução de uma sentença transitada ou de outro título executivo.    

      Começando por ser um receptor de informação, o gestor de uma base de dados, o julgador passa à fase de tratamento dos mesmos, de analisador de informações, até ao papel de emissor de juízos de valor sobre a pertinência, a validade, a eficácia, o sentido e o alcance probatório dos elementos fornecidos, fazendo uso da livre - e responsável -  apreciação das provas até si carreadas, no plano cível condicionadas pelo princípio do dispositivo, definindo as suas valências, e com base nelas, e para além delas decidindo em busca da verdade material, se determinado facto está ou não provado.

      O passo seguinte será inevitavelmente o de procurar explicar, motivar, justificar, dar a conhecer, de forma clara, completa, convincente, por que razão deu determinados factos por assentes e outros não.

      Nesse exercício deve usar de mestria e argumentação q.b., para que a nenhum dos interlocutores/destinatários da decisão reste dúvida sobre a bondade e tendencial perfeição do decidido, ou pelo menos, que fiquem com a ideia de que tudo foi feito para se atingir o objectivo a alcançar, de que fiquem cientes e elucidados da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

      A juzante, outras contingências surgirão, como em tudo na vida!

      Nem que seja um pedido de esclarecimento, a arguição de uma nulidade, ou de uma simples obscuridade ou ambiguidade, ou mesmo um pedido de correcção.

      Seguir-se-á a contingência da plausível discordância com o decidido, da impugnação, com a sindicância de eventuais anomalias de confecção da sentença ou do acórdão, já no campo da eventual patologia da peça.

      A nível de intervenção de tribunal superior surgirão o recurso em matéria de facto no processo civil (artigo 640.º do CPC) e no processo penal, neste caso, nas duas vertentes do erro-vício, do vício decisório (artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) e do erro-julgamento, com a impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do mesmo Código, para além da arguição de nulidade, por omissão de pronúncia relativa a fundamentação de facto.

                                                              ******

      O arrolamento decretado é um arrolamento especial deduzido como preliminar da acção de divórcio. 

      O texto ora em causa foi proferido na sentença que decidiu a oposição ao arrolamento, na Fundamentação de facto, mais especificamente, quando a Juíza arguida expõe o depoimento de DD, irmão do requerido, conforme fls. 34, 112 e 318 nestes autos.

      Integrado na Secção VII – Arrolamento, do Título IV – Dos procedimentos cautelares e Livro II - Do processo em geral, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Como se faz o arrolamento”, estabelece o artigo 406.º, no n.º 5:

  “ 5 – São aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secção ou a diversa natureza das providências”.

      

      Relativo a oposição à penhora e sobre o processamento do incidente, estabelece o artigo 785.º, n.º 2, do mesmo Código:

      “O incidente de oposição à penhora segue os termos dos artigos 293.º e 295.º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 732.º”.

      Integrado no Título III do Livro II, relativo aos incidentes da instância, o artigo 295.º manda aplicar com as devidas adaptações o disposto no artigo 607.º, relativo a sentença.

      Estabelece o artigo 295.º (Alegações orais e decisão):

       “Finda a produção da prova, pode cada um dos advogados fazer uma breve alegação oral, sendo imediatamente proferida decisão por escrito, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 607.º”.

      Integrado no Capítulo I - Elaboração da sentença - do Título IV - Da sentença,  estabelece o

                                                     Artigo 607.º (Sentença)

1 – Encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias; se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias.

2 – A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.

3 – Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

4 – Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos as presunções impostas por lei ou por regras de experiência.

5 – O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só podem ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

6 – No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respectiva responsabilidade.

  

                                                              *****

      A evolução da fundamentação de facto processou-se de forma algo diversa, mas com muitos pontos de contacto no processo civil e penal, em termos de que aqui se não cuidará.

       O legislador constituinte em 1976, a este específico respeito, omitiu qualquer referência, o que é dizer, à necessidade de fundamentação das decisões judiciais, disse nada.

