Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOSÉ RAINHO | ||
Descritores: | SOCIEDADE COMERCIAL PRESTAÇÃO DE CONTAS ASSEMBLEIA DELIBERAÇÃO SOCIAL INEXISTÊNCIA JURÍDICA | ||
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Data do Acordão: | 12/17/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO DAS SOCIEDADES – APRECIAÇÃO ANUAL DA SITUAÇÃO DA SOCIEDADE. | ||
Doutrina: | - Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª ed., p. 443 e 444; - Miguel Pupo Correia (Direito Comercial, 8ª ed., p. 549; - Vasco da Gama Lobo Xavier e Maria Ângela Coelho, Separata da revista de Direito e Economia, n.º 8, p. 267. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 69.º, N.º 3. | ||
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Sumário : | I - As contas (demonstrações financeiras anuais) de uma sociedade poderão, se equivocadas ou se inconsistentes, ser objeto de deliberação corretiva retrospetiva nas contas do exercício subsequente, na medida em que nestas tenham impacto. II - As deliberações sociais podem ter-se como juridicamente inexistentes fundamentalmente em dois tipos de hipóteses: quando não haja correspondência dos supostos atos deliberativo-sociais a qualquer forma de deliberação dos sócios (deliberações tomadas por não sócios) e quando não haja correspondência dos factos à forma de deliberação invocada (seria o caso de uma deliberação tomada em assembleia que nunca se realizou). III - Se a deliberação foi efetivamente tomada e por quem a podia tomar, então não pode ser tida como juridicamente inexistente. IV - Os lucros transitados podem ser anulados ou consumidos automaticamente pelos prejuízos que se evidenciem e pelas correções contabilísticas que contas subsequentes imponham, estando disponíveis para que a assembleia decida diretamente sobre o seu emprego, sem necessidade de interposição de qualquer decisão prévia de desafetação. V - A convocatória para deliberar sobre as contas de um exercício subsequente já abrange por natureza a possibilidade de deliberação sobre a destinação dos lucros transitados de exercício anterior aos fins da regularização da situação contabilística que se apurou. VI - Os lucros transitados não têm função de proteção dos credores ou do interesse público, pelo que não pode ser tida como nula, nos termos do n.º 3 do art.º 69.º do Código das Sociedades Comerciais, a deliberação social que procede à reconfiguração corretiva desses lucros. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Processo n.º 607/11.0TCFUN.L1.S1 Revista Tribunal recorrido: Tribunal da Relação de Lisboa
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):
I - RELATÓRIO
AA Lda. demandou oportunamente (novembro de 2011), pela Vara de Competência Mista do … e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, BB Lda. peticionando a declaração, da (i) inexistência das deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 19 de Julho de 2004, ou, a assim não ser entendido, (ii) a nulidade das deliberações tomadas nessa assembleia e, cumulativamente, (iii) a nulidade das deliberações da Ré de 19 de Maio de 2005 e de 23 de Janeiro de 2006, e, ainda cumulativamente, (iv) a nulidade das deliberações da assembleia geral de aprovação do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas e da proposta de aplicação de resultados relativos ao exercício de 2005, tomadas em assembleia de 23 de Janeiro de 2006.
Alegou para o efeito, muito em síntese, ser sócia da Ré (titular de uma quota representativa de 33,34% do capital social). À semelhança do que sucedera em anos anteriores, por deliberação tomada em 25 de Junho de 2001 pela assembleia geral da Ré, foram aprovados por unanimidade as contas, o balanço e a proposta de aplicação de resultado líquido referentes ao exercício do ano de 2000, sendo que, e de acordo com as contas aprovadas, foi apurado que no exercício desse ano a Ré obteve um resultado liquido positivo de Esc.463.501.949$00 (€2.311.937,97). Foi, todavia, deliberado transferir o referido resultado líquido do exercício para a conta de resultados transitados da Ré, passando este a ascender a Esc.1.531.895. 178 $00 (€7.641.060,93), resultantes da soma do valor dos resultados transitados do ano de 1999 (Esc.1.068.393.229$00) com o resultado liquido positivo do ano de 2000. Face à existência de uma relação conflituosa entre a Autora e os outros sócios da Ré, o relatório de gestão e as contas da Ré relativos ao exercício de 2001 acabaram por não ser submetidos à apreciação dos sócios nem no decorrer de 2002 nem no decorrer do ano de 2003, mas apenas em 2004. E assim, por deliberação de 19 de Julho de 2004, foram tais atos aprovados. Porém, as contas do exercício de 2001 e dos dois anos seguintes, aprovadas sem o concurso da Autora, apagaram os resultados transitados que a Ré vinha acumulando ao longo dos anos, sendo assim as correspetivas deliberações inválidas por inexistência de uma efetiva deliberação sobre a afetação dos resultados transitados. Além disso, da convocatória para a assembleia geral de 19 de julho de 2004 não constava a finalidade de deliberar sobre os lucros anteriores transpostos para os resultados transitados, pelo que as deliberações atinentemente tomadas naquela assembleia sempre seriam nulas. Ainda, a deliberação que incidiu sobre o apagamento dos resultados transitados é nula por ofensiva aos bons costumes. Acresce que as deliberações subsequentes, que têm por pressuposto as contas da Ré respeitantes aos exercícios de 2001, 2002 e 2003 – trata-se das deliberações de 19 de maio de 2005 (aprovação do relatório de gestão e das contas de exercício de 2004 e da proposta de aplicação dos resultados), de 23 de janeiro de 2006 (idem, exercício de 2005) e de 23 de janeiro de 2006 (dissolução da Ré, tendo por base “o descrito nos relatórios de contas e mais concretamente nos exercícios económicos de 2003, 2004 e 2005”) - são, por consequência, também inexistentes ou nulas. Por outro lado, a deliberação de 23 de janeiro de 2006 é ademais nula pelo facto de a Autora não ter sido devidamente convocada para a respetiva assembleia geral, isto porque o aviso convocatório foi enviado para local diverso daquele para o qual devia ter sido. + Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação. Invocou a exceção da caducidade do direito de impugnação das referidas deliberações, por isso que a ação fora proposta muito para além dos 30 dias estabelecidos na lei para requerer a anulação de deliberações sociais. Mais impugnou parte da factualidade alegada pela Autora, aduzindo uma diferente versão dos factos. Ainda, impugnou as ilações jurídicas retiradas pela Autora. Disse, muito em síntese, que uma nova gerência da Ré procedeu à reconciliação e regularização da contabilidade referente aos exercícios em falta, evidenciando-se a necessidade de elaboração das contas tal como aprovadas pela assembleia geral de 19 de julho de 2004, convocada de forma regular e à qual a Autora não compareceu. + Foi proferida decisão (fls. 664), na qual se decidiu pela ocorrência da exceção de caso julgado relativamente à pretensão da impugnação da deliberação de dissolução da sociedade Ré tomada na assembleia geral de 23 de Janeiro de 2006. + Seguindo o processo seus termos, veio, a final, a ser proferida sentença (Comarca da …, …, Instância Central, Secção do Comércio, Juiz 1) que, sob a invocação do art. 69.º n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais (CSComerciais), declarou a nulidade da deliberação de 19 de Julho de 2004, bem como da deliberação tomada em 19 de Maio de 2005. A exceção da caducidade foi julgada improcedente. + Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré. Impugnou o julgamento da matéria de facto, e sustentou que as deliberações julgadas nulas eram válidas e que se verificava a exceção da caducidade que suscitara na sua contestação. A Autora contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação. Mais requereu, ao abrigo do art. 636.º do CPCivil, isto para o caso da sentença não ser confirmada, a ampliação do âmbito da apelação, impugnando por esse meio o julgamento de certos factos. Ainda, e ao abrigo do nº 3 do art. 644º do CPCivil, impugnou a supra referida decisão que concluíra pela ocorrência da exceção do caso julgado relativamente á questão da dissolução da Ré. A Relação de Lisboa (referimo-nos naturalmente ao segundo acórdão que proferiu, o de fls. 1737 e seguintes) absolveu a Ré do pedido. Depois de consignar que “Aceitamos os factos fixados (art. 662.º do C. P. Civil)”, aduziu simplesmente que “Se perpassarmos a factualidade assente logo constatamos que inexiste qualquer com relevo para que se tenha as deliberações sociais noticiadas como nulas ou inválidas” (sic), passando depois a ocupar-se da caducidade, por cuja verificação concluiu. + Insatisfeita com o assim decidido, é agora a vez de a Autora pedir revista. + Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a quo aceitou a matéria de facto fixada nos termos do art. 662º do Cód. Proc. Civ. e decidiu erradamente que os vícios das deliberações impugnadas se reconduzem à anulabilidade, o que acarretaria a caducidade da ação de impugnação. B. O único fundamento do Tribunal da Relação para decidir que as deliberações sociais impugnadas são anuláveis em vez de nulas é uma suposta falta de relevo dos vícios de que as mesmas padecem. c. O Tribunal da Relação erra ao afirmar que a nulidade é excecional em relação à anulabilidade, uma vez que os fundamentos de uma e de outra estão tipificados e se reconduzem a situações de facto diferentes, sendo que os vícios das deliberações sociais impugnadas se subsumem na previsão da nulidade (quer no 69º/3, quer no 56º/1/a), c) e d)). D. O Tribunal a quo erra também ao afirmar que os casos de nulidade das deliberações sociais são apenas os das alíneas do nº 1 do art, 56º do Cód. Soc. Com., deixando de fora a disposição do nº 3 do art. 69º do mesmo diploma sobre a invalidade das deliberações de aprovação de contas, a qual, por sinal, conduz à nulidade das deliberações em apreço. E. O Tribunal da Relação erra ao deixar o invocado vício da inexistência de deliberação de fora da enumeração que faz das invalidades das deliberações sociais, uma vez que é impossível ignorar que nunca foi deliberado retirar os resultados transitados ou os suprimentos dos sócios da contabilidade da sociedade. F. Inclusivamente no seu único fundamento a favor da anulabilidade, o Tribunal da Relação erra clamorosamente ao julgar que os vícios das deliberações sociais impugnadas têm pouco relevo, já que as deliberações em apreço são ostensivamente violadoras da Lei, uma vez que (i) unilateralmente retiram aos sócios o direito a acederem a lucros acumulados, violando o seu direito aos mesmos e (ii) unilateralmente fazem extinguir (invalidamente, claro) contratos de suprimento que foram sendo celebrados pela sociedade com os sócios, sem o acordo destes, ou pelo menos, sem o acordo da recorrida. G. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, a presente ação de impugnação não pode ter caducado por estarmos perante deliberações viciadas de nulidade e/ou inexistência cuja invocação não está sujeita a prazo de caducidade, sendo a decisão recorrida violadora dos arts. 56º e 69º do Cód. Soc. Com., bem como do nº 1 do art. 243º do mesmo diploma e dos princípios que regem as reservas livres da sociedade. H. Os resultados transitados e a conta de suprimentos só podem ser alterados por deliberação própria nesse sentido e, pelo menos no segundo caso, com o consentimento dos credores dos suprimentos. I. É bastante diferente constituir uma provisão de acordo e em respeito com o princípio da prudência de outro comportamento não permitido que é usar a possibilidade legal de constituição de uma provisão para anular valores contabilísticos como se tal anulação se desse devido a custos e perdas prováveis. J. Mesmo que houvesse motivo verdadeiro, o que apenas como mera hipótese se admite, sem conceder, não se pode desenvolver uma postura societária de rutura com a gestão e processamento da contabilidade efetuada pela anterior gerência, apelidando-a de falsa, para depois, ao invés de imputar as correções necessárias nos exercícios em que as mesmas deveriam ocorrer, imputar as tais correções no exercício em que a provisão é realizada, onerando o mesmo de tal forma que implique a anulação contabilística dos resultados transitados. K. É nula a deliberação da recorrida. tomada em Assembleia Geral datada de 19 de Julho de 2004, e como tal são igualmente nulas as deliberações da recorrida tomadas nas Assembleias Gerais datadas de 19 de Maio de 2005 e 23 de janeiro de 2006, nos termos do exposto no art. 69.º n.º 3 do CSC. L. O professor Paulo Olavo Cunha conclui que a vicissitude ocorrida na contabilidade da recorrida é suscetível de pôr em causa um princípio estruturante do sistema jurídico societário, como é o da intangibilidade do capital social, ou afetar os interesses de terceiros e credores, então a deliberação é nula, não sendo sanável com o decurso do prazo, nem podendo ser objeto de renovação. M. O desaparecimento de reservas livres, num montante superior a € 7,5 milhões e de aproximadamente € 3 milhões de suprimentos, não deixa de afetar os credores que, tal como os sócios, veem desaparecer do balanço uma verba que, enquanto estivesse inscrita no mesmo, constituiria uma garantia dos seus créditos. N. Trata-se de uma questão de interesse público, uma vicissitude contabilística com a dimensão da ocorrida não pode ficar na dependência da vontade dos sócios e sanar-se pela conivência destes ou pelo mero decurso do tempo, sendo que as invalidades previstas nos nºs 1 e 2 do art. 69º do Cód. Soc. Com.- e que a lei reconduz à mera anulabilidade - reportam-se a questões menores. O. Se não enquadrássemos a deliberação sub judice no nº 3 do art. 69º - regra especial que é, no caso, especificamente aplicável -, deveríamos reconduzi-la à moldura do art. 56º, nº 1, alínea d), considerando que, ao ratificar à alteração contabilística feita pela gerência e ao procurar sancionar tal ato, ela seria ofensiva dos bons costumes, permitindo legalizar aquilo que constitui uma adulteração grosseira da realidade com que o Direito não pode pactuar. P. O mecanismo utilizado pelos sócios da ré, CC e DD, em conluio com o antigo gerente da ré EE, para proceder à eliminação de tão elevados resultados transitados da r. e de suprimentos contratados é ostensivamente ofensivo do comércio em geral e dos bons costumes. Q. São também nulas as deliberações de aprovação de contas subsequentes às da alteração contabilística injustificada e prejudicial do interesse social e do interesse público. R. A utilização dos resultados transitados carecia sempre de deliberação para o efeito e, no caso em apreço, os referidos resultados transitados ou reservas livres constituídas pelos sócios da recorrida foram eliminadas sem que tivesse havido deliberação nesse sentido. S. Conforme resulta dos documentos juntos como doc. n.º 6, na convocatória para a assembleia geral de 19.07.2004, não consta da respetiva ordem de trabalhos uma deliberação para a utilização dos resultados transitados ou reservas livres, nem para apagamento dos suprimentos. T. As deliberações de aprovação das contas em causa tomadas em assembleia geral da recorrida constantes da ata n.º 16 da mesma, de 19.07.2004, contêm o desaparecimento de resultados transitados que não foi deliberado, são inexistentes por constituírem ou terem como efeito a disposição omissiva sobre resultados transitados não deliberada. U. As deliberações em causa sempre seriam nulas por não terem sido tomadas numa assembleia geral convocada para o efeito, ou seja, para deliberarem sobre assuntos estranhos às contas do exercício, designadamente os resultados transitados de anos anteriores e os suprimentos dos sócios. V. A extinção unilateral dos contratos de suprimentos celebrados pela recorrida. não está por natureza sujeita a deliberação da assembleia geral, pois tal equivaleria a admitir que era lícito colocar à consideração da sociedade o incumprimento da obrigação de restituição que para a mesma emerge do nº 1 do art. 243º do Cód. Soc. Com. W. É possível revogar os contratos de suprimentos, mas para tanto é necessário que os sócios titulares dos empréstimos concordem, o que no presente caso, manifestamente, não sucedeu. X. As deliberações tomadas em assembleia geral da recorrida de 19.07.2004 são também nulas por terem unilateralmente extinguido os contratos bilaterais de suprimentos celebrados entre a recorrida e os seus sócios, nulidade essa que se estende a todas as deliberações subsequentes. Y. As deliberações em causa não se encontravam feridas de mera anulabilidade, mas sim de nulidade ou inexistência, pelo que não faz sentido afirmar-se que a ação de impugnação caducou por apenas se poder invocar a anulabilidade no prazo de 30 dias a contar da tomada deliberação a impugnar. Z. A matéria de facto fixada e aceite pelo Tribunal da Relação é mais do que suficiente para o Tribunal ad quem tomar uma decisão sobre o caso em termos de julgar nulas e/ou inexistentes as deliberações impugnadas, sendo que até seria suficiente para esse efeito a matéria de facto das constante das certidões, designadamente dos documentos de aprovação de contas, prestação de contas e respetivas convocatórias. AA. As deliberações impugnadas na presente ação, incluindo a que foi tomada na assembleia geral da recorrida de 23 de janeiro de 2006, que delibera a dissolução da sociedade baseada nas contas aprovadas nas assembleias gerais nulas anteriores, e que é objeto do recurso da recorrente de 15.01.2016 ref. 1152312, devem ser julgadas nulas e/ou inexistentes.
Termina dizendo que deverá ser revogado o acórdão recorrido, substituindo-se por outro que condene a Recorrida nos pedidos da ação.
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A parte contrária contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II - ÂMBITO DO RECURSO
Importa ter presentes as seguintes coordenadas: - O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas; - Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam; - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.
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É questão a conhecer: - Inexistência jurídica da deliberação de 19 de julho de 2004; - Nulidade dessa deliberação e das deliberações subsequentes aqui em causa.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
Plano Factual:
Estão provados os factos seguintes, tal como descritos no acórdão recorrido:
Por acordo e por documentos:
a) A Autora é titular de uma quota do valor nominal de € 1.670,00 do capital social da Ré, a qual representa 33,34% do total desse capital social; b) A Ré é uma sociedade comercial cujo capital social pertencia em partes iguais, direta e indiretamente aos donos do grupo de sociedades a que pertence a sociedade de direito espanhol FF SA (“GG”), cuja atividade consiste, em traços gerais, na importação e distribuição de pescado; c) A Ré era utilizada pelo Grupo FF como intermediária, comprando pescado a empresas sul-americanas para revenda, com lucro, às outras sociedades do grupo com sede na Europa; d) À semelhança do que sucedia nos anos anteriores, por deliberação tomada em 25 de Junho de 2001, em Assembleia Geral da Ré foram aprovados, por unanimidade, as contas, o balanço da Ré e as propostas de aplicação de resultado líquido referentes ao exercício do ano de 2000; e) De acordo com as contas aprovadas, foi apurado que, no exercício do ano de 2000, a Ré obteve um resultado líquido positivo no valor de Esc. 463.501.494$00 (€ 2.311.937,97); f) Foi deliberado na referida Assembleia Geral de 25 de Junho de 2001 transferir o referido resultado líquido do exercício para a conta de resultados transitados da Ré; g) Após tal deliberação relativa ao exercício do ano de 2000, o valor dos resultados transitados da mesma passaram a ascender a Esc. 1.531.895.178$00 (€ 7.641.060,93), resultantes da soma do valor dos resultados transitados do ano de 1999 (Esc. 1.068.393.229$00) com o resultado líquido positivo do ano de 2000; h) Em 25 de Junho de 2001 a totalidade do capital social da Ré era detido, em partes iguais, por duas sociedades comerciais a saber, (i) a HH (adiante designada por “HH”) e (ii) a II, Lda. (adiante designada por “II”; i) Tais sociedades eram mandatadas para titular o capital social da Ré em nome próprio, mas por conta dos três sócios do Grupo FF, tudo de acordo com um processo organizado e promovido pela OO que era uma sociedade do grupo Banco VV SA, que atuava na Zona ...; j) Até inícios de 2002, cada um dos três sócios do Grupo FF, JJ, CC e DD, era titular, direta ou indiretamente, de um terço das sociedades do grupo; k) Relativamente à Ré, JJ e os restantes sócios do Grupo FF determinaram a cisão e posterior cessão das quotas da Ré tituladas pela HH e pela II a favor de CC, DD e da Sociedade AA Lda., ora Autora que passou a ser a titular da quota de JJ; l) Desde o final do ano de 2003 que os sócios da Ré são os seguintes: - A Autora, titular de uma quota no valor de € 1.670,00 do capital social da Ré; - CC, titular de duas quotas no valor de € 830,00 cada do capital social da Ré; - DD, titular de uma quota no valor de € 1.670,00 do capital social da Ré. m) Nessa altura, o capital social da Ré ficou, assim, repartido em partes iguais sendo cada uma das participações representativa de 33,33% do mesmo; n) Por deliberação da Assembleia Geral da Ré de 11 de Novembro de 2003 os sócios CC e DD, propuseram e nomearam como gerente EE, pessoa de sua confiança; o) Em consequência de desavenças entre os atuais sócios da Ré – anteriores beneficiários da HH e da II – apenas em Assembleia Geral da Ré realizada em 19 de Julho de 2004, foi aprovado o relatório de gestão e as contas da Ré com referência ao exercício do ano de 2001 e seguintes, entretanto submetidas a aprovação pelo novo gerente da Ré, EE; p) Em tal Assembleia foram igualmente aprovados os relatórios de gestão e as contas da Ré relativos aos exercícios dos anos de 2002; q) Tais contas foram preparadas com a colaboração de funcionários do Grupo FF; r) As contas em causa foram preparadas numa altura em que JJ já não exercia funções e nem sequer tinha acesso às instalações do Grupo FF; s) O pacto social da Ré não prevê a constituição de reservas superiores às impostas por lei; t) Em 19 de Julho de 2004, com a tomada das deliberações constantes da ata da Ré n.º 16, foram aprovados os relatórios de gestão, as contas da Ré e demais documentos de prestação de contas, relativos aos exercícios contabilísticos dos anos de 2001, 2002 e 2003; u) Na mesma Assembleia Geral foi ainda aprovada a proposta de aplicação dos resultados dos exercícios de 2001, 2002 e 2003; v) A Autora foi convocada por carta registada com aviso de receção enviada em 02 de Julho de 2004, para a sede social da mesma naquela data, para uma Assembleia Geral da Ré que teria lugar na sede social da Ré, em 19 de Julho 2004, com a seguinte ordem de trabalhos: “(…) Ponto Um: Deliberar sobre os relatórios de gestão, as contas de exercício e demais documentos de prestação de contas, relativos aos exercícios de 2001, 2002, 2003; Ponto dois: Deliberar sobre a proposta de aplicação dos resultados dos exercícios de 2001, 2002, 2003; Ponto três: Proceder à apreciação geral da Administração e Fiscalização da Sociedade”; w) Em Assembleia Geral da Ré realizada em 23 de Janeiro de 2006, os sócios da Ré, CC e DD, deliberaram a dissolução da Ré; x) A Autora, por carta dirigida à Ré datada de 13 de Maio de 2005, requereu que todas as notificações e correspondência que a Ré lhe dirigisse fossem enviadas para os escritórios dos seus mandatários à data, sitos na Rua …, n.º …, …; y) Uma vez que a Ré respondeu negativamente a tal solicitação, a Autora renovou, em 21 de Junho de 2005, o pedido de envio das notificações e correspondência que a Ré lhe dirigisse para aquela morada; z) Apesar das referidas solicitações da Autora, a Ré expediu, em 19 de Dezembro de 2005, a convocatória para a Assembleia Geral de aprovação do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, relativos ao exercício de 2005 da Ré e, ainda, da proposta de aplicação de resultados do exercício de 2005, para as KK, onde se encontra a sede social da Autora. aa) A Ré, com esta composição de sócios / beneficiários, integrava-se no “Grupo FF S. A.” adiante referida como “FF”, com sede em …, …, do qual faziam parte várias sociedades em Espanha (FF S. A, LL, S.A., MM, S.A., entre outras) e em Portugal (NN, S.A.), todas elas participadas, direta e indiretamente, pelos três acionistas na mesma proporção de 1/3 do capital social; bb) Estes gerentes renunciaram aos seus cargos em 22 de Novembro de 2002, data a partir da qual a Ré deixou de dispor de gerentes; cc) Relativamente aos exercícios de 1995 a 1999, as contas e resultados da demandada de cada exercício só no ano de 2000 é que aparecem aprovadas, altura em que entre o dia 28 de Setembro e o dia 04 de Outubro de 2000, alegadamente se realizaram todas as Assembleia Gerais e foram aprovadas as contas de 1995, 1996, 1997, 1998, 1999; dd) Perante a quebra de confiança do conselho de administração da “FF” no administrador delegado único, este, JJ, renunciou voluntariamente ao mandato de administrador, tendo mantido apenas a sua qualidade de acionista. ee) Ocorreram procedimentos judiciais, civis e criminais, em Espanha e Portugal, entre os sócios DD, CC, contra JJ; ff) Na data designada 11 de Novembro de 2003, realizou-se a Assembleia Geral na qual estiveram todos os sócios presentes, representativos da totalidade do capital social e foi nomeado gerente da demandada o Dr. EE, sendo que a representante da sociedade que titulava a participação do JJ, votou contra essa deliberação; gg) O gerente nomeado de imediato procedeu à revogação da procuração que conferia plenos poderes a favor de JJ; hh) Nas contas provisórias apresentadas pela “OO”, a 31 de Dezembro de 2001 encontrava-se lançado na conta 59 (Resultados transitados) um saldo no valor de 1.531.895.178$00 ou €7.641.060,00; ii) A Autora não esteve presente nem se fez representar no dia em que se realizou a Assembleia Geral (19 de Junho de 2004), nem impugnou essa deliberação até à propositura da presente ação; jj) As contas relativas ao exercício de 2001 foram certificadas por ROC, que expressou a seguinte opinião técnica: Em nossa opinião, exceto quanto aos efeitos dos ajustamentos que poderiam revelar-se necessários caso não existissem as limitações descritas nos parágrafos 6, 7, 8, 9, 10 acima, as demonstrações financeiras apresentam de forma verdadeira e apropriada, em todos os aspetos materialmente relevantes, a posição financeira da BB, Lda. em 31 de Dezembro de 2001, e o resultado das suas operações findo naquela data, em conformidade com os princípios contabilísticos geralmente aceites; kk) Em 31 de Dezembro de 2011 foi disponibilizado, à Autora, a possibilidade de consultar os documentos relativos aos elementos contabilísticos da sociedade; ll) A sociedade ora Autora não esteve presente nem se fez representar no dia em que realizou a Assembleia Geral que aprovou as contas, nem impugnou essa deliberação até à data da propositura da presente ação; mm) A sociedade ora Autora não esteve presente nem se fez representar no dia em que se realizou a Assembleia Geral que deliberou a dissolução da sociedade, nem impugnou essa deliberação até à data da propositura da presente ação; nn) No âmbito do processo-crime que com o n.º 0005789/2002 correu termos no Juzgado de Instrucción n.º 001 de …, em que foi arguido JJ, o mesmo foi absolvido das acusações da prática dos crimes de falsedad, apropriación indebida e administración desleal, que lhe tinham sido movidas pela FF, S.A., as quais tinham como fundamento os factos alegados pela Ré nos referidos artigos 14.º, 15.º, 26.º, 27.º e 31.º a 37.º da contestação.
