Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL AUGUSTO DE MATOS | ||
Descritores: | ACORDÃO DA RELAÇÃO ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO ASSISTENTE PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE ARMAS CONSTITUCIONALIDADE INADMISSIBILIDADE REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 03/07/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO INTERPOSTO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. | ||
Doutrina: | - Figueiredo Dias, Sobre os sujeitos processuais no Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Processo Penal, 1988, p. 30; - G. Casaroli, Un altro paso europeo in favore della vitima del reatto, Riv. It. Dir. Proc. Penale, XXX, 623-635, 1987; - Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 32.º, ponto II ; Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 3.ª Edição Revista, Coimbra, 2014; - J. H. Killian e L. E. Beck, U. S. Government Printing Office, Washington, 1987, p. 1231; - João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, p. 187; - Lopes do Rego, Acesso ao direito e aos tribunais, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p. 76 e 70 e ss.; - Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, p. 199-200; - Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª Edição Revista, Almedina, p. 1192-1193; - V. José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 379-381. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA D), 414.º, N.º 2, 420.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 432.º, N.º 1, ALÍNEA B). | ||
Referências Internacionais: | CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS DO HOMEM: - ARTIGO 6.º. PACTO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS: - ARTIGO 14.º. COMITÉ DOS DIREITOS DO HOMEM DAS NAÇÕES UNIDAS, GENERAL COMMENT N.º 32, ARTICLE 14, CCPR/C/GC/32, 23 DE AGOSTO DE 2002. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 17-03-2004, PROCESSO N.º 4P230, IN WWW.DGSI.PT; - DE 21-09-2016, PROCESSO N.º 7/08.0GBCTB.C1.S1, IN SASTJ - SECÇÕES CRIMINAIS, ANO DE 2016; - DE 22-11-2017, PROCESSO N.º 2175/11.4TDLSB.L1.S1. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 296/2017, DE 08-07-2017; - ACÓRDÃO N.º 540/2012, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 178/88, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 132/92, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 322/93, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 418/2003, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 189/2001, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 49/2003, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 645/2009, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 259/2002, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 464/2003, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 399/2007, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 265/94; - ACÓRDÃO N.º 387/99; - ACÓRDÃO N.º 430/2010; - ACÓRDÃO N.º 353/2010;. - ACÓRDÃO N.º 153/2012;. - ACÓRDÃO N.º 54/87, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 150/87, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT; - ACÓRDÃO N.º 356/91, IN WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT. | ||
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Sumário : | I - O princípio de igualdade de armas pressupõe que autor e réu se encontrem em paridade de condições, que tenham direitos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição no processo seja equiparável. A igualdade estaria afectada apenas se o modelo de recursos oferecesse alguma vantagem processual a uma das “partes” em relação à outra, fosse sobre os pressupostos processuais de admissibilidade e de recorribilidade das decisões, as condições de apresentação, ou na previsão de legitimidade ou interesse em agir. II - O texto da disposição contida na al. d) do n.º 1 do art. 400.º do CPP é claro quanto à irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão superior a 5 anos. O preceito não contempla a pena de prisão inferior ou igual a 5 anos. O TC já foi chamado a pronunciar-se (positivamente) quanto à conformidade constitucional da al. d) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, na sua redacção actual (cfr acórdão n.º 296/2017, de 08-07-2017). III - Tendo o arguido sido condenado em 1.ª instância na pena de 5 anos de prisão e perante a absolvição pelo Tribunal da Relação, este acórdão absolutório é irrecorrível na medida em que aquela pena tem dimensão não superior a 5 anos – cfr arts. 432.º, n.º 1, al. b) e art. 400.º, n.º 1, al. d), ambos do CPP, devendo, em consequência, o recurso interposto pelo assistente ser rejeitado por inadmissibilidade legal (art. 420.º, n.º 1, al. B9 e 414.º, n.º 2, ambos do CPP. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I - RELATÓRIO
1. Por acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Central Criminal de Loures – Juiz 2 em 8 de Agosto de 2017, foi o arguido AA condenado na pena de 5 anos de prisão, pela prática como autor de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.°, 22.°, n.os 1 e 2 e 23.°, todos do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86.°, n.° 3, do NRJAM, aprovado pela Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei n.° 17/2009, de 6 de Maio.
Foi ainda o arguido condenado no pagamento ao assistente/demandante BB da quantia de € 20.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora contados desde a data da decisão, e da quantia de € 28,59, a título de ressarcimento por danos patrimoniais, acrescida de juros moratórios a contar da data da notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil.
2. Inconformado, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 12 de Outubro de 2017, o julgou procedente, tendo absolvido o arguido da acusação pelo crime por que fora condenado na decisão recorrida e, bem assim, do pedido de indemnização civil formulado pelo assistente BB.
3. Desta decisão vem agora o assistente BB interpor recurso para este Supremo Tribunal, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem[1]:
«- CONCLUSÕES:
1.º Inconformado com o douto acórdão proferido pelos Mmos. Juízes do Tribunal da 1.ª instância, que condenou o arguido como autor material, de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 22.º n.ºs 1 e 2 e 23.º todos do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86.º n.º 3, do NRJAM, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 17/2009, de 06 de Maio, na pena de 05 (cinco) anos de prisão, e a proceder ao pagamento de uma indemnização na quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros deste a data do acórdão, à taxa legal de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento, bem como na quantia de €: 28,59 (vinte e oito euros e cinquenta e nove cêntimos) a título de ressarcimento pelos danos patrimoniais, acrescida de juros a contar da data da notificação do arguido/demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa de 4% ou à taxa legal que vier a vigorar até integral pagamento, absolvendo o arguido/demandado do remanescente peticionado, o arguido AA interpôs recurso do mesmo para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Por acórdão datado de 12.10.2017, os Venerandos Juízes Desembargadores julgaram procedente o recurso interposto pelo arguido, decidindo revogar a decisão recorrida, e absolver o arguido AA da acusação pela prática de um crime de homicídio na forma tentada agravado nos termos do disposto no artigo 86.º n.º 3 do NRJAM, bem como do pedido cível formulado pelo recorrente BB.
2.º Ora, é desta decisão Exmos. Senhores Juízes Conselheiros que se apela ao vosso melhor Julgamento, pois que com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, os Mmos. Juízes Desembargadores, não tiveram a adequada ponderação dos factos, havendo provas que impõem diversa decisão da recorrida, havendo erro notório na apreciação da prova, circunstância que motivou a errada aplicação do Direito, tudo como o recorrente devidamente demonstrará infra. 3.º Na verdade, da simples análise da decisão proferida em sede de 1.ª instância, conclui-se que, os Mmos. Juízes ao determinarem na condenação do arguido nos moldes constantes do Douto Acórdão, respeitaram e executaram, sem margem para dúvidas, os princípios legais constantes dos normativos aplicáveis ao caso em apreço, não existindo, portanto qualquer violação de quaisquer preceitos normativos, ao contrário do mencionado no acórdão proferido pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa. 4.º Assim, considera-se que, os Mmos. Juízes do Tribunal da 1.ª instância decidiram de forma isenta e na mais estreita e rigorosa observação de todas as normas legais quer substantivas, quer processuais aplicáveis ao caso “sub judice”. 5.º Destarte, ao longo de toda a douta decisão proferida em sede da 1.ª instância não se vislumbra igualmente qualquer erro notório na apreciação da prova, não havendo errada aplicação do direito, conforme consta da fundamentação do acórdão do qual ora se recorre, o qual decidiu incorrectamente alterar a matéria de facto devidamente fixada e dada como provada pela 1.ª instância, no uso da faculdade prevista no art.º 428.º e art.º 431.º alínea a) ambos do Código de Processo Penal.
6.º A douta decisão proferida pela 1.ª instância encontra-se devida e inteiramente fundamentada, tendo os Mmos. Juízes decidido, e BEM pela condenação do arguido, não padecendo, portanto, a acórdão de qualquer vício, não merecendo qualquer reparo, que não seja o de louvor e consideração, devendo, por isso, o mesmo ser mantido na sua íntegra e plenitude.
7.º Estipula o artigo 32.º do Código Penal que: “Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
8.º No que concerne aos requisitos da legítima defesa são a necessidade do meio empregue, a impossibilidade de recurso à força pública e a inexistência de excesso na causa da agressão. Trata-se de restrições implícitas ao direito de legítima defesa. 9.º Há assim, no caso sem apreço, EXCESSO DE LEGÍTIMA DEFESA, objectivamente, se foi utilizado um meio mais gravoso, havendo à disposição meios menos gravosos, o que se verificou no caso dos presentes autos, pois que na verdade o arguido dispunha ao seu alcance diversas outras condutas alternativas, nomeadamente:
10.º Ora, no caso concreto o recurso à força pública era MANIFESTA E CLARAMENTE exequível, e até a forma mais fácil e segura de eventual protecção do património por parte do arguido, pelo que não pode o recorrente condescender-se com a fundamentação do acórdão recorrido, ao concluir que o arguido queria por fim à agressão ilícita em curso sobre um direito seu, e que terá usado proporcionalmente os meios que tinha ao seu dispor para esse efeito.
11.º Aliás nesse sentido, atente-se à justificação que foi apresentada pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento para o facto de não ter telefonado para a entidade policial, ao mencionar numa primeira fase de que não o fez "(...) porque anteriormente aquando de uma deslocação ao Posto para apresentar queixa, tinham-lhe dito que "não podiam fazer nada", referindo posteriormente que não tinha o número de telefone".
12.º Esta justificação do arguido não merece qualquer credibilidade, pois que a alegada queixa que o mesmo terá pretendido apresentar não terá sido com certeza por causa do recorrente se encontrar a alegadamente partir o seu telhado…
13.º Pois que, a verdade é que dúvidas não subsistem de que o arguido dispunha de outras alternativas ao seu fácil alcance com vista a alegadamente pôr fim à alegada agressão ilícita em curso sobre um direito seu, pelo que se REFUTA VEEMENTE, não podendo acolher a tese constante da decisão recorrida de que o arguido terá usado proporcionalmente os meios que tinha ao seu dispor para esse efeito, pelo que estamos perante uma clara e evidente violação do Princípio da Proporcionalidade, um dos princípios basilares do nosso ordenamento jurídico- penal.
14.º Deste modo, o recorrente não concorda com o entendimento dos Venerandos Juízes Desembargadores, o qual é revelador de um entendimento anacrónico e manifestamente descabido da realidade, o qual fomenta e incrementa o recurso à “vindicta privada”, pois que legitima que qualquer cidadão, no futuro, para defesa do seu património – e nem sequer estamos a falar para defesa da sua vida e condição humana - coloque seriamente em causa e em perigo o bem mais precioso - a vida de outrem.
15.º Após análise dos requisitos e pressupostos da legítima defesa (que conforme supra demonstrado não se encontram minimamente preenchidos), cumpre dissecar em concreto, a douta decisão proferida pela 1.ª instância, com interesse para a decisão da causa, a qual deu como provada, a seguinte matéria de facto (da qual resulta sem margens para quaisquer dúvidas de que o arguido não terá actuado em legítima defesa, antes sim com a intenção clara e evidente de matar o aqui recorrente, aliás conforme entendimento do Colectivo de Juízes da 1.ª Instância): “(…) 8. De seguida, apontou a arma e efectuou um disparo na direcção do telhado onde se encontrava o ofendido BB, atingindo-o de raspão na cabeça, no pescoço e tórax. 9. Após efectuar o disparo, o arguido voltou a municiar a espingarda caçadeira com um cartucho, dirigiu-se a casa, tendo colocado a arma municiada atrás da porta da casa de banho, sem diligenciar por perceber se o ofendido estava bem ou se precisava de ajuda, regressando à gaiola onde permaneceu até chegar a G.N.R. ao local. (…) 12. O arguido conhecia as características da referida arma, bem sabendo das potencialidades perfurantes, destrutivas e mortais da mesma. (sublinhado nosso). 13. Ao agir do modo descrito – efectuando um disparo com uma arma de fogo na direcção do ofendido que se encontrava em cima do telhado – o arguido sabia que o poderia atingir no seu corpo, atingindo órgãos vitais à vida humana. (sublinhado nosso). 14. Sabia ainda que tal conduta era susceptível de provocar a morte do ofendido, conformando-se com essa possibilidade, resultado que não se verificou por razões alheias à sua vontade. (sublinhado nosso). (…) 18. O arguido foi caçador durante vários anos. 19. O arguido sabia onde se encontrava o assistente, tendo visibilidade para o mesmo desde o local onde efectuou o disparo. (sublinhado nosso).
16.º Tal ilação resulta igualmente dos FACTOS DADOS COMO NÃO PROVADOS pela 1.ª Instância com relevância para a decisão, ora vejamos: (…) “1. Que devido ao referido em 2 da factualidade provada, o arguido tenha recorrido aos serviços de uma Advogada para tentar resolver os problemas com o assistente. (…) 8. Que em 2011 o arguido tenha recorrido aos serviços de uma Advogada para tentar solucionar problemas criados pelo assistente, nomeadamente a utilização indevida do muro do arguido. 9. Quem em 05-12-2011 o arguido tenha interpelado o assistente para que o mesmo deixasse de construir o telhado sob o muro da sua propriedade e construísse o seu próprio muro. 10. Que na sequência do referido em 7 dos factos provados o arguido tenha disparado um tiro para o ar e não na direcção do assistente. (sublinhado nosso). 11. Que o arguido não tenha visto o assistente quando este se encontrava no telhado, nomeadamente quando efectuou o disparo referido em 8 da factualidade provada”. (sublinhado nosso).
17.º Para a determinação dos factos provados e não provados, nomeadamente o facto de o arguido ter visto que o recorrente se encontrava em cima do telhado (facto dado como provado n.º 19), o Colectivo de Juízes do Tribunal da 1.ª instância, formou a sua convicção nas declarações prestadas pelo recorrente (declarações essas verosímeis, consistentes e sérias) que declarou “(…) que o telhado tem uma inclinação de cerca de 70 centímetros, pelo que, na posição em que se encontrava, relativamente à entrada da casa do arguido, estava visível pelo menos dos joelhos para cima, visibilidade que existia da cintura para cima, mesmo que por mera hipótese estivesse no último degrau da escada, na parte superior da mesma, o que não ocorreu no caso concreto, dado estar em cima do telhado”.
18.º Declarações essas conjugadas com a prova pericial constante dos fotogramas a fls. 165 dos autos, bem como das declarações prestadas pela Inspectora da Polícia Judiciária, CC, a qual referiu expressamente que “(…) tendo em conta o desnível do telhado da porta de entrada da casa do arguido, era visível o corpo do assistente em cima do telhado, sendo visível pelo menos a cabeça, caso por mera hipótese, o mesmo estivesse em pé, no último degrau da parte de cima da escada que estava encostada ao telhado do lado da propriedade do assistente”. (sublinhado nosso).
19.º Assim como, esclarecimentos do Sr. Perito, Técnico Especialista do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, que elaborou o relatório pericial junto aos autos a fls. 235 a 247, e do qual resulta que o chumbo utilizado pelo Recorrente é “(…) idóneo a provocar a morte, diminuindo tal probabilidade à medida que a distância aumenta, considerando para efeitos de longa distância uma distância superior a 20 metros, sendo tais potencialidade de dispersão e letais do conhecimento de qualquer caçador”. (sublinhado nosso).
20.º E ainda do relatório do exame pericial de observações e recolha de vestígios efectuado em 13.110.2015, no nºs. ..., local onde os factos ocorreram, de fls. 148 a 174, sendo visível no fotograma n.º 51, a fls, 165 o vestígios no telhado compatíveis com o embate dos bagos de chumbo provocados pelo disparo de espingarda caçadeira, e no fotograma n.º 66, a fls 173 a medição da distância entre a zona do disparo efectuado pelo arguido e a zona do telhado onde se encontra o recorrido atingida por aquele (cerca de 10,50 metros).
21.º Pelo que, não deve assim merecer qualquer acolhimento a tese propugnada pelos Venerandos Juízes Desembargadores, no sentido de que o arguido terá agido em legítima defesa do seu património, até porque não existe qualquer factualidade dada como provada nesse sentido, e que possa levar à alteração da matéria de facto efectuada nos termos e com os fundamentos constantes da decisão recorrida.
22.º Na verdade, com todo o devido respeito, e salvo melhor entendimento, a alteração da matéria de facto fixada pela 1.ª instância por parte dos Venerandos Juízes Desembargadores encontra-se manifestamente desprovida de qualquer suporte fáctico, aliás entende-se que a mesma foi forçosa e infalivelmente alterada apenas com base em considerações imparciais e sem a isenção necessária para a apreciação do caso em apreço, com o único intuito e objectivo - a absolvição injusta e ilegal do arguido quando na realidade ficou devidamente provado que o mesmo praticou o crime pelo qual foi condenado.
23.º Pois que, basta atentarmos na simples análise da decisão recorrida para facilmente se depreender que no entendimento dos Venerando Juízes Desembargadores, - e não obstante ter sido o recorrente que sofreu na sua pessoa e corpo os danos constantes dos autos resultantes da actuação grave e leviana do arguido, - o recorrente é que terá, ainda por cima, agido criminalmente praticando segundo consta expressamente da decisão recorrida crime de introdução em lugar vedado ao público e de dano qualificado no património do arguido…
24.º Aliás, na esteira desse raciocínio por parte dos Mmos. Juízes Desembargadores, chegam mesma a fundamentar a sua decisão, e no que concerne ao alegado crime de dano qualificado praticado por parte do recorrente, mencionando que “(…) um telhado novo tem valor elevado (…)”?!
25.º Perante tais conclusões, só nos resta questionar: e a vida e a dignidade humana de uma pessoa, nomeadamente do recorrente, que foi alvejado e ficou gravemente ferido, correndo sérios riscos de vida, tendo ficado com danos irreversíveis “pequenos estilhaços no corpo”, que valor terá para os Mmos. Juízes Desembargadores?
26.º Ou seja, na esteira do raciocínio concretizado pelos Venerandos Juízes Desembargadores inverteram-se os “papéis”, o ofendido passou a criminoso, e o arguido passou a vítima… e dessa forma pretendem justificar a actuação do arguido em legítima defesa do seu património, nem sequer é em legitima defesa da sua vida, decidindo absolver o mesmo da prática do crime de que vem acusado, e que foi condenado e bem em sede de 1.ª instância!
27.º É que não pudemos olvidar que, a verdade é que o recorrente foi alvo de disparos de uma caçadeira disparada pelo arguido, e que teve a sorte de não terem produzido a morte do mesmo, mas que ainda presentemente tem alojado no seu corpo diversos chumbos que poderão no futuro condicionar e influir negativamente na sua saúde.
28.º Em face de tudo o supra exposto, e também por essa razão não pode o ora recorrente concordar e condescender-se com a decisão recorrida, que é manifestamente ilegal e violadora dos seus direitos e garantias legal e constitucionalmente protegidos.
29.º A verdade é que, da decisão da 1.ª instância resultam factos dados como provados, que nos permitem concluir - em harmonização com o Colectivo de Juízes que presidiu à audiência de discussão e julgamento - com bastante certeza e segurança que o arguido actuou com a intenção séria de matar o aqui recorrente, tendo-se conformado com tal fim.
30.º Aliás, e ao contrário da decisão recorrida FICOU DEVIDAMENTE PROVADO que o arguido actuou com a intenção clara e evidente de dirigir uma agressão ao ora recorrente, agressão essa que pelo meio utilizado seria susceptível de causar a morte do mesmo, e não obstante conformou-se a tal possibilidade.
31.º A verdade, é que o arguido sem sequer dirigir qualquer palavra ou expressão ao recorrente, efectuou de forma súbita e repentina um disparo na direcção do mesmo, aquando o mesmo encontrava-se em cima do telhado, e em posição clara e indubitavelmente visível para o arguido.
32.º Sendo que, em alternativa a esta conduta por parte do Recorrente, poderia sempre o mesmo, conforme menciona e bem o douto acórdão proferido pelo Colectivo da 1.ª instância, ter recorrido ao auxílio da força pública, bastando-lhe fazer uma simples chamada telefónica, poderia ter pedido auxílio a um dos seus vizinhos, ou até mesmo efectuar um disparo somente de advertência para uma zona onde soubesse não haver possibilidade de atingir ninguém, atendendo a que o mesmo até é caçador há já vários anos, conforme já supra mencionado.
33.º Pelo que, dúvidas não subsistem de que o arguido actuou com a intenção clara e evidente de atingir o recorrente no seu corpo, tendo praticado actos de execução do crime em causa, pois que tinha a consciência que ao dirigir o disparo na direcção do mesmo havia possibilidades de o atingir, facto esse que poderia conduzir à morte do recorrente, e ainda assim conformou-se com a sua actuação.
34.º Há insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois que os factos provados não são bastantes para justificar a alteração da matéria dada como provada por parte do Tribunal da Relação de Lisboa, conforme o fez. 35.º Violaram, assim, os Mmos. Juízes Desembargadores, os princípios consagrados nos artigos 13.º, 20.º n.º 4 e 32.º da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se a decisão recorrida ferida do vício previsto no artigo 410.º n.º 2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal. 36.º Destarte, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequentemente ser mantido na íntegra o Douto acórdão proferido pelo Tribunal da 1.ª Instância, o que se requer desde já.
37.º Na mera hipótese académica de V.Exas. Exmos. Senhores Juízes Conselheiros considerarem não estarem reunidos os requisitos objectivos e subjectivos do tipo de crime de homicídio na forma tentada, dúvidas não podem subsistir e de toda a prova constante nos autos de que o arguido ofendeu o corpo e a saúde do ora recorrente, e que por essa razão terá que ser responsabilizado criminalmente pelos seus actos!
38.º Provado está que no dia 13 de Outubro de 2015, no período compreendido entre as 10h45 e as 11 horas, o arguido apontou a arma e efectuou um disparo na direcção do telhado onde se encontrava o recorrente, atingindo-o de raspão ma cabeça, no pescoço e tórax.
39.º Que após efectuar o disparo, o arguido voltou a municiar a espingarda caçadeira com um cartucho, dirigiu-se a casa, tendo colocado a arma municiada atrás da porta da casa de banho, sem diligenciar por perceber se o recorrente estava bem ou se precisava de ajuda, regressando à gaiola onde permaneceu até chegar a G.N.R. ao local.
40.º Que o arguido conhecia as características da referida arma, bem sabendo das potencialidades perfurantes, destrutivas e mortais da mesma.
41.º Ao agir do modo descrito – efectuando um disparo com uma arma de fogo na direcção do ofendido que se encontrava em cima do telhado – o arguido sabia que o poderia atingir no seu corpo, atingindo órgãos vitais à vida humana, como veio a verificar-se.
42.º Sabia ainda que tal conduta era susceptível de provocar a morte do ofendido, conformando-se com essa possibilidade, resultado que somente não se verificou por razões alheias à sua vontade.
43.º Provado está também que o arguido actuou com o propósito de molestar fisicamente o recorrente, ciente de que a sua conduta era apta a alcançar tal resultado, objectivo que logrou alcançar, agindo de forma livre, voluntária e consciente que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
44.º Na verdade, o disparo desferido não logrou atingir de forma irremediável, nenhum dos órgãos vitais e o recorrente recebeu, de imediato, conduta assistência médico-cirúrgica em tempo empreendida.
45.º Encontra-se, assim, preenchida a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de ofensa à integridade física, sendo o dolo na modalidade de dolo directo (artigo 14.º n.º 3, do Código Penal).
46.º Considerando-se conforme já supra explanado aquando o item referente à Legítima Defesa (e que por mera economia processual se dá por integralmente reproduzido), considera-se inexistir qualquer causa que exclua a ilicitude ou a culpa do arguido, pelo que com a conduta descrita o arguido sempre incorreria quanto muito, e caso V.Exas. Exmos. Senhores Juízes Conselheiros entendam não estarmos perante um crime de homicídio na forma tentada, em responsabilidade penal pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º do Código Penal.
47.º Importa, então, analisar o caso em apreço, de modo a detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação da ofensa à integridade física. Mais uma vez Provado está que o arguido: 8. (…) apontou a arma e efectuou um disparo na direcção do telhado onde se encontrava o ofendido BB, atingindo-o de raspão ma cabeça, no pescoço e tórax. 9. Após efectuar o disparo, o arguido voltou a municiar a espingarda caçadeira com um cartucho, dirigiu-se a casa, tendo colocado a arma municiada atrás da porta da casa de banho, sem diligenciar por perceber se o ofendido estava bem ou se precisava de ajuda… (…) 12. O arguido conhecia as características da referida arma, bem sabendo das potencialidades perfurantes, destrutivas e mortais da mesma. 13. Ao agir do modo descrito – efectuando um disparo com uma arma de fogo na direcção do ofendido que se encontrava em cima do telhado – o arguido sabia que o poderia atingir no seu corpo, atingindo órgãos vitais à vida humana. 14. Sabia ainda que tal conduta era susceptível de provocar a morte do ofendido, conformando-se com essa possibilidade, resultado que não se verificou por razões alheias à sua vontade. (…)
48.º Sendo esta a matéria de facto assente, dúvidas não subsistem de que verifica-se a circunstância qualificativa prevista na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
49.º Assim, dos factos dados como provados decorre que o arguido utilizou uma arma de fogo, meio particularmente perigoso, e que segundo os esclarecimentos do Sr. Perito, Técnico Especialista do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, que elaborou o relatório pericial junto aos autos a fls. 235 a 247, e do qual resulta que o chumbo utilizado pelo Recorrente é “(…) idóneo a provocar a morte, diminuindo tal probabilidade à medida que a distância aumenta, considerando para efeitos de longa distância uma distância superior a 20 metros, sendo tais potencialidade de dispersão e letais do conhecimento de qualquer caçador”. (sublinhado nosso).
50.º Na verdade, a utilização desse instrumento – arma de fogo - dificultou, significativamente, e em absoluto, a possibilidade de defesa da vítima, como decorre da factualidade assente. Repare-se que o arguido desferiu um disparo na direcção do telhado onde se encontrava o ofendido, atingindo-o de raspão na cabeça, no pescoço e tórax sem que este tenha sequer tido a possibilidade de se defender.
51.º Assim, em face do exposto, com a conduta descrita, na mera hipótese académica de V.Exas. Exmos. Senhores Juízes Conselheiros não entenderem que o arguido tenha praticado um crime de homicídio na forma tentada, por mera cautela de patrocínio, sempre dirá que o arguido incorreu em responsabilidade criminal pela prática, em autoria material, na forma consumada e com dolo directo, de um crime de ofensa à integridade física, qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal, devendo por essa razão ser condenado pela prática do mesmo, condenação essa que para além de todo o circunstancialismo e motivação do crime, deverá ainda ter em linha de conta a personalidade do arguido, nomeadamente que:
52.º Em suma, e em face de tudo o supra exposto, não poderá o arguido ficar impune, com a absolvição decidida pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, pois que a responsabilidade criminal do mesmo é seriamente notória, grave e lesiva do bem mais precioso de qualquer pessoa – no caso em apreço a vida humana do recorrente, assim como a sua saúde e corpo, pelo que deverá o mesmo ser condenado, para que se faça a devida e a costumada JUSTIÇA!!
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVERÁ A DECISÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA SER REVOGADA, MANTENDO-SE NA ÍNTEGRA E PLENITUDE A DECISÃO DE CONDENAÇÃO DO ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE HOMICÍDIO NA FORMA TENTADA NA PENA DE PRISÃO EFECTIVA DE 05 (CINCO) ANOS PROFERIDA PELA 1.ª INSTÂNCIA.
CASO V.EXAS. ASSIM NÃO ENTENDAM, POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO, SEMPRE DEVERÁ O ARGUIDO SER CONDENADO PELA PRATICA DE UM CRIME DE OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA E EM PENA DE PRISÃO EFECTIVA.
5. Respondeu o arguido, concluindo[2]:
«CONCLUSÕES: 1. A presente resposta fundamenta-se nos termos do artigo 413.º n.º 1 do CPP. 2. Deve, pois, o presente recurso apresentado pelo Assistente e ora Recorrente, salvo melhor opinião, improceder, pois o acórdão, ora objecto de recurso, fez correctamente a avaliação dos factos seguindo escrupulosamente a lei e a melhor doutrina e não merece qualquer censura. 3. O aqui contra alegante e Recorrido conforma-se com o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 12-10-2017. 4. Não encontra no referido Acórdão qualquer vício ou erro, e entende ter-se verificado uma adequada ponderação dos factos, bem como a decisão, em face das concretas provas, e que motivaram uma correta aplicação do Direito. 5. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa deve manter-se em toda a linha, porquanto repôs a Justiça que ao caso em concreto é devida. 6. É de recordar que em sede de contestação apresentada pelo aqui Recorrido, este requereu como meio de prova nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 150.º do CPP, a reconstituição dos factos ocorridos no dia 13 de Outubro de 2015, por volta das 11h00m, em sua casa, sita na .... 7. Porém, tal pretensão foi-lhe negada no início da audiência de discussão e julgamento, pelo Tribunal “a quo”, tendo o Ministério Público considerado prematuro “Quanto à reconstituição dos factos, (…) considera ser prematuro pronunciar-se neste momento, pretendendo ouvir a prova sem prejuízo de mais tarde, caso se revele necessário, se pronunciar.” 8. Tendo o Tribunal “a quo” proferido despacho referindo que “Quanto ao requerido pelo arguido a fls. 752 e 753 da contestação, no que respeita à reconstituição dos factos, pressuposto da realização de tal procedimento, conforme resulta do disposto no art. 150º do C.P.P., é desde logo a determinação de qual o facto que se pretende demonstrar, que poderia ter ocorrido de certo modo. 9. Posição de que o Recorrido, sempre discordou por completo, porquanto o mesmo requereu “a reconstituição dos factos, para se apurar e perceber a dinâmica da ocorrência e contribuir de forma decisiva para a descoberta da verdade material.” 10. Facto é que a sua realização levaria à conclusão de que o Recorrido sempre, e de forma consistente, afirmou que nunca em momento algum, nem antes, durante ou depois, viu o Recorrente. 11. O Recorrente requereu também, a audição, como perito, do médico responsável pela elaboração do relatório efectuado no Hospital de vila Franca de Xira nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 151º do CPP, tendo tal pretensão sido igualmente indeferida. 12. A falta de produção de prova supra referida, conduziu a uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410º nº 2 alínea a) do CPP. 13. O Tribunal julga a prova segundo as regras de experiência comum e a livre convicção que sobre ela forma (art. 127.º do CPP). 14. Impunha-se uma reconstituição dos factos, concluindo o Tribunal “ad quem” que o indeferimento da reconstituição pedida “(…) não era absolutamente essencial, se a demais prova viesse a ser analisada de acordo com as regras da experiência comum, e, sobretudo, apenas com a prova objectiva, despida de preconceito, e sem obedecer à pressão das circunstâncias exteriores”. 15. Até porque o Colectivo que compôs o Tribunal “a quo” em sede de audiência de discussão e julgamento de forma a “reconstituir os factos” simulou com as mãos a forma e posição com que o Recorrido terá supostamente disparado. 16. Impunha-se um maior rigor na apreciação dos factos, tanto mais que o Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” conduziu à aplicação de uma pena de 5 (cinco) anos de prisão efectiva ao Recorrido. 17. Por também não serem despiciendos e devessem ser tidos em conta no âmbito do recurso apresentado para o Tribunal da Relação de Lisboa, foram trazidos à colação os diversos aspectos de facto que foram incorrectamente avaliados e que levaram a que se tivesse recorrido do Acórdão proferido pelo Tribunal “a quo” - a errada subsunção jurídica dos factos: a legítima defesa - art.º 32º do Código Penal. 18. Não ficou cabal e inequivocamente demonstrado no Tribunal da 1ª instância que o Recorrido se tenha conformado com a ideia de matar o Recorrente ou sequer equacionado tal hipótese. 19. Outrossim, o douto Tribunal “a quo” valorou, então, os factos atinentes ao Recorrido, mas não valorou os factos relativos ao Recorrente. 20. Naturalmente, não poderá ser esquecida a atitude do Recorrente durante cerca de 25 (vinte e cinco) anos – e que também é um facto provado nos autos. 21. Pelo teor das várias queixas apresentadas pelo Recorrido, ao longo dos anos, verifica-se que a situação dos presentes autos já tem antecedentes por parte do Recorrente pelo menos desde 11-10-2011. 22. A conduta do Recorrido é subsumível ao instituto jurídico da legítima defesa, que se encontra previsto no artigo 32.º do C.P. 23. Trata-se, pois de uma causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, alínea a) do C.P. 24. A agressão do Recorrente aos interesses juridicamente protegidos do Recorrido era actual e ilícita. 25. O Tribunal “ad quem” considerou e fundamentou a absolvição do Recorrido através da aplicação do instituto da legítima defesa, alegando que “(…) à luz da conduta do homem médio, o arguido actuou com os meios necessários para repelir a agressão actual de que estava a ser vítima, e não foi além do razoável para por fim à destruição do telhado da sua casa (…). 26. O artigo 32.º do C.P. refere que “Constitui legítima defesa o facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.” 27. Não ficou provado que o Recorrido tenha atuado com outra finalidade que não a defesa dos seus interesses. 28. O Recorrido sempre afirmou não ter visto o Recorrente, tendo agido apenas e só na defesa da sua propriedade, nunca tendo equacionado a hipótese de atingir o mesmo, muito menos provocar-lhe a morte. 29. O Recorrente não foi atingido com um chumbo, mas sim por efeito de ricochete, pelo que necessariamente o mesmo não estava no campo de visão do Recorrido, tendo este efectivamente disparado para o ar, no sentido de colocar termo àquela acção levada a cabo pelo Recorrente. 30. Não é possível concluir que o Recorrente estivesse “perfeitamente” visível, até porque em momento algum foi apurada com exactidão a distância que medeia entre a porta de casa onde se encontrava o Recorrido e o telhado onde alegadamente se encontrava o Recorrente, as medidas são sempre aproximadas e não exactas, assim como também em momento algum consta dos Autos qual a inclinação dos telhados, também aqui os valores são aproximados e pouco rigorosos. 31. A valoração dos factos pelo Tribunal “a quo” quanto ao modo de execução não esteve de acordo com as reais circunstâncias em que os mesmos ocorreram. 32. O Tribunal “ad quem” mais não fez do que corrigir um erro do Tribunal “a quo”, socorrendo-se e citando o Supremo Tribunal de Justiça, in CJ, XVIII, 1, 201 “(…) erro notório na apreciação da prova, entendido este como desconformidade com a prova facilmente perceptível pelo comum dos observadores.” 33. Decidiu bem o Tribunal “ad quem” em alterar a matéria de facto fixada pelo Tribunal “a quo” “(…) cumpre alterar a matéria de facto fixada pela 1ª instância, no uso da faculdade prevista no artº 428º do CPP e artº 431º alínea a) do mesmo diploma legal, sanando o vício de conhecimento oficioso de que a mesma decisão enferma e evitando, como é de lei, o reenvio para novo julgamento”. 34. Fundamentando o Tribunal “ad quem” a sua convicção “Este Tribunal de recurso fundamentou a sua convicção nas declarações prestadas por ambos os intervenientes, declarações essas, que analisadas nas suas afirmações, justificações e omissões, conjugadas com a prova documental já existente nos autos (prova pré constituída), designadamente, a dos fotogramas que mostram o telhado partido, e as regras da experiência comum, lhe permitiram concluir pela ausência de intenção de matar por parte do arguido recorrente. 35. O Recorrido não tem quaisquer antecedentes criminais nem disciplinares. 36. O Recorrido é primário. 37. Não tem qualquer histórico de violência. 38. Nunca utilizou indevidamente armas de fogo. 39. O Recorrido sempre trabalhou. 40. Tem uma carreira contributiva de mais de 40 anos. 41. O Recorrido está completamente integrado, familiar e socialmente. 42. O Recorrido é uma pessoa muito respeitada no local de onde é natural e onde residia até ao dia 13 de Outubro de 2015. 43. O Recorrido, esteve detido no estabelecimento prisional de Caxias durante cerca de 2 (dois) meses e sujeito a permanência na habitação, durante cerca de 22 (vinte e dois) meses de forma injusta. Durante esse longo período de tempo, não teve qualquer comportamento impróprio ou lhe foi detectada qualquer infracção a tal medida, o que é bem revelador da sua conduta. 44. O Recorrido reside actualmente durante a semana no seu local de trabalho, sito na ... e aos fins-de-semana com a sua companheira na Rua ... e assim pretende permanecer. 45. Bem andou o Tribunal “ad quem” ao decidir “(…) absolver o arguido AA (…) do pedido cível formulado pelo assistente BB.” 46. Não ficou provado que o Recorrente sinta qualquer desgosto, decorrente dos factos ocorridos no dia 13 de Outubro de 2015. 47. O dano “desgosto” tem sido arbitrado pelos Tribunais apenas em caso de morte da vítima. 48. Não ficou provado que o Recorrente tenha sentido qualquer humilhação com o sucedido. 49. Não faz sentido que o Recorrente sinta ansiedade e receio que volte a acontecer o sucedido, quando o Recorrido nunca mais voltou à sua casa depois daquele dia, nem pretende voltar, até porque a propriedade da casa pertence à sua filha! 50. O Recorrente afirmou em sede de julgamento que nunca fez qualquer penso, afirmação que consta dos autos. 52. Pretende agora o Recorrente a alteração da qualificação jurídica, o que, salvo o devido respeito, não faz qualquer sentido nos termos do art. 358.º, n.º 1 e 3, do CPP. 53. Em suma, e em face do exposto deverá manter-se a absolvição do Recorrido decidida pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, pois que a sua responsabilidade criminal foi totalmente afastada pelas causas de justificação e que emanam da lei, e só assim decidindo prevalecerá a costumada JUSTIÇA!! NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO, DEVERÁ A DECISÃO DO DOUTO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA MANTER-SE NA ÍNTEGRA E PLENITUDE, MANTENDO-SE A ABSOLVIÇÃO DO RECORRIDO, DEVENDO POR ISSO IMPROCEDER TOTALMENTE O PRESENTE RECURSO. DEVENDO IGUALMENTE IMPROCEDER A PRETENSÃO DA ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA.
6. Também o Ministério Público apresentou resposta, dizendo:
7. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão prévia da rejeição do recurso, por inadmissibilidade, dizendo:
«Na verdade, o arguido foi condenado em 1.ª instância, na pena de 5 anos de prisão e na indemnização civil de € 20.000, pela prática de um crime de homicídio tentado, com a agravação do NRJAM.
A Relação julgou procedente o recurso do arguido, absolvendo-o do crime e do pedido de indemnização.
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º, do Cód. Proc. Penal, é inadmissível o recurso de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, excepto no caso da decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos.
É o caso dos autos. A pena de prisão fixada em 1.ª instância não é superior a 5 anos de prisão.
Deve, pois, o recurso ser rejeitado, nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2, e 400.º, n.º 1, alínea d), todos do Código de processo Penal.»
8. Na sequência do cumprimento do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP: a) O arguido-recorrido manifestou a sua concordância com o parecer do Ex.mo Magistrado do Ministério Público neste Supremo Tribunal no sentido da sua rejeição, por não ser admissível, nos termos das normas supra citadas.
b) O recorrente expressou a sua discordância relativamente ao parecer do Ministério Público, sustentando que «terá sempre de se admitir a interposição do recurso em causa» por força do «princípio da igualdade de armas». Manifesta ainda o entendimento de que «a pena aplicada [5 anos de prisão] está englobada e enquadrada dentro da previsão constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, ou seja, pena de prisão superior a 05 (cinco) anos, inclusive, que é o caso dos autos em apreço, pois que o arguido foi condenado em pena de prisão efectiva de 05 (cinco) anos». Na verdade, afirma-se ainda, «da conjugação das als. e) e f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, resulta a contrario que existe possibilidade de recurso para o STJ das decisões das relações que, não tendo confirmado a decisão de 1.ª instância (condenatória ou absolutória), aplicassem pena privativa de liberdade, fosse ela qual fosse, e que é o caso dos autos em que foram proferidas pela 1.ª instância e pela Relação decisões totalmente distintas e díspares».
9. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Os factos
As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
A - Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da mesma (mantendo-se a numeração anteriormente indicada): Da acusação:
1 - O arguido AA e o ofendido/assistente BB, nascido em ...-1953, são primos; e, até 13 de Outubro de 2015, vizinhos, existindo entre ambos litígios antigos.
2 - Desde data não concretamente apurada, há cerca de 25 anos, e em face dos recorrentes conflitos existentes entre ambos, o arguido e o ofendido deixaram de se falar.
3 - Durante o Verão de 2015, o ofendido BB iniciou algumas obras na rua onde se situam os terrenos de ambos, concretamente na Rua ..., em resultado das quais o arguido ficou desagradado. (obras essas que não agradaram ao arguido)
4 - Os terrenos do arguido e do ofendido são delimitados entre si por muros.
5 - No dia 13 de Outubro de 2015, no período compreendido entre as 10h45m e as 11 horas, o arguido decidiu fazer obras junto ao muro do lado do seu terreno, na gaiola dos pássaros, tendo para o efeito descolado as chapas, e tendo tirado alguns tijolos do seu muro.
6 - Na mesma data, o ofendido BB decidiu partir o telhado de uma das casas do arguido (casa do fogo), telhado esse que num dos lados pende para o terreno do ofendido, utilizando para o efeito uma marreta.
7 - Assim que se apercebeu que o ofendido BB estava a partir o referido telhado, o arguido AA, com a intenção de colocar um fim àquela situação, foi a casa e regressou com uma espingarda caçadeira devidamente municiada com dois cartuchos.
8 - De seguida, apontou a arma e efectuou um disparo na direcção do telhado onde se encontrava o ofendido BB, atingindo-o de raspão na cabeça, no pescoço e no tórax.
9 - Após efectuar o disparo, o arguido voltou a municiar a espingarda caçadeira com um cartucho, dirigiu-se a casa, tendo colocado a arma municiada atrás da porta da casa de banho, sem diligenciar por perceber se o ofendido estava bem ou se precisava de ajuda, regressando à gaiola dos pássaros onde permaneceu até chegar a G.N.R. ao local.
10 - Como consequência directa, adequada e necessária da actuação do arguido, o ofendido BB sofreu as seguintes sequelas: Crânio: áreas arredondadas, com cerca de 2 mm de diâmetro, de consistência dura, móvel, nos tecidos moles da região retro auricular direita (1) e na região parietal direita (1); duas cicatrizes violáceas, ovais, dispostas em mesma linha oblíqua para trás e para a direita, na região parietal direita, com 1 x 0,2 em cada; cicatriz acinzentada, oval, na região occipital à direita da linha média, de eixo maior vertical, com 0,5 x 0,2 cm. Pescoço: cicatriz hipocrómica, oval, de eixo maior vertical, na face posterior do pescoço, à direita da linha média, com 0,5 x 0,3 cm. Tórax: crosta seca e acastanhada com cerca de 2 mm de diâmetro na região interescapular, palpando-se nos tecidos moles subjacentes área de consistência dura e móvel, com cerca de 2 mm de diâmetro; Em 24-02-2016: cicatriz rosada, oval, de eixo maior vertical, na região interescapular, à esquerda da linha média, com 0,5 x 0,3 em; área de consistência dura e móvel, com cerca de 2 mm de diâmetro, nos tecidos moles superiormente à cicatriz previamente descrita; cicatriz com cerca de 2 mm de diâmetro na região interescapular, palpando-se nos tecidos moles subjacentes área de consistência dura e móvel, com cerca de 2 mm de diâmetro.
11 - Tais lesões demandaram 134 (cento e trinta e quatro) dias para a consolidação médico-legal: com afectação da capacidade de trabalho geral de 30 (trinta) dias, e com afectação da capacidade de trabalho profissional de 134 (cento e trinta e quatro) dias, tendo resultado para o ofendido BB as consequências permanentes descritas, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em cicatrizes.
12 - O arguido conhecia as características da referida arma, bem sabendo das potencialidades perfurantes, destrutivas e mortais da mesma.
13 - Ao agir do modo descrito - efectuando um disparo com uma arma de fogo na direcção do ofendido que se encontrava em cima do telhado ¬o arguido sabia que o poderia atingir no seu corpo, atingindo órgãos vitais à vida humana.
14 - Sabia ainda que tal conduta era susceptível de provocar a morte do ofendido, conformando-se com essa possibilidade, resultado que não se verificou por razões alheias à sua vontade.
15 - Sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei. Do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente BB:
16 - Ao aperceber-se da deslocação do arguido referida em 7, o assistente temeu pela vida e instintivamente baixou-se de imediato e assim permaneceu no telhado.
17 - Antes de efectuar o disparo supra referido em 8, o arguido não proferiu qualquer palavra.
18 - O arguido foi caçador durante vários anos.
19 - O arguido sabia onde se encontrava o assistente, tendo visibilidade para o mesmo desde o local onde efectuou o disparo.
20 - Para além do supra referido em 10, da observação clínica efectuada em 13- 10-2015 no Hospital de Vila Franca de Xira, resulta que, em consequência do disparo efectuado pelo arguido, o assistente sofreu várias feridas punctiformes no crânio e face posterior do tórax, com pequenas estruturas de densidade provavelmente metálicas criadoras de artefactos, mas todas epicranianas, bem como na região retromastoide direita, salientando-se uma na mastóide direita, outra na linha média, interparietal, e uma parietal direita, outra esquerda, adjacentes às corticais externas.
21 - Em consequência do disparo efectuado pelo arguido, o assistente começou a sangrar da cabeça, tendo ficado assustado, sendo socorrido pelo cônjuge que o transportou ao hospital para receber assistência médica.
22 - Não obstante os tratamentos a que foi submetido actualmente o assistente não consegue efectuar movimentos bruscos com o pescoço e com a cabeça, sem sentir dores e desconforto, não conseguindo carregar pesos, encontrando-se desde essa data de baixa médica.
23 - Em consequência do disparo o assistente sofreu dores fortes, as quais continua a sentir nos locais onde estão alojados os bagos de chumbo, tendo necessidade de tomar medicação para as dores.
24 - Em consequência da actuação do arguido, o assistente sente-se desgostoso, triste, humilhado, nervoso, ansioso, amedrontado e inseguro, tendo dificuldade em dormir, tomando medicação para o estado depressivo e para conseguir dormir, continuando a recear pela sua vida.
25 - Para além do supra referido em 24, o assistente sentiu-se psicologicamente afectado nos primeiros três meses após os factos, ao ver as cicatrizes que tinha no corpo.
26 - Com a medicação que o assistente teve necessidade de tomar, quer para as dores quer para as sequelas psicológicas (antidepressivos), designadamente Relmus, Cholib, Rivotril e Lexotan, o mesmo despendeu a quantia global de € 17,39 (dezassete euros e trinta e nove cêntimos), tendo ainda despendido a quantia global de € 11,20 (onze euros e vinte cêntimos) em consultas médicas e realização de pensos. Das contestações:
27 - Há cerca de 25 anos, o assistente manifestou o seu desagrado perante o arguido, pelo facto deste criar um porco na sua propriedade.
28 - Em 11-10-2011 o arguido dirigiu uma reclamação ao Presidente da Câmara Municipal de ..., do seguinte teor: «DESCRIÇÃO A propriedade do requerente foi herdada por óbito de seus pais. Essa propriedade encontra-se murada desde há mais de 40 anos com muro em alvenaria, inteiramente construído pelos pais do requerente. O mesmo divide a sua propriedade da propriedade pertencente ao Sr. BB. Recentemente o requerente constatou que este vizinho tem estado a realizar obras na sua propriedade, utilizando o muro que não lhe pertence e partindo o mesmo, para apoiar vigas, quer em cimento, quer em madeira, sem qualquer construção que suporte os telhados, e com uso abusivo. Como o muro é antigo o requerente receia que possa cair».
29 - Em 04-08-2015 o arguido deu entrada de uma exposição na Câmara Municipal de ..., com o seguinte teor: «ASSUNTO Várias coisas! ... DESCRIÇÃO Obra de um muro ilegalidade no apoio de bigas? '" Manilhas tapada com cimento provocando o desvio das águas para a entrada. Agradecia ser contactado para estar presente Sem mais assunto Os meus cumprimentos».
30 - Com data de 04-08-2015, o arguido dirigiu ao Presidente da Junta de Freguesia de ... uma exposição com o seguinte teor: «Eu AA - Venho dar-lhe conhecimento que na Rua .... frente à entrada da residência N° ... existe algumas manilhas para as águas da chuva e outras corram para o ribeiro lá próximo... Na qual reparei que o vizinho do lado tapou as manilhas com cimento não sei o porquê de tal atitude. Agradecia que manda-se alguém verificar... se não actuar de futuro as águas vão correr na estrada. Obrigado pela sua atenção Sem mais assunto os meus cumprimentos. ».
31 - O arguido é titular de licença de uso e porte de arma desde há vários anos. Mais se provou:
32 - O arguido AA é o mais novo de três filhos de uma família de baixa condição socioeconómica, que se dedicava aos trabalhos no campo como meio de subsistência, sendo o contexto familiar, afectivo, funcional e de entreajuda, não havendo registo de privações.
33 - O quotidiano do arguido dividia-se entre a escola e a realização de trabalhos rurais junto do progenitor, o que prejudicou o seu percurso escolar, caracterizado pelo desinvestimento e insucesso.
34 - Com cerca de 15 anos de idade e o 4° ano concluído, o arguido decidiu ir trabalhar na área da construção civil, nas obras públicas, área que foi alternando com a agricultura e com a condução de veículos pesados, num percurso laboral consistente e estável até 2010, trabalhando desde então na área da agricultura, ainda que sem vínculo, e de forma ocasional.
35 - Do seu casamento o arguido tem uma filha com 28 anos de idade, tendo cessado a relação conjugal, vivendo há cerca de seis anos em união de facto com a sua actual companheira.
36 - À data dos factos o arguido encontrava-se desempregado e residia na propriedade que herdou dos seus progenitores, em ..., pernoitando regularmente na casa da sua actual companheira no Concelho de ....
37 - Na propriedade do arguido residia igualmente o agregado constituído da sua filha, num contexto familiar harmonioso e de entreajuda.
38 - O arguido desenvolvia trabalhos pontuais numa quinta-agrícola, que alternava com obras de reparação e manutenção da sua propriedade, privilegiando a sociabilização com amigos e conhecidos da sua área de residência, com os quais estabelecia relações que contrastavam com a que mantinha com o ofendido, que se revestia de acrescida conflitualidade há vários anos.
39 - Na sequência da aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica, o arguido integrou o agregado familiar da sua actual companheira, não dispondo de qualquer fonte de rendimento, subsistindo dos proventos da actividade laboral da mesma, no montante mensal de € 630,00, acrescidos de uma pensão de viuvez no valor mensal de € 170,00, beneficiando ainda do apoio pontual de familiares, através de bens alimentícios.
40 - De acordo com o relatório social o arguido «apresenta-se como um indivíduo dinâmico e com facilidades ao nível das relações interpessoais, que denota fraca capacidade ao nível do raciocínio crítico e da antecipação das consequências dos seus actos. Revelando um pensamento rígido e cristalizado, denota dificuldades no pensamento alternativo e na resolução de problemas.
(…) evidencia um pensamento rígido e desresponsabilizante, sobrepondo as suas convicções pessoais às normas jurídico-legais vigentes (...)».
41 - Do certificado de registo criminal do arguido AA nada consta.
B - FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevância para a presente decisão não resultaram provados quaisquer outros factos. Designadamente não se provou: Da acusação:
1 - Que devido ao referido em 2 da factualidade provada, o arguido tenha recorrido aos serviços de uma Advogada para tentar resolver os problemas com o assistente.
2 - Que aquando do referido em 9 dos factos provados, o arguido tenha ficado a aguardar que o assistente o fosse confrontar com o sucedido. Do pedido de indemnização civil:
3 - Que em consequência das lesões sofridas, o assistente sinta dores e desconforto ao efectuar a higiene diária.
4 - Que o assistente tenha despendido a quantia de € 43,00 (quarenta e três euros) em tratamentos médicos no Hospital de ...
5 - Que para além do referido em 26 dos factos provados, o assistente tenha despendido ainda a quantia global de € 252,34 (duzentos e cinquenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos) em medicação, nomeadamente Olsarplus, Voltaren injectável, e Metanor.
Das contestações:
6 - Que aquando do referido em 27 dos factos provados o assistente tenha chamado os fiscais da Câmara Municipal de ... ao local; que os mesmos tenham notificado o assistente para que este construísse uma fossa de modo a desviar os esgotos que tinha a «céu aberto» de uma ribeira existente no local; que a partir desse momento o assistente tenha começado a dirigir ameaças e provocações ao arguido; e que tenha dito ao arguido que lhe «haveria de fazer a folha».
7 - Que em 2011, o assistente na execução de um telhado na sua propriedade, tenha utilizado um muro do arguido para suporte, como sendo seu, tendo destapado as sapatas dos alicerces, e através de martelo pneumático faceou-as, colocando em risco o suporte do muro do arguido, porquanto deixou o cabouco que suporta o muro completamente «descalço».
8 - Que em 2011 o arguido tenha recorrido aos serviços de uma Advogada para tentar solucionar problemas criados pelo assistente, nomeadamente a utilização indevida do muro do arguido.
9 - Que em 05-12-2011 o arguido tenha interpelado o assistente para que o mesmo deixasse de construir o telhado sob o muro da sua propriedade e construísse o seu próprio muro.
10 - Que na sequência do referido em 7 dos factos provados o arguido tenha disparado um tiro para o ar, e não na direcção do assistente.
11 - Que o arguido não tenha visto o assistente quando este se encontrava no telhado, nomeadamente quando efectuou o disparo referido em 8 da factualidade provada.
12 - Que o assistente logo a seguir à ocorrência dos factos, tenha escondido o veículo automóvel para não ser visto a trabalhar.
13 - Que quatro dias após a detenção do arguido, o assistente tenha sido visto a desfazer as obras que realizou em Agosto de 2015, nomeadamente a desobstrução das manilhas que havia enchido por completo com cimento.»
2. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites de cognição do Tribunal Superior.
O recorrente insurge-se contra a absolvição do arguido decretada pelo Tribunal da Relação pela prática do crime de homicídio agravado na forma tentada, pugnando pela manutenção, «na íntegra e plenitude [da] decisão de condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio na forma tentada na pena de prisão efectiva de 05 (cinco) anos proferida pela 1.ª instância» Por mera cautela de patrocínio, a não proceder tal pretensão, «deverá o arguido ser condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada e em pena de prisão efectiva».
Como se retira das conclusões do recurso que interpôs perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente contesta a decisão do Tribunal da Relação exclusivamente quanto à vertente criminal, insurgindo-se contra a absolvição do arguido aí decretada.
3. Questão prévia da inadmissibilidade do recurso
3.1. Perante a absolvição pelo Tribunal da Relação do arguido, condenado em 1.ª instância na pena de 5 (cinco) anos de prisão, cumpre determinar se aquela decisão é recorrível, passando-se a conhecer da questão prévia da rejeição do recurso, por inadmissibilidade, suscitada pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal.
Diga-se, desde já, que lhe assiste toda a razão.
Convocando considerações já tecidas no acórdão de 21-09-2016, proferido no processo n.º 7/08.0GBCTB.C1.S1 – 3.ª Secção[3], retomadas no acórdão de 22-11-2017, proferido no processo n.º 2175/11.4TDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção (inédito), ambos relatados pelo agora relator, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432.º do CPP. De uma forma directa, nas alíneas a), c) e d) do n.º 1; e de um modo indirecto na alínea b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, nos termos do artigo 400.º, nº 1 e respectivas alíneas, do mesmo Código.
De acordo com o disposto no n.º 1, alínea b), do artigo 432.º do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça
«b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º»;
E, nos termos do n.º 1 do artigo 400.º do CPP:
«1. Não é admissível recurso:
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, excepto no caso da decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos.»
É o caso dos autos. A pena de prisão fixada em 1.ª instância não foi superior a 5 anos de prisão. A decisão de absolvição proferida pelo tribunal da Relação é, assim, por expressa prescrição legal, irrecorrível.
3.2. Entende o recorrente, na resposta ao parecer do Ministério Público, que:
«[…] com base no princípio basilar do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente o princípio da igualdade de armas, manifesto se torna concluir de que tem de ser, igualmente, concedida ao Recorrente a possibilidade de interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com o qual não concorda e não se pode condescender»;
E que: «Entender de outra forma, estaríamos perante uma manifesta e clara violação do princípio supra mencionado, ao permitir apenas e tão-somente ao arguido uma instância superior de recurso, vedando tal possibilidade ao assistente, ora aqui Recorrente».
Vejamos:
3.3. O princípio da igualdade de armas pressupõe que o autor e o réu se encontrem em paridade de condições, que tenham direitos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticos, sempre que a sua posição no processo seja equiparável.
O direito à igualdade de armas, postulando um equilíbrio entre as partes perante os meios processuais de que dispõem, não implica uma identidade formal absoluta de meios. Tal direito, não é absolutamente incompatível com a atribuição aos poderes públicos de um tratamento processual diferenciado relativamente às partes processuais em geral, desde que a solução não seja arbitrária, irrazoável ou não fundamentada, e não envolva uma compressão excessiva do princípio da igualdade de armas ligando-se assim esse princípio com o princípio da proporcionalidade
O direito de acção terá de efectivar-se através de um processo equitativo, ou seja, o processo para ser equitativo desde logo, deve ter presentes princípios materiais da justiça desde o momento do impulso da acção até a execução da decisão judicial.
Como se reconhece no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-03-2004, proferido no processo n.º 4P230[4]:
«O processo equitativo - noção acolhida na Constituição no artigo 20.º, n.º 4 - é noção que tem sido densificada a partir das definições dos elementos integrantes da garantia inscrita em instrumentos de protecção de direitos fundamentais, nomeadamente o artigo 6º, par. 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. O processo equitativo, no sentido de processo justo, "fair trial", "due process", supõe a conjugação de elementos orgânicos e elementos funcionais (relativos ao tribunal - independente e imparcial, mas também à organização e à dinâmica do processo -prazo razoável de decisão da causa) e elementos propriamente processuais ou intra-processuais. A enunciação descritiva dos elementos do processo equitativo, como meio de realização da boa justiça, permite afirmar tanto a complexidade deste direito fundamental, como a estruturação referida ao processo tomado no seu conjunto. Na estruturação do direito podem destacar-se os elementos ou mecanismos de garantia; o domínio da garantia e respectivo conteúdo geral; e também especialmente alguns elementos do conteúdo específico que apresenta em matéria de processo penal. As exigências especificamente processuais da garantia do processo equitativo (igualdade ou equilíbrio, causa apreciada publicamente e em prazo razoável) têm, por seu lado, que ser apreciadas, não numa perspectiva estratificada do processo, mas essencialmente na consideração do conjunto, ou da totalidade do processo A consideração do processo como um todo (diversas fases e instâncias de recurso) pode justificar uma modulação na compreensão de alguns elementos da garantia, de tal modo que a falta de algum dos elementos numa fase do processo pode ser corrigida numa fase posterior, se o órgão próprio dispuser de competência de reapreciação tal que permita compensar um determinado vício. Será essencial uma perspectivação global, tomando o processo no seu conjunto. Mas a consideração do conjunto do processo, permitindo uma apreciação relativa da modulação das garantias, tem de satisfazer as exigências verdadeiramente caracterizadoras, de igualdade, de publicidade e de razoabilidade do tempo de decisão. A apreciação e o controlo da efectividade da garantia do processo equitativo no domínio do processo penal deve operar por meio da análise dos chamados "reactivos" ou "detectores de iniquidade": o respeito dos direitos de defesa, a igualdade de armas, a imposição de debate contraditório, a presunção de inocência, a audiência pública. A igualdade (ou equidade em sentido estrito) requer que cada uma das partes no processo possa sustentar a sua posição em condições tais que a não coloquem em desvantagem em relação à parte adversa; sendo uma das grandes aporias do moderno processo penal, a igualdade processual, ou a "igualdade de armas", deve assumir-se como instrumento de realização dos direitos estabelecidos a favor da acusação e da defesa, ganhando conteúdo a ideia de que a igualdade de armas significa a atribuição á acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tomar efectivos aqueles direitos. A igualdade de armas só pode ser entendida “quando lançada no contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa e da sua dialéctica. O que quer dizer que uma concreta conformação processual só poderá ser recusada, como violadora daquele princípio da igualdade, quando dever considerar-se infundamentada, desrazoável ou arbitrária, como ainda quando possa reputar-se substancialmente discriminatória à luz das finalidades do processo penal, do programa político-criminal que aquele está assinado ou dos referentes axiológicos que o comandam”. Cfr., Figueiredo Dias, "Sobre os sujeitos processuais no Novo Código de Processo Penal", Jornadas de Processo Penal, 1988, pág. 30. Os elementos de integração da garantia do processo equitativo e a natureza equitativa do processo devem, pois, ser apreciados na consideração do conjunto do processo, e não estratificadamente, acto a acto ou fase a fase: sendo o credor da garantia essencialmente o acusado, não revelará afectação da garantia alguma disfunção processual interna em certo momento ou fase do processo se, a final, o acusado for absolvido. Por isso, os elementos integrantes da garantia não ganham autonomia na fase de recurso, devendo ser apreciados na consideração do conjunto do processo. Também no recurso, as partes devem poder apresentar as suas pretensões e defender as suas posições de maneira tal que uma não seja colocada em desvantagem em relação à outra. Porém, a igualdade afere-se processualmente pelos momentos paralelos, e as modalidades de concretização do direito ao recurso próprias dos diversos sistemas não integram, por si e apenas enquanto tais, o direito ao processo equitativo, salvo se as soluções da lei na concretização do direito forem desrazoáveis, arbitrárias ou substancialmente discriminatórias em vista das finalidades do processo.»
Nos modelos e na fase de recurso a "igualdade de armas" apenas pode ter sentido, afirma-se ainda no citado acórdão, se for avaliada no interior de cada fase e de cada instância de recurso. A igualdade estaria afectada apenas se o modelo de recursos oferecesse alguma vantagem processual a uma das "partes" em relação à outra, fosse sobre os pressupostos processuais de admissibilidade e de recorribilidade das decisões, as condições de apresentação, ou na previsão de legitimidade ou do interesse em agir.
O recurso em processo penal é uma das garantias de defesa do arguido como proclama o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República. Na medida em que é uma garantia de defesa do arguido, tal preceito, considera MARIA JOÃO ANTUNES, «não é parâmetro de aferição da conformidade constitucional de normas relativas ao direito ao recurso por parte do ministério público ou do assistente, ressalvada a hipótese de o primeiro interpor recurso no exclusivo interesse do arguido. No que se refere a normas desse tipo, valem antes as disposições constitucionais contidas nos artigos 20.º e 219.º da CRP». Daqui decorre também, acrescenta a mesma autora, que «é constitucionalmente admissível, não havendo qualquer violação do princípio da igualdade, que a matéria dos recursos seja regulada de maneira diferente em relação ao arguido, por comparação com o assistente e o ministério público, designadamente quando a recorribilidade das decisões seja mais ampla relativamente ao primeiro»[5].
Relativamente à irrecorribilidade de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, excepto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos – artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do CPP, após se salientar que «o critério da irrecorribilidade assenta na natureza absolutória do acórdão proferido em recurso, combinado, por um lado, com o do sentido das decisões e, por outro, com o da gravidade e da espécie de pena aplicada em 1.ª instância», dá nota a autora que se vem acompanhando da questão de constitucionalidade que suscitava a redacção anterior daquela norma em que se vedava a recorribilidade apenas quando o acórdão absolutório da relação confirmasse a decisão absolutória da 1.ª instância[6].
Nesse âmbito, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 540/2012[7], decidiu julgar inconstitucional a norma dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, por violação das disposições conjugadas dos artigos 13.º, n.º 1, e 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
Para apreciar a conformidade constitucional daquela disposição legal, o Tribunal Constitucional convocou as normas e os princípios constitucionais que integram a denominada “constituição processual penal”, afirmando que:
«De acordo com o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e a garantia de que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Já perante a redacção anterior do artigo – o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa – se entendia que o direito de o arguido recorrer em processo penal se insere no complexo de garantias que integram o direito de defesa, não tendo, por isso, sido decisiva a alteração introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, ao acrescentar que são asseguradas todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 178/88, 132/92, 322/93, 418/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). A alteração tão-pouco modificou o entendimento de que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, sustentando-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 49/2003 e 645/2009, disponíveis naquele sítio). A inserção do direito ao recurso em processo penal no complexo de garantias que integram o direito de defesa do arguido já levou o Tribunal a entender que não violam o princípio da igualdade disposições processuais que regulem, em termos divergentes para o arguido e para o assistente e, em geral, para a acusação e a defesa, a possibilidade de recorrer de determinada decisão judicial. O Tribunal não julgou inconstitucional a norma do artigo 646.º, n.º 6, do Código de Processo Penal de 1929, interpretada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de maio de 1987, na parte em que dispunha não haver recurso dos acórdãos absolutórios das relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional, por parte do assistente e do Ministério Público, sendo certo que tal não era vedado ao arguido relativamente a acórdãos condenatórios (Acórdão n.º 132/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O princípio da igualdade no âmbito do processo criminal tem de ser perspectivado em consonância com a específica natureza de um processo que assegura ao arguido todas as garantias de defesa, “podendo significar aí, não que os sujeitos do processo devam ter estatutos processuais absolutamente idênticos e paritários, simetricamente decalcados, mas essencialmente que o arguido poderá, por vezes, beneficiar de um estatuto formalmente «privilegiado», como forma de compensar uma presumida fragilidade ou maior debilidade relativamente à acusação, no confronto processual penal”. O que significa também que “o arguido não deve ter menos direitos do que a acusação, mas não que não possa ter mais” (Lopes do Rego, “Acesso ao direito e aos tribunais”, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, pp. 76 e 70 e s., com especial referência ao Acórdão n.º 132/92, e à declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 8/87 pelo Conselheiro Vital Moreira, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Em geral, é de concluir que, “dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa”, há “uma orientação do processo penal para a defesa”, que o vincula a assegurar todas as garantias, o que vale por dizer que é um processo que tem nos direitos do arguido “um limite infrangível” (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 32.º, ponto II. e, ainda, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 54/87, 150/87 e 356/91, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Designadamente no direito ao recurso e no direito à presunção de inocência até ao trânsito em julgado da decisão, no sentido específico de em processo criminal não serem admissíveis recursos em segundo grau de decisões absolutórias, quando são irrecorríveis acórdãos condenatórios proferidos em recurso. O direito à presunção de inocência do arguido tem de projectar-se de modo diferente na estabilidade das decisões penais consoante sejam condenatórias ou absolutórias, não sendo constitucionalmente conforme uma diferenciação de tratamento que facilite a estabilização de decisões condenatórias (encurtando as possibilidades de defesa do arguido) em termos negados às absolutórias (protelando a discussão sobre os factos imputados ao arguido). O que vem de ser dito é reforçado por da “constituição processual penal” não decorrer uma qualquer equiparação do estatuto processual do ofendido/assistente ao do arguido, limitando-se o n.º 7 do artigo 32.º a estatuir que o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei. Tem-se entendido que a questão da admissibilidade de recurso por parte do assistente deve ser perspectivada à luz do que se dispõe no artigo 20.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 259/2002, 464/2003 e 399/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), de onde não decorre sequer o direito ao recurso por parte dos sujeitos processuais, com o consequente dever de o legislador consagrar, em regra, um duplo grau de jurisdição. Sem prejuízo de se dever entender que o direito constitucionalmente conferido ao ofendido de intervir no processo penal (artigo 32.º, n.º 7) obsta a que este seja privado dos poderes processuais que se revelem decisivos para a defesa dos seus interesses, privando-o, nomeadamente, do poder de recorrer (em primeiro grau) de sentenças absolutórias (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/2003. E, ainda, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 32.º, ponto XIV.)».
A norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do CPP, objecto de apreciação no acórdão que se vem acompanhando, não respeita, como é ali afirmado, «estas normas e princípios da “constituição processual penal”. A admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, de acórdão da relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade viola o princípio da igualdade, enquanto dele decorre que a posição dos sujeitos processuais seja nivelada dentro das garantias de defesa e em favor da mesma defesa (Acórdão n.º 132/92). Há violação, na medida em que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo arguido, de acórdão da relação, proferido em recurso, que condene o arguido em pena não privativa da liberdade e que, assim, revogue a absolvição do mesmo na 1.ª instância. O arguido não tem o direito de aceder ao segundo grau de recurso, com a consequente estabilização da decisão condenatória, apesar de se presumir inocente, diferentemente do assistente que tem o direito de aceder ao segundo grau de recurso, protelando a estabilização de uma decisão que absolve quem se presume inocente».
Como refere a Conselheira Maria Lúcia Amaral na declaração de voto aposta ao citado acórdão, [u]ma ordem processual penal que seja axiologicamente orientada pelos princípios que decorrem dos nºs 1 e 2 do artigo 32.º da CRP não pode conter um “sistema” de recursos do qual resulte o seguinte: o Estado “investe” menos (no sentido lato do termo “investir”) na confirmação de uma condenação do que na sua infirmação, já que apressa o trânsito em julgado de uma sentença condenatória (por impedir que dela se interponha recurso), ao mesmo tempo que difere o trânsito em julgado de uma sentença absolutória (por permitir que a “acusação” dela interponha recurso). Não faz sentido que uma ordem que seja objectivamente orientada pelos princípios das garantias de defesa do arguido e da presunção da sua inocência contenha um sistema de recursos que, pelo seu desenho positivo, chegue a tal resultado».
Também a Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros, em declaração de voto também formulada no mesmo acórdão, salienta que: «2. A Constituição assume o direito ao recurso do arguido como integrando o núcleo essencial das suas garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1 da CRP). Deste preceito decorre a consagração de um processo penal orientado para a defesa. Um processo penal que, nessa medida, longe de dever ser neutro, encontra nos direitos do arguido um limite inultrapassável a respeitar na conformação infraconstitucional do respectivo regime e, designadamente também do regime legal dos recursos. É, portanto, à luz das garantias de defesa do arguido, e não de qualquer pretensão de igualdade a estabelecer entre os diversos sujeitos do processo (que em processo penal não tem de existir), que a interpretação normativa submetida à fiscalização de constitucionalidade deve ser analisada. Determinante será, assim, perceber se a solução normativa em apreciação permite o exercício de todas as garantias de defesa pelo arguido, designadamente do seu direito ao recurso. 3. O artigo 32.º, n.º 1 assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o direito de recurso, designadamente da decisão condenatória. O exercício deste direito não se mostra, porém, compatível com a admissão do direito de recurso pelo assistente de decisão absolutória proferida pela Relação. Com efeito, admitir um tal direito ao assistente implica aceitar a eventualidade de o arguido ser condenado pelo Supremo sem que lhe seja facultada a possibilidade de recorrer dessa condenação e, nessa medida, sem garantia de defesa. Na verdade, o direito do arguido ao recurso da sua condenação não se basta com a sua intervenção no recurso interposto pelo assistente da sua absolvição. No momento em que o arguido responde ao recurso não são conhecidos os fundamentos da (futura e hipotética) condenação. Uma decisão condenatória proferida pela instância de recurso em revogação de absolvição anteriormente proferida, tendo embora por base o mesmo objecto da decisão recorrida, integra conhecimento de matéria que excede o âmbito da anterior apreciação, designadamente todo o processo decisório referente à escolha e determinação da medida da pena (artigos 368.º, 369.º e 371.º do CPP). Só a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada (artigo 375.º do CPP). Por conseguinte, não é pelo mero exercício do contraditório no recurso interposto pelo assistente da absolvição do arguido, que este necessariamente tem oportunidade de contrariar os fundamentos da decisão que poderá vir a condená-lo. E sendo assim, diante da inevitável limitação das instâncias de recurso, imperioso será concluir que a concessão ao assistente do direito de recorrer da decisão que, em 2.ª instância, e em revogação da condenação proferida em 1.ª instância, absolve o arguido, não se compadece com o exercício de todas garantias de defesa, designadamente do direito ao recurso assegurado no artigo 32.º, n.º 1 da CRP. 4. A necessidade de alcançar a estabilidade das decisões judiciais impõe a limitação das instâncias de recurso. Em processo penal, por imposição da Constituição, aquela limitação não pode resolver-se em desfavor das garantias de defesa do arguido. Ora é precisamente neste ponto que a norma em apreciação se apresenta como desconforme à Constituição. Na verdade, a solução normativa que admite o recurso do assistente de absolvição do arguido proferida em 2.ª instância resolve, em desfavor do arguido, a limitação das instâncias de recurso. Um desfavor que se instala, independentemente do não reconhecimento ao arguido do direito de recorrer na situação simetricamente oposta. I.e., mesmo acautelado ao arguido o direito de recurso de acórdão condenatório em pena não privativa da liberdade proferido pelo Tribunal da Relação, em revogação de absolvição da primeira instância (o que, de acordo com o que vem de explanar-se constitui também solução imposta pelo artigo 32.º, n.º 1 da CRP), a admissão do recurso do assistente na situação em apreciação continuaria a trazer em si implicada a violação da Constituição, por comprometimento das garantias de defesa do arguido, designadamente do direito a recorrer da sua condenação (direito igualmente garantido pelo artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos nos casos em que a condenação é imposta por um tribunal de recurso, após absolvição em 1.ª instância – cfr. Comité dos Direitos do Homem das Nações Unidas, General Comment n.º 32, Article 14, CCPR/C/GC/32, 23 de agosto de 2002). 5. Em conformidade, votei a declaração de inconstitucionalidade da norma dos artigos 399.º e 400.º do CPP, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é admissível recurso para STJ, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal de Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, não por violação do princípio da igualdade, mas por uma tal solução normativa trazer em si implicada a violação das garantias de defesa do arguido, em especial o seu direito ao recurso enquanto garantia constitucional de defesa prevista no artigo 32.º, nº 1 da CRP».
O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se quanto à conformidade constitucional da alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na sua actual redacção, aplicável no caso sub judice.
Fê-lo no acórdão n.º 296/2017, de 08-07-2017, no âmbito de um recurso interposto por assistente em processo penal que invocava dois argumentos, ambos com reporte aos princípios constitucionais da igualdade e da tutela jurisdicional efectiva: i) o direito ao recurso; ii) a participação do ofendido no processo penal.
Lê-se na decisão sumária então proferida:
«No que concerne ao direito ao recurso, dispõe o artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da CRP que o processo penal assegura ao arguido todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e a garantia de que se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Ainda antes da consagração expressa do direito ao recurso introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, já a jurisprudência deste Tribunal, de modo unívoco e reiterado, entendia que tal direito se inseria no complexo de garantias de defesa assegurado ao arguido (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 178/88, 132/92, 322/93, 418/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt.). De igual sorte, tal consignação também não pôs em crise o entendimento pacífico de que a Lei Fundamental não demanda a consagração de um duplo grau de jurisdição relativamente a todas as decisões proferidas em processo penal, impondo-se a consagração do direito de recorrer apenas quanto a decisões condenatórias e a decisões penais respeitantes à situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (cf., entre outros, Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 265/94, 387/99 e 430/2010). E, ademais, também não alterou o entendimento de que não é constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, entendendo-se que “mesmo quanto às decisões condenatórias, não tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdição”, existindo, consequentemente, “alguma liberdade de conformação do legislador na limitação dos graus de recurso” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 189/2001 e, entre outros, Acórdãos n.ºs 178/88, 49/2003, 645/2009 e 353/2010). No caso particular da norma questionada, embora o legislador tenha estabelecido como regra a irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos pelo Tribunal da Relação em recurso, ainda assim estabeleceu uma cláusula de salvaguarda, admitindo tal recurso no caso de a condenação em primeira instância ter sido em pena de prisão superior a 5 anos. Tal limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça encontra fundamento bastante, por um lado, na necessidade de racionalização do sistema judiciário, em particular, nas causas levadas àquele Tribunal, a quem se demanda uma resposta atempada, evitando assim a sua paralisação e, por outro lado, estriba-se também na circunstância de estarem em causa condenações inferiores a 5 anos de prisão (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2007 e jurisprudência aí citada e Acórdãos n.ºs 49/2003, 255/2005 e 353/2010). Por outro lado, quanto ao papel do ofendido no processo penal, também o número 7 do art. 32.º da Constituição – onde se lê o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei – foi introduzido pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro. Ora, a este propósito, o Tribunal Constitucional vem perfilhando que, não valendo para o assistente o disposto no n.º 1 do artigo 32.º e não decorrendo do n.º 7 do mesmo artigo qualquer equiparação do estatuto deste sujeito processual ao do arguido, a questão da admissibilidade de recurso por parte do primeiro deve ser perspectivada à luz do que se dispõe no artigo 20.º, n.º 1, da CRP (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 259/2002, 464/2003, 399/2007 e 153/2012). Com efeito, como já se estabeleceu no acórdão n.º 132/92, o princípio da igualdade nivela a posição dos sujeitos processuais dentro do direito de defesa e em favor da mesma defesa. Significa que o arguido não deve ter menos direitos, mas não que não possa ter mais. E, nesta senda, ali se estabeleceu que «(…) este Tribunal considera que, independentemente da natureza de «parte» ou de «sujeito» que se queira atribuir ao arguido e ao assistente em processo penal, a nossa Constituição não consagra, não quis consagrar, quanto a eles, um princípio de igualdade em matéria do direito ao recurso. Ou seja: o princípio da igualdade de armas é um princípio que opera essencialmente no âmbito do direito de defesa, no âmbito da preocupação de não colocar o arguido em desvantagem relativamente aos meios processuais de que dispõe a acusação com vista à formação da convicção do tribunal. E qualquer dúvida que possa subsistir nesta matéria logo se dissipará se tomarmos em consideração o direito constitucional comparado, e mais propriamente o do sistema jurídico onde o processo penal mais aparece configurado como um «processo de partes», o sistema constitucional-penal dos Estados Unidos da América. Pois bem: aí onde o processo penal mais está orientado pelo princípio do dispositivo, aí onde o processo penal mais se configura como um «processo de partes», caracterizando-se pela plea bargaining, aí justamente também nunca se admitiu um direito igual ao recurso entre a acusação e a defesa. O princípio da proibição da double jeopardy, duplo risco, impede em absoluto que o arguido, depois de absolvido em primeira instância, possa ser novamente julgado num tribunal superior, por via de recurso. Eis o que dizem peremptoriamente a este respeito os comentadores da obra The Constitution of the United States of America. Analysis and Interpretation (ed. J. H. Killian e L. E. Beck, U. S. Government Printing Office, Washington, 1987, p. 1231): Que um arguido não pode ser novamente julgado após uma absolvição [acquittal] é «a regra mais fundamental na história da teoria [jurisprudence] do duplo risco». «A lei liga particular significado a uma absolvição. Permitir um segundo julgamento após uma absolvição, por errada que a absolvição possa ter sido, representaria um risco inaceitavelmente elevado de que o Governo, com os seus recursos vastamente superiores, pudesse vencer a resistência do arguido, de modo que, ‘mesmo apesar de inocente, ele pudesse ser considerado culpado’». Ao passo que em outras áreas da doutrina do duplo risco é dada consideração ao interesse público em se poder chegar, para fins de segurança pública, a uma conclusão do julgamento criminal isenta de erros, tal equilíbrio de interesses não é permitido em relação a absolvições, «não importando quanto erróneas», não importando sequer que elas fossem «extraordinariamente erróneas». Sendo final a absolvição, não há recurso [appeal] governamental constitucionalmente possível de tal julgamento (…) Conclui-se, pois, que o princípio da igualdade de armas não é um princípio absoluto em processo penal, e, portanto, só tem de ser aplicado, em toda a sua plenitude, para nivelar a posição dos sujeitos, processuais dentro do âmbito do direito de defesa, e em favor da mesma defesa. Isto, sem prejuízo de se constatar que os ventos da moderna política criminal vão hoje no sentido de conceder uma particular atenção à tutela dos direitos da vítima, que ainda mais parece justificar-se em casos como o que se discute nos presentes autos. Lembremos a este propósito a Convenção Europeia relativa à reparação das vítimas de infracções violentas, aberta à assinatura em 24 de Novembro de 1983, em que os Estados-Partes se obrigam a adequar a legislação e prática administrativa à efectivação de tal reparação; a Recomendação R(85)11 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, que faz várias sugestões sobre a posição da vítima no quadro do direito e processo penal, com vista a responder às necessidades e interesses desta [v. pormenores em G. Casaroli, «Un altro paso europeo in favore della vitima del reatto», Riv. It. Dir. Proc. Penale, XXX, 623-635, 1987; e a Recomendação R(87)21, do mesmo Comité, sobre assistência às vítimas e prevenção da vitimização]. Mas em lado nenhum se ousa postular a necessidade de, em defesa da vítima, se lhe atribuir uma posição exactamente igual à do arguido em matéria de recursos penais». Destarte, na versão que lhes foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, este Tribunal, no Acórdão n.º 153/2012 (relatado pela Conselheira Maria João Antunes), julgou inconstitucional os artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal interpretados no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolva o arguido por determinado crime e que, assim, revogue a condenação do mesmo na 1.ª instância numa pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da CRP). Em face da unívoca jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre estes princípios e face à nova redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP – que admite, em certas circunstâncias, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal da Relação – deve entender-se que não existe fundamento para inverter a posição adoptada por este Tribunal».
Na sequência da reclamação para a conferência, que veio a ser indeferida, consignou-se no acórdão que se vem referenciando:
«9. O cerne da argumentação do Assistente reside no pressuposto de que existe paridade entre as figuras do Arguido e do Assistente. Porém, como já se explanou na Decisão Sumária ora posta em crise, tal “pressuposto” carece de respaldo legal e constitucional, sendo certo que o regime jurídico que conforma as figuras do Arguido e Assistente em direito penal é, na verdade, substancialmente distinto, precisamente por imposição constitucional dada a evidente destrinça que caracteriza a natureza da intervenção de cada um deles nesta sede.
Para além da jurisprudência constitucional, que já na decisão sumária se explanou para esclarecer a diferenciação entre aquelas figuras, adita-se agora o seguinte: como afirmam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Lei Fundamental não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento, que podem ser legítimas quando se baseiem numa distinção objectiva de situações (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 3.ª Edição Revista, Coimbra, 2014). E este é precisamente o busílis da questão: a lei processual penal não consagra uma posição paritária entre Arguido e Assistente, porque inexiste razão material para lhes conceder in totum os mesmos direitos ou o mesmo grau de intervenção na conformação do objecto do processo. A constituição de arguido é, ela mesma, uma garantia dada àquele que vê dirigir-se contra si um processo penal, sendo devidamente formalizada no decurso da tramitação processual. É o arguido que pode ver a sua liberdade restringida por força do poder punitivo do Estado, reconhecendo-lhe a lei, em virtude dessa circunstância, que não é partilhada pela vítima, direitos processuais autónomos, que deverão ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal. Assim, o estatuto processual do arguido está enformado por três vectores fundamentais: o direito de defesa; o princípio da presunção de inocência; e o princípio do respeito pela decisão de vontade do arguido Além disso, e contrariamente ao propugnado pelo Assistente […], não impende sobre o “infractor mais meios para provar a sua inocência do que à vítima”. Na verdade, de acordo com a Constituição Portuguesa, o alegado “infractor” recebe a denominação de arguido, goza de presunção constitucional de inocência e não lhe está acometida qualquer “ónus” probatório em sede de processo penal, antes competindo ao Ministério Público sustentar em julgamento a acusação com a “colaboração subordinada” do Assistente, como expressamente decorre dos n.ºs 2 e 4, do artigo 32.º da CRP e do artigo 69.º, n.º 1, do CPP.»
Inexistindo paridade entre o arguido e o assistente no plano processual penal, não tem qualquer fundamento a argumentação expendida pelo recorrente quanto à alegada violação do princípio da igualdade de armas.
Dir-se-ia mesmo, convocando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça no caso presente não realizaria a igualdade e constituiria solução desconforme às normas e princípios constitucionais aí invocados.
3.4. Expressa o recorrente o entendimento de que «a pena aplicada [5 anos de prisão] está englobada e enquadrada dentro da previsão constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, ou seja, pena de prisão superior a 05 (cinco) anos, inclusive, que é o caso dos autos em apreço, pois que o arguido foi condenado em pena de prisão efectiva de 05 (cinco) anos». Na verdade, afirma-se ainda, «da conjugação das als. e) e f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, resulta a contrario que existe possibilidade de recurso para o STJ das decisões das relações que, não tendo confirmado a decisão de 1.ª instância (condenatória ou absolutória), aplicassem pena privativa de liberdade, fosse ela qual fosse, e que é o caso dos autos em que foram proferidas pela 1.ª instância e pela Relação decisões totalmente distintas e díspares».
Trata-se de argumentação manifestamente insubsistente. O texto da disposição contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP é perfeitamente claro quanto à irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão superior a 5 anos. O preceito não contempla a pena de prisão inferior ou igual a 5 anos.
Tendo o arguido sido condenado em 1.ª instância na pena de 5 anos de prisão, a decisão absolutória proferida pelo Tribunal da Relação é, nos termos da citada norma, irrecorrível na medida em que aquela pena tem dimensão não superior a 5 anos.
Relativamente ao argumento a contrario invocado pelo recorrente, também ele não procede.
O argumento a contrario sensu radica da constatação de que, perante certa disposição excepcional, pode inferir-se que a regra geral é a contrária. Como ensina JOÃO BAPTISTA MACHADO, trata-se de um argumento por meio do qual «[se] deduz de um jus singulare, isto é, da disciplina excepcional estabelecida para certo caso, um princípio-regra de sentido oposto para os casos não abrangidos pela norma excepcional. Assim, a partir de uma norma excepcional, deduz-se a contrario que os casos que ela não contempla na sua hipótese seguem um regime oposto, que será o regime-regra»[8].
No caso de que nos ocupamos, verificamos que as disposições contidas nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP têm, sem qualquer margem para dúvidas, natureza excepcional. Mas a mesma natureza excepcional assume a norma acolhida na alínea d) do mesmo preceito. Na verdade, como tem sido sublinhado, e como directamente se extrai das disposições conjugadas dos artigos 399.º e 400.º do CPP, a regra geral é a recorribilidade das decisões judiciais cuja irrecorribilidade não esteja expressamente prevista.
Como sublinha PEREIRA MADEIRA, «a recorribilidade é a regra, irrecorribilidade, excepção. Sendo excepcionais os casos de irrecorribilidade previstos no artigo 400.º e disposições diversas (…), mandam os atinentes princípios interpretativos que aqueles não possam ser ampliados, para além do expressamente previsto, nomeadamente por via de interpretação analógica (artigo 11.º do Código Civil). É certo que não fica posta de lado a possibilidade de interpretação extensiva desses preceitos de excepção. Todavia, tendo em conta que o princípio geral é o da recorribilidade, só quando os dados interpretativos obtidos forem absolutamente seguros poderá o intérprete alcançar um resultado que alargue o alcance da excepção para além do seu dizer expresso»[9].
Reafirmando, a norma contida na alínea d) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP tem natureza excepcional, tal como as normas previstas nas alíneas e) e f) do mesmo preceito, invocadas pelo recorrente, tendo em consideração a regra da recorribilidade. O sentido destas disposições é perfeitamente claro e desprende-se da respectiva formulação textual, não havendo margem para eventual interpretação extensiva das mesmas em cuja sede poderia ter cabimento a invocação do argumento a contrario.
Improcede, pois, o argumentário aduzido pelo recorrente no sentido da recorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa proferida no acórdão recorrido.
Concluindo:
A questão da recorribilidade convocada no caso está perfeitamente definida no sentido da admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões absolutórias ou decisões que aplicam penas privativas de liberdade, estar dependente de as respectivas penas se inscreverem no catálogo da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do CPP, ou seja, serem superiores a 5 anos – alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redacção conferida pela Lei 20/2013.
Perante o exposto, em conformidade com as disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b), e 400.º, n.º 1, alínea d), ambos do CPP, não é admissível o recurso interposto pelo assistente, pelo que é rejeitado por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
III - DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes da 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso interposto pelo assistente BB, por não ser admissível – artigos 400.º, n.º 1, alínea d), 432º, alínea b), 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do CPP.
Custas pelo recorrente, com 3 UC de taxa de justiça, condenando-se ainda no pagamento da importância correspondente a 3 UC, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP.
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 7 de Março de 2018
(Texto processado e revisto pelo relator – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)
Manuel Augusto de Matos (relator) ------------------------
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