       A consagração na Lei Fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais veio a verificar-se com a primeira revisão constitucional, operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, prescrevendo então o n.º 1 do artigo 210.º que «As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei», redacção que se manteve no n.º 1 do artigo 208.º, introduzido na revisão da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, bem como na revisão operada pela Lei Constitucional n.º 1/92, de 25 de Novembro, sofrendo, porém, alteração na 4.ª revisão constitucional – Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – passando então a dispor o n.º 1 do artigo 205.º que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

               

       A propósito desta alteração pode ler-se no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, proferido no processo n.º 456/95, de 2 de Dezembro de 1998, em recurso interposto do acórdão do STJ de 03-05-1995, publicado no Diário da República, II Série, de 05-03-1999: “A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação”.

       No que ora interessa, com a última alteração do Código de Processo Civil operada através da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, teve lugar uma profunda modificação, passando a ter lugar na mesma peça a análise crítica das provas e o exame crítico das provas, antes vertidas no artigo 653.º, n.º 2, tendo aquela no momento da decisão sobre a matéria de facto e artigo 659.º, n.º 3, tendo lugar o exame crítico das provas no momento da confecção, da fundamentação da sentença.

       Como se pode ler na Exposição de motivos Proposta de Lei n.º 113/XII “Na mesma linha de concentração processual, prevê-se que, finda a audiência final, o processo seja concluso ao juiz para prolação de sentença, no prazo de 30 dias.

       Marcando mais uma profunda alteração com o regime precedente, e até como decorrência da inovação expressa na enunciação dos temas da prova, deixará de haver um momento processual exclusivamente reservado para uma pronúncia do juiz sobre a matéria de facto. Com efeito, será na própria sentença, em sede de fundamentação de facto, que o juiz deverá declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, por referência à prova produzida, por um lado, e por referência aos demais elementos dos autos, por outro. No que toca à apreciação da prova, continuando a vigorar o princípio da livre valoração, prescreve-se que o juiz deverá compatibilizar toda a matéria de facto adquirida e extrair dos factos apurados as presunções impostas por lei ou por regras de experiência”.       

       Neste sentido, o artigo 607.º supra transcrito.

       A fundamentação deve também abranger a convicção do tribunal, sendo a razão de ser da motivação garantia da legitimação da decisão.

Como refere Michele TaruffoNote sulla garantizia constituzionale della motivazione”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume LV, págs. 29 e segs., por diversas vezes citado pelo Tribunal Constitucional - cfr. acórdãos n.º 55/98, Diário da República, II Série, de 28-05-1985; n.º 135/99, Diário da República, II Série, de 07-07-1999; n.º 422/99, Diário da República, II Série, de 29-11-1999 (este versando questão suscitada em embargos de executado) - a propósito das duas funções que a fundamentação cumpre:

a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;

b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão.

A fundamentação da decisão judicial constitui um elemento indispensável para assegurar o efectivo exercício do direito ao recurso, que de forma explícita foi constitucionalmente garantido, no processo penal, com o aditamento da parte final do n.º 1 do artigo 32.º da CRP – incluindo o recurso - , com a Lei Constitucional n.º 1/97.

Como assinala Michele Taruffo a motivação da sentença é necessária com vista à impugnação, com o fim de tornar funcional a relação entre o primeiro e o segundo graus de jurisdição; não só as partes podem valorizar melhor a oportunidade da impugnação e individualizar os seus motivos específicos quando, através da motivação, conhecem as razões por que o juiz decidiu de certo modo, como ainda o juiz de recurso está em posição de formular melhor o seu juízo sobre a sentença impugnada quando conhece a argumentação de facto e de direito de que ela é resultado.

Constitui ainda factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto, sendo garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões – citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, processo n.º 456/95, in Diário da República, II Série, de 05-03-1999.

Sobre separação entre o facto e o direito e o dever de fundamentação, à luz dos artigos 653.º e 655.º do CPC, pode ver-se de Antunes Varela em Os juízos de valor da lei substantiva, o apuramento dos factos na acção e o recurso de revista, tema de conferência feita em 6 de Maio de 1995, na sessão comemorativa do XX aniversário da Colectânea de Jurisprudência, na Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo 4, n.º 4, págs. 9/10.  

                                                             ******

      Visto o contexto, passemos à análise das afirmações produzidas, aqui distinguindo dois segmentos.

      Num primeiro, está em equação a afirmação de que a assistente nunca trabalhou nem ganhou um só cêntimo na pendência do casamento.

