Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00018694 | ||
| Relator: | SOUSA GUEDES | ||
| Descritores: | RAPTO DE MENOR DE 16 ANOS SEQUESTRO ELEMENTOS DA INFRACÇÃO TIPICIDADE | ||
| Nº do Documento: | SJ199305060439173 | ||
| Data do Acordão: | 05/06/1993 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Referência de Publicação: | BMJ N427 ANO1993 PAG245 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REC PENAL. | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
| Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS. | ||
| Legislação Nacional: | CP82 ARTIGO 160 ARTIGO 163. | ||
| Sumário : | O crime de rapto de menor distingue-se do crime de rapto na medida em que naquele se exige, como elemento típico, para além da privação da liberdade de uma pessoa, que essa privação tenha, entre outras finalidades, intenções libidinosas. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. A, casado, mecânico, de 60 anos de idade, com os demais sinais dos autos, respondeu perante o Tribunal Colectivo de Caldas da Rainha, mediante acusação do Ministério Público, sendo condenado pela prática de um crime de rapto do artigo 163, n. 1 do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante designados sem menção do diploma a que pertencem) e de um crime de atentado ao pudor do artigo 205, ns. 1 e 2, respectivamente, nas penas de 6 anos de prisão e de um ano e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão, sendo declarado a favor do Estado o veículo apreendido. II. Recorreu desta decisão o arguido. Na sua motivação concluiu, em síntese, o seguinte: - A menor já antes, por várias vezes, viajara no carro do arguido e praticara com ele actos libidinosos semelhantes em diversos locais da Lagoa de Óbidos; - A deslocação da menor para casa do arguido, na mesma viatura, não implica por isso "a ruptura da situação de protecção e dependência sob a qual ela se encontrava", sendo certo que esta circunstância é elemento essencial do tipo de crime de rapto do artigo 163, n. 1; - Se se entender existir pelo menos uma certa compressão da liberdade da menor, então o seu comportamento deverá subsumir-se à previsão do artigo 160, n. 1; - De qualquer modo, o arguido deve ser absolvido do crime do artigo 163, n. 1, cujo normativo foi violado, por erro na subsunção dos factos no direito. Na sua resposta, o Ministério Público bateu-se pelo improvimento do recurso. III. Cumprido neste Supremo Tribunal o disposto nos arts. 416, 417, 418 e 421, n. 1 do Código de Processo Penal, realizou-se a audiência com observância do formalismo legal, ocorrendo agora decidir. É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada: - Nos primeiros meses do ano de 1992 o arguido conheceu B, menor de 11 anos de idade; - De quando em vez encontrava a menor na rua e oferecia-lhe guloseimas, procurando-a também junto à sua residência, em Óbidos; - No dia 20 de Abril de 1992, cerca das 14 horas, a B estava a brincar em frente à sua casa quando, a dado momento, surgiu o arguido tripulando o seu veículo ligeiro de passageiros da marca Peugeot, modelo 405 GR, matrícula VJ, o qual ao avistar a menor estacionou o automóvel em frente à casa dela; - Chamou a menor e perguntou-lhe onde se encontrava o seu irmão C, ao que aquela lhe respondeu que estava na Lagoa de Óbidos; - Porque o C havia ido para aquele lugar sem a querer levar, a B, aproveitando a presença do arguido, pediu-lhe que a levasse à Lagoa de Óbidos, onde estava o irmão; - O arguido acedeu ao pedido, tendo a menor entrado no veículo convicta de que aquele rumaria o veículo para a Lagoa de Óbidos; - Quando a B entrou no veículo, o arguido pô-lo em movimento e, colocando uma mão na cabeça da menor, fê-la esconder-se debaixo do "tablier" da viatura de modo que não fosse vista do lado de fora, dizendo-lhe que se mantivesse naquela posição; - De seguida, em vez de levar a B à Lagoa de Óbidos, o arguido rumou com ela em direcção à sua residência, sita no Alto do Moinho Saloio, Gaeiras, Óbidos, que dista da casa da menor cerca de 8 quilómetros; - Só quando o arguido parou o veículo em frente à casa é que informou a menor de que estava em sua casa; - Este facto inquietou e assustou a menor, visto ter sido dirigida para local diverso daquele para onde queria e estava convicta de ir, achando-se sozinha com o arguido e num sítio onde não conhecia ninguém a quem pudesse recorrer; - O arguido disse então à menor que entrasse em sua casa, o que ela fez; - O arguido começou por lhe mostrar os vários compartimentos que compõem a habitação, dizendo-lhe por fim que se sentasse no sofá da sala, ao mesmo tempo que lhe acendia a televisão; - Passados alguns momentos, ofereceu-lhe um pacote de amêndoas e convidou-a a deslocar-se ao seu quarto de dormir, dizendo-lhe que tinha uns calções para lhe dar; - Uma vez no quarto de dormir, o arguido sentou-se na cama e, após lhe ter mostrado uns calções que não eram da medida da menor, puxou-a para si, beijou-a na face e depois, arredando-lhe o vestido para o lado, beijou-lhe e acariciou-lhe os seios, passando a afagar-lhe a zona genital por cima da roupa; - Após satisfazer a sua lascívia, o arguido levou a B para o veículo, voltando a dizer-lhe para se esconder debaixo do "tablier" da viatura, tendo a menor obedecido de imediato; - Conduziu-a então à Lagoa de