Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
087563
Nº Convencional: JSTJ00028005
Relator: JOAQUIM DE MATOS
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
VOTAÇÃO
Nº do Documento: SJ199509280875632
Data do Acordão: 09/28/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N449 ANO1995 PAG388
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
Legislação Nacional: CRCOM86 ARTIGO 47.
CSC86 ARTIGO 250 N3 ARTIGO 251 N1.
Sumário : Dado que a lei reconhece como relevantes apenas interesses próprios (pessoais), morais ou materiais do sócio para exercício do direito de voto, nada obsta a tal exercício quando o conflito se configura entre a sociedade e uma terceira pessoa, ainda que cônjuge do sócio votante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A, identificada a folha 2, intentou na comarca de Oeiras, acção especial para ser declarada a rectificação judicial do registo comercial relativo à sua destituição da gerência da sociedade "B, Limitada", ali também identificada.
Por sentença de 6 de Outubro de 1994, a acção veio a ser julgada procedente e ordenada, em consequência, a rectificação do registo "por forma a que seja eliminada a referência à destituição da A. da gerência.
Do decidido agravaram os sócios contestantes C e D, ali também identificados, para a Relação de Lisboa, que, por douto Acórdão de 9 de Fevereiro de 1995, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
De novo inconformados os mesmos sócios contestantes interpuseram recurso de agravo para este Supremo Tribunal, alegando nos termos de folhas 185 a 202, com as conclusões seguintes:
"1) Existe conflito de interesses entre o sócio e a sociedade quando se delibera relativamente à destituição da gerência do respectivo cônjuge, atentos os fortes interesses pessoais e patrimoniais decorrentes da relação matrimonial;
2) O cônjuge da recorrida encontrava-se numa situação de impedimento legal de voto, decorrente do n. 1 do artigo 251 do Código das Sociedades Comerciais, pelo que se deveria abster da votação;
3) Não o fazendo, deve o seu voto ser descontado para o cálculo do resultado da votação, como decorre do ensinamento do Professor Raúl Ventura apoiado por autorizada doutrina estrangeira e vários arestos italianos reproduzidos nas presentes alegações; e
4) Se não foi contado o voto do sócio E, cônjuge da recorrida, a maioria que se formou no sentido de deliberação negativa (não destituição da gerência) dá lugar a uma deliberação positiva alcançada com os votos dos sócios ora recorrentes.".
Terminaram os recorrentes, defendendo se mantenha a inscrição registral da destituição da gerência, revogando-se o decidido, com as legais consequências.
Contra-alegando a recorrida preconiza se negue provimento ao agravo e se confirme a decisão objecto do recurso.
II - Após os "vistos" cumpre decidir:
A) Factos Provados:
1) A sociedade em causa é uma sociedade por quotas, com sede em Algés, Carnaxide, Oeiras, com o capital social de 600 contos;
2) São sócios dessa empresa: a) E, titular de três quotas de 180, 60 e 24 contos, representante de 44 porcento do capital social; b) D, titular de duas quotas de 60 e 30 contos, correspondentes a 15 porcento do capital social; c) C, titular de três quotas de 120, 40 e 24 contos, representando 31 porcento daquele capital social; e d) Alberto António Paula, titular de uma quota de 60 contos, correspondendo a 10 porcento do capital social;
3) Em 16 de Novembro de 1993 foi registada, provisoriamente, pela sua própria natureza, a acção judicial com vista à exclusão do sócio Ribeiro Boieiro;
4) Em 10 de Dezembro de 1993, realizou-se uma assembleia geral extraordinária da predita sociedade, com a presença da totalidade dos sócios, para deliberar
- além do mais aqui sem interesse - sobre a destituição, com justa causa, da gerente daquela (a Autora);
5) Posta à votação, votaram a favor os sócios Viriato e Manuel Lopes e contra os sócios Boieiro e Alberto; e
6) Em 28 de Dezembro de 1993, com base na acta da referida assembleia geral, foi registada a destituição da Autora, como gerente da referida sociedade.
B) Os Factos e o Direito:
1) A douta decisão recorrida:
Nesta decisão, considerando-se que a sentença da 1. Instância, concretamente, entendera que "o voto do sócio não devia ter sido descontado" "pelo órgão registral", negou-se provimento ao agravo e confirmou-se aquela sentença, com custas pelos recorrentes.
2) A nossa decisão: a) Os presentes autos surgem no seguinte contexto:
"Na assembleia geral extraordinária da sociedade Estabelecimento do Ensino Automóvel Ideal de Algés, Limitada, que ocorreu em 10 de Dezembro de 1993, dois sócios (Manuel Lopes e Viriato Alves, ora agravantes) titulares de 31 porcento e 15 porcento respectivamente do capital social, votaram favoravelmente a proposta por eles apresentada de destituição, com justa causa, da gerente (não sócia) A. Opuseram-se os sócios Manuel Boieiro - cônjuge da gerente destituenda - e o sócio Alberto Paula, que, por seu turno, são titulares de 43 porcento e 10 porcento do capital social.".
A Excelentíssima Conservadora do Registo Comercial de Oeiras, considerando que o sócio Boieiro se encontrava impedido por ser marido da gerente Maria do Rosário, entendeu que o seu voto deveria ser descontado e procedeu à inscrição registral da destituição da gerência, com justa causa, da mencionada Maria do Rosário.
Discordando do entendimento havido e o registo efectuado, este gerente propôs a presente acção em que lhe foi dada razão, quer na 1. Instância, quer no acórdão da Relação, e que foi interposto este recurso. b) Olhando para as conclusões do recurso, que, nos termos dos artigos 684, n. 3 e 690, n. 1, do Código de Processo Civil, delimitam o seu objecto, deles ressalta que o fulcro do problema consiste só em saber - e decidir - se, de facto, "existe conflito de interesses entre o sócio e a sociedade quando se delibera relativamente à destituição da gerência do respectivo cônjuge". b1) Dispõe o artigo 251, n. 1, do Código das Sociedades Comerciais:
"O sócio não pode estar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrém, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade.
Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar da deliberação que recaia sobre: a) Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização; b) Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal; c) Perda pelo sócio da parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204, n. 2; d) Exclusão do sócio; e) Consentimento previsto no artigo 254, n. 1; f) Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão da fiscalização; g) Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranho ao contrato da sociedade.".
Do artigo 47 do Código de Registo Comercial resulta que "compete ao conservador apreciar a viabilidade do pedido de registo, em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando especialmente a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos nelas contidos.". b2) Como resulta do transcrito artigo 251, n. 1, existindo uma situação de conflito de interesses entre o sócio e a sociedade, tal situação pode repercutir-se no exercício do direito de voto, originando o impedimento desse exercício. A esse impedimento se reporta aquele artigo, com uma indicação meramente exemplificativa de situações geradoras de conflitos de interesses no tocante às sociedades por quotas, "aliás com carácter imperativo, por não poder o contrato social eliminar qualquer dessas causas "de impedimento" (cfr. aludido artigo 251, no seu n. 2, e Miguel Rupo Correia, in "Direito Comercial", 3. edição, páginas 493 a 496).
Perante o estatuído neste normativo pode afirmar-se que não se verifica conflito de interesses entre o sócio E e a sociedade relativamente ao objecto da deliberação em que esteve em causa a destituição da gerência da sociedade da A., sua mulher, e daí que nenhum válido motivo se configure para entender que existe impedimento do voto no caso vertente e no tocante ao mesmo sócio.
A propósito - e com a sua reconhecida autoridade na matéria - diz Raúl Ventura, in "Comentário ao Código das Sociedades Comerciais - Sociedades por Quotas -" vol. II, 1989, página 291, o seguinte: "Ressalvado sempre o caso do sócio votar como representante de quem esteja em conflito de interesses com a sociedade, entende a doutrina alemã - e com ela concordo - que um sócio não está impedido de votar porque existe um conflito de interesses entre a sociedade e um outro sócio com o qual aquele tem relações de matrimónio ou parentesco".
De tudo isto decorre que se subscreve na íntegra o contido na contra-alegação, a folha 217, onde se comenta que "se na hipótese da A. agravada ser ela também sócia, que não é, o seu marido não estaria impedido de votar a proposta apresentada, por maioria de razão, não sendo sócio, não existe impedimento de voto do cônjuge".
Verificando-se que o conflito em abstracto se configure entre a sociedade e uma terceira pessoa, ainda que cônjuge do sócio, nada obsta na Lei a que este possa exercer o seu direito de voto, já que os interesses que são relevantes, em face do artigo 251, n. 1, são apenas interesses próprios (pessoais), morais ou materiais do sócio individualmente considerado.
Do que acaba de explanar-se manifestamente decorre que se não aceita o contido nas conclusões 1) e 2) do alegado pelos recorrentes a matéria a que tais conclusões se reportam.
De notar, ainda - apesar de a tal se não referirem as conclusões em causa ou quaisquer outras - que como o acabado de afirmar em nada colide o facto de contra o sócio E, marido da A. agravada, estar a correr termos uma acção judicial da sua exclusão de sócio.
Na verdade tal acção e o seu registo provisório por natureza nada interferem - nem poderiam interferir por não estar perante acção com sentença com trânsito em julgado - com o pleno exercício dos seus direitos de sócio, entre os quais o direito de voto, pelo aludido E.
Também não pode deixar de referir-se que dos factos provados - fixados definitivamente pelas Instâncias - nenhuma ilação pode extrair-se no sentido de existência do invocado conflito de interesses entre a sociedade e aquele seu sócio. E não pode esquecer-se que, por força dos artigos 722, n. 2, e 755, n. 2, do Código de Processo Civil, o conhecimento da matéria de facto está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça, que "fora dos casos previstos na lei,... apenas conhece da matéria de direito" (cfr. artigo 29 do LOTJ).
No tocante ao desconto dos votos emitidos pelo sócio E defendido pelos aqui recorrentes, diremos que não concordamos com a tese dos mesmos exposta nas suas alegações.
Tal tese radica em pressupostos que temos como menos correctos e que "in casu" se não encontram configurados. É que, por um lado, não se verifica o pressuposto da existência do conflito de interesses entre a sociedade e o sócio nos termos que antes deixámos referenciados, e, por outro lado, como também se disse, a propositura da acção de exclusão de sócio, em nada afecta ou diminui o estatuto respectivo, designadamente quanto ao "jus sufraggii" do E.
Sendo assim, como efectivamente é, mesmo que, em abstracto, pudesse ter lugar aquele desconto de votos, nunca ele poderia ocorrer em concreto e isso por falta das premissas ou pressupostos fácticos necessários para tal efeito.
Sucede porém que tal desconto de votos, não sendo viável em concreto, também o não seria em abstracto.
E isso porque a destituição da A. (gerente da sociedade) apenas obteve o voto favorável dos aqui recorrentes D e C, o que significa tão só o total de 46 porcento do capital social, acontecendo que os sócios E e F, representando 54 porcento desse capital, votaram desfavoravelmente a deliberação da destituição. E, como decorre do artigo 250, n. 3, do Código das Sociedades Comerciais, "as deliberações consideram-se tomadas se obtiverem a maioria dos votos emitidos" (cfr., a propósito, Vasco Lobo Xavier, in "Invalidação e Ineficácia das Deliberações Sociais no Projecto do
Código das Sociedades Comerciais" - RLJ. 118, 128 e seguintes).
É certo que Raúl Ventura, com base na distinção adoptada pela doutrina e pela jurisprudência alemãs entre deliberações sociais positivas (em que os votos sim excedem os votos não) e deliberações sociais negativas (em que os votos não conduzem à não aprovação duma proposta de deliberação), defende que o direito português é lacunar, pois que o sistema instituído expressamente apenas abrange as deliberações positivas, deliberações essas que, sendo tomadas com votos do sócio impedido, serão anuladas na acção respectiva (e aqueles votos descontados) "a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas com os votos abusivos" (cfr. ob. cit.- "Comentário...", vol. II, 1989, páginas 238 a 243 e 267 a 270).
Quanto às chamadas deliberações sociais negativas, segundo aquele Mestre, dada a lacuna da lei, "a solução mais satisfatória consiste em proceder, sem necessidade de qualquer acção, ao desconto dos votos ilegais, considerando como directamente tomada a deliberação positiva que dessa oposição resultar", sendo certo que "o sócio que entenda ser o desconto dos votos incorrecto, poderá propor acção da anulação da deliberação positiva..." (cfr. uma vez mais, ob. cit., vol. II, páginas 271 a 274).
Sem quebra do merecido respeito pelo entendimento explanado daquele Ilustre Professor, temos para nós que nada na Lei autoriza um tratamento diverso para as deliberações positivas e para as deliberações negativas, não podendo esquecer-se que a admitir-se o desconto de votos, tidos por ilegais, "sem necessidade de qualquer acção", estaria a ferir-se manifestamente valores de certeza e segurança jurídica e a abrir-se a porta ao arbítrio... Daí que tenhamos como ponto assente não poder distinguir-se entre deliberações positivas e deliberações negativas no tocante à aplicação do regime legal da sua anulação - através da acção judicial - fundada em haverem sido tomadas com base em votos tidos por ilegais...
Dado que o artigo 251 do Código das Sociedades Comerciais "enuncia uma regra geral geradora dos impedimentos de voto por conflito de interesses, a aplicação casuística do preceito tende a abranger grande multiplicidade de situações, frequentemente da árdua dilucidação" pelo que "não é impotável desviar do poder judicial a verificação a (in)validade de qualquer deliberação que transparece possuir certo sentido fluente da acta que a documente" (cfr. folha 227 dos autos).
E, não obstante a consideração pelos outros Serviços estatais que nos termos da Lei gozam de fé pública, como é o caso do Registo Comercial, não podemos abdicar de que "incumbe aos Tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados" (cfr. artigo 205, n. 2, da Constituição da
República).
Daí que não possa ter-se como curial à face da Lei a orientação adoptada pela Excelentíssima Procuradora do Registo Comercial que, perante a deliberação negativa e maioritária da não destituição da gerente, decidiu optar por registar a tomada da deliberação positiva e minoritária da destituição da mesma. É que à luz do artigo 47 do Código de Registo Comercial, onde se consagra o princípio da legalidade, tal orientação não é decerto admissível, traduzindo-se afinal um procedimento extravasante da competência funcional e que, como diz a A. recorrida, "constitui a aniquilação da deliberação tomada, constante de um título que formalmente não evidencia nenhuma irregularidade"...
De tudo que se referenciou é por demais evidente que se não adere também ao sumariado nas conclusões 3) e 4) o alegado pelos recorrentes e matéria a que essas conclusões dizem respeito. c) Vai, assim, manter-se o decidido nas Instâncias.
III - Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo, confirmando-se a decisão, com custas pelos recorrentes.
Lisboa, 28 de Setembro de 1995.
Henriques de Matos.
Costa Soares.
Lopes Cardoso.
Decisões impugnadas:
I - Sentença de 6 de Outubro de 1994 do Tribunal de Oeiras - 3. Juízo;
II - Acórdão de 9 de Fevereiro de 1995 do Tribunal da Relação de Lisboa.