      O segundo, quanto à afirmação de se limitar a gastar e a gastar lautamente o dinheiro do marido.

       Analisando.

       No que toca ao assinalado primeiro segmento, há que ter em conta o alegado pela assistente na petição de divórcio na parte relativa aos alimentos provisórios, ou seja, o contributo da própria assistente para a configuração de determinada situação de vida no plano económico, substanciador de causa de pedir da pensão de alimentos.

 Neste contexto não se poderá assacar à decisão em causa a pretensão de devassa da intimidade da vida privada e familiar da assistente, face ao por si articulado e em conjugação com o afirmado pelas irmãs.

       Nestes casos o pretendente a alimentos fornece elementos e dados pessoais, imprescindíveis à composição do litígio, de certa forma se expondo.

       Na sentença de divórcio está em causa a decisão numa acção de estado, visando a cessação dos efeitos do casamento. Essa cessação verifica-se em dois planos distintos; no das relações pessoais e patrimoniais.

       Como decorre do artigo 1688.º do Código Civil, com a dissolução do casamento cessam as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, sem prejuízo das disposições relativas a alimentos.

       Integrante do Livro IV do Código Civil, dedicado ao Direito da Família, versa o Título V o tema “Dos alimentos”, em dois capítulos, sendo o Capítulo I relativo a “Disposições gerais”, abrangendo os artigos 2003.º a 2014.º, e o Capítulo II, estabelecendo as “Disposições especiais” nos artigos 2015.º a 2023.º, estatuindo o artigo 2016.º sobre o direito a alimentos em caso de divórcio e separação judicial de pessoas e bens. 

      De acordo com o artigo 2003.º, n.º 1 “Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”.

      O direito a alimentos é um direito estruturalmente obrigacional (artigo 397.º do Código Civil) e funcionalmente familiar.

       Sobre a medida dos alimentos diz o artigo 2004.º:

1 - Os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.

2 – Na fixação dos alimentos atender-se-á, outrossim, à possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência.

       Neste âmbito há que questionar as possibilidades do devedor e as necessidades do credor actuais ao tempo do pedido, tendo em conta o nível de vida e a posição social de um e outro – assim, acórdão do STJ de 7-05-1980, BMJ n.º 297, pág. 342.

A fixação do quantitativo de alimentos sempre foi considerada questão de direito, mas é questão de facto o apuramento das condições, sobretudo económicas, de que depende essa fixação – acórdão do STJ de 18-11-1955, BMJ n.º 52, pág. 681, anotação ao acórdão de 10-12-1954, BMJ n.º 46, pág. 456, acórdão de 16-10-1962, BMJ n.º 120, pág. 354 e de 7-05-1980, BMJ n.º 297.º, pág. 342 e Pereira Coelho, Curso de Direito de Família, 1969, 2.º, pág. 361.   

       Na petição de divórcio, no segmento de atribuição de alimentos provisórios, ao longo dos artigos 91 a 114, a autora substanciou a sua pretensão, descrevendo a sua situação económica, em ordem a demonstrar a carência, a necessidade de alimentos, dizendo muito claramente:

92 – [A Autora] Nunca exerceu, por imposição do Réu, qualquer profissão remunerada.

104 – A Autora não tem meios de subsistência, pelo menos até à partilha dos bens comuns do casal.

105 – Não aufere qualquer rendimento ou pensão.

113 – Pelo exposto necessita a Autora em absoluto que o Réu lhe preste alimentos.

114 – Atendendo a tudo o que se expôs e ao disposto no artigo 2016.º-A do Código Civil, não deve a pensão de alimentos fixar-se em quantia inferior a 2 500,00€/mês, que não permite à Autora manter o mesmo nível de vida que tinha na constância do casamento.

Pediu a fixação de regime provisório quanto a alimentos e a condenação do Réu a pagar-lhe uma pensão provisória não inferior a 2 500,00 € mensalmente.

     Da decisão relativa a alimentos provisórios de 22 de Março de 2013, conforme fls. 155 a 170, repetida a fls. 262 a 269 verso, retira-se que a requerente, ora assistente, então alegou:

- Nunca exerceu, por imposição do réu, qualquer profissão remunerada;

- Dedicou toda a sua vida de casada a cuidar dos filhos do casal, do réu e das lides domésticas;

- Durante os 29 anos que durou o casamento, a autora, com o seu trabalho permitiu que o réu se dedicasse em exclusividade e com êxito ao desempenho da sua actividade profissional de empresário da construção civil.

     Foi dado como indiciariamente demonstrado:

1 – A requerente AA e o requerido GG celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, em 21 de Março de 1982.  

3 – Nunca exerceu qualquer profissão remunerada e dedicou a sua vida de casada a cuidar dos filhos, do marido e da casa.

4 – Levava os filhos ao colégio e ao médico, ajudava-os a fazer os trabalhos de casa e mantinha a casa de morada de família em ordem, devidamente arrumada e limpa e as refeições atempadamente tratadas e bem confeccionadas.

7 – Como a autora nunca exerceu profissão remunerada na constância do casamento, o réu entregava-lhe mensalmente, nos últimos anos, € 3.000 euros.

8 – Com essa quantia, a autora fazia face às despesas do lar e dos filhos.

17 – Enquanto o requerido trabalhava, a requerente cuidava dos 3 filhos do casal.

18 – A autora levantou cerca de 156.000 euros da conta conjunta com o marido e cunhado, na constância do casamento, ao longo dos anos e antes de sair de casa.

       Resulta assim adquirido para o processo, com origem no alegado pela própria requerente, que, na constância do matrimónio, a mesma não trabalhou, em termos de trabalho remunerado, bem entendido (e quanto a isso não há a mínima dúvida, até pela ressalva final expressamente posta pela juíza arguida na decisão de oposição), não ficando provado, nem não provado, que o alegado não exercício de profissão remunerada por parte da requerente tivesse na sua base uma imposição do réu, como alegado foi.

 Por outro lado, a testemunha EE, irmã da autora, no seu depoimento, afirmou: “A irmã esteve casada 29 anos e nunca trabalhou fora de casa. O marido não queria que a mulher trabalhasse fora de casa”. (fls. 160).

   Na lógica da decisão estava a consideração de que todo o património adquirido tinha na sua base a frutificação do capital agregado exclusivamente pelo oponente e que para o pecúlio a requerente não teria contribuído com trabalho remunerado.

      Consta da decisão “Ora, como todo o capital, dinheiro e imóveis, são “filhos” da empresa em nome individual, tais bens arrolados não são comuns mas próprios do requerido com o que o arrolamento decretado não se pode manter à excepção do prédio referido em 12”.

       E dentro dessa lógica, que teve em conta apenas a frutificação do capital, olvidando o contributo do trabalho do oponente, a aquisição de bens com base em rendimentos da actividade do requerido, rendimentos que são bens comuns, a arguida convocou o artigo 1722.º, n.º 2, do Código Civil e não o disposto no artigo 1724.º, alínea a), do mesmo Código.

  No processo n.º 1312/11.3TBAMT, o depoimento de EE, irmã da assistente, na sessão de 12-07-2012 (Minuto 00:00:01 a 00:31:17), em respostas a advogado, elucida-nos que a irmã requerente nunca trabalhou fora de casa (fls. 8/9), há uns anos para cá viveu bem, não lhe faltava nada (fls. 14), viveu bem (fls. 15), se visse alguma roupa comprava e quando gostava de alguma coisa comprava - Também podia, não é? - (fls. 19), podia gastar em roupa 500,00€ / mês e em cremes uma média de 150,00 € (fls. 20/1), e em resposta a outro advogado “ela sempre teve uma vida … tinha dinheiro para o gastar (fls. 22), a fls. 27 nova referência a 500,00 euros por mês para roupa.

       Por seu turno, a irmã FF, na mesma sessão de 12 de Julho de 2012 (Minuto 00:00:01 a 00:42:45), diz que a irmã comprava muita roupa, assim como comprava para os filhos, para o marido… é assim eles eram uma família modelo em .... Eram as pessoas melhor vestidas ...; “ melhor vestidas, melhor calçadas …, a frequentar os melhores restaurantes… ela não comprava só para ela, todos eles tinham, um nível …”, “ ela é admirada por toda a gente, por andar mais bem vestida, bem calçada…” (fls. 48), tem muitos sapatos (fls. 53/4),  “ esses 3.000€ não lhe davam para as despesas nem para vestir” ( fls. 81).

