Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
602/21.1PBMTA.L1-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO
Data da Reclamação: 12/02/2025
Votação: - -
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO – ARTIGO 405.º DO CPP
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. No processo penal, não é admissível a revista excecional, admitida no processo civil.

II. O legislador do CPP de 1987 quis mudar o paradigma antecedente, erigindo um sistema de recursos autónomo, completamente regulamentado na lei adjetiva penal.

III. Apesar de se questionar, desde então, a admissibilidade da revista excecional no processo penal, o legislador, na meia centena de alterações ao CPP – a última das quais há menos de 10 dias (pela Lei n.º 67/2025, de 24/11) – nunca aditou qualquer norma que aponte para a aplicação da revista excecional no processo penal.

Decisão Texto Integral:
Reclamação – artigo 405.º do CPP

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I - Relatório:

O arguido AA foi condenado em 1.ª instância pela prática de 288 crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, sendo 126, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redação da Lei n.º 103/2015, de 24/08 (factos ocorridos entre 13-09-2019 e 31-08-2020) e 162, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, alínea a), 171.º, n.º 1 e n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na redação da Lei n.º 40/2020, de 18/08, nas penas parcelares de 2 anos de prisão por cada.

Em cúmulo jurídico dessas penas parcelares foi condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

Não se conformando, recorreram o arguido e o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 22 de outubro de 2025, julgou improcedentes os recursos, mantendo integralmente a decisão recorrida.

Inconformado, interpôs o arguido AA recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Recurso que não foi admitido por despacho de 7 de novembro de 2025, com fundamento no disposto no artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, tendo em conta que são irrecorríveis as penas individuais por as mesmas serem inferiores a 5 anos de prisão e não ter existido absolvição em 1.ª instância e ainda por a pena encontrada em cúmulo jurídico na 1.ª instância ter sido confirmada, não sendo superior a 8 anos de prisão.

O recorrente apresentou reclamação nos termos do artigo 405.º do CPP do despacho que não admitiu o recurso, deduzindo, além do mais, as seguintes inconstitucionalidades:

- a inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por violação dos artigos 13.º, 20.º n.ºs 1 e 4 e 32.º n.ºs 1, da CRP;

- a inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do CPP, segundo a qual não é aplicável em processo penal o recurso de revista excecional previsto no artigo 672.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP.

Para depois referir que:

“(…) O legislador quando referiu no artigo 399.º do Código de Processo Penal, que eram recorríveis as decisões cuja irrecorribilidade não estivesse prevista na lei, pretendeu dizer que, apesar de segundo as regras processuais penais o recurso não ser admissível, ainda o poderia ser se pudesse subsumir a pretensão do recorrente a alguma das situações previstas no Código de Processo Civil.

O que é o caso do artigo 672.º do Código de Processo Civil que se aplica ao processo penal.

Na verdade, apesar de o legislador ter criado no processo penal um regime de recursos próprio para responder às especificidades do sistema penal, que entendeu ser o mais adequado, abriu uma exceção à irrecorribilidade quando permitiu que por exemplo o art.º 4.º do Código de Processo Penal se aplicasse aos demais recursos existentes no processo civil, em concreto, o recurso constante do artigo 672.º do Código de Processo Civil.”

E mais adiante:

“Assim qualquer que tenha siso a pena, em concreto, aplicada, ao caso, cabe sempre recurso para o STJ da decisão final do colectivo relativa a matéria de direito, confirmada ou não pela relação, se se tratar de processo por crime a que seja aplicável - em abstracto – pena superior a 8 anos de prisão.”.

Deduz ainda, a final, a inconstitucionalidade do artigo 400.º. n.º 1, do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, ao não consagrar o recurso em caso de nulidade do acórdão.


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Cumpre decidir

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Fundamentação:

Sobre a questão que vem posta da admissibilidade do recurso de revista excecional (artigo 672.º do CPC) ao processo penal.

1. O legislador do CPP de 1987 quis mudar o paradigma antecedente, no qual o essencial do sistema e da tramitação do recurso em processo penal se regia pelo estabelecido no CPC. Para tanto, erigiu um sistema de recursos completo e autónomo, regulamentado na lei adjetiva penal informado pelo “princípio de tramitação unitária para todas as espécies de recurso”. No n.º 75) da lei de autorização legislativa não podia ser mais claro e expresso: quis que fosse regulamentada “em termos autónomos e eventualmente alargados relativamente à disciplina vigente em processo civil, do recurso (…) de um recurso no interesse da lei.

Apesar de se discutir desde então a admissibilidade da revista excecional, o legislador, nas múltiplas alterações ao regime do recurso consagrado no CPP – a última das quais há menos de 10 dias (pela Lei n.º 67/2025, de 24/11) – nunca aditou qualquer norma que, genérica ou especificamente, mande ou inculque que a revista excecional tenha aplicação em processo penal.

Rememora-se que o interprete, ademais de não poder adotar um sentido que na letra da lei não tenha a mínima correspondência verbal, está obrigado a, perscrutando “a partir dos textos o pensamento legislativo” e tendo “sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico” e “as circunstâncias em que a lei foi elaborada”, presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Regendo-se o recurso em processo penal pelo estabelecido no CPP, seria interpretação abusiva, mesmo contra legem, admitir-se espécies de recursos que o legislador não tem querido consagrar, ainda que fosse por simples remissão.

Que o legislador processual penal não quer consagrar a revista excecional no processo penal, resulta inequivocamente da adaptação do regime dos recursos em outras áreas do direito civil, de maneira que no Supremo Tribunal de Justiça se criou e existe formação própria da secção social para apreciar da admissibilidade da revista excecional no direito laboral.

É por demais evidente que um legislador minimamente razoável que tivesse querido admitir o recurso de revista excecional em processo penal, jamais descriminaria negativamente os Conselheiros das secções criminais, como sucederia se, não prevendo em lado algum, nem sequer por remissão, uma formação especial integrada pelos três Juízes mais antigos destas secções, tivessem de “submeter-se” ao veredito último de uma formação especial integrada unicamente por juízes das secções cíveis ou, estando em causa questões emergentes de direito laboral, da formação especial das referidas secções.

Só é licitamente possível recorrer ao regime do recurso em processo civil para suprir lacunas que o regime autónomo e completo do processo penal, designadamente em matéria criminal, nem sequer poderia ter previsto quando legislou e que, não seja possível suprir através de extensiva das normas do CPP ou dos princípios fundamentais desta área do direito adjetivo.

Evidentemente que não é uma lacuna a criação, por importação, de uma espécie de recurso que o legislador processual penal se tem recusado, implicitamente, a transpor para o direito adjetivo penal.

O legislador processual penal quis que o recurso em processo penal decorra celeremente e obedeça a uma tramitação harmoniosa, orientada a obter uma decisão final que não se revele disforme ou contraditória.

Assim, no processo penal, não é admissível a revista excecional.

Entendimento sedimentado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como se reafirmou, entre muitos, no sumário do acórdão de 4/12/2019, tirado no processo n.º 354/13.9IDAVR.P2.S1, onde se reafirma que “V - O artigo 432.º do CPP delimita exaustivamente os casos de recurso para o STJ, sendo que a vigente lei processual penal contempla taxativamente os recursos extraordinários previstos, quais sejam, o recurso para fixação de jurisprudência, o recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (artigos 437.º e 446.º do CPP) e o recurso de revisão (artigo 449.º do CPP), não prevendo a revista excepcional sobre objecto penal.” E mais recentemente, entre outros, no acórdão de 21.03.2024, proferido no processo n.º 1253/14.2TACBR.C3.S1 , sumariando a questão assim: “I - A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo uniformemente que as exceções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em matéria penal estão expressamente previstas no CPP, não existindo margem para convocar a aplicabilidade da norma do art. 672.º do CPC, por a este respeito não existir qualquer lacuna.”

E igualmente na jurisprudência do Tribunal Constitucional que no Acórdão n.º 76/2023, ademais de afirmar que “seria no mínimo estranho que, (…) ao mesmo tempo, o mesmo recorrente procura prevalecer-se das garantias inerentes ao processo penal e previstas constitucionalmente (aludindo ao próprio artigo 32.º, n.º 1, da CRP), ficando, deste modo, o recorrente, no fundo, com o melhor de dois mundos e uma espécie de regime processual híbrido totalmente à sua escolha (à la carte): beneficiando, concomitantemente, das garantias inerentes ao processo penal e do regime de recursos do processo civil” decidiu: “3) Não julgar inconstitucional “a norma extraída dos artigos arts. 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, ex vi arts. 17.º, n.º 1 e 2, e 21.º da Lei 88/2009, de 31.08, segundo a qual não é aplicável em processo de decisão de reconhecimento e execução da decisão de confisco ou perda de bens ao abrigo da Lei 88/2009, de 31.08, o recurso de revista excecional previsto no art. 672.º, do CPP”.

Isto posto:

2. Da norma que resulta da leitura conjugada do disposto nos artigos 432.º n.º 1 alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do CPP, estabelece a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça dos “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

No caso, o acórdão da Relação que vem recorrido, confirmou a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido pela prática dos crimes enunciados, nas penas parcelares indicadas e na única de 6 anos e 6 meses de prisão.