Da discussão realizada em audiência de julgamento:
A. O lucro comercial das operações ia sendo acumulado na sociedade à medida que os anos passavam, tendo sido escassas e de reduzido montante as saídas de fundos para os sócios; B. O lucro comercial das operações de compra para revenda que ficava nesta sociedade da Zona ... ia sendo inscrito, ano após ano, por deliberação da Assembleia Geral, na rúbrica contabilística de resultados transitados; C. Deste modo, os sócios do Grupo FF deixavam parte do lucro total das operações numa sociedade sediada numa zona com tributação mais favorável do que Espanha e Portugal, países onde desenvolviam a maioria da sua atividade; D. Em Fevereiro de 2002, os sócios da Ré, CC e DD, apoderam-se da quase totalidade do capital social das sociedades espanholas do grupo FF; E. Não conseguindo evitar a ação dos dois outros sócios do Grupo FF, JJ acabou por ficar com a sua participação reduzida nas sociedades espanholas do Grupo FF em virtude do aumento de capital por aqueles proposto e aprovado; F. Nesse momento, o Senhor JJ e os seus filhos que trabalhavam para sociedades do Grupo FF foram fisicamente afastados destas sociedades e impedidos de continuar as atividades que lá desenvolviam; G. Os conflitos entre os sócios da Ré, tiveram por consequência que o relatório de gestão e as contas da Ré relativos ao exercício de 2001 não fossem submetidos pela gerência da mesma a aprovação pelos sócios da Ré nem no decorrer desse mesmo ano de 2002, nem durante o ano de 2003; H. Nessa altura, o Senhor JJ também já não tinha acesso à totalidade da contabilidade da Ré, uma vez que parte desta se encontrava nos escritórios do Grupo FF; I. As faturas emitidas e por emitir da Ré, por um lado, e a contabilidade das sociedades do Grupo FF, por outro, eram feitas no mesmo local e dirigidas pelas mesmas pessoas; J. Tais avultados resultados transitados – subtraído o valor do capital social da Ré e das suas reservas legais, no valor de Esc. 400.000$00 (€ 1.995,19) e Esc. 501.205$00 (€2.500,01), respetivamente – correspondiam ao lucro da Ré, pelo menos, nos exercícios contabilísticos dos anos de 1999 e 2000; K. Da análise das contas aprovadas pela Ré relativas ao exercício do ano de 2000 verifica-se que a Ré não teve prejuízos nesse ano, nem existiam prejuízos transitados dos anos anteriores; L. E já tinham sido anteriormente constituídas as reservas impostas por lei no valor de Esc. 400.000$00 (€ 1.995,19); M. Bem como as despesas de constituição, de investigação ou de desenvolvimento já se encontravam amortizadas; N. Deduzidos aos referidos resultados transitados de € 7.641.060,93, as reservas legais da Ré (€ 1.995,19) e o capital social (€ 2.500,01), o lucro distribuível da Ré, acumulado era de € 7.636.565,73 (€ 7.641.060,93 - € 1.995,19 - € 2.500,01 = € 7.636.565,73); O. Tal lucro nunca foi distribuído pelos sócios da Ré, dado que os sócios da Ré foram, ao longo de vários exercícios, deliberando a afetação do mesmo, por unanimidade, à rúbrica resultados transitados, criando, assim, voluntariamente, reservas voluntárias; P. Durante o tempo em que os resultados transitados se mantiveram na sociedade, foram feitas transferências de fundos indiretamente destinadas a um dos outros sócios da Ré; Q. As transferências de fundos da Ré para a PP, Lda. e para QQ foram feitas sob a forma de pagamentos de faturas; R. Dos referidos relatórios de gestão e das contas da Ré respeitantes aos anos de 2001, 2002 e 2003, deixaram de constar os referidos resultados transitados no valor de € 7.641.060,93; S. Apesar dos resultados transitados constarem das respetivas rubricas do balanço e demonstração de resultados da Ré do ano 2000, essas referências não consta das contas e respetivos balanços dos anos seguintes; T. Não consta da ata da assembleia geral qualquer referência aos resultados transitados ou à deliberação sobre a sua aplicação em qualquer dos fins legalmente possíveis; U. A convocatória para a referida Assembleia Geral não contém qualquer referência a deliberação sobre a utilização ou aplicação dos resultados transitados; V. Com a inserção de uma dívida nas contas da Ré de 2001 e com o desaparecimento de créditos, a nova gerência constituiu uma provisão e fez desaparecer os resultados transitados que se encontravam contabilizados; W. A Ré foi constituída em 1994 e pese embora o seu capital fosse titulado por duas quotas pertencentes a duas sociedades, esse capital pertencia em partes iguais aos sócios DD, CC e JJ sendo que a participação deste é detida, desde 2003, por intermédio da Autora, com uma participação de 1/3 do capital, cada um; X. A Autora é sócia da demandada desde 28 de Novembro de 2003, pese embora até 2007 ter sido uma sociedade com a firma “RR”, com sede nas …, data em que por via de cessão de quotas assumiu a participação social cujo beneficiário é JJ o qual é titular da totalidade do capital social; Y. Apesar das participações sociais que cada um dos acionistas detinha na “FF”, sempre as várias sociedades desde a sua constituição foram administradas e geridas e representadas exclusivamente pelo administrador delegado único JJ (sócio único da autora), ou seja, este administrador delegado acumulava a gestão e administração das sociedades do grupo em Espanha e Portugal, incluído a gestão e administração da Ré; Z. JJ era o único procurador da Ré concentrando, assim, todos os poderes de gestão e administração de todas as empresas e sociedades do grupo; AA. Entre 1994 e 2002 a Ré funcionava apenas como mero instrumento e veículo de operações de triangulação comercial entre os fornecedores de matéria-prima derivada da pesca e as empresas da “FF” como destinatárias finais dessas mercadorias); BB. Toda a atividade desenvolvida pela Ré naquele período de tempo foi executada sob a exclusiva responsabilidade do então mandatário e gerente de facto JJ, a partir da sede do grupo em …, Espanha, local onde todas as operações, negociações, relações comerciais, financeiras e contabilísticas eram realizadas e ordenadas pela mesma e única pessoa; CC. JJ atuava na qualidade de representante do comprador e cliente final da mercadoria comprada a “FF” e representante da intermediária dessa operação de compra e venda, a Ré, definindo as concretas condições de compra e venda da mercadoria que mais lhe convinha em cada momento, em ambas as sociedades; DD. Os demais sócios do grupo e também beneficiários da Ré não tinham qualquer intervenção no giro comercial e financeiros das empresas, mormente na Ré; EE. Ano após ano, as contas e resultados que a Ré apresentava resultavam da ação exclusiva deste mandatário JJ e correspondiam, em cada momento, à sua estratégia e conveniência; FF. A Ré tinha a sua sede e domicílio social nas instalações da sociedade OO S.A., adiante referida como “OO” entidade cujos colaboradores eram responsáveis formais pela sua contabilidade e gestão administrativa; GG. Eram os colaboradores da OO quem assegurava a representação formal das sociedades titulares das quotas constitutivas do capital social da demandada, ou seja, eram as mesmas pessoas que intervinham em representação dos sócios e gerentes da Ré; HH. Formalmente, a demandada teve como gerentes de direito designados SS e TT, pessoas com estreita colaboração com esta sociedade “OO” e da confiança do mandatário e gerente de facto JJ, que respondiam e cumpriam ordens diretas deste gerente de facto; II. Até ao ano de 2003 nunca ocorreram ou se realizaram efetivas Assembleias Gerais da Ré, de aprovação de contas ou de qualquer outro assunto, pois tudo era tratado pelas mesmas pessoas que se limitavam a formalizar os atos e assinar os documentos e as atas com os elementos que o mandatário único lhes fornecia; JJ. Das atas referentes à aprovação das contas anteriores a 2001, resulta que as, então, sociedades titulares do capital social da demandada (HH e II) eram representadas na assembleia-geral pelo SS o qual era em simultâneo o gerente da Ré, ou seja, o gerente, seguindo as instruções do mandatário apresentava as contas e em representação dos sócios procedia à sua aprovação; KK. Nunca os demais beneficiários das participações sociais da Ré intervieram por qualquer modo nos atos e decisões, fosse de que natureza fosse, relativamente à Ré, não sendo do seu conhecimento nada que dissesse respeito à Ré; LL. Toda esta atividade empresarial centralizada exclusivamente na pessoa do JJ manteve-se no “FF” em Espanha até 4 de Março de 2002, data em que os restantes sócios confrontaram o administrador delegado único, JJ, com irregularidades comerciais, de gestão e financeiras nas várias sociedades do “FF” em Espanha; MM. Tais irregularidades deram causa a que o conselho de administração do grupo “FF” reunido em assembleia lhe tenha retirado a confiança e revogado a delegação