Óbidos, local onde a B esteve a brincar durante algum tempo com o seu irmão C e dois outros companheiros; - Cerca das 16 horas e 30 minutos, o arguido trouxe os menores para casa no referido veículo; - Quando estava quase a chegar à residência dos menores, o arguido avistou a mãe dos mesmos, facto que o levou a parar imediatamente a viatura para que aqueles saíssem sem serem vistos pela mãe na sua companhia; - O arguido, ao actuar da forma descrita, privou a menor de sua liberdade de determinação, com o fim de assim conseguir satisfazer a sua lascívia; - Pôs ainda em causa e feriu os sentimentos de honra e vergonha da menor; - O arguido tinha conhecimento de que a B tinha apenas 11 anos de idade; - Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas por lei; - Confessou parcialmente os factos, sem relevância para a descoberta da verdade; - Usufrui de condição social média e económica desafogada, vivendo bem. IV. Não se vendo que a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal Colectivo sofra de algum dos vícios (aliás não alegado) previstos no n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal, tem este Supremo Tribunal de acatá-la. Sustenta o recorrente que a sua conduta é apenas subsumível, quando muito, à previsão do artigo 160, n. 1. Mas não tem razão. Por um lado, funda a sua argumentação em factos que não constam, como provados, do texto da decisão recorrida, designadamente o de existir um longo relacionamento sensual entre o arguido e a ofendida e o de esta livremente consentir num comportamento a que já se habituara, por sentir alguma afeição pelo recorrente. Para além de não provados, estes factos - alegados por um homem de 60 anos em relação a uma menor de 11 anos - só poderão exasperar a sua torpeza. Por outro lado, confunde o recorrente os tipos legais de crime dos artigos 160, n. 1 e 163, n. 1. No primeiro tipo legal (sequestro), é punido com prisão até 2 anos "quem... de qualquer forma privar da sua liberdade... outra pessoa". No segundo (rapto de menor), é punido com prisão de 6 a 10 anos "quem raptar ou privar da sua liberdade menor de 16 anos... com intenções libidinosas..." (deixamos de lado os outros casos aí previstos). Existe neste tipo, em relação ao primeiro, um quid suplementar: que a privação da liberdade, em relação a menor de 16 anos, tenha intenções libidinosas. Assim, para existir o falado crime de rapto basta que no momento da primeira acção (privação da liberdade) concorra a intenção de o agente realizar a segunda (práticas libidinosas), a qual, todavia, pode não se chegar a concretizar. A partir do momento em que o arguido, sem a vontade da menor, a levou no seu automóvel "para local diverso daquele para onde queria e estava convicta de ir", "com o fim de assim conseguir satisfazer a sua lascívia", consumado ficou o crime de rapto do artigo 163, n. 1. Este tipo de rapto consuma-se logo que o sujeito passivo é subtraído à sua esfera normal de vida, à sua liberdade, e entra na disponibilidade do raptor, cuja segunda intenção é a de realizar actos libidinosos com a raptada. Nem pode dizer-se que a menor consentiu (ao menos tacitamente) no percurso diverso do que pretendia, pois é patente (os factos provados mostram-no) que o arguido usou de astúcia para conduzir a menor primeiro até sua casa e depois até ao seu quarto de dormir, a fim de aí satisfazer a sua lascívia. E logo o artigo 162, n.1 retira relevância ao consentimento obtido através de astúcia, mesmo em relação a pessoas maiores. Consentimento, de resto, completamente afastado quando o Colectivo dá como provado que "só quando o arguido parou o veículo em frente à casa é que informou a menor de que estava em sua casa" (a cerca de 8 quilómetros) e que "este facto inquietou e assustou a menor", que se achou "sozinha com o arguido e num sítio onde não conhecia ninguém a quem pudesse recorrer". Não se percebe, desta forma, como é que o recorrente pode sustentar que não se verificou "a ruptura da situação de protecção e dependência sob a qual ela se encontrava", pois essa ruptura é mais que evidente. Pelo exposto, não pode duvidar-se de que estão reunidos, no caso, todos os elementos típicos do artigo 163, n. 1: privação da liberdade de menor de 16 anos; intenção de satisfação da libido por parte do agente. Improcede, assim, a pretensão do recorrente de ver a sua conduta subsumida ao artigo 160, n. 1, em alternativa à sua absolvição. V. Não vem questionada a dosimetria penal utilizada pelo Tribunal Colectivo, no âmbito do enquadramento jurídico cuja revogação se defendeu, mas sem êxito. Sempre se dirá, porém, que as penas parcelares e única decretadas pelos crimes acima referidos se mostram ajustadas à responsabilidade criminal do arguido, tendo sido doseadas num critério equilibrado que só merece confirmação. Nenhum reparo a fazer ao mais decidido no acórdão recorrido. VI. Termos em que se decide negar provimento ao recurso e confirmar a decisão impugnada. Pagará o recorrente 5 Ucs de taxa de justiça, com a procuradoria de 1/4. Fixam-se em 15000 escudos os honorários devidos ao Excelentíssimo Defensor nomeado em audiência. Lisboa, 6 de Maio de 1993 Sousa Guedes, Alves Ribeiro, Cardoso Bastos, Sá Ferreira. Decisão impugnada: - Acórdão de 92.11.20 do 1 Juízo, 2 Secção do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha. |