       Como refere a decisão recorrida, a fls. 395 estes depoimentos, só por si (e sem a imediação e oralidade de quem apreciou a prova – a Mº juíza acusada), confirmam o juízo que se expressa na decisão, e aqui em causa, de que vivia com abundância; muito longe do caracter pejorativo querido pela assistente de “esbanjamento” (n.º 8 da acusação), que se traduz em gastar mal gasto, pois significa “ gastar em excesso, sem necessidade” - Dicionário cit. pág. 1479 (fls. 392).

      Independentemente do acerto da decisão, da bondade técnica da solução que obviamente aqui não está em causa, até porque, a final, resolvida foi a questão em sede própria, a afirmação é feita no exercício do dever de fundamentar a decisão, tendo-se para tanto, ancorado não só na dação de informação factual da requerente, como em depoimento prestado no incidente de alimentos provisórios, pelas irmãs daquela e no depoimento do irmão do requerido, aqui no que toca à exclusividade da origem do capital que frutificou.

       Não estamos, pois, face a palavras desonrosas.     

       Vejamos a questão quanto à segunda afirmação.

       Para este segmento são de convocar os depoimentos de duas irmãs da assistente.

       Respiga-se do depoimento de Natália Manuela Leite Teixeira, irmã da autora … “A irmã esteve casada 29 anos e nunca trabalhou fora de casa. O marido não queria que a mulher trabalhasse fora de casa. Por seu turno ela cuidava do marido, dos filhos, dos sogros e da casa. (…) A irmã teve sempre uma vida acima da média, com fausto, e agora não tem nada. Ultimamente não tem comprado roupa, quando antes, porque podia, gastava cerca de € 500 euros por mês em roupa. Gastava cerca de € 150 euros por mês em cremes e produtos de higiene. Com os € 3.000 euros que o marido lhe dava para a casa, pagava só a alimentação de todos, as propinas dos filhos e a renda de uma casa no Porto. 

        E do depoimento de FF, irmã da autora: “A irmã esteve casada cerca de 30 anos e, quando começaram a vida de casal tinham uma vida modesta e humilde. A irmã trabalhava em casa e tinham dificuldades financeiras. Depois com o boom da construção civil o seu cunhado criou um império à escala local. A sua irmã vestia e calçava os melhores artigos e frequentava os melhores restaurantes e marisqueiras.”.

       No final da fundamentação de direito, ao determinar o quantum a fixar, entendendo-se por adequada a quantia de 800 euros, diz-se “atendendo ao trem de vida do casal enquanto tal e à colaboração de quase 30 anos na vida doméstica, por banda da requerente de alimentos”. Ou seja, a juíza arguida, na ponderação final, não deixou de aludir ao papel da requerente ao longo da vivência do casal.

     A afirmação em causa é feita na sequência da exposição do adquirido a partir do depoimento do irmão do requerido, cunhado da assistente, uma vez mais na sequência da lógica da exclusividade aquisitiva de riqueza.    

      Atentemos na carga que resulta da utilização do advérbio lautamente.

      Consultado o Grande Dicionário Enciclopédico, Ediclube, Volume XI, pág. 3635, constata-se que lauto, do latim lautu, significa magnífico e como adjectivo, abundante, farto, opíparo, sumptuoso.

      No mesmo Dicionário, no volume VIII, pág. 2593, sobre o vocábulo Fausto pode ler-se: Adj. Afortunado, ditoso, próspero, venturoso, grande ornamentação e pompa exterior, luxo extraordinário, ostentação, sumptuosidade.

      No referido Dicionário da Academia de Ciências de 2001, os conceitos de lauto e de fausto têm pontos de contacto.

       FAUSTO

      No I volume, pág. 1703, consta:

       Fausto – adj. (Do lat. faustus, “afortunado”). Que é venturoso, feliz ou afortunado. = Fasto. Próspero.

       Fausto - s.m. Exibição de luxo, de sumptuosidade, de grande opulência. = Fasto. Pompa.

       Faustoso – adj. Que ostenta grande luxo, opulência, magnificência. Fastoso. pomposo. Adv. faustosamente: que gosta de luxo, da pompa ou de fausto.