de poderes que haviam concedido ao administrador JJ; NN. Manteve no, entanto, o controlo da Ré, da qual era mandatário único, pois esta, nessa data, escapava a qualquer controlo dos demais acionistas do “FF”; OO. Na sequência da sua renúncia ao cargo de Administrador do “FF”, levou consigo a maior parte dos dossiers e documentação contabilística das empresas do Grupo, designadamente os documentos relativos à Ré; PP. Quando os demais administradores assumiram o controlo das empresas e sociedades do universo “FF”, depararam com as várias sociedades totalmente descapitalizadas e sem crédito; QQ. Durante o mês de Fevereiro de 2002 foram efetuadas por ordem direta do JJ transferências da ordem dos 5.577.000,12 (cinco milhões quinhentos e setenta e sete euros e doze cêntimos) das contas bancárias do “FF” para a sociedade UU., transferências, estas, que exibiam a singela menção “compra e peixe congelado”; RR. Os sócios DD, CC, não tiveram acesso aos documentos contabilísticos, registos e contas que se encontravam formalmente depositadas na sociedade “OO”, entidade que prestava serviços administrativos e de contabilidade e que era da estrita confiança do mandatário único JJ ao qual sempre reportaram em exclusivo, pelo que não tinham qualquer conhecimento concreto da situação em que se encontrava; SS. JJ manteve os seus poderes como mandatário único da Ré, poderes únicos de gestão e administração e movimentação das contas abertas junto do BANCO VV; TT. JJ ordenou a transferência efetuada em 11/11/1999 no valor de €120.202,42 para uma conta particular titulada pelo próprio; UU. Em 31 de Outubro de 2002, é ordenada uma transferência da quantia de €1.673.000,00 da sociedade “UU”, sociedade controlada exclusivamente pelo JJ, para a conta nº 0000000040 titulada pela Ré no Banco VV, sem que existisse qualquer documento de suporte que justificasse tal operação; VV. Após diligências junto da OO e troca de correspondência, ao longo de 2002 e 2003 e atento o facto de os gerentes formalmente designados terem renunciado aos seus cargos desde 22/11/2002, foi convocada pelos sócios, através de carta registada remetida para o domicilio social da então sociedade fiduciária (HH), titular da quota pertencente ao JJ, assembleia geral destinada a proceder à nomeação de gerentes, tendo aquela sociedade sido representada pela Dra. WW; WW. A revogação da procuração que conferia poderes a JJ foi comunicada ao BANCO VV pelo gerente; XX. A partir desta data os demais sócios da Ré puderam aceder à documentação comercial, aos livros e registos daquela que existiam, os quais foram entregues ao gerente pela “OO”; YY. O gerente Henrique Leça iniciou a análise da contabilidade e dos documentos que a suportava e deparou-se com o facto de a sociedade Ré não ter as contas elaboradas nem aprovadas desde 2001 em diante; ZZ. Tal facto foi assinalado posteriormente pela “OO”, anterior responsável da contabilidade em carta datada de 29/09/2005, enviada às instâncias judiciais Espanholas em virtude do cumprimento de carta rogatória proveniente da Justiça Espanhola; AAA. Deparou-se, ainda com a existência de registos contabilísticos, tais como correções cambiais, sem qualquer suporte documental que os justificassem; BBB. Deparou-se com a existência de documentos contabilísticos, faturas e pagamentos, que não estavam lançados na contabilidade; CCC. A Ré não dispunha de um Revisor Oficial de Contas (ROC), razão pela qual, nesse momento, foi designado um ROC para a sociedade; DDD. A tarefa do gerente foi, em articulação com o Grupo FF, único cliente da Ré, recuperar e regularizar a contabilidade desta; EEE. A gerência, a partir das contas provisórias, com data de 31 de Dezembro de 2001 da responsabilidade da “OO” e do mandatário gerente de facto JJ, completadas com as faturas e pagamentos efetuados diretamente aos fornecedores pelo “FF” e que não estavam ainda contabilizados e da informação obtida junto dos clientes/fornecedores da demandada, procedeu à reconciliação e regularização da contabilidade referente aos exercícios em falta com vista a ser submetida a discussão e aprovação pela Assembleia Geral de sócios; FFF. Na sequência de todo o processo de reconciliação e regularização da contabilidade da Ré, nas contas do exercício de 2001 e seguintes, esta assumiu um saldo contabilístico credor de mais de €11.000.000,00 sobre um fornecedor da demandada, o “XX”, saldo este que esta sociedade, notificada da existência do mesmo, contestou existir, alegando a existência de um crédito de cerca de 322. 000 USD; GGG. A reconciliação efetuada entre o “FF” e o “XX” referente ao mesmo período de tempo, assumiu pagamentos diretos da primeira à segunda, realizados pelo JJ, pagamentos esses que na contabilidade da Ré estavam refletidos, pela anterior responsável pela contabilidade, como adiantamentos a fornecedores de valor superior a 17.000.000,00 euros; HHH. Porém, também verificou que nessa data de 31 de Dezembro de 2001 as contas bancárias da sociedade, não apresentavam qualquer saldo positivo, aliás as contas estavam a zero; III. Verificou a gerência que, por ordem do então mandatário JJ, das duas contas tituladas pela demandada junto do BANCO VV, foi transferido em 30 de Novembro de 2001 da conta nº 0000000040 a totalidade do saldo existente no valor de € 31.076,02, e no dia 05 de Dezembro de 2001 foi transferida da conta nº 00000000069 a totalidade do saldo no valor de €8,14, para a sociedade “UU”; JJJ. Tal saldo contabilístico, apesar de constar como resultado transitado dos exercícios anteriores, não existia nem nas contas bancárias, nem no caixa; KKK. A auditoria realizada às contas do “FF” pela auditora internacional YY para o período de questão demonstrou que não existiam discrepâncias entre as contas entre aquele e a Ré; LLL. Tal cifra constava inscrita nas contas provisórias a 31 de Dezembro de 2001, elaboradas e da responsabilidade da “OO”, a gerência que assumiu funções contabilizou tal cifra no exercício de 2001, nos termos que constam das contas que apresentou em Assembleia Geral realizada em 19 de Julho de 2004, contas essas auditadas por ROC, aprovadas pelos sócios e nunca impugnadas; MMM. No exercício seguinte a Ré procedeu à total reconciliação e regularização da contabilidade e organização da sociedade, para o que foram elaboradas pela gerência e certificadas pelo ROC as contas dos exercícios referentes aos anos de 2001, 2002 e 2003; NNN. É no contexto explanado no relatório de gestão que a gerência procede à elaboração das contas referentes aos exercícios de 2001, 2002 e 2003, contas que foram devidamente certificadas e que uma vez submetidas à assembleia-geral, foram discutidas e aprovadas em 19 de Julho de 2004; OOO. Relativamente à aplicação de resultados foi deliberado: a) - do exercício de 2001, e uma vez que o resultado de exercício foi nulo, não fazer qualquer distribuição de resultados, b) - do exercício de 2002, e uma vez que o resultado liquido de exercício foi de € 2.473,17, foi decidido que transite para resultados transitados, c) - do exercício de 2003, e uma vez que o resultado liquido de exercício foi de € 1.137,94, foi decidido que transite para resultados transitados. PPP. Até ao exercício de 2001 inclusive, o “FF” assumiu que, pela mão do seu então administrador delegado único, efetuou transferências para o “XX”, por conta das compras de peixe efetuadas pela demandada, pelo valor superior a €48.000.000,00, quando as compras no exercício de 2001 corresponderam a 35.236.327,04 euros, procedimento que em termos contabilísticos gerou um saldo credor sobre aquele fornecedor pela diferença de valor superior a 12.000.000,00 euros; QQQ. Estas contas assim aprovadas nunca foram por qualquer modo impugnadas pela Autora ou por qualquer outra entidade; RRR. O valor dos resultados transitados dos exercícios anteriores foi devidamente contabilizado no exercício de 2001, sendo que atenta a situação contabilística da sociedade e a regularização extraordinária durante este exercício viria a traduzir um resultado nulo de exercício; SSS. Das contas submetidas à apreciação da Assembleia Geral consta expressamente a finalidade que a gerência, no âmbito da sua competência, deu aos resultados transitados, regularização extraordinária de valor do balanço; TTT. A Ré assumiu que, durante vários exercícios, incluindo 2001, JJ ordenou sobrefaturação, transferências diretas para os fornecedores sem os registar na contabilidade da Ré, pagamentos diretos aos fornecedores sem existir o respetivo documento de suporte, correções cambiais que se destinavam a evidenciar saldo inexistente; UUU. A sociedade Autora não compareceu nem se fez representar no dia em que se realizou a Assembleia Geral de 24 de Fevereiro de 2005 que designou o novo gerente, nem alguma vez impugnou essa deliberação.
Foram tidos como não provados os factos seguintes:
1. O novo gerente da Ré foi nomeado, em Assembleia Geral realizada no dia 30 de Novembro de 2003, na qual o Senhor JJ não participou nem se fez representar, pois não chegou ao seu conhecimento que esta assembleia iria ter lugar; 2. Nem sequer é justificado no relatório de gestão aprovado na assembleia geral em causa; 3. Com a aprovação, em Assembleia Geral da Ré realizada em 19 de Julho de 2004, do relatório e das contas dos exercícios de 2001, 2002 e 2003, foram apagados os resultados transitados resultantes dos exercícios contabilísticos anteriores; 4. A Autora ainda não conseguiu ter acesso à contabilidade da Ré e aos respetivos documentos e, por isso, ainda não conhece as manobras contabilísticas que os outros sócios da Ré e o gerente por eles nomeado utilizaram nas contas dos exercícios de 2001 e posteriores; 5. A Autora já efetuou, pelo menos, três pedidos de informação nesse sentido que foram recusados pela Ré e já instaurou dois inquéritos à sociedade com o mesmo objetivo, encontrando-se o segundo ainda a correr termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial do … sob o n.º 1799/08.1TBFUN; 6. A Autora ainda não conseguiu ter acesso à contabilidade da Ré e aos respetivos documentos e, por isso, ainda não conhece as manobras contabilísticas que os outros sócios da Ré e o gerente por eles nomeado utilizaram nas contas dos exercícios de 2001 e posteriores; 7. Os referidos resultados transitados constituídos pelos sócios da Ré foram eliminados sem que tivesse havido deliberação nesse sentido; 8. Não houve prejuízos no exercício de 2001, ou seja resultado líquido negativo; 9. Da convocatória para a assembleia geral de 19.07.2004 resulta que os sócios da Ré não foram convocados para deliberar sobre os lucros distribuíveis que antes (nas deliberações de aprovação das contas anteriores) tinham deliberado transpor para os resultados transitados; 10. A Ré servia para produzir documentação contabilística pelo método de subfacturação da mercadoria, que depois permitia à “FF”, enquanto destinatário final dessa mercadoria, peixe congelado, pagar menos taxas e direitos aos países de onde provinha a mercadoria comprada; 11. Servia, por fim, para produzir documentação contabilística pelo método de sobrefaturação, que formalmente recebia dos fornecedores, mas que era paga a este fornecedor pelo valor sobre-facturado, o que era gerador de um saldo contabilística a crédito sem suporte documental; 12. Em 11 Novembro de 2003 JJ, sem qualquer justificação, ordena nessa qualidade de mandatário da Ré a transferência da quantia de € 1.287,055,00 (um milhão duzentos e oitenta e sete mil e cinquenta e cinco euros) e 301 770,00 USD (trezentos e um mil setecentos e setenta dólares) da conta bancária existente junto do BANCO VV, para uma outra conta por si, entretanto, aberta e titulada na dependência da ZZ, AAA e BBB em ...; 13. O “FF” fazia o pagamento direto ao fornecedor da mercadoria a partir de Espanha, mas tais valores não eram integralmente contabilizados nas contas da Ré; 14. JJ ordenou a transferência de fundos para satisfazer necessidades pessoais e da sua família.
Plano Jurídico:
Importa, liminarmente, observar o seguinte: Na contra-alegação que ofereceu na apelação a ora Recorrente impugnou o julgamento de certos factos, isto prevenindo a hipótese da apelação poder proceder. O tribunal recorrido, pese embora ter dado procedência à apelação, não se pronunciou sobre tal impugnação (que, note-se, não ficou prejudicada pelo mais decidido; pelo contrário, a decisão de mérito que foi tomada exigia que estivesse previamente estabilizada a matéria de facto, e isso não acontecia). A nulidade por omissão de pronúncia daqui decorrente não é de oficioso conhecimento, e também não vem arguida pela Recorrente, que, ao invés, até como que a desconsidera ou desvaloriza, aí onde, algures na sua alegação (e na conclusão Z.) afirma que “A matéria de facto aceite pelo Tribunal da Relação é mais do que suficiente para o Tribunal ad quem tomar uma decisão sobre o caso (…)”. Serve tudo isto para dizer que os factos materiais da causa se têm por definitivamente fixados tal como provindos da 1ª instância, e daqui que a decisão do presente recurso se tenha de ater a esses factos (v. art. 682.º, n.º 1 do CPCivil), apesar, pois, de alguns deles terem sido impugnados e a impugnação não ter sido objeto de qualquer apreciação. Outro ponto que importa esclarecer tem a ver com a deliberação de dissolução da Ré (deliberação de 23 de janeiro de 2006), e cuja neutralização derivada a ora Recorrente também visa. Revelam os autos que essa deliberação foi objeto de impugnação judicial por parte da ora Recorrente (processo n.º 765/07.9TCFUN, que correu pelas então Varas de Competência Mista do ...), tendo sido julgada improcedente, com trânsito em julgado. Na sequência, foi proferida decisão nos presentes autos (fls. 664) que julgou verificada a exceção do caso julgado relativamente a tal pedido (com a consequência legal, embora não constante expressamente da dita decisão, da absolvição da Ré da instância quanto a esse estrito pedido). O assim decidido foi depois objeto de impugnação recursória por parte da Autora, nos termos do n.º 4 do art. 644.º do CPCivil. O acórdão recorrido não se pronunciou especificamente sobre tal impugnação (teve-a certamente como prejudicado pelo mais decidido). No presente recurso de revista a Autora não faz qualquer alusão à referida impugnação, o que é dizer, não submete à apreciação deste Tribunal a questão de saber se se verifica ou não a exceção do caso julgado. O que significa que terá perdido interesse na dita impugnação em si mesma. Mas se assim é, então consolidou-se a decisão de fls. 644 (pois que formou caso julgado), o que implica que a questão da neutralização da deliberação de dissolução da Ré está definitivamente arredada de apreciação neste recurso de revista. Sendo assim, como efetivamente é, então é inconsequente a reedição no presente recurso (v. conclusão AA.) da temática da invalidade, embora derivada, dessa deliberação. A conclusão a retirar disto tudo é que improcede logo à partida a revista na parte em que se visa a invalidação da deliberação de dissolução da Ré.
Isto posto: Como acima relatado, a Autora visa através da presente ação de simples apreciação a declaração da inexistência jurídica e (ou) da nulidade de certas deliberações sociais tomadas pela assembleia geral da Ré. Mais propriamente, está diretamente em causa a deliberação de 19 de julho de 2004 - que aprovou o relatório de gestão e as contas de exercício dos anos de 2001, 2002 e 2003 – e, em decorrência ou por derivação (por terem por pressuposto as contas desses anos), as deliberações de 19 de maio de 2005 (que aprovou o relatório de gestão, contas de exercício e demais documentos de prestação de contas, e a proposta de aplicação de resultados, tudo relativo ao exercício de 2004), de 23 de janeiro de 2006 (que aprovou o relatório de gestão, as contas de exercício e demais documentos de prestação de contas, e a proposta de aplicação de resultados, tudo relativo ao exercício de 2005), e de 23 de janeiro de 2006 (que decidiu a dissolução da Ré, tendo por base o descrito nos relatórios de contas e mais concretamente nos exercícios económicos de 2003, 2004 e 2005). Mas, segundo cremos, e sem prejuízo para o que acima já se disse a propósito da deliberação de dissolução da Ré, a pretensão da Autora não pode proceder. Isto porque não é identificável relativamente ao deliberado em 19 de julho de 2004 qualquer situação reconduzível à figura da deliberação juridicamente inexistente, nem tal deliberação pode ser havida como inválida no figurino da nulidade. Justificando: Não suscita dúvidas (nem tal é posto em causa pela Recorrente) que, face à lei (nomeadamente art. 65.º e seguintes do CSComerciais e art.s 18.º, n.º 4 e 62.º do CComercial), completado o ciclo anual de atividade, assume grande importância a verificação da situação da sociedade, passando os respetivos resultados a ter inclusivamente eficácia pública (art. 70.º do CSComerciais). Essa verificação periódica da situação da sociedade é relevante para os interessados, como sejam os sócios (a quem importa, e nomeadamente, conhecer os resultados do exercício correspondente ao ano anterior para fins de distribuição de eventuais lucros ou sua afetação a fins de interesse social), os credores (a quem importa conhecer a solvabilidade da sociedade) ou o Estado (na medida em que tal verificação serve de base à tributação fiscal dos resultados da sociedade). Essa verificação deve, ademais, respeitar o princípio da verdade. No que tange particularmente aos sócios, que é o que está aqui em causa, estes só têm direito à distribuição dos lucros efetivos ou reais. Diz-nos a propósito Miguel Pupo Correia (Direito Comercial, 8ª ed., p. 549) que “os sócios só têm direito à distribuição dos lucros efectivos, reais (quer estes sejam retirados apenas dos lucros do exercício, quer abranjam também reservas distribuíveis). E, por conseguinte, os sócios não têm direito à distribuição de lucros fictícios, isto é, á distribuição por eles de quantias necessárias para manter o património líquido pelo menos igual ao capital social e às reservas obrigatórias”. Por isso, e como parecerá óbvio, as contas da sociedade (rectius, as demonstrações financeiras) poderão, se equivocadas ou inconsistentes (ou seja, se não se apresentarem contabilisticamente fundadas) quanto a lucros transitados ser objeto de deliberação corretiva retrospetiva nas contas de um exercício subsequente, na medida em que nestas tenham impacto. A bondade desta asserção é, inclusivamente, confirmada pelo Sistema de Normalização Contabilística (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009 de 13 de Julho) e pela Norma Contabilística e de Relato Financeiro n.º 4 (acessível via www.cnc.min-financas.pt) emitida pela Comissão de Normalização Contabilística ao abrigo das respetivas competências legais (v. o anexo ao DL n.º 134/2012, de 29 de junho). O mesmo se diga, agora com referência à data dos factos aqui em discussão, relativamente ao Plano Oficial de Contabilidade (aprovado pelo DL n.º 410/89, de 21 de novembro) e à Diretriz Contabilística n.º 8 da comissão de Normalização Contabilística (acessível por via de www.cnc.min-financas.pt). Particularmente quanto aos resultados transitados, a conta contabilística respetiva (conta 59) era passível de levar à correção das demonstrações financeiras afetadas de erros fundamentais registados em períodos anteriores e detetados no período corrente. No caso vertente é certo que a matéria de facto provada revela que relativamente ao exercício de 2000 as contas aprovadas (por deliberação de 25 de junho de 2001) concluíram por resultados líquidos que, somados a outros já transitados de pretérito, totalizavam €7.641.060,93. Tais resultados não foram objeto de qualquer destinação específica (distribuição, constituição de reservas livres, etc.), pelo contrário foram simplesmente transferidos para a conta de resultados transitados da Ré. Mas a matéria de facto também revela que uma posterior gerência da Ré (nomeada em novembro de 2003) teve necessidade de proceder, no contexto dos exercícios de 2001, 2002 e 2003, a uma reconciliação e regularização da contabilidade da Ré, de modo que fez contabilizar corretivamente no exercício de 2001 o valor dos resultados transitados dos exercícios anteriores. Efetivamente, está provado que: - RRR. O valor dos resultados transitados dos exercícios anteriores foi devidamente contabilizado no exercício de 2001, sendo que atenta a situação contabilística da sociedade e a regularização extraordinária durante este exercício viria a traduzir um resultado nulo de exercício. Temos assim que os resultados transitados que se encontravam contabilizados deixaram de existir como resultado líquido de exercício, por se ter reconhecido posteriormente que este resultado não correspondia a dados factuais e contabilísticos consistentes. O que é dizer, os resultados transitados foram objeto de reapreciação corretiva e reconfigurados contabilisticamente (mediante, e nomeadamente, a constituição de uma provisão), mas não foram “apagados” ou feitos desaparecer. Concordantemente, vem dado como facto não provado que “3. Com a aprovação, em Assembleia Geral da Ré realizada em 19 de Julho de 2004, do relatório e das contas dos exercícios de 2001, 2002 e 2003, foram apagados os resultados transitados resultantes dos exercícios contabilísticos anteriores”. Ainda, importa notar dentro deste contexto que está provado que “SSS. Das contas submetidas à apreciação da Assembleia Geral [de 19 de julho de 2004] consta expressamente a finalidade que a gerência deu aos resultados transitados, regularização extraordinária de valor do balanço”. Sustenta a Recorrente que “os resultados transitados (…) só podem ser alterados por deliberação própria nesse sentido”, que “[a] utilização dos resultados transitados carecia sempre de deliberação nesse sentido”, sendo que “na convocatória para a assembleia geral de 19.07.2004, não consta da respetiva ordem de trabalhos uma deliberação para a utilização dos resultados transitados ou reservas livres”. E daqui conclui que “As deliberações de aprovação das contas em causa (…) são inexistentes por constituírem ou terem como efeito a disposição omissiva sobre resultados transitados não deliberada”. Mas, segundo cremos, carece de razão. Só pode falar-se com um mínimo de propriedade em inexistência jurídica de um negócio jurídico (e a deliberação social é um negócio jurídico), e passamos a citar Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., p. 608), “quando nem sequer aparentemente se verifica o “corpus” de certo negócio jurídico (a materialidade correspondente à noção de tal negócio) ou, existindo embora essa aparência, a realidade não corresponde a tal noção”. Ou, como nos diz Castro Mendes (Direito Civil, III, 1973, p. 548), “verifica-se a inexistência do negócio jurídico quando este não tem sequer a aparência típica de um negócio jurídico”. Particularmente quanto às deliberações sociais juridicamente inexistente, esclarece Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, Volume II, 5ª ed., pp. 443 e 444) que haverá cabimento para elas fundamentalmente em dois tipos de hipóteses: quando não haja correspondência dos supostos atos deliberativo-sociais a qualquer forma de deliberação dos sócios (deliberações tomadas por não sócios) e quando não haja correspondência dos factos à forma de deliberação invocada (seria o caso de uma deliberação tomada em assembleia que nunca se realizou). Ora, não vemos que a deliberação de 19 de julho de 2004 caia neste tipo de hipóteses. A deliberação foi efetivamente tomada, e por quem a podia tomar. Logo, existe juridicamente. Exatamente como se aponta algures na sentença da 1ª instância, não se pode concluir pela inexistência da deliberação que incidiu sobre o relatório de gestão e das contas de exercício de 2001, uma vez que a deliberação existiu e recaiu sobre matéria constante da convocatória, que era precisamente (e entre o mais) deliberar sobre os relatório de gestão, as contas de exercício e demais documentos de prestação de contas relativo ao exercício de 2001. Entretanto, importa dizer que as razões que a Recorrente alinha para a pretensa inexistência jurídica da deliberação em causa, não são de subscrever. O que passa pela devida compreensão do que são resultados transitados. Vejamos: Embora na alínea O. dos factos que resultaram provados “da discussão realizada em audiência de julgamento” se façam equivaler os resultados transitados às reservas voluntárias (e o mesmo faz a Recorrente), não estamos exatamente perante a mesma realidade (tanto é assim que o n.º 2 do art. 33.º do CSComerciais distingue entre uns e outras). Vasco da Gama Lobo Xavier e Maria Ângela Coelho (Separata da revista de Direito e Economia, n.º 8, p. 267) esclarecem que “O regime dos lucros transitados não se identifica com o das reservas verdadeiras e próprias. Findo o exercício seguinte àquele cujos lucros de balanço foram «levados a conta nova», estes irão necessariamente, ou cobrir perdas eventualmente verificadas ou então engrossar o quantitativo passível de distribuição pelos sócios nesse momento. E isto, note-se, sem que para o efeito se torne necessária uma deliberação ad hoc – ou, mais exactamente, se torne necessária a observância do mecanismo necessário à desafectação das reservas verdadeiras e próprias”. Deste modo, e como se aponta no parecer junto aos autos da autoria do Senhor Professor Filipe Cassiano dos Santos, só a distribuição de reservas (a qual pressupõe uma afetação dos lucros, tem uma característica de estabilidade e é colocada em conta do passivo) carece de uma deliberação prévia de desafetação (v. a propósito os art.s 31.º, n.º 1 e 33.º, n.º 4 do CSComerciais); já os lucros transitados são destinados (aplicados, consignados), sem mais, por deliberação cujo único objeto é fazer aquilo que ainda não foi feito, ou seja, decidir sobre o seu destino (decidir sobre a sua extinção ou afetação, sem prejuízo de se poderem manter pendentes) no exercício seguinte. Assim, os lucros transitados podem ser anulados ou consumidos automaticamente pelos prejuízos que se evidenciem e pelas correções contabilísticas que se imponham, estando disponíveis para que a assembleia decida diretamente sobre o seu emprego, sem necessidade de interposição de qualquer decisão prévia. Ora, sendo assim, como se afigura que é, então não encontramos no caso sujeito como possa dizer-se, como diz a Recorrente, que teria de haver uma convocatória de que constasse da respetiva ordem de trabalhos a finalidade de deliberar sobre a afetação dos resultados transitados, bem como que teria de haver uma deliberação própria sobre essa afetação. Na realidade, a convocatória que foi feita para a assembleia de 19 de julho de 2004 já abrangia por natureza - na medida em que se destinava a apreciar contas de exercício subsequente, sempre passíveis de ser condicionadas por contas precedentes irregulares ou dominadas pela incerteza - a possibilidade de aplicar os resultados transitados aos fins da regularização da situação contabilística que se apurou. Entretanto, escusado será dizer que não estamos aqui a discutir (não constitui objeto do recurso) o mérito dessa regularização, isto é, não estamos aqui a discutir se havia ou não fundamento factual e contabilístico para ela. Mais sustenta a Recorrente (conclusões K. e O.) que a deliberação de 19 de julho de 2004 é nula, isto por força do disposto no n.º 3 do art. 69.º, ou, subsidiariamente, por força do disposto na alínea d) do n.º 1 do art. 56.º (no segmento da ofensa dos bons costumes), ambos do CSComerciais. Também afirma (conclusão U.) que a deliberação sempre seria nula por não ter sido tomada numa assembleia geral convocada para o efeito (o que nos levaria à nulidade cominada na alínea a) do n.º 1 do art. 56.º do CSComerciais). Esta última afirmação da Recorrente improcede de imediato. Como justificação para essa improcedência vale aqui o que acima se expôs a propósito da pretensa inexistência jurídica da deliberação. Repetindo, não havia necessidade de qualquer convocatória diversa da que foi feita nem havia lugar a qualquer deliberação específica tendente a uma suposta desafetação dos resultados transitados. O que significa, pois, que não ocorre a dita nulidade. Relativamente á nulidade cominada no n.º 3 do art. 69.º, também se afigura que não se verifica. Estabelece-se nesta norma que produz a nulidade da deliberação [tomada sobre o relatório de gestão, contas de exercício e demais documentos de prestação de contas], a violação de preceitos legais relativos à constituição, reforço ou utilização da reserva legal, bem como de preceitos cuja finalidade, exclusiva ou principal, seja a proteção dos credores ou do interesse público. Na perspetiva da Recorrente estaria a ser posta em causa a proteção dos credores, havendo assim terceiros que perderiam a sua garantia patrimonial. Do que derivaria também a postergação de um interesse público. Mas não podemos subscrever este ponto de vista da Recorrente. Exatamente como se expende no parecer acima mencionado, e diferentemente do pressuposto no parecer também junto aos autos da autoria do Senhor Professor Paulo Olavo Cunha (e sempre salvo o devido respeito), os resultados transitados (e o mesmo se diga, aliás, das reservas livres) não são uma espécie de fundo imobilizado (ao invés, são meras cifras contabilísticas que implicam um correspondente patrimonial, ainda que, bem entendido, a sua existência não deixe de constituir uma situação mais favorável para a posição dos credores do que o inverso) que os credores sociais podem sempre acionar e cuja extinção ou desaparecimento provoca um irremediável prejuízo para os seus interesses. Os lucros transitados são simplesmente lucros retidos voluntariamente, que podem ser sempre (a todo o tempo) distribuídos pelos sócios (a quem se destinam por natureza ou, digamos assim, “por defeito”), e, nessa medida, não se concebe que se lhes atribua uma qualquer função de “garantia” para os credores. Como ainda se diz no primeiro dos citados pareceres, os credores não têm qualquer pretensão juridicamente tutelada que impeça a distribuição dos lucros, sejam estes atuais (do próprio exercício) ou transitados (os credores têm apenas direito a não verem distribuídos ou alienados bens se, como isso, o valor do património social ficar abaixo da cifra do capital, mas não é disto que aqui tratamos). De resto e bem vistas as coisas, e como de igual forma se anota nesse parecer, a deliberação que promove o afastamento de lucros transitados acautela na realidade os interesses dos credores, pela singela, mas decisiva, razão de que assim desaparecem verbas que podem a qualquer momento ser abduzidas das contas da sociedade (ou seja, distribuídas pelos sócios). Acresce dizer que, como decorre da supra citada norma do n.º 3 do art. 69.º, para que se possa falar no vício da nulidade é necessário que se esteja perante uma violação de preceitos cuja finalidade, exclusiva ou principal, seja a proteção dos credores ou do interesse público. Ora, é patente que essa finalidade exclusiva ou principal não se concebe no caso vertente, pois que os preceitos legais cuja violação estaria em causa são destinados à proteção unicamente dos interesses pessoais da Autora (direito à distribuição dos lucros transitados). Vir argumentar com o interesse dos credores ou com o interesse público é estar, inclusivamente, a esquecer o que se mostra alegado na petição inicial, onde claramente se evidencia que o objetivo da presente ação é obviar ao “prejuízo da a.” (assim, artigos 82º e 98º, vii) e obter a distribuição dos lucros (assim, artigos 107º e 108º). O argumento do interesse dos credores e do interesse público foi simplesmente uma inovação, porém destituída de fundamento jurídico, da sentença da 1ª instância. Deste modo, não se pode concluir pela nulidade da deliberação em causa à luz do n.º 3 do art. 69.º do CSComerciais. O mesmo se diga, agora com referência à alínea d) do n.º 1 do art. 56.º do CSComerciais, no segmento visado pela Recorrente: ofensa dos bons costumes. Desde logo porque já vimos que a destinação ou reconfiguração corretiva dos resultados transitados nada teve de juridicamente desconforme. E se assim é, nunca poderá ocorrer o seu contrário, que é a ilegalidade (nulidade) da deliberação. Depois porque, e seguindo Coutinho de Abreu (ob. cit., p. 473) «não é qualquer ofensa dos bons costumes que provoca a nulidade. Eles têm que ser contrariados pelo “conteúdo” da deliberação, pela deliberação considerada em si mesma, pela regulação por ela estabelecida. Não bastando, pelo menos em regra, que os motivos ou o fim da deliberação sejam contrários aos bons costumes». E Pinto Furtado (Código das Sociedades Comerciais Anotado, 6ª ed., p. 94) esclarece que podemos agrupar a ofensa aos bons costumes na seguinte tipologia: tráfico de bens cuja comercialidade é reprovada pela moral pública; exploração económica eticamente censurável pelo aproveitamento das circunstâncias para se extorquir uma prestação patrimonial indevida ou para se comercializarem bens incomerciáveis; sujeição do semelhante a formas de servidão. Ora, vistas estas diretivas doutrinárias, uma deliberação como a que foi tomada não pode ser havida como tendo conteúdo ofensivo dos bons costumes. A regulação por ela estabelecida é pura e simplesmente indiferente aos bons ou maus costumes. Nem sequer se antolha, perante a objetividade dos factos provados, que tenha havido qualquer prejuízo indevido para a sociedade ou que tenha havido qualquer vantagem indevida para os demais sócios (como se pretendeu no artigo 74º da petição inicial e se sugere na conclusão P.). Aliás, a ocorrerem estas últimas hipóteses estaríamos perante uma deliberação abusiva, sujeita simplesmente a anulabilidade, e nunca a nulidade (v. art. 58.º, n.º 1, alínea b) do CSComerciais). A conclusão a retirar de tudo o que fica exposto é que a deliberação ora em causa - a tomada na assembleia geral de 19 de julho de 2004 - não é juridicamente inexistente nem padece de invalidade por nulidade. O que significa necessariamente, e sem prejuízo para o que acima se referiu relativamente à deliberação de dissolução da Ré, que também as demais deliberações subsequentes ou derivadas a que se reporta a Autora não enfermam de invalidade. Mas mesmo que se visse nessa deliberação de 19 de julho de 2004, ou subjacente a ela, a manifestação de alguma forma de invalidade, a mesma só poderia cair no âmbito da anulabilidade. É o que decorre dos n.ºs 1 e 2 do art. 69.º do CSComerciais, que expressamente estabelece que a violação dos preceitos legais relativos à elaboração do relatório de gestão, das contas do exercício e de demais documentos de prestação de contas torna anuláveis as deliberações tomadas pelos sócios, da mesma forma que está sujeita a anulação a deliberação que aprove contas em si mesmas irregulares. Mas a ser assim, então verificar-se-ia a caducidade do direito de ação (caducidade suscitada pela Ré na sua contestação), na certeza de que a deliberação data de 2004 e a presente ação só foi proposta muitos anos depois. É o que decorre do art. 59º, n.º 2 do CSComerciais. + Por último, importa fazer alusão aos “contratos de suprimento” e de “conta de suprimentos” de que a Recorrente vem falar, e que, segundo diz, teriam sido feitos extinguir ou que teriam sido alterados unilateralmente e sem consentimento dos credores. Ocorre que estamos aqui perante uma temática nova, estranha à causa de pedir e ao pedido tal como fluem da petição inicial. Temática essa que, pois, não foi submetida à apreciação das instâncias e que, de resto, não se revela (não está traduzida) sequer na matéria de facto provada. Sabido como é que os recursos visam reapreciar questões colocadas à decisão do tribunal recorrido (salvo casos de oficiosidade, mas não é disso que aqui tratamos) e não criar decisões sobre matéria nova, segue-se que nada há que apreciar e decidir que tenha a ver com os ditos suprimentos (supostos suprimentos). + Aqui chegados, e apreciadas que estão todas as questões colocadas na presente revista, resta dizer que conquanto a Recorrente tenha alguma razão nas críticas que dirige ao conteúdo do acórdão recorrido, o que é certo é que carece de razão quando sustenta que se verifica a inexistência jurídica ou a nulidade das deliberações em causa. E é essa falta de razão que está ínsita à decisão do tribunal recorrido, na medida em que absolveu a Ré do pedido. O que significa que improcede o recurso.
IV. DECISÃO
Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.
Regime de custas: A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso de revista.
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Sumário
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Lisboa, 17 de dezembro de 2019 José Rainho - Relator Graça Amaral Henrique Araújo |