Havendo dupla conformidade, o acórdão da Relação, tirado em recurso, só admite recurso ordinário para o STJ se tiver sido aplicada à recorrente, pena superior a 8 anos de prisão.

Não sendo esse o caso dos autos, resulta não ser recorrível em mais um grau, o acórdão confirmatório, conforme decorre do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea f), ambos do CPP.

3. O reclamante deduz a inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) e 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP, por violação dos artigos 13.º, 20.º n.ºs 1 e 4 e 32.º n.ºs 1, da CRP.

Não tem razão.

Não existe violação do princípio da igualdade contemplado no artigo 13.º da CRP.

“O princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes. Porém, a vinculação jurídica‑material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio” (cf., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição, p. 339).

E como se referiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 270/2009, de 27 de maio de 2009, publicado no DR, 2.ª série, de 7 de julho de 2009, “(…) a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico”.

É, porém, inteiramente justificável que o sistema de recursos seja organizado por forma a que o STJ no caso de decisão conforme em duas instâncias, apenas conheça de acórdãos que apliquem penas de extrema gravidade, como sejam as superiores a 8 anos de prisão.

E o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, a organização de um modelo de intervenção processual, razoável, proporcional e adequado, não cabendo na dimensão e no respeito da essência constitucional do direito a exigência exacerbada e repetida

de meios que se sobreponham e que perturbem a regularidade da evolução processual e dos prazos de decisão.

Está, assim, completamente fora de causa a violação, no caso, do artigo 20.º da Constituição.

Por outro lado, o reclamante não refere qual a dimensão que integra o conceito de processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da CRP) que estaria em causa, não constituindo, tal invocação categorial genérica, por isso, questão que tenha conteúdo como objeto específico da reclamação.

Por sua vez, o artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias.

Com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional.

O acórdão do Tribunal da Relação constitui, assim, já uma segunda pronúncia sobre o objeto do processo, pelo que não há que assegurar a possibilidade de aceder a mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.

Impõe-se, pois, concluir que não é constitucionalmente censurável, neste caso, a exclusão do terceiro grau de jurisdição.

4. O reclamante deduz igualmente a inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 4.º, 399.º, 400.º, 427.º, 432.º, 433.º, 437.º, 446.º, 447.º, 449.º do Código de Processo Penal, segundo a qual não é aplicável em processo penal o recurso de revista excecional previsto no artigo 672.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CPP.

Não se conhece desta questão, desde logo por a inadmissibilidade do recurso de revista excecional, não resultar das normas de processo penal, cuja inconstitucionalidade vem invocada e ainda por o reclamante não indicar a norma ou princípio constitucional que considera violado.

5. Vem ainda alegado que o recurso deve ser admitido, por se se tratar de processo por crime em que a pena aplicável em abstrato é superior a 8 anos de prisão.

A argumentação não tem qualquer fundamento.

O critério de admissibilidade do recurso para o STJ, após a reforma de 2007, reporta- se à pena concretamente aplicada, havendo para esse efeito que ter em conta, a pena em que o arguido foi condenado na decisão recorrida.

Em sede de admissão de recurso para este Supremo e sendo o objeto deste a decisão recorrida, só há que atender à pena aplicada em que o ora reclamante foi condenado.

6. Por fim, o reclamante suscita a inconstitucionalidade do artigo 400.º, n.º 1, do CPP, por violação do artigo 32.º, n.º, n.º 1, da CRP.

Não se conhece igualmente desta questão, desde logo por o artigo 400.º, n.º 1, do CPP ser uma disposição com amplitude permissiva de concluir que cada alínea constitui uma norma autónoma que tem o respetivo âmbito delimitado, não invocando o reclamante, em concreto, como fundamento de inconstitucionalidade, nenhuma das normas, individualizadas, em que se desdobra com autonomia, aquele preceito.

Aliás, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/2015, de 3 março, confirmativo da Decisão Sumária n.º 788/2014, que não conheceu do objeto do recurso pode ler-se: “(…) como se assinalou na decisão sumária ora reclamada, fazendo-se referência à decisão recorrida, não foi individualizada qualquer norma sobre a qual pudesse recair juízo, fosse ele de conformidade ou de desconformidade com a Constituição.

Prevendo o artigo 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal exceções ao princípio geral da recorribilidade (artigo 399.º), e não sendo admissível, atenta a natureza instrumental da intervenção do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, questionar o regime de recursos tal como desenhado pelo legislador na sua globalidade, cabia ao recorrente enunciar com rigor e precisão qual a norma, reportada a uma das alíneas do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, cuja conformidade com a Constituição pretendia que fosse apreciada (…).”


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III - Decisão:

7. Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pelo arguido AA.

Custas pelo reclamante fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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Notifique-se.

Lisboa, 2 de dezembro de 2025

O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves