Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
080295
Nº Convencional: JSTJ00013148
Relator: FERNANDO FABIÃO
Descritores: IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
ABUSO DO DIREITO
FACTO NOTÓRIO
CONHECIMENTO OFICIOSO
RISCO NAS OBRIGAÇÕES
QUESTÃO NOVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TORNAS
Nº do Documento: SJ199112100802951
Data do Acordão: 12/10/1991
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2818/89
Data: 05/15/1990
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG.
DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 334 ARTIGO 790 N1 ARTIGO 796.
CPC67 ARTIGO 514 N1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1980/01/24 IN BMJ N293 PAG333.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/02/05 IN BMJ N364 PAG788.
ACÓRDÃO STJ DE 1988/01/06 IN BMJ N373 PAG462.
Sumário : I - Segundo jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, aos tribunais de recurso apenas cabe apreciar as questões decididas pelos tribunais hierarquicamente inferiores, mas este princípio abre brecha quanto a matéria de conhecimento oficioso, como é o caso do abuso de direito, por ofensivo dos princípios de interesse e ordem pública.
II - Factos notórios são os factos do conhecimento geral (artigo 514 n. 1 do Código de Processo Civil); devem como tais ser consideradas as consequências sócio-económicas (congelamento de contas bancárias, nacionalização, expropriação e ocupação de bens) resultantes do processo de descolonização e independência de Angola.
III - Para efeitos do artigo 790 n. 1 do Código Civil, só
é relevante a impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação e já não é impossibilidade relativa, isto
é, a obrigação só se extingue quando a prestação se tenha tornado relativamente impossível e já não quando apenas se tenha tornado muito difícil ou excessivamente onerosa.
IV - Não é ilegítimo o exercício do direito dos credores de tornas que, 10 anos depois da partilha de bens, na maioria sitos em Angola, vem exigir o seu pagamento, mau grado a repercussão sobre tais bens decorrentes do processo de descolonização e independência de Angola, porquanto, manifestamente, não há excesso dos limites impostos pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito nem mesmo, embora não tão claramente, dos limites impostos pela boa fé.
V - O artigo 796 do Código Civil, segundo o qual o risco corre por conta do adquirente, é aplicável a hipótese dupla, isto é, ao caso dos bens adjudicados aos credores das tornas, apesar de estarem em sério risco de se perderem.
VI - Também não é aplicável ao caso o artigo 437 do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na Comarca de Oeiras, A e marido B, C e D deduziram contra E e F os presentes embargos de executado, por apenso à execução n. 11/72-A, com processo ordinário, para pagamento de quantia certa - 3750000 escudos de tornas que os executados foram condenados a pagar aos exequentes no inventário por óbito de F e juros vencidos e vincendos - em que alegaram a incompetência internacional dos tribunais portugueses, por ser em Angola o lugar do cumprimento da obrigação exequenda, bem como a incompetência territorial do tribunal de Oeiras, e ainda a extinção da obrigação exequenda por impossibilidade superveniente do seu cumprimento, dado que, com a independência de Angola, tornou-se-lhes impossível movimentar fundos ou dispor de bens neste país, já que foram congeladas as transferências de dinheiro para Portugal bem como as contas bancárias e nacionalizados os bens.
Contestaram os embargos a afirmar a competência internacional e territorial do tribunal de Oeiras e a rebater a impossibilidade de cumprimento da obrigação exequenda, terminando por pedir a improcedência dos embargos.
No saneador, o meritíssimo juiz, após ter decidido ser o tribunal de Oeiras competente, julgou os embargos improcedentes.
Desta decisão recorreram os embargantes para o Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento à apelação e confirmou a decisão recorrida.
