Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
186/1999.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
FACTOS PROVADOS
PROVA DOCUMENTAL
REPRODUÇÃO DE DOCUMENTO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
REGISTO PREDIAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO CONFINANTE
UNIDADE DE CULTURA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
ALTERAÇÃO DO FIM
ILEGALIDADE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorrecta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.
II - Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, se consideram provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g. acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado).
III - A presunção do art. 7.º do CRP não abrange os elementos de identificação ou a composição (áreas) dos prédios, porque tal depende da declaração dos titulares e não é verificado pelo Conservador.
IV - O art. 1380.º do CC refere-se ao direito de preferência entre proprietários de terrenos confinantes, isto é, de prédios rústicos confinantes, e a sua razão de ser está ligada ao objectivo de propiciar o emparcelamento de terrenos, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente.
V - Trata-se de um direito legal de aquisição, que depende da verificação de diversos requisitos, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito (art. 342.º, n.º 1, do CC).
VI - A lei civil não conhece o conceito de prédio misto, estando o mesmo definido no art. 5.º do CIMI, o qual consagra um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto.
VII - O prédio misto é, pois, um tertium genus, já que os prédios devem, sempre que possível, ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.
VIII - Sendo o núcleo essencial do prédio misto do autor - a sua destinação e afectação - próprio de um prédio rústico e não de um logradouro, logra aquele a demonstração de um dos requisitos previstos no art. 1380.º do CC.
IX - Para que o facto impeditivo do direito de preferência, aludido no art. 1381.º, al. a), 2.ª parte, do CC, opere os seus efeitos é necessário que o adquirente alegue e prove, não só a sua intenção de dar ao prédio adquirido uma outra afectação ou um outro destino que não a cultura, mas também que essa projectada mudança de destino é permitida por lei.
X - A possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente depende, pois, não do critério egoísta do proprietário (adquirente) vizinho, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território.
XI - A prova da viabilidade legal da construção é, assim, um elemento essencial para operar a excepção a que se refere o apontado facto impeditivo, a qual fica afastada no caso de o licenciamento concedido ser ilegal.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

1.
AA instaurou a presente acção declarativa ordinária contra BB e mulher CC e DD e mulher EE, pedindo a condenação destes a reconhecerem que o autor, na sua qualidade de único proprietário confinante, gozava do direito de preferência na compra da “leira da ........”, pertencente aos 1ºs réus e por estes vendida aos 2ºs, por escritura de 06.06.94, proferindo-se sentença que julgue substituído o autor aos 2°s réus no direito de propriedade sobre aquele prédio.
Alegou que é proprietário de um prédio misto confinante com o alienado, que os adquirentes do prédio alienado não são confinantes com o mesmo, que este tem área inferior à unidade de cultura para a região e que os intervenientes na escritura não lhe participaram a venda projectada, nem lhe foi dada a oportunidade de preferir.

Os réus contestaram, alegando que o autor tem conhecimento da transmissão do prédio desde o Verão de 1994, que o prédio comprado se destina à construção de uma habitação, que foi iniciada em Dezembro de 1996 e que o negócio titulado pela escritura pública em causa é simulado, já que o verdadeiramente querido pelas partes foi uma doação, tendo os outorgantes feito constar o negócio de compra e venda com o intuito de enganar alguns dos filhos dos 1ºs réus, irmãos do 2° réu marido, que se opunham a que os pais se desfizessem gratuitamente do seu património.
Caso assim se não entenda, pedem a procedência da reconvenção, pois que, provada a simulação da compra e venda e dissimulada a doação, aplica-se o regime desta no que diz respeito à gratuidade e demais consequências negativas para o direito de preferência do autor, absolvendo-se, em conformidade, os réus do pedido.
Pedem, ainda, a condenação do autor no pagamento das benfeitorias resultantes da construção da casa pelos 2°s réus, cujo montante exacto deverá ser determinado em execução de sentença, e em indemnização a favor dos réus em quantia a liquidar em execução de sentença, já que aquele litiga de má-fé.

Saneado, instruído e julgado o processo, foi proferida sentença que julgou improcedentes a acção e a reconvenção.

O autor recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que anulou a decisão, a fim de ser ampliada a base instrutória.

Teve lugar novo julgamento e a sentença proferida julgou a acção procedente, reconhecendo que o autor, na sua qualidade de único proprietário confinante, gozava e goza do direito de preferência na compra da “leira da ........”, alienada aos 2ºs réus, por escritura de 06.06.94, e de haver para si o direito de propriedade sobre esse prédio, substituindo-se aos 2ºs réus na posição de comprador, sendo a estes devido o preço da venda, encargos da escritura, sisa e registos. Julgou, ainda, improcedente a reconvenção.

Inconformados, os réus recorreram, ainda que sem êxito, para a Relação do Porto.

Irresignados, pedem revista.
Concluíram a alegação do recurso pela seguinte forma:
Um dos pressupostos essenciais ao exercício do direito de preferência é a rusticidade do prédio confinante - artigo 1380° do Código Civil.
O ónus de alegar e provar a natureza rústica do prédio preferente incumbia ao recorrido - artigo 342° do Código Civil.
O recorrido não alegou quaisquer factos donde se possa concluir que o prédio misto de que é proprietário tem natureza rústica.
Fundamenta o exercício do direito de preferência num prédio que qualifica como misto, através de uma expressão conclusiva.
Não satisfaz o ónus de alegação, que impende sobre o recorrido, a simples referência a afirmações conclusivas ou a simples remissão para o conteúdo de documentos ou a simples transcrição do teor dos mesmos.
As certidões matriciais e registrais não têm força probatória.
O Tribunal não pode servir-se de factos que não tenham sido articulados ou alegados pelas partes - artigo 664° conjugado com o artigo 264° do Código Processo Civil.
É erróneo o entendimento do tribunal recorrido quando caracteriza a essencialidade rústica e a finalidade agrícola a partir das certidões matriciais e registral.
O Tribunal tem o dever de apreciar, ainda que oficiosamente, a verificação ou não de todos os requisitos ao exercício do direito visado - artigo 664º do Código de Processo Civil.
Nenhum facto relevante para a decisão da causa deve ficar por esclarecer.
Subsistindo dúvidas sobre a rusticidade do prédio, esta favorece sempre os réus e nunca o autor - artigo 516º do Código de Processo Civil.
Decidindo em sentido contrário, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 1380°, nº1 e artigo 1381°, alínea a), do Código Civil e artigos 516º e 664º do Código de Processo Civil.
O direito de preferência do proprietário de terreno confinante fica excluído também quando algum dos terrenos constituir parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura - artigo 1381°, alínea a), do Código Civil.
O prédio misto do recorrido é composto de três parcelas rústicas, com artigos matriciais distintos, de uma casa de moradia com capela, cortes e outra casa de habitação com quintal, que constitui um outro prédio distinto.
O destino que o próprio recorrido dá ao prédio é habitacional e não agrícola, conforme as afirmações do recorrido no recurso contencioso que apresentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que correu termos sob o nº 367/98 - alínea J) dos Factos Assentes.
O prédio tem o turismo rural.
A razão de ser do direito de preferência do artigo 1380º do Código Civil é promover o emparcelamento de prédios rústicos com o propósito de permitir unidades de cultura de maiores dimensões e mais rentáveis.
As alegações do recorrido representam uma confissão, pelo que àquele documento deveria ter sido atribuído valor probatório pleno - artigo 376º do Código Civil.
Tendo força probatória plena, não carecem de outra prova os factos nele vertidos, pelo que se têm por verdadeiros e provados.
A componente rústica do prédio misto do recorrido destina­-se a oferecer maior utilidade urbana, eventualmente, a criação de outras infra-estruturas adequadas à exploração lucrativa da oferta turística.
O recorrido não visa tirar maior rentabilidade do prédio através da exploração agrícola, mas sim do Turismo, o que constitui um facto impeditivo do direito de preferência.
O fim da lei, que é o emparcelamento de prédios rústicos, por via disso, jamais será alcançado.
O tribunal recorrido apreciou erradamente esta matéria, ao fundar a sua decisão exclusivamente nas transcrições que o recorrido fez do teor das certidões matriciais e registral que juntou aos autos e da alegação da expressão conclusiva “afecto a fins agrícolas”, que foram dadas como assentes, como não poderiam deixar de o ser.
O argumento utilizado pelo tribunal recorrido quanto à dificuldade de classificação do solo, quando o mesmo se encontre parcialmente edificado com construções, de que tem sido ultrapassado com recurso às diversas teorias existentes e que, “perante a visibilidade económica de qualquer das componentes do prédio do autor, sempre deveria optar-se pela teoria do fraccionamento”, não pode, assim, proceder.
Não está em apreciação a alteração da factualidade, mas sim a qualificação jurídica do prédio misto do recorrido.
O Acórdão violou, entre outros, as normas dos artigos 204º, nºs1 e 2, 1380° e 1381°, do Código Civil, art. 18° do DL. nº 384/88, de 25-10 e artigo e 664° do Código de Processo Civil.
A construção da habitação que foi executada no prédio em questão era uma realidade, concretizada com a emissão do alvará de construção, não era uma simples possibilidade abstracta.
Ainda não está definitivamente decidido se o fim da aquisição (construção de uma habitação) é inviável, por ilegal.
Na execução da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, intentada pelo aqui autor, a Câmara Municipal de Baião, na oposição, foram invocadas causas legítimas de inexecução de sentença, quer pela CMB, quer pelos réus.
O Plano Director Municipal de Baião, há já algum tempo, que se encontra em revisão.
Existe a possibilidade concreta de licenciar a construção, quer por via da procedência das causas legítimas de inexecução de sentença, quer por via da alteração do PDM.
A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 342°, 1380° e 1381°, todos do C. Civil e art. 659º do C.P. Civil.

Nas contra-alegações, o autor pronuncia-se pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Estão provados os seguintes factos:
A - No Lugar de ........, da freguesia de Tresouras, concelho de Baião, existe um prédio misto, afecto a fins agrícolas, denominado Quinta da ........, composto de casas, sendo uma de casa de moradia com capela, cortes de gado, outra casa de moradia com quintal e de terra de cultivo e de terra inculta com pinhal e mato, com a área coberta de 381,75 m2 e descoberta de 73.140 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o nº 0000/00000, constituindo, no passado, parte da antiga descrição nº 25574 e a totalidade da antiga descrição nº 26.357 e achando-­se inscrito na matriz urbana sob os artigos 177 e 178 e na rústica nos artigos 149, 278 e 285.
B - O autor é dono e legítimo possuidor da referida Quinta da ........que lhe adveio por compra que fez a FF e mulher GG titulada por escritura de 11 de Julho de 1989, lavrada no Cartório Notarial de Lousada.
C - Tal aquisição encontra-se devidamente registada a favor do autor pela inscrição G-l, efectuada a coberto da apresentação 06/180789, e descrita na respectiva matriz sob os artigos 149 - Bouça da ........, pinhal, mato e pastagem; 278 - Vinha de ........, cultura, oliveiras, pinhal, pastagem, ramada, e vinha; e 285 - Campo do Tanque, cultura com ramada; todos da freguesia de Tresouras.
D - Confinante com o prédio do autor existe um prédio rústico denominado “Leira da ........” - ........ - consta de cultura, ramada e oliveira, com 1.081 m2, a confrontar de norte, nascente e poente com FF e sul com estrada, inscrito a favor de DD pela inscrição 01/080694, conforme documento de fls. 21 e 22 que se dá por integralmente reproduzido.
E - Por escritura lavrada no dia 6 de Junho de 1994 no Cartório Notarial de Mesão Frio, constante do livro de notas para escrituras diversas nº 30-A, a fls. 53, compareceram como outorgante BB e mulher CC e HH na qualidade de procuradora de DD, tendo os 1ºs outorgantes declarado que, pelo preço de um milhão de escudos, vendem a DD um prédio rústico que consta de cultura, ramada e oliveiras, com a área de mil e quatrocentos metros quadrados, sito no Lugar de ..., freguesia de Tresouras, concelho de Baião, denominado “Leira da ........”, descrito na Conservatória do Registo Predial do concelho de Baião sob o número cento e oito daquela freguesia e aí registado a favor dos vendedores pela inscrição G2 e inscrito na competente matriz sob o artigo cento e sessenta e oito, com o valor patrimonial de quatro mil trezentos e noventa e um escudos, a qual é omissa quanto ao destino do prédio, conforme documento de fls. 23 a 26, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
F - Os segundos réus não são, nem eram à data da celebração daquela escritura, proprietários de qualquer parcela de terreno confinante com a parcela alienada, descrita em D) e E).
G - Nem aquando daquela venda nem posteriormente, os primeiros réus ofereceram preferência ou sequer deram a conhecer ao autor, como único proprietário confrontante, que pretendiam vender a Leira da ........ e as cláusulas do respectivo contrato.
H - Na parcela de terreno ou prédio descrito na alínea D) foi efectuado um desaterro com vista à construção de um edificio para habitação, a qual havia sido iniciada, mas ainda não concluída em 24/06/1998, encontrando-se então em estado de “grosso”, faltando-lhe os acabamentos exteriores e interiores.
I - Em 15 de Julho de 1994, o segundo réu marido requereu o licenciamento para construção urbana, na parcela de terreno descrito na alínea D), pedido este que foi indeferido.
J - O autor intentou recursos administrativos contenciosos tendentes a obter a declaração de nulidade ou anulação do acto de aprovação do projecto de arquitectura, recursos que pendem no Tribunal Administrativo de Círculo sob o nº 173/98 e do acto de licenciamento da construção sob o nº 367/98, conforme documentos de fls. 71 a 92 e 109 a 124, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
L - O processo de licenciamento nº 253/97, respeitante à construção de uma habitação a levar a efeito no terreno “Leira da ........”, no Lugar de ........, freguesia de Tresouras, deste concelho, foi deferido em 16 de Março de 1998, pelo Vereador do Pelouro de Obras Particulares, o qual foi fixado nos lugares públicos, com o seguinte teor: “Deferido de acordo com a proposta do D.T.
Proposta do D.T.: Tendo em conta que foram cumpridas todas as formalidades exigidas pela portaria 1115-B/94 e ao abrigo do DL. 445/91 com a nova redacção dada pelo DL. 250/94, que dispensa a verificação dos projectos de especialidades, proponho a V. Exa. o deferimento do processo, após a emissão de parecer favorável por parte da Telecom sobre a ficha R.... Á consideração superior.
98/03/13.
Assinado pelo Director do D.T., conforme documento junto a fls. 108, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
1º - O prédio descrito na alínea D) e E) confina de norte, nascente e poente com o prédio descrito na alínea A) dos factos assentes.
2º - O prédio descrito na alínea E) e D) dos factos assentes estava afecto à cultura hortícola, vinha e oliveiras.
3° - A construção do edificio iniciou-se em data não concretamente apurada do início do ano de 1998.
7º - O prédio descrito na alínea D) e E) dos factos assentes está integrado no regime de Reserva Agrícola Nacional.
8º - Foi apresentada perante a Câmara Municipal a estimativa de custo constante do documento junto a fls. 493, nos termos da qual a obra de construção em causa foi orçamentada na quantia de 8.240.000$00.
9º - A casa dos réus foi construída em grosso em cerca de 6 meses.
11º - O 2º réu é emigrante em França, auferindo o seu casal, mensalmente, uma quantia de cerca de 360 mil escudos mensais.
13º - Por decisão de 3 de Dezembro de 2002, foi decidida a suspensão da eficácia do licenciamento de construção pelo Vereador da Câmara Municipal de Baião, que ordenou a suspensão das obras. E, por despacho de 17 de Junho de 2003, foi determinado pelo Vereador da CMB, com competência delegada, procedesse ao embargo das obras de construção da casa dos segundos réus, na pessoa do Engenheiro II na qualidade de responsável pela direcção técnica da obra.
14º - Mesmo depois de citados para o recurso contencioso de anulação de licenciamento, por carta de 04.06.98, os réus continuaram a construir, o que igualmente aconteceu, depois da citação para a presente acção.
17° - Os primeiros réus continuaram (após a realização da escritura de compra e venda referida em E) dos factos assentes), ano após ano, até ao início da construção do prédio urbano, a agricultar o prédio adquirido na sua totalidade.
Mais se provou, atentos os documentos de fls. 63 e 118 que:
Por decisão de 13.01.1995, a Comissão Regional da Reserva Agrícola de Entre Douro e Minho concedeu, nos termos da alínea C) do nº 2 do artigo 9° do Decreto-Lei 196/89, de 14 de Junho, parecer favorável à utilização de 174,5 m2 de solo agrícola desse prédio para construção de habitação, por não resultarem inconvenientes para a R.A.N.
Atento o Documento de fls. 955 a 969, provou-se que o recurso contencioso nº 367/98, em que era recorrente AA e recorrido o Vereador do Pelouro das obras particulares da Câmara Municipal de Baião e outro, foi assim decidido, em 26.09.2007, com trânsito em julgado:
Foi concedido provimento ao presente recurso contencioso de anulação e declarado nulo o despacho do Senhor Vereador do Pelouro das obras particulares da Câmara Municipal de Baião, de 16 de Março de 1998, proferido no uso de competências subdelegadas pela Ex.a Senhora Presidente da Câmara Municipal de Baião, pelo qual foi deferido o pedido formulado pelo aqui recorrido particular, DD, de licenciamento da construção de um edificio destinado a habitação na parcela de terreno supra referida em a) da MFP.
O fundamento de tal decisão é a violação do artigo 20°, nº 5 com referência ao quadro nº 3, do Regulamento do PDM de Baião, aprovado por resolução do Conselho de Ministros nº 91/94, in DR, 1ª série B, nº 221, de 23.09.94, já que o referido preceito legal exige, para a edificação de habitação em espaços agrícolas, que a parcela de terreno tenha, no mínimo, 3000 m2 de área, sendo que a parcela de terreno para a qual foi deferido o licenciamento da construção não atinge tal dimensão mínima, pois apenas possui 1081 m2 de área.

3. O Direito.
Alegam os recorrentes que as certidões matriciais e registrais não têm força probatória e que o ónus de alegação, que impende sobre o autor, não se satisfaz com a simples referência a afirmações conclusivas ou remissão para o conteúdo de documentos.

Sem dúvida que, na condensação da matéria de facto, cabem não apenas os factos controvertidos, mas ainda os factos que, nesse momento, já possam considerar-se provados pela interferência dos diversos factores de ordem substantiva ou processual que a isso conduzem: confissão judicial ou extrajudicial expressas, confissão ficta ou tácita, acordo das partes ou documentos com força probatória suficiente.
Como escreve Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 2ª ed., pag. 143), “apesar do art. 511º, nº1, se reportar apenas à matéria de facto controvertida, resulta, por via indirecta, do mecanismo de reclamação constante do nº 2 e, directamente, do art. 508º-A, nº1, al. e), que também deve ser feita pelo juiz, após o debate, a selecção e condensação dos factos já assentes, pois, se o não fizer, diz a norma, qualquer das partes pode reclamar contra as omissões (por deficiência) ou contra a introdução errada de factos controvertidos (por excesso)”.
Serão considerados provados os factos que estiverem expressa ou tacitamente confessados, salvo se a confissão não for admissível ou for insuficiente (art. 490º).
A par desses factos, serão considerados assentes aqueles sobre os quais exista acordo, desde que a vontade das partes seja suficiente para vincular o tribunal.
Por último, serão considerados provados os factos comprovados por documento com força provatória suficiente, tendo em conta as normas de direito substantivo que regulam o valor probatório dos documentos autênticos, autenticados ou particulares.

Todavia, como constitui jurisprudência sedimentada do STJ, os documentos não são factos, mas meros meios de prova de factos, constituindo, portanto, prática incorrecta, na decisão sobre a matéria de facto, remeter para o teor de documentos.
Os documentos não são mais do que simples escritos que corporizam declarações de ciência, pelo que, na descrição da matéria de facto, só há que consignar os factos eventualmente provados por esses documentos.
Dar por reproduzidos documentos ou o seu conteúdo é bem diferente de dizer qual ou quais os factos que, deles constando, considera provados - provados quer por força do próprio documento em si, quer por outra causa (v.g. acordo sobre um facto nele indicado, embora o documento não gozasse de força suficiente para o dar como provado).
A discriminação dos factos provados imposta pelo art. 659º, nº 2, do CPC, constitui a base fundamental para a segurança e justiça da decisão de direito, de modo algum se compadecendo com a remissão para documentos, juntos aos autos, ou dando-os pura e simplesmente por reproduzidos.
E, como salienta o Ac. do STJ, de 28.10.93, “discriminar provém de cernere, cujo sentido definitivo e concreto consistia na separação pelo crivo e significa separar, diferenciar, discernir, o que implica especificar e individualizar os factos”.

Por outro lado, devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico, de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem.
A alegação de matéria conclusiva ou de conceitos jurídicos não acompanhada dos necessários factos concretizadores não pode ser suprida ex officio pelo juiz, substituindo-se às partes, mas através do despacho de aperfeiçoamento ou da intervenção das partes em audiência preliminar (arts. 508º, nº 3, 508º-A, nº1, al. c)) ou, em último caso, na audiência de julgamento, nos termos do art. 264º, nºs 2 e 3, todos do CPC.
Finalmente, importa ter presente que a presunção do art. 7º do CRP não abrange os elementos de identificação ou a composição (áreas) dos prédios, porque tal depende da declaração dos titulares e não é verificado pelo Conservador.

Como decorre do disposto no art. 729º, nº1, do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça julga, normalmente, através do sistema de substituição: aplica aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado.
O Supremo é um tribunal de revista e, enquanto tal, “um tribunal cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e aplicação das normas jurídicas cometidos pela Relação ou pelo Tribunal de 1ª instância” (ALBERTO DOS REIS, Cód. Proc. Civil Anotado, vol. VI, (reimpressão), pág. 2).
Por isso, não conhece, em regra, de questões de facto; a fixação dos factos cabe, em princípio, às instâncias.
No tocante à matéria de facto, a decisão proferida pelo tribunal recorrido não a pode o Supremo alterar, a não ser no caso excepcional previsto no nº 2 do art. 722º, isto é, se houver ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Já, porém, lhe é permitido fazer voltar o processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, de modo a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art. 729º, nº 3).
Se o tribunal a quo não cumpre a sua função de explicitar, em indicação completa e exaustiva, os factos materiais da causa coarcta ao Supremo a possibilidade de definir o direito aplicável. Daí a faculdade que a este é conferida por este último preceito. Na verdade, como anota J. RODRIGUES BASTOS (Notas ao Cód. Proc. Civil, vol. III, 1972, pág. 363), essa faculdade “é para ser exercida quando as instâncias seleccionarem imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a, assim, de elementos que consideraram dispensáveis mas que se verifica serem indispensáveis para o Supremo definir o direito”.

Ora, não cremos, com o devido respeito, que a razão esteja do lado dos recorrentes.
Efectivamente, o autor não se limitou a dar por reproduzido o teor de documentos ou remeter para o conteúdo dos mesmos (v. a matéria constante das alíneas A) e C) dos factos assentes), como também é certo que esta matéria não foi impugnada pelos réus, na contestação.
Por outro lado, aceitando-se embora que a expressão “afectação a fins agrícolas” possa ser considerada conclusiva, a verdade é que, como refere a Relação, “a mesma encontra-se respaldada pela matéria da alínea C), na qual se descrevem as várias utilizações que são feitas dos prédios rústicos que integram o prédio “misto” do A”.

Deste modo, já podemos concluir que, no caso ajuizado, não se verifica o condicionalismo, acima referido, previsto no art. 729º, nº 3: a matéria de facto submetida a julgamento (a provada e a não provada), conjugada com a que foi considerada assente na selecção operada na 1ª instância, permite dar resposta às questões de direito suscitadas na presente acção, não carecendo este Supremo Tribunal de mais alargada base factual para definir o direito.

O direito invocado pelo autor encontra o seu apoio nos arts.1380º, nº1, 1381º a), 1382º do Código Civil e DL. nº 384/88, de 25.10.
Dispõe, com efeito, o art. 1380º do Código Civil:
1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.
(…)
4. É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, com as necessárias adaptações.”

Por seu turno, o art. 18, nº1, do DL. nº 384/88, de 25 de Outubro, determina que “Os proprietários de terrenos confinantes gozam do direito de preferência previsto no art. 1380º do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”.

Finalmente, a Portaria 202/70, de 21.4, define as áreas de cultura para as diversas regiões do país.

A razão de ser deste regime legal tem como objectivo propiciar o emparcelamento de terrenos, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente (cfr. Acs. deste STJ de 18.1.94, in CJ, Tomo I, pág. 46; de 28.2.2008, in www.stj.pt e Prof. ANTUNES VARELA, in RLJ 127-308 e sgs. e 365 e sgs.).

Este artigo - 1380º - confere um direito de preferência com eficácia erga omnes, que, segundo HENRIQUE MESQUITA (Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 225), “não pode qualificar-se como um puro e simples direito potestativo, mas, antes, de uma relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos, que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial, de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o exercício da prelação”.

Trata-se de um direito legal de aquisição, que depende da verificação de diversos requisitos, cujo ónus da prova incumbe aos que se arrogam titulares do direito de preferência, por se tratar de factos constitutivos desse direito - art. 342º, nº1, do Código Civil.

Pois bem, os recorrentes alegam que o autor não alegou, como lhe competia, quaisquer factos donde se possa concluir que o prédio misto de que é proprietário tem natureza rústica, como alegam também que a construção da habitação que foi executada no prédio em questão era uma realidade, concretizada com a emissão do alvará de construção e que ainda não está definitivamente decidido se o fim da aquisição (construção de uma habitação) é inviável, por ilegal, o que obsta a que possa obter ganho de causa.

As instâncias não deram cobertura à pretensão dos recorrentes.
Efectivamente, na 1ª instância, foi considerado que a natureza rústica do prédio do autor decorria do facto de estar afecto a fins agrícolas, como, aliás, tivera o tribunal possibilidade de constatar através da inspecção judicial ao local. Já no que respeita à construção iniciada no prédio em causa, os réus adquirentes do prédio alienado não tinham logrado fazer a prova de que o destino que pretendiam dar ao mesmo era legalmente viável.

Por sua vez, a Relação entendeu que a primeira questão enunciada nem sequer deveria ter sido apreciada, pois que não foi suscitada por quem quer que fosse, a não ser, oficiosamente, na sentença que foi anteriormente anulada, tendo sido com base nela que a acção foi julgada improcedente. Os réus invocaram, é certo, a excepção da al. a) do art. 1381º, mas não com fundamento na natureza do prédio do autor, antes aludindo ao destino que deram ao seu prédio, sendo certo que os recursos apenas visam modificar decisões e não criá-las sobre matéria nova, não decidida pelo tribunal a quo.
Não obstante isso, o tribunal recorrido acabou por se pronunciar sobre esta questão, acolhendo a solução encontrada pela 1ª instância.
Deste modo, carece de fundamento a alegação dos recorrentes, quando afirmam que o tribunal tem o dever de apreciar, ainda que oficiosamente, a verificação ou não de todos os requisitos necessários ao exercício do direito visado.

Questão diferente será a de saber se os factos tidos como assentes pelas instâncias permitiam aceder a essa conclusão. Ou seja, tendo o art. 1380º do C.Civil em vista o direito de preferência entre proprietários de terrenos confinantes, isto é, de prédios rústicos confinantes, se se pode conceber o prédio do autor como um prédio rústico.

Revisitando os factos dados como provados, dos mesmos decorre que, no Lugar de ........ da freguesia de Tresouras, concelho de Baião, existe um prédio misto, afecto a fins agrícolas, denominado Quinta da ....., composto de casas, sendo uma de casa de moradia com capela, cortes de gado, outra casa de moradia com quintal e de terra de cultivo e de terra inculta com pinhal e mato, com a área coberta de 381,75 m2 e descoberta de 73.140 m2 (A) e que tal aquisição se encontra devidamente registada a favor do autor pela inscrição G-1, efectuada a coberto da apresentação 06/180789, e descritos na respectiva matriz sob os artigos 149 - Bouça da ........, pinhal, mato e pastagem; 278 - Vinha de ........, cultura, oliveiras, pinhal, pastagem, ramada e vinha; e 285 - Campo do Tanque, cultura com ramada (B).

Nos termos do nº 2 do art. 204º do Código Civil, entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica e, por prédio urbano, qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
A lei civil não conhece o conceito de prédio misto.
Tal conceito está definido no art. 5º Código do Imposto Municipal sobre Imóveis - aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2003, de 12 de Novembro, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003, alterado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro.
1- Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.
2 - Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto”.
Na definição fiscal do conceito, como é referido no Ac. do STJ de 2008, supra citado (Rel. Cons. Fonseca Ramos), “consagra-se…um critério de predominância, ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto.
Temos, assim, que o prédio misto é um tertium genus, já que os prédios devem, sempre que possível, ser considerados de harmonia com a sua parte principal e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.
A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica”.

Quando contrapôs imóveis a móveis, diz-nos Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Parte Geral-Tomo II – págs. 121 e 122), “o legislador teve o cuidado de precisar os primeiros e de remeter, por defeito, todo o restante, para os segundos. Mas, no tocante à dicotomia prédios rústicos-prédios urbanos, o legislador quis definir uns e outros. As duas definições parcelares daí resultantes não se articulam inteiramente. Resultam, daí, problemas complexos que, até hoje, não têm encontrado uma solução segura”.
E, debruçando-se sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, refere o mesmo Autor que a doutrina portuguesa mais recente aponta quatro teorias: “teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social”.
Depois de analisar cada uma dessas teorias, escreve, a pags. 123 e 124:
“Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício, com o logradouro. Vamos avançar a partir da fórmula do artigo 204º… na linha da teoria da afectação económica. Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especialidade dos critérios fiscais, bem como o tipo de descrição predial; além disso, a lei não admite, aqui, o qualificativo de “prédio misto”…
Temos, depois, os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos: um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por um edifício é, seguramente, urbano. E como a construção é obra humana, podemos concluir que o proprietário pode, por essa via e dentro da lei, transformar o prédio e logo determinar a sua natureza rústica ou urbana.
Finalmente e ainda em pano de fundo: por defeito, os prédios são rústicos. Não sendo possível qualificá-los como um edifício (ainda que com logradouro), impõe-se a rusticidade.
Prosseguindo…nos halos dos conceitos, encontramos a noção de edifício. Na lógica do art. 204º, nº 2, “edifício” é uma construção importante, ou de habitação ou pronta a habitar; todavia, o prédio urbano não reduz ao espaço delimitado pelas paredes e telhado, antes abrangendo também os terrenos que lhe sirvam de logradouro. A ideia de “logradouro” torna-se, assim, a chave da distinção”.

Voltando ao caso concreto, temos que a Quinta da ......... tem, entre área coberta e descoberta, a área total de 73.521,75 m2. Desta, 73.140 m2 correspondem à área descoberta e estão afectos a fins agrícolas (pinhal, mato, pastagem, oliveiras e vinha) e apenas 381,75 m 2 à área coberta.
Ora, se, como diz o recorrido, “qualificar é valorar juridicamente os factos para efeito de decidir se os mesmos se subsumem ou não à norma legal vocacionalmente chamada a decidir o caso - se qualificar é isto, então, sendo aqueles os factos, é por demais evidente que, não representando a área coberta do prédio mais do que 0,5% do total do prédio, este, atendendo ao critério da prevalência do destino económico, não pode deixar de ser havido como rústico”.
A área da parte rústica do imóvel dificilmente tornaria defensável a sua subordinação à casa, em termos de logradouro.
“Um logradouro (v. Ac. deste Tribunal, de 6.7.1993, BMJ, 429-761) é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial.
Quanto à expressão “logradouro”, civilisticamente, ela tem assento no nº 2 do artigo 204° do Código Civil; aí se diz que se entende por “prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro. Daqui decorre que o logradouro sendo, basicamente, terreno, não é edifício; juridicamente, faz parte da unidade predial mas, fisicamente, tem diferença e autonomia; serve o edifício, ou seja, é complementar e serventuário do edifício. Logradouro é uma palavra, semanticamente, decorrente de “lograr”, isto é, “gozar, fruir, desfrutar” (Dicionário Enciclopédico, Koogan Larousse, I, pág. 516); é, na circunstância, essencialmente, “fruir”. Portanto, logradouro é o que pode ser logrado ou fruído por alguém; ou seja e fazendo apelo ao seu cariz complementar, em princípio por quem fruir o edifício correspondente”.

O núcleo essencial do “prédio misto” do autor, a sua destinação e afectação, são próprias de um prédio rústico e não de um logradouro.

Vejamos, agora, a 2ª questão, isto é, se a construção da habitação que foi executada no prédio em questão era uma realidade, concretizada com a emissão do alvará de construção e que ainda não está definitivamente decidido se o fim da aquisição (construção de uma habitação) é inviável, por ilegal, o que obsta a que possa obter ganho de causa.

Invocam os 2ºs réus um facto impeditivo do direito do autor - o de ter adquirido o prédio para o destinar a construção urbana (v. factos descritos sob as als. H), I) e L) e nºs 3 e 9).
Pretenderam, pois, valer-se do disposto na alínea a) do nº1 do art. 1381º citado, que estatui que não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes, quando algum dos terrenos se destine a algum fim que não seja a cultura.

Como vem sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, o adquirente tem de provar que nada se opõe a que se concretize a sua intenção de dar ao prédio uma outra afectação ou um outro destino, e que, portanto, essa projectada mudança de destino é legalmente possível, é permitida por lei.
É matéria que se insere no âmbito do facto impeditivo do direito invocado pelo autor e, por isso, o respectivo ónus probatório recai sobre “aquele contra quem a invocação é feita”, o mesmo é dizer, sobre os recorrentes.
Não é, porém, a mera declaração do dono do prédio que determina a classificação deste, a sua natureza rústica ou urbana, nem opera, como num passe de mágica, a transformação da sua fisionomia (Ac. do STJ, de 14.10.2007, www.dgsi.pt – Rel. Cons. Santos Bernardino).
Como acentua o Prof. CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA (Direito Económico, 1979, pág. 431), citado nesse aresto, o terreno urbano ou terreno para construção é uma coisa que se define não só pela sua identidade física, mas principalmente pela sua aptidão juridicamente reconhecida, i.e., objecto de um direito de construir, nunca originário, mas sempre adquirido, por força da iniciativa da Administração Pública ou por licença desta perante a pretensão formulada pelo respectivo proprietário, nos limites topográficos e normativos dum plano de urbanização ou dum loteamento - requisitos que quedam indemonstrados relativamente ao terreno alienado.
É que “a possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender, não do critério egoísta dos proprietários vizinhos, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território” (Direito de Preferência - parecer do Prof. HENRIQUE MESQUITA, Col. Jur., ano XI, t. 5, pág. 52).

Ora, na data da alienação, a construção em causa não era admissível, por se tratar de solo integrado na RAN, e ainda porque o PDM de Baião também o não permitia, dado ser exigível, para a edificação de habitação em espaços agrícolas, que a parcela de terreno tenha, no mínimo, 3.000m2, sendo que o prédio em causa apenas possui 1 081m2.
No caso ajuizado, o deferimento do pedido de licenciamento foi concedido em violação de leis de ordenamento do território (Regulamento do PDM de Baião), pelo que foi, posteriormente, declarado nulo, a pedido do autor, no recurso contencioso nº 367/98, por decisão de 26.09.2007, transitada em julgado.
Constata-se, assim, que, apesar de autorizada, a construção foi ilegal, porque baseada num acto nulo, acto esse que, como acentua o acórdão recorrido, “não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade (arts. 134º e 139º, nº1, al. a), do CPA) - cfr. Ac. do STA, de 30-09-2009, proc. 0564/08, www.dgsi.pt.
Com efeito, a legalidade do acto administrativo afere-se pela realidade fáctica existente no momento da sua prática e pelo quadro normativo então em vigor, segundo o princípio tempus regit actum.
Assim, se, na data em que foi deferido o licenciamento, já se encontrava em vigor o Regulamento do PDM de Baião e a obra estava em desconformidade com este plano municipal de ordenamento do território, o acto é nulo, nos termos do art. 52º, nº 2, al. b), do DL. nº 445/91, de 20.11, na redacção do DL 250/94, que dispõe, sob a epígrafe “Invalidade do licenciamento”:
2 - São nulos os actos administrativos que decidam pedidos de licenciamento, no âmbito do presente diploma, e que:
b) Violem o disposto em plano regional de ordenamento do território, plano municipal de ordenamento do território, normas provisórias, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária ou alvará de loteamento em vigor.

Deste modo, entendemos, como a jurisprudência uniforme, que a prova da viabilidade legal da construção é elemento essencial para operar a excepção de que vimos tratando, a qual aqui fica afastada pelas razões apontadas de ter sido ilegal o licenciamento concedido.
É, por isso, abusivo pretender-se que, à data da alienação, o prédio aqui em causa não tinha já a natureza de rústico. E, sendo um prédio rústico, afecto à cultura agrícola, nada obstava, à partida, que, na sua alienação, estivesse sujeito ao regime legal da preferência, previsto nos já mencionados arts. 1380º e 1381º do CC e 18º do DL. nº 384/88, de 25 de Outubro.
Pelo que tem de se concluir, como no acórdão recorrido, que o autor estava em condições de preferir na alienação, não podendo os réus afastar a preferência.

4.
Face ao exposto, decide-se negar a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 25 de Março de 2010

Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista