Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
105/11.2TBRMZ.E1-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IRREGULARIDADE
NOTIFICAÇÃO
ARGUIDO
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE ARMAS
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS
DIREITO EUROPEU - DIREITOS HUMANOS
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS
Doutrina: - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 149 e segs..
Legislação Nacional: CÓDIGO PROCESSUAL PENAL (CPP): - ARTIGOS 123.º, 417.º, N.º2, 440.º, N.º1, 448.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 20.º, N.º4, 32.º, N.º5.
Referências Internacionais: CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM (CEDH):
- ARTIGO 6.º, PARÁGRAFO 1.º.
Jurisprudência Internacional: DECISÃO DO TEDH, DE 6 DE MAIO DE 2003, QUEIXA Nº 27569/03, FISCHER C. ÁUSTRIA.
Sumário :



I - A recorrente, notificada do acórdão proferido pelo STJ nos autos, vem arguir a irregularidade do acto de não notificação do parecer do MP, nos termos do disposto no art. 123.° do CPP.
II - A intervenção do MP fase de exame preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está prevista no art. 440.°, n.º 1. do CPP; a fase preliminar tem como finalidade verificar a admissibilidade, o regime do recuso e a existência de oposição entre julgados.
III - Esta fase de verificação dos pressupostos prévios que o recorrente invoca, não tem, pela sua própria natureza, qualquer função ou implicação na decisão de uma causa, com efeitos directos e imediatos em direitos que constituam o objecto de um processo penal – a decisão de uma causa para determinação da culpabilidade e, eventualmente, da sanção que couber, isto é, a fixação dos factos e da correspondente qualificação jurídica com as consequências que determinar. Nem a fase, nem obviamente a espécie de recurso.
IV - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a beneficio directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de um norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.
V - O recurso hierárquico, por seu lado, tem como finalidade a reapreciação em outro grau de jurisdição, segundo as regras de competência em razão da hierarquia, de uma causa ou de elementos de uma causa julgada em primeiro grau de jurisdição (ou em segundo grau) em outra instância inferior, para decisão sobre o objecto ou partes delimitadas do objecto do processo; no processo penal, o objecto do processo é constituído pela discussão de uma acusação penal dirigida contra uma pessoa para determinação da culpabilidade (os factos) e eventualmente da sanção que vai ser aplicada (o direito). Os recursos hierárquicos são recursos ordinários.
VI - Considerando a natureza, a espécie e a função do recuso extraordinário para fixação de jurisprudência, a recorrente não fundamenta normativamente a causa da irregularidade que invoca. A referência ao art. 123.° do CPP não é bastante; a norma dispõe exclusivamente sobre o regime de um vício do processo que não seja qualificado como nulidade segundo a regra do numerus clausus, suposto que esteja demonstrado o fundamento, sendo, pois, necessário identificar e invocar a norma ou o princípio do processo que imponha a notificação do acto que a recorrente refere.
VII - A recorrente refere o art. 417.°, n.º 2 do CPP. A norma está inserida nas disposições que regulam o recurso ordinário, com a função de fazer respeitar o princípio do contraditório, e apenas tem razão de ser nesta finalidade; mas o princípio do contraditório tem uma dimensão que não é formal, mas essencialmente material-processual.
VIII - O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1974, p. 149 e ss.). O princípio, que tem conteúdo e sentido autónomo, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte; nomeadamente para que o acusado possa ter a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.
IX - Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.
X - O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que ao outros sujeitos processuais (a “parte” adversa). Ou, em outra formulação mais abrangente e que contemple diversas especificidades do sistema processual, a possibilidade e o modo de administrar as provas devem ser idênticos para todos os sujeitos, seja o MP, o assistente ou o arguido.
XI - A dimensão constitucional e o conteúdo convencional do princípio do contraditório, concretizadas também no art. 417.°, n.º 2, do CPP, na regulação do recurso ordinário, não têm campo de aplicação na fase preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Por isso, razoavelmente, a notificação da posição do MP não está prevista no regime do recurso extraordinário, nem a finalidade e função da intervenção revelam a existência de qualquer espaço normativo na regulação do processo que justifique a aplicação subsidiária do regime do recurso ordinário (art. 448.º do CPP).
XII - Não há, deste modo, imposição processual que preveja, nem o princípio do contraditório na dimensão material-processual impõe, a notificação da intervenção do MP prevista no art. 440.° do CPP na fase preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, pelo que se indefere a irregularidade arguida.


Decisão Texto Integral:

   Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

            1. A recorrente SOCIEDADE AA, Lda., notificada do acórdão de fls., vem arguir a irregularidade do acto de não notificação do Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto em fls., nos termos do disposto no artigo 123.º do Código de Processo Penal (doravante CPP), nos termos e com os seguintes fundamentos:

No acórdão é mencionado expressamente, no seu ponto 3, que “no Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido Parecer pronunciando-se pela rejeição do recurso” interposto pela recorrente, nos termos do disposto no artigo 416.° do CPP;

Deveria ter sido concedido à Recorrente prazo de 10 (dez) dias para se pronunciar quanto ao Parecer emitido pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, cujo teor se desconhece, nos termos do disposto no artigo 417.°, n.° 2 do CPP;

Constata-se, no entanto, que não foi conferido este direito à Recorrente, o que implica a verificação de uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123° do CPP, a qual é de fundamental importância sanar;

Se assim não se entender existirá «uma clara violação do direito a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso (artigos. 20.°, n.°4, e 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa).»

 Nestes termos, invocando o disposto no artigo 123.° do CPP, a recorrente argui a irregularidade do acto de não notificação do Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto em fls. dos autos, devendo ser ordenada a sua notificação à Recorrente para, querendo e como é de seu direito se pronunciar nos termos do artº 417°, n°2 do CPP.

2. Cumpre decidir.

Antes, no entanto, uma pequena precisão: no primeiro parágrafo da sua arguição de irregularidade processual, a recorrente invoca que no acórdão se refere que “no STJ o Exmº PGA emitiu desenvolvido parecer pronunciando-se pela rejeição do recurso”, «nos termos do artigo 416º do CPP». Porém, como se pode verificar imediatamente, nem a exposição introdutória nem o texto do acórdão contêm, nem poderiam conter, qualquer referência ao artigo 416º do CPP, que é disposição processual estranha às circunstâncias e à espécie de recurso em causa.

3. A intervenção do Ministério Público na fase de exame preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência está prevista no artigo 440º, nº 1 do CPP; a fase preliminar tem como finalidade verificar a admissibilidade, o regime do recuso e a existência de oposição entre julgados.

Esta fase de verificação dos pressupostos prévios que o recorrente invoca, não tem, pela sua própria natureza, qualquer função ou implicação na decisão de uma causa, com efeitos directos e imediatos em direitos que constituam o objecto de um processo penal – a decisão de uma causa para determinação da culpabilidade e, eventualmente, da sanção que couber, isto é, a fixação dos factos e da correspondente qualificação jurídica com as consequências que determinar.

Nem a fase, nem obviamente a espécie de recurso.

O recurso extraordinário para fixação e jurisprudência constitui uma espécie de recurso classificado como «recurso normativo», por contraposição com o denominado «recurso hierárquico»; no recurso normativo, o objecto é constituído pela determinação do sentido de uma «norma», com força quase obrigatória e, de qualquer modo, geral e abstracta, a benefício directo dos valores da certeza e da segurança jurídica, unificando a interpretação e o sentido de um norma ou dimensão normativa que os tribunais de recurso consideravam de modo divergente.

O recurso hierárquico, por seu lado, tem como finalidade a reapreciação em outro grau de jurisdição, segundo as regras de competência em razão da hierarquia, de uma causa ou de elementos de uma causa julgada em primeiro grau de jurisdição (ou em segundo grau) em outra instância inferior, para decisão sobre o objecto ou partes delimitadas do objecto do processo; no processo penal, o objecto do processo é constituído pela discussão de uma acusação penal dirigida contra uma pessoa para determinação da culpabilidade (os factos) e eventualmente da sanção que vai ser aplicada (o direito).

Os recursos hierárquicos são recursos ordinários.

Considerando a natureza, a espécie e a função do recuso extraordinário para fixação de jurisprudência, a recorrente não fundamenta normativamente a causa da irregularidade que invoca. A referência ao artigo 123º do CPP não é bastante; a norma dispõe exclusivamente sobre o regime de um vício do processo que não seja qualificado como nulidade segundo a regra do numerus clausus, suposto que esteja demonstrado o fundamento, sendo, pois, necessário identificar e invocar a norma ou o princípio do processo que imponha a notificação do acto que a recorrente refere.

A recorrente refere o artigo 417º, nº 2 do CPP. A norma está inserida nas disposições que regulam o recurso ordinário, com a função de fazer respeitar o princípio do contraditório, e apenas tem razão de ser nesta finalidade; mas o princípio do contraditório tem uma dimensão que não é formal, mas essencialmente material-processual.

O princípio do contraditório tem no moderno processo penal o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1974, p. 149 e segs). O princípio, que tem conteúdo e sentido autónomo, impõe que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte; nomeadamente para que o acusado possa ter a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação.

A construção da verdadeira autonomia substancial do princípio do contraditório impõe que seja concebido e integrado como princípio ou direito de audiência, dando «oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo» (cfr. idem, pág. 153).

O princípio tem assento constitucional – artigo 32º, nº 5, da Constituição, como uma dimensão especificamente delimitada e claramente substancial: subordinação da audiência e dos actos instrutórios que a lei determinar ao princípio do contraditório.

A densificação do princípio deve relevante contributo à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem considerado o contraditório um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Na construção convencional, o contraditório, colocado como integrante e central nos direitos do acusado (apreciação contraditória de uma acusação dirigida contra um indivíduo), tem sido interpretado como exigência de equidade, no sentido em que ao acusado deve ser proporcionada a possibilidade de expor a sua posição e de apresentar e produzir as provas em condições que lhe não coloquem dificuldades ou desvantagens em relação à acusação.

O princípio do contraditório tem, assim, uma vocação instrumental da realização do direito de defesa e do princípio da igualdade de armas: numa perspectiva processual, significa que não pode ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar; no plano da igualdade de armas na administração das provas, significa que qualquer um dos sujeitos processuais interessados, nomeadamente o arguido, deve ter a possibilidade de convocar e interrogar as testemunhas nas mesmas condições que ao outros sujeitos processuais (a “parte” adversa).

            Ou, em outra formulação mais abrangente e que contemple diversas especificidades do sistema processual, a possibilidade e o modo de administrar as provas devem ser idênticos para todos os sujeitos, seja o Ministério Público, o assistente ou o arguido.

            4. A dimensão constitucional e o conteúdo convencional do princípio do contraditório, concretizadas também no artigo 417º, nº 2 do CPP na regulação do recurso ordinário, não têm campo de aplicação na fase preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

            Por isso, razoavelmente, a notificação da posição do Mº Pº não está prevista no regime do recurso extraordinário, nem a finalidade e função da intervenção revelam a existência de qualquer espaço normativo na regulação do processo que justifique a aplicação subsidiária do regime do recurso ordinário (artigo 448º do CPP).

            A dimensão constitucional do contraditório, limitada nos ternos do artigo 32º, nº 5 da CRP, não abrange qualquer acto que se integre no regime e no objecto do recurso extraordinário; e também o respeito dos elementos do princípio do processo equitativo não impõe a extensão ao recurso extraordinário. As garantias do processo equitativo, incluindo a dimensão processual-material do contraditório, expressas no artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (noção recolhida e assimilada pela integração do princípio no artigo 20º, nº 4, fim da CRP), estão previstas apenas para os casos de aplicação do artigo 6º, isto é, no processo em que esteja em causa a discussão e a decisão de uma acusação penal dirigida contra alguém; como se salientou, o recurso extraordinário em que está em causa apenas a definição de um conteúdo normativo, não tem por objecto a decisão de qualquer acusação em matéria penal, da culpabilidade e da pena. Estando, consequentemente, fora do âmbito de aplicabilidade do artigo 6º, par. 1 da CEDH, não é exigido o contraditório nos termos invocados pelo recorrente (cf., v. g., em situação aproximada, a Decisão do TEDH de 6 de Maio de 2003, Queixa nº 27569/03, FISCHER c. ÁUSTRIA).

            Não há, deste modo, imposição processual que preveja, nem o princípio do contraditório na dimensão material-processual impõe, a notificação da intervenção do Mº Pº prevista no artigo 440º do CPP na fase preliminar do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

            5. Nestes termos, indefere-se a arguição.

Lisboa, 05 de Dezembro de 2012

Henriques Gaspar (Relator

Armindo Monteiro


Pereira Madeira