Deste acórdão voltaram os embargantes a interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, e, nas alegações, apresentaram, em estilo algo prolixo e pouco claro, as conclusões seguintes:
I - Dado que os interessados deliberaram, por unanimidade, que as tornas de 3750000 escudos devidas ao menor seriam pagas através de depósito no Banco de Angola em Luanda dentro do prazo de um ano improrrogável e tendo o representante do menor e o Digno Agente do Ministério Público declarado que não reclamasse o pagamento de tornas, ficando os prédios descritos sob as verbas ns. 48 e 50 onerados com hipoteca legal, nos termos do n. 4 do artigo 1378 do Código de Processo Civil, verifica-se que a forma de pagamento "Depósito no Banco de Angola" e o lugar do pagamento foram, para além de correctamente e perfeitamente expressos, essenciais à vontade negocial declarada pelas partes, já que a herança, à excepção de verbas de diminuto valor, se situava em Angola; ou, como a sentença homologatória da partilha transitou em julgado em 17 de Janeiro de 1974, devia o pagamento das tornas ser feito até 17 de Janeiro de 1975; por outro lado, à data do acordo de partilha e da sentença homologatória, o Escudo Português não tinha curso legal em Angola, tendo então esta ex-colónia moeda própria, também designada por escudo e vulgarmente por "Angolar" substituída em 11 de Novembro de 1976 pela nova moeda, o Kwanza, pelo que o pagamento foi estabelecido em Escudos de Angola e não em Escudos Portugueses, sendo inexigível nesta última moeda o pagamento, decorridos mais de 10 anos;
II - Mesmo que assim se não entendesse, conforme é público e notório, do conhecimento geral das pessoas, o Processo de Descolonização de Angola e a sua Independência tornaram impossível, naquele prazo ou noutro mais dilatado, cumprir a obrigação, por causa não imputável ao devedor (artigo 790 do Código Civil), como o Supremo já decidiu em caso análogo (B.M.J. 293, página 333) ou seja, se o devedor não puder pagar a dívida em virtude de todos os seus bens terem sido congelados, verifica-se a impossibilidade temporária do cumprimento da obrigação; no caso em apreço, os embargantes ficaram impossibilitados, no prazo assinado para o pagamento, em consequência da aludida descolonização e das alterações de cariz político, social e económico que a caracterizaram, de depositar no Banco de Angola, na moeda acordada - Escudos de Angola - já que não podia efectuar-se o pagamento ali, em Escudos Portugueses, das respectivas quantias; tal impossibilidade objectiva, absoluta, superveniente, por causa não imputável aos embargantes, será hipoteticamente temporária, caso o Governo da República Popular de Angola venha a devolver ou a indemnizar os embargantes e a permitir a movimentação das respectivas contas de que eram titulares naquele país, por tal forma que, até lá, não podem os embargantes exigir o cumprimento e muito menos em Escudos Portugueses, acrescidos de juros de mora, porquanto a mora nem sequer lhes pode ser imputável, assim o tendo considerado o legislador português, com aplicação ao caso em apreço, através do Decreto-Lei 75-A/77, de 28 de Fevereiro, aprovado, face à independência das ex-colónias, por suspender a liquidação e o pagamento do Imposto Sucessório;
III - Aliás, a pretensão dos exequentes - embargados deve considerar-se exercício abusivo do direito de crédito que se arrogam, questão esta que, sendo do conhecimento oficioso do tribunal, nem sequer foi enquadrado pelas instâncias, já que o cumprimento forçado da obrigação exequente estabelecia um desequilíbrio grosseiro, injusto e surpreendente entre os herdeiros, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, como o mostram a grave actuação da circunstância logo a seguir ao acordo de partilhas, a perda de todos os bens da herança que se encontrava em Angola, a frustração do acordo de distribuição de bens, a iniquidade de mera dívida de tornas que perdeu a sua causa económica e jurídica, a pretensão executiva apresentada decorridos 10 anos, quando sempre fora nítido que a herança se perdera e todos o sabiam, tanto mais que só com dinheiro proveniente de outras fontes, designadamente do trabalho desenvolvido no decurso destes 10 anos, que não da herança, poderiam ver satisfeita a sua pretensão, certo sendo que seria o cúmulo os herdeiros legítimos que perderam a herança pagarem os direitos dos filhos ilegítimos à herança perdida, a que não deram causa;
IV - o caso em apreço não pode nem deve ser resolvido com base na ideia de que os adjudicatários receberam bens e o risco com por sua conta, porque o regime do risco não é de aplicar contra regras elementares de boa fé em condições de desequilíbrio excepcional e surpreendente nem ao negócio da partilha; de facto, o regime do artigo 796 do Código Civil serve para proteger o alienante que fez a sua prestação, isto é, que já sofreu uma perda económico-jurídica, mas, no acordo de partilhas, não foi um titular que transmitia um direito a outro, mas antes foram todos que transmitiram a cada um e ao momento da adjudicação a sua quota na herança, ninguém perdeu o que tinha, como no caso da compra e venda, nenhum herdeiro sofreu uma diminuição patrimonial comparável à do vendedor que aliena uma coisa e espera o preço, certo sendo que é só para tutelar esta perda real que a lei atribui ao adquirente o risco da contraprestação;
V - O fundamento processual é o da inexigibilidade da obrigação exequenda (artigo 813 do Código de Processo Civil); o douto acórdão recorrido violou, entre outras, as normas seguintes: artigos 813, 514 e 515 do Código de Processo Civil, artigos 790, 796 e 334 do Código Civil e Lei n. 71-A/76, D.R. Órgão Oficial da República Popular de Angola, I Série, pelo que se deve dar provimento ao recurso e julgarem-se procedentes os embargos.
Nas suas alegações, os recorridos concluíram:
1 - Até 17 de Janeiro de 1975, data do vencimento da obrigação de tornas, as medidas legislativas adoptadas, se porventura dificultaram a transferência de fundos de Angola para Portugal, em nada impediram ou dificultaram o cumprimento de obrigações no interior daquela ex-província;
- a partir dessa data, em que os recorrentes se constituíram em mora, os fenómenos ocorridos em Angola de nacionalização, expropriação ou ocupação de imóveis não determinaram a impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação de tornas;
3 - aos recorrentes foram adjudicados na partilha bens móveis e imóveis não sitos em Angola, por cujo valor poderiam eles ter efectuado o pagamento das tornas, se efectivamente tivessem querido honrar os seus compromissos;
4 - de qualquer forma e ainda que assim não fosse, só a impossibilidade absoluta da prestação e não a maior ou menor dificuldade ou onerosidade da mesma constitui causa extintiva da obrigação, nos termos do artigo 790 do Código Civil.
5 - Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente as decisões de 1. instância.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Estão assentes os factos seguintes: a) Por sentença de 7 de Janeiro de 1974, proferida no inventário por óbito de F sob o n. 11/72, no qual foram interessados embargantes e embargados - a embargada E interveio como representante legal de seu filho menor G - foi homologada a partilha do sobredito processo, constante do mapa de folhas 282 a 285/verso, bem como o acordo efectuado na conferência de interessados, adjudicando-se-lhes os bens que no falado mapa lhes foram atribuídos em pagamento das meações e quinhões e condenando-se no pagamento do passivo aprovado; b) na conferência de interessados realizada em 3 de Dezembro de 1973, foi deliberado, por unanimidade, que a legítima dos menores será preenchida com tornas do montante de 3750000 escudos, a pagar pela cabeça de casal e pelos filhos legítimos, na proporção de metade para aquele e de um quarto para cada um destes, importância que fica a pertencer aos dois menores, em partes iguais; c) quer o legal representante dos menores quer o Digno Agente do Ministério Público declararam que não reclamavam o depósito das tornas, ficando, no entanto, indicados, desde já, os prédios descritos sob as verbas ns. 48 e 50, para sobre eles recair a hipoteca legal a que se refere o n. 4 do artigo 1378 do Código de Processo Civil; d) o pagamento da referida importância de tornas será efectuado por depósito no Banco de Angola, em Luanda, em nome dos menores, dentro do prazo de um ano, improrrogável; e) a referida sentença homologatória transitou em julgado em 17 de Janeiro de 1974; f) em 18 de Junho de 1985, os ora recorridos instauraram a execução para pagamento das ditas tornas e juros, contra a qual se deduziram estes embargos em 4 de Dezembro de 1985; g) no dito inventário, além de bens sitos em Angola, foram descritos e partilhados bem sitos em Portugal.
Em primeiro lugar, cabe dizer que a questão da moeda em que a dívida exequenda deve ser paga, se em moeda portuguesa se em moeda angolana, e a questão do abuso de direito não foram levantadas na 1. instância, só o tendo sido nas alegações de recurso para a Relação.
Ora, embora seja jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que aos tribunais de recurso apenas cabe apreciar as questões decididas pelos tribunais hierarquicamente inferiores, certo é também que este princípio abre brecha quanto à matéria de conhecimento oficioso (v., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Janeiro de 1988, B.M.J. 373, página 462).
Assim sendo, não sofre dúvida que este Supremo não pode pronunciar-se sobre a moeda em que a dívida exequenda deve ser paga, mas, em contrapartida, já pode apreciar a questão do abuso de direito, por esta figura ser de conhecimento oficioso, na medida em que o abuso de direito é ofensivo do princípio de interesse e ordem pública, como é jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça (v., por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Fevereiro de 1987, B.M.J. 364, página 788; Vaz Serra, R.L.J. 113, página 300).
Passando, agora, à alegada impossibilidade de cumprimento da exequenda obrigação de pagamento das tornas, é preciso, antes de mais, estabelecer se os factos, apontados como notórios pelo recorrente, realmente o são, dado que não foram alegados nem provados.
Nos termos do disposto no n. 1 do artigo 514 do Código de Processo Civil, devem considerar-se notórios os factos que são do conhecimento geral, os quais não precisam de prova nem de alegação.
Pois bem, não há dúvida que, como consequência do processo de descolonização e subsequente independência de Angola, houve fortes mutações sócio-económicas, a partir de meados de 1974, como o congelamento de contas bancárias e a nacionalização, expropriação ou ocupação de bens, como também se sabe que estes factos são do conhecimento geral, pelo que se podem e devem considerar como notórios, para efeitos do citado n. 1 do artigo 514.
Ora, segundo o preceituado no artigo 790 n. 1 do Código Civil, a obrigação extingue-se quando a obrigação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.
Só que tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido, quase sem discrepância, pode dizer-se, que a impossibilidade de que o texto fala é uma impossibilidade absoluta e não relativa, isto é, a obrigação só se extingue quando a prestação se tenha tornado verdadeiramente impossível e já não quando apenas se tenha tornado muito difícil ou excessivamente onerosa (v., por exemplo, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 4. edição, Volume II, página 66; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5. edição, 915; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 4. edição, 361; Nunes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, 2. Volume, 171; os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, B.M.J. 250, página 165; 272, página 193; 288, página 373). De resto, até há quem defenda que a impossibilidade absoluta nunca pode ocorrer nas obrigações de natureza pecuniária, a não ser que o dinheiro acabasse (v. voto de vencido, B.M.J. 293, página 336).
Se assim é, considerados os factos dados como provados pela Relação e também os factos acima considerados como notório, é de concluir pela inexistência da impossibilidade absoluta de cumprimento da obrigação exequenda, porque, como os recorridos frisam, o congelamento das contas bancárias só funcionou no sentido de Angola para Portugal e não em sentido inverso ou no território de Angola e porque os devedores das tornas ficaram com outros bens além dos sitos em Angola.
Contudo, os autores citados são os primeiros a admitir que a obrigação se pode tornar inexigível com fundamento no abuso de direito ou na alteração anormal das circunstâncias, argumentos estes a que os recorrentes também se agarram, no caso concreto.
Segundo o artigo 334 do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Como se sabe, esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma de várias cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, páginas 63 e seguintes; Almeida Costa, ob. cit. páginas 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4. edição, Nota ao artigo 334; Antunes Varela, Comunicação à A.N. em 26 de Novembro de 1966).
Acrescenta Manuel Andrade "Grosso modo" existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).
Por sua vez, Antunes Varela também esclareceu que o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo e que se designa por abuso de direito e exercício desse poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento (R.L.J. 114, página 75).
Porque o Código Civil vigente consagrou a concepção objectivista do abuso de direito, não é necessária a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que se excedam os seus limites, se bem que a intenção com que o titular do direito agiu não deixe de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).
Armados com estes ensinamentos, estamos habilitados a tomar posição sobre se há ou não abuso de direito no presente caso.
Pode ver-se que os recorrentes fundamentam o abuso do direito nos seguintes dados:
- no desequilíbrio grosseiro, injusto e surpreendente que resultaria do cumprimento da obrigação exequenda para eles, que, por virtude do congelamento de contas bancárias e da nacionalização, expropriação e ocupação de bens sitos em Angola, perderam estes bens;
- na frustração do acordo de distribuição de bens e na iniquidade da dívida de tornas que perdem a sua causa económica e jurídica;
- na instauração da execução decorridos 10 anos, quando sempre fora nítido que a herança se perdera, como todos sabiam, só sendo possível pagar as tornas com dinheiro proveniente doutras fontes, como o trabalho;
- no facto de os herdeiros legítimos, que perderam a herança, pagarem os direitos dos ilegítimos a essa herança perdida, a que não deram causa.
Há que descontar todo o exagero e todas as inexactidões nos factos acabados de referir e partir tão somente dos factos dados como provados e nos que foram considerados notórios, por serem do conhecimento geral, e, depois, averiguar se os recorridos, ao pedirem o pagamento das tornas, abusam do direito de que são titulares.
Pois bem, não se vê que o exercitar do direito às tornas, por banda dos recorridos, colida, por pouco que seja, com o fim social ou económico do seu direito, enquanto credores das tornas, porquanto o conteúdo da obrigação se desdobra no direito à prestação e no dever de prestar, por tal forma que o fim social e económico do direito de crédito é precisamente a satisfação do interesse do credor na realização da prestação por banda do devedor (artigo 397 do Código Civil).
Afastado está também o eventual excesso dos limites impostos pelos bons costumes, entendidos estes como um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente, contrárias a laivos ou conotações de imoralidade ou indecoro social (Almeida Costa, ob. cit., página 66; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., notas ao artigo 280).
Resta a hipótese de excesso, manifesto, dos limites impostos pela boa fé.
Quer quanto ao texto em apreço quer quanto ao n. 2 do artigo 762 do Código Civil, nos termos do qual o credor, no exercício do direito, deve proceder de boa fé, os civilistas vêm entendendo que agir de boa fé é agir com diligência, zelo e realidade correspondente dos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, é não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar (Antunes Varela, Col. de
Jurisp., 1986, 3., página 13; Almeida Costa, ob. cit., páginas 93, 845 e 846; Vaz Serra, B.M.J. 74, página 45).
Recorde-se ainda que, como o artigo 334 expressamente exige, não basta uma qualquer conduta atentatória da boa fé, pois aí se diz que o excesso dos limites tem de ser manifesto, ou seja, claro, patente, indiscutível.
Mas isto não se verifica no caso "sub-judice".
Vistos os factos provados e os considerados como notórios, onde estão, manifestamente, a deslealdade, a desonestidade, a inobservância, a falta de probidade dos credores de tornas, por exigirem o seu pagamento?
Certo que os acontecimentos de Angola afectaram seriamente os bens da herança, a maior parte dos bens da herança, que ficaram em sério risco de nada valerem ou pouco para os devedores das tornas, mas, em contrapartida, não pode esquecer-se que, em 1973, já era previsível que viesse a acontecer o que aconteceu, que passaram larguíssimos meses, após o vencimento da obrigação exequenda - 17 de Janeiro de 1975 - sem terem eclodido os factores de repercussão mais gravosa sobre os bens sitos em Angola, que os devedores de tornas também ficaram com outros bens sitos em Portugal e que não é de por de todo de parte a possibilidade de os recorridos virem a recuperar os bens sitos em Angola.
Poderá também objectar-se com a demora de 10 anos em propor a execução, reveladora da falta de diligência dos credores das tornas, a dar aso a que os recorrentes começassem a pensar que os recorridos haviam deistido das tornas, mas por que não pensar que os recorridos, a par da situação económica dos recorrentes, tivessem contemporizado e fossem adiando o pedido de pagamento das tornas para melhor oportunidade?
Afigura-se-nos, pois, que não há abuso de direito.
Os recorrentes também se opõem a que se aplique ao caso o regime do artigo 796 do Código Civil, ou seja, a teoria do risco, segundo a qual, nos contratos que envolvam a transmissão da propriedade da coisa ou que constituam ou transfiram outro direito real sobre ela, o risco do perecimento ou deterioração corre por conta do adquirente.
Mas não têm razão.
A doutrina, de longe maioritária, vem defendendo que a teoria do risco prevalece sobre a figura da resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias, com argumentação a nosso ver irresponssável para a qual remetemos (Vasco Lobo Xavier e Mota Pinto, Col. Jurisp., VIII, tomo 5, páginas 15 e seguintes; Almeida Costa, ob. cit., páginas 274 e 275; Meneses Cordeiro, Da boa fé... II; páginas 1092 e seguintes).
É um puro jogo de palavras, sem assento na realidade, argumentar, como fazem os recorrentes, com o facto de o regime do risco ser inaplicável ao negócio da partilha, uma vez que tal regime serve para proteger o alienante que já fez a sua prestação e já sofreu uma perda económico-jurídica, enquanto no acórdão de partilha não há um titular a transmitir um direito a outro mas antes todos a transmitirem a cada um, pelo que nenhum herdeiro sofre uma diminuição patrimonial comparável à do vendedor que aliena uma coisa e espera o preço.
Na verdade, tal como nos contratos que envolvem a transferência do domínio sobre certa coisa, também o co-herdeiro, que, na conferência de interessados, concorda em receber tornas, em troca das verbas adjudicadas a outras, sofre uma perda económico-jurídica, uma diminuição patrimonial no seu direito a uma quota indivisa da herança, a qual é representada pelas verbas adjudicadas a outros ou por estes licitadas e por cujos valores ele fica credor até ao montante do seu quinhão, precisamente o valor das tornas. Numa palavra, alienou bens e ficou de receber o seu preço, tal como, por exemplo, na compra e venda, pelo que o risco tem de correr por conta do adquirente desses bens.
Embora os recorrentes tenham fugido à eventual aplicação ao caso do artigo 437 do Código Civil, vale a pena dizer que também este texto, mesmo que se entendesse dever ser aplicável, o que não é o caso, não os libertaria do cumprimento da obrigação de tornas.
Com efeito, tendo-se vencido a obrigação em 17 de Janeiro de 1975, é evidente que os recorrentes já estavam em mora quando se deu a alteração anormal das circunstâncias, ou seja, as mutações sócio económicas decorrentes do processo de descolonização e independência de Angola, ao menos as mais importantes e com mais peso negativo sobre os bens sitos em Angola, pelo que se não justifica o uso do direito de renovação ou modificação do acordo de partilha, nos termos do artigo 437 do Código Civil.
Mesmo que assim não fosse, certo é que se não verificavam alguns dos requisitos do artigo 437.
É que, embora a lei o não refira expressamente, certo é que, por via de regra, a anormalidade da alteração das circunstâncias vem a ser o mesmo que a sua imprevisibilidade (Vaz Serra, R.L.J. 111, página 354;
Almeida Costa, ob. cit., página 267; Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Nota ao artigo 437) e claro é que, em 1973, após tantos anos de guerra sem termo à vista e considerada a situação política interna e externa, era previsível o fracasso da política colonial e a independência de Angola, de maneira que o mais elementar sentido político e um mínimo senso comum fariam prever o que veio a acontecer e é de todos conhecido.
Acresce que, no dizer do artigo 437, a alteração a ter em conta respeita às circunstâncias em que se baseou a decisão de contratar; é necessário que as circunstâncias determinantes para uma das partes sejam conhecidas ou cognoscíveis para a outra e ainda que esta última, se lhe tivesse sido proposta a subordinação do negócio à verificação das circunstâncias pressupostas pelo lesado, aceitam tal proposta ou a devesse aceitar, procedendo de boa fé (Almeida Costa, ob. cit., 265, 266), mas não é crível, no presente caso, que os credores de tornas aceitassem prescindir delas se tal lhes houvesse sido proposto no caso de se verificar a falada afectação sofrida pelos bens sitos em Angola, nem, de resto, era razoável que o devessem aceitar, à luz do princípio da boa fé.
Por tudo o exposto, nega-se a revista e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 10 de Dezembro de 1991.
Fernando Fabião,
Beça Pereira,
César Marques.