 

       LAUTO

       No II volume, pág. 2234 – Lauto (Do lat. lautus). Que é abundante = Copioso. Farto. Profuso. Que é grandioso, magnífico. = Esplêndido, opulento, soberbo, sumptuoso.

       À lauta – loc. adv. - à farta; com abundância; opiparamente. 

       OPÍPARO       

       A págs. 2674:

       Opíparo – 1. Que se apresenta com abundância e requinte, luxo, aparato, pompa. = Lauto, sumptuoso.

       2 – Que revela magnificência, sumptuosidade, gosto pelo requinte, pelo luxo, pela pompa. = Faustoso. Sumptuoso.

 

      No Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consta:

      Lauto (latim lautus, -a, -um) adjectivo. Que apresenta abundância, riqueza ou luxo.= Abundante. Magnífico.

      Palavras relacionadas: lautamente, opíparo.

      Fausto – Que é feliz ou muito agradável.= Ditoso. Próspero.

Substantivo – ostentação ou exibição de grandeza ou de grande pompa. (Levava uma vida de fausto = luxo).

      Fausto, lauto e opíparo são palavras com significados próximos, convergentes ou coincidentes, sendo que Fasto é o mesmo que fausto, pompa. (Dicionário da Academia de Ciências de 2001, pág. 1700).

   

      A testemunha EE, irmã da assistente utilizou expressão equivalente ao afirmar que a irmã teve sempre uma vida acima da média, com fausto.

      E nesta perspectiva não estaria certamente a querer ofender a irmã.

     O mesmo aconteceu com a arguida, não se nos afigurando que tenha “explodido” ao produzir as afirmações consideradas injuriosas, como diz a assistente ao prestar declarações no âmbito do inquérito, como se alcança do 6.º parágrafo de fls. 16.

       Tem-se por certo que a arguida poderia ter sido mais contida na linguagem usada, que foi utilizada expressão menos feliz, que poderia e deveria ter sido evitada, mas a “sanção” veio na solução do recurso com a revogação da decisão, ao considerar que mesmo sendo o dinheiro do marido, os bens eram comuns, mantendo o arrolamento e repondo a situação anterior.

        Objecto do crime de difamação é a imputação a outrem de um facto ofensivo da honra e consideração. Este crime não é constituído apenas pelo acto material em si, mas também pelas circunstâncias que o rodeiam, pela intenção do agente e pelo fim que este teve em vista.

       Para a sua existência não basta a verificação do elemento objectivo ou material, antes se torna necessário que, além dele, se verifique ainda o elemento subjectivo ou ânimo de difamar, consubstanciado na vontade de ofender a honra e consideração alheias. 

       Como se extrai do acórdão deste STJ de 12-11-2015, processo n.º 5859/13.9TDLSB.S1-3.ª “Nos crimes de injúria e difamação o dolo, ou elemento volitivo da acção desvalorativa e do acto injusto, evidencia-se através dos actos exteriores ou factos demonstrativos de que o agente pretendeu e quis com a execução de uma determinada factologia atingir um fim ou resultado lesivo da honra e consideração de alguém. É necessário que resulte dos factos que aquele que agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, querer outra coisa que não atingir a honra e consideração de outrem”.

       Com a expressão utilizada não quis a arguida atingir a honra e reputação da assistente, até porque no final não deixou de reportar a ajuda da mesma ao casal ao longo do tempo em que perdurou o matrimónio.

       Aliás, no decorrer do depoimento do irmão do requerido, DD, a propósito da excepção peremptória, “única coisa capaz de paralisar o recebimento da pensão”, a juíza arguida sempre adoptou uma postura de equidistância, verbalizando “a mim não me agrada nada ir por esses caminhos” e “Tomara eu não irmos por esse caminho”, para além de outras expressões similares, tendo invectivado os advogados para chegarem a acordo, a uma saída com dignidade, como se alcança das passagens transcritas a fls. 125, 126 e 127, em documento junto pela assistente no debate instrutório.

      Concluindo: os recursos improcedem.

      Decisão

       Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto e pela assistente AA, mantendo-se a decisão instrutória, ora recorrida, de não pronúncia da arguida juíza de direito BB.  

      Custas pela assistente, nos termos do artigo 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP.

      Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 18 de Maio de 2016

Raúl Borges (Relator)
Manuel Augusto de Matos