Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
23592/17.0T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: TRANSPORTE AÉREO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONVENÇÃO DE LUGANO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
UNIÃO EUROPEIA
TRIBUNAIS PORTUGUESES
DIREITO INTERNACIONAL
Data do Acordão: 10/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - Tendo a ré sede em país que não integra a União Europeia, não é aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro.

II - Tendo a ré sede na Suíça, Estado que é parte da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II), é aplicável esta convenção internacional e, uma vez que os autores fundam o seu pedido unicamente no Regulamento n.º 261/2004, tal pedido deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II, afastando-se a aplicação da Convenção de Montreal de 28.05.1999.

III – Também não é aplicável o Regulamento (UE) n° 1215/2012, por a ré não ter domicílio num Estado Membro da União Europeia.

IV – Tal como vem entendido no acórdão recorrido, numa acção em que é pedida indemnização ao abrigo do Regulamento (CE) n° 261/2004, pelo cancelamento de um voo num contrato de transporte aéreo celebrado entre cidadãos não nacionais, residentes no Chile e uma transportadora com sede na Suíça, sendo o local de partida Lisboa e o local de destino S. Paulo, com escala em Zurique, é internacionalmente competente para julgar a causa o Tribunal Português onde foi intentada a acção, por o aeroporto de partida ter conexão com a prestação da obrigação contratual, nos termos do artigo 5º n° 1 da Convenção de Lugano II de 16/09/1988.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - RELATÓRIO 


AA e BB, por si e em representação do seu filho menor CC, todos com nacionalidade estrangeira e residentes no Chile, intentaram contra Swiss International Airlines, Ag, com sede na …, acção declarativa com processo comum, pedindo a condenação da ré a pagar uma indemnização a cada um dos autores no valor de 600,00 euros, no total de 1.800,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral pagamento.

Em síntese, alegaram que adquiriram bilhetes para os voos operados pela ré, com os n°s Lx2…5 e Lx…2, do dia 11/06/2016, com partida de Lisboa, escala em Zurique e chegada a S. Paulo, Brasil no dia 12/06/2016, mas o voo Lx…2 foi cancelado pela ré sem que os autores fossem informados com aviso prévio de duas semanas, tendo acabado por embarcar no voo Lx7…2 para S. Paulo, onde chegaram com mais de 3 horas de atraso em relação à hora inicialmente prevista, pelo que, ao abrigo do artigo 5º n° 1 c) e 7° n° 1 c) do Reg. (CE) n° 261/2004, têm direito a uma indemnização de 600,00 euros cada, num total de 1.800,00 euros, que a ré não pagou.

A ré contestou arguindo a excepção de incompetência internacional, alegando que a causa de pedir da acção consiste no cancelamento do voo Lx…2, com origem em Zurique e destino em S. Paulo, não havendo assim elementos de conexão com Portugal, pois o contrato de transporte foi celebrado com a ré, que tem sede na Suíça, sem intervenção da sua representação portuguesa, os passageiros tem nacionalidade alemã e peruana e residência no Chile e o transporte tinha partida na Suíça e chegada no Brasil, pelo que a acção deveria ter sido proposta na Suíça, local da administração principal da ré e local do aeroporto de partida, ou então no Brasil, local do aeroporto do destino e onde se verificou o alegado incumprimento da obrigação, resultando o julgamento dos factos em Portugal num grave prejuízo para o exercício do direito de defesa da ré e sendo os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer a causa.

Por impugnação, alegou não ser devida a reclamada indemnização, face às circunstâncias e legislação que invocou.

Concluiu, pedindo a absolvição da instância, ou, se assim não se entender, a absolvição do pedido.

Foi proferido despacho que determinou a notificação dos autores para se pronunciarem quanto à matéria da excepção de incompetência internacional e para esclarecerem com quem estabeleceram a relação contratual de transporte aéreo.

Os autores responderam opondo-se à excepção, por ter sido em Lisboa que se iniciou a viagem e onde ocorreram os factos geradores da indemnização. Mais esclareceram que estabeleceram a relação contratual com a Swiss International Airlines, que é a única que opera os voos, já que nenhuma sucursal o faz.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional, fixando o objecto do litígio, os factos assentes e os temas de prova. 

A ré apelou e a Relação, por acórdão de 23.01.2020, julgou improcedente a apelação e confirmou o despacho recorrido.


A ré recorre agora de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

A. O artigo 671.º, n.º 2, al. a) CPC determina que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual são objeto de recurso de revista quando este seja sempre admissível, maxime nos casos previstos no artigo 629.º n.º 2 al. a) do CPC.

B. Deve, portanto, ser admitida a revista ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 2, CPC.

C. A recorrente alegou, em sede de contestação, a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, por preterição das regras de competência internacional vigentes no ordenamento português.

D. O tribunal a quo julgou, em despacho saneador, os argumentos invocados pela ora recorrente totalmente improcedentes.

E. A recorrente interpôs recurso ordinário de apelação do despacho saneador, pugnando que o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado num contrato de transporte aéreo internacional de pessoas é aquele, à escolha do passageiro, em cujo foro se situa a sede da transportadora, o local do estabelecimento da transportadora onde foi celebrado o contrato ou o lugar de destino do passageiro, nos termos previstos na Convenção ed Montreal.

F. Como nenhum desses locais corresponde a Portugal, a recorrente concluiu pela incompetência internacional dos tribunais portugueses; a igual conclusão chegou a recorrente ao aplicar os princípios de Direito Internacional Privado, nomeadamente o princípio da conexão mais estreita.

G. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o acórdão ora recorrido que julgou improcedente o recurso, mantendo, o despacho recorrido.

H. Em particular, e por exclusão de partes, o Tribunal da Relação considerou aplicável aos autos a Convenção de Lugano II, uma vez que o Regulamento (CE) n.º 1215/2012 não é aplicável nas situações em que a demandada tem a sua sede social em Estados terceiros e que a causa de pedir não cabe (no entendimento do tribunal) no âmbito da Convenção de Montreal.

I. Salvo melhor entendimento, entende a recorrente que a Convenção de Montreal contém uma norma especial relativamente à mesma matéria de competência judiciária aplicável a todas as ações por danos decorrentes de transporte aéreo internacional de passageiros, a qual, contrariamente ao entendido pelo Tribunal da Relação, é lei internacional especial face à lei geral da Convenção de Lugano II.

J. De facto, as normas constantes da Convenção de Montreal são normas especiais para a regulação do contrato de transporte aéreo internacional e respetivas ações de indemnização decorrentes do incumprimento desse tipo de contrato – i,e a base contratual que sustenta o direito que os recorridos alegam deter contra a recorrente.

K. Com efeito, prescreve o artigo 29.º da referida Convenção que “No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as acções por danos, qualquer que seja o seu fundamento, quer este resida na presente Convenção, em contrato, em acto ilícito ou em qualquer outra causa, só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção, sem prejuízo da determinação de quais as pessoas com legitimidade para a acção e de quais os direitos que lhes assistem”.

L. Acresce que o n.º 1 do artigo 1.º da Convenção de Montreal, preceitua que a “(...) Convenção aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efetuadas a título oneroso (...)”.

M. Quer isto dizer que todas e quaisquer ações por danos decorrentes do transporte internacional de pessoas, tenham por fundamento a Convenção, ou o Regulamento (CE) n.º 261/2004, apenas podem ser intentadas nas condições e limites de responsabilidade da Convenção de Montreal – incluindo para este efeito as regras sobre a competência judiciaria.

N. Além do mais, como normas especiais, estas normas são de aplicação exclusiva, como resulta do texto da própria Convenção, até porque só assim serviria o seu propósito máximo de uniformização de certas regras no domínio do transporte aéreo internacional!

O. Atendendo a que a Convenção de Montreal dispõe de regras específicas sobre a jurisdição competente para apreciar todas as ações por danos com fundamento no transporte aéreo internacional de passageiros, e não existindo qualquer disposição internacional ou nacional que leve a concluir pela revogação das normas especiais de competência aí previstas, deverá esta regra especial prevalecer sobre as regras gerais aplicáveis às demais matérias civis.

P. Dispõe a Convenção de Montreal, no seu artigo 33.º, que a ação por danos emergentes do contrato de transporte aéreo internacional “deve ser intentada, à escolha do autor, no território de um dos Estados Partes, seja perante o tribunal da sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou do estabelecimento em que tenha sido celebrado o contrato, seja perante o tribunal do local de destino”.

Q. Resulta deste artigo 33.º que foi intenção do legislador subordinar a competência para as ações aí previstas ao (i) local da sede da transportadora, (ii) ao local onde tenha sido celebrado o contrato, ou (iii) ao local de destino.

R. Ora, aplicando esse artigo 33.º ao presente caso, verifica-se que a “sede da transportadora” se situa na Suíça e o “local de destino” no Brasil, sendo assim inequívoco que, nos termos das regras adotadas, são esses os tribunais alternativamente competentes para apreciar o presente litígio.

S. Por tudo quanto foi exposto, a recorrente considera inequívoco que, perante o critério da especialidade, deve prevalecer a norma especial (Convenção de Montreal) face à norma geral (Convenção de Lugano II).

T. Note-se que o facto de a causa de pedir encontrar fundamento no Regulamento (CE) n.º 261/2004 não obsta à aplicação das normas previstas na Convenção de Montreal.

U. Em particular, a compensação prevista no Regulamento (CE) n.º 261/2004 não deixa de ter em vista a compensação de um dano decorrente do incumprimento de um contrato de transporte aéreo internacional.

V. Com efeito, a Convenção de Montreal “…aplica-se a todas as operações de transporte internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias em aeronave efectuadas a título oneroso” (cfr. artigo 1.º, n.º 1), em especial às matérias relativas ao contrato de transporte aéreo internacional que não se encontram previstas no referido Regulamento, como a competência judiciária.

W. Neste sentido, também da regra constante no artigo 29.º da Convenção de Montreal resulta que “No transporte de passageiros, bagagens e mercadorias, as ações por danos, qualquer que seja o seu fundamento, (…), só podem ser intentadas sob reserva das condições e limites de responsabilidade previstos na presente Convenção…”.

X. Assim, atendendo a que a Convenção de Montreal dispõe de regras específicas sobre a jurisdição competente para apreciar ações por danos com fundamento no transporte de passageiros e não existindo qualquer disposição na Convenção de Lugano II que leve a concluir pela revogação das normas especiais de competência previstas na Convenção de Montreal (antes pelo contrário), deverá esta regra especial prevalecer sobre as regras gerais aplicáveis às demais matérias civis.

Y. Sem conceder, ainda que se considere ser aplicável a Convenção de Lugano II e o respetivo artigo que determina como competente o tribunal do local onde a obrigação deveria ter sido cumprida, note-se que nem assim são competentes os Tribunais Portugueses.

Z. Com efeito, não é no momento do cancelamento de um voo que se afere o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do contrato de transporte aéreo internacional, pois a transportadora aérea, perante um cancelamento de um voo, poderá conseguir reencaminhar o passageiro para o destino final contratado sem qualquer atraso ou atraso considerável, seja através de voos próprios alternativos, seja através de voos de outras transportadoras.

AA. Veja-se, neste sentido, a alínea c) do artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 261/2004, onde se enumera como causa de exclusão do direito a indemnização o facto de ao passageiro ter sido oferecido reencaminhamento que lhe permitisse partir até uma hora ou duas horas antes da hora programada, e chegar ao destino final até duas ou quatro horas depois da hora programada de chegada (conforme o caso).

BB. Se ao passageiro de um voo cancelado for oferecido reencaminhamento que lhe permita chegar ao seu destino final com um atraso até quatro horas, o passageiro não terá direito à indemnização prevista no artigo 7.º do Regulamento, pelo que é forçoso concluir que apenas com a chegada do passageiro ao seu destino final, e verificação das horas a que aí chegou, é que se pode verificar a existência, ou não, do direito à compensação prevista no Regulamento.

CC. Apenas no momento em que o passageiro chega ao destino final é que se pode aferir se existiu atraso considerável (superior a quatro horas) na chegada ao destino final, facto necessário à atribuição da compensação prevista no artigo 7.º do Regulamento 261/2004.

DD. Qualquer acórdão interpretativo do Regulamento (CE) n.º 44/2001 – e aplicável à Convenção de Lugano II através do Protocolo n.º 2 relativo à interpretação uniforme da convenção – deve ter-se por acessório na determinação da jurisdição competente.

EE. Esse Protocolo n.º 2 refere que “Na aplicação e na interpretação das disposições da presente convenção os tribunais terão em devida conta os princípios definidos em qualquer disposição pertinente proferida pelos tribunais dos Estados vinculados e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”.

FF “Ter em devida conta” não pode ser interpretado como equivalendo a uma aplicação cega de tais decisões.

GG. Pelo contrário, as decisões devem ser consideradas individualmente, conforme a sua relevância e acuidade para o caso que esteja a ser analisado; o facto de existir uma determinada decisão interpretativa da regra aplicável não alivia o tribunal de proceder a uma apreciação casuística dos casos que lhe são apresentados, determinando, caso a caso e em conformidade com o princípio da conexão mais estreita, qual a jurisdição competente.

HH. A ideia de conexão mais estreita traduz a própria justiça da conexão no seu conjunto e, por conseguinte, deve abranger todos os elementos de valoração, designadamente os princípios e ideias orientadoras da escolha da conexão.

II. Razão pela qual necessariamente se conclui que a Convenção de Lugano II, interpretada através da mais recente jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, assim como em consonância com o princípio da conexão mais estreita, princípio fundamental de Direito Internacional Privado, não atribui competência aos Tribunais Portugueses, mas sim aos Tribunais Suíços – tribunais do local da sede da recorrente – ou Brasileiros – tribunais do local de destino.

JJ. Tudo visto, seria contra todas as regras sobre a competência internacional existentes no ordenamento jurídico português e de direito internacional, que quaisquer direitos emergentes do cumprimento do contrato alegadamente celebrado entre a recorrente e o recorrido fossem apreciados pelos tribunais portugueses, nomeadamente pelo douto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

KK. O Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é, assim como são todos os tribunais do ordenamento jurídico português, nos termos do artigo 96.º do Código de Processo Civil, absolutamente incompetente para conhecer o caso em apreço.


Termina, pedindo que seja revogado o acórdão recorrido na parte em que considerou não verificada a exceção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, ser a ré absolvida da instância.


Os recorridos não contra-alegaram.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


A) Fundamentação de facto

A matéria de facto a considerar é a que consta no relatório do presente acórdão.


B) Fundamentação de direito 


A questão jurídica que nos compete apreciar, à luz das conclusões da minuta recursória consiste em saber se houve violação das regras de competência internacional.


Nuclearmente, está provado que:

- Os autores têm nacionalidade estrangeira e residem no Chile.

- A ré é uma pessoa colectiva com sede na Suíça.

- O pedido consiste numa pretensão indemnizatória fundada nos artigos 5º nº 1 alª c) e 7º n° 1 alª b), do Regulamento (CE) nº 261/2004, de 11 de Fevereiro.

- Os factos que fundam tal pedido são: a aquisição de bilhetes para os voos operados pela ré, com os n°s Lx2…5 e Lx…2, do dia 11/06/2016, com partida de Lisboa, escala em Zurique e chegada a S. Paulo, Brasil no dia 12/06/2016, mas o voo Lx…2 foi cancelado pela ré sem que os autores fossem informados com aviso prévio de duas semanas, tendo acabado por embarcar no voo Lx7…2 para S. Paulo, onde chegaram com mais de 3 horas de atraso em relação à hora inicialmente prevista.


A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA INTERNACIONAL

De acordo com os princípios constitucionais relativos à integração, na ordem jurídica interna, quer das normas constantes de convenções internacionais ratificadas pelo Estado português quer das disposições emanadas das instituições da União Europeia (artigo 8º, nºs 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa), entende-se que, existindo fonte normativa internacional ou supranacional reguladora da competência internacional, é de afastar a aplicação das regras dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil, como se encontra expressamente previsto no artigo 59º do mesmo Código.

Para a apreciação do caso concreto, importa antes de mais determinar a fonte normativa ao abrigo da qual a questão da competência internacional para conhecer da presente lide deve ser equacionada.

Discute-se nos autos a aplicação do Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro ou da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II) ou ainda, como alega a recorrente, a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional celebrada em 28 de Maio de 1999 e aprovada pelo DL 39/2002, de 27 de Novembro.

Quanto ao âmbito espacial de aplicação do Regulamento nº 1215/2012 de 12.12.2012, o nº 1 do artigo 4º estabelece uma regra geral de competência, segundo o qual “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado".

O seu artigo 5º permite que possam ser demandadas nos tribunais de outro Estado Membro "nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo", entre as quais se prevê, no artigo 7º n° 1, sob a epígrafe de "competências especiais", a possibilidade de serem demandadas "em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão".


Dispõe o nº 1 do artigo 6º que:

Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro.”


Por interpretação a contrario desta norma (tal como anteriormente da norma do nº 1 do artigo 4º do Regulamento nº 44/2001), entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da União Europeia.

O artigo 63º nº 1 daquele Regulamento estabelece o seguinte:

1. Para efeitos do presente regulamento, uma sociedade ou outra pessoa coletiva ou associação de pessoas singulares ou coletivas tem domicílio no lugar em que tiver:

a) A sua sede social;

b) A sua administração central; ou

c) O seu estabelecimento principal”.


No caso dos autos, verifica-se que a ré tem a sua sede na Suíça pelo que, de acordo com o disposto no citado artigo 63º nº 1 alínea a), não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da União Europeia.

Deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento nº 1215/2012.

Vejamos agora se é de aplicar ao caso concreto a Convenção de Montreal de 29.05.1999 (“Convenção para a Unificação de certas regras relativas ao Transporte Aéreo Internacional”), celebrada em Montreal a 28 de Maio de 1999, no âmbito da Organização Internacional de Aviação Civil (ICAO).

Foi assinada por Portugal, em 28.05.1999, aprovada e publicada pelo Decreto nº 39/2002, de 27 de Novembro, tendo o instrumento de ratificação sido depositado em 03/03/2003 (cfr. Aviso nº 142/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 07/05/2003).

Foi também assinada pela Comunidade Europeia, em 09.12.1999, e aprovada, em nome desta, pelo Conselho da União Europeia, em 05.04.2001. No que respeita à União Europeia, entrou em vigor em 28.06.2004.

O artigo 19º da referida Convenção, estabelece que “a transportadora é responsável pelo dano resultante de atraso no transporte aéreo de passageiros, bagagens ou mercadorias. Não obstante, a transportadora não será responsável pelo dano resultante de atraso se provar que ela ou os seus trabalhadores ou agentes adoptaram todas as medidas que poderiam razoavelmente ser exigidas para evitar o dano ou que lhes era impossível adoptar tais medidas”.

O artigo 33º nº 1 preceitua que “ a acção por danos deve ser intentada, à escolha do autor, no território de um dos Estados Partes, seja perante o Tribunal da sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou do estabelecimento em tenha sido celebrado o contrato, seja perante o Tribunal do local de destino”.


Ora, os autores baseiam o seu pedido no Regulamento 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004.

De acordo com o Considerando 1 deste Regulamento “A acção da Comunidade no domínio do transporte aéreo deve ter por objectivo garantir um elevado nível de protecção dos passageiros e as exigências dos consumidores em geral”.

O Considerando 6 determina que “A protecção concedida aos passageiros que partem de um aeroporto situado num Estado-Membro deve ser alargada aos que partem de um aeroporto situado num país terceiro com destino num aeroporto situado num Estado-Membro, sempre que o voo for operado por uma transportadora aérea comunitária.”

No Considerando 13 é referido que “Os passageiros cujos voos sejam cancelados deverão poder ser reembolsados do pagamento dos seus bilhetes ou ser reencaminhados em condições satisfatórias e deverão receber assistência adequada enquanto aguardam um voo posterior”.

O artº 1º do Regulamento estabelece, quanto ao respectivo Objecto, que “1-O presente regulamento estabelece, nas condições a seguir especificadas, os direitos mínimos dos passageiros, em caso de: b) Cancelamento de voos.

O artº 3º desse Regulamento, quanto ao respectivo âmbito de aplicação, determina:

“1 - O presente regulamento aplica-se Ao passageiro que parte de um aeroporto localizado no território de um Estado-Membro a que o Tratado se aplica; (…)

“2 - O disposto no nº 1 aplica-se aos passageiros que: a) Tenham uma reserva confirmada para o voo em questão e, salvo no caso de cancelamento a que se refere o artº 5º, se apresentarem a registo; (…)

“5 - O presente regulamento aplica-se a qualquer transportadora aérea operadora que forneça transporte de passageiros abrangidos pelos nºs 1 e 2”.


No seu artigo 5º n° 1 alª c), estabelece o seguinte: "em caso de cancelamento de um voo os passageiros em causa têm direito a (...) receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7º (...)" e no seu artigo 7° n° 1 c), o qual estatui que "em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de (...) 600 euros em todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) e b)".


A previsão dos artigos 5º e 7º do Regulamento n° 261/2004 difere do quadro jurídico previsto nos artigos 19° e 29° da Convenção de Montreal, por força dos quais as indemnizações são sempre compensatórias e não punitivas (exigindo assim a prova de danos efectivos) e onde se atende apenas aos atrasos e não a cancelamentos ou recusa de embarque como no Regulamento n°261/2004.

Sendo assim, a causa de pedir da presente acção integra as referidas disposições legais do Regulamento n° 261/2004 e não a previsão do artigo 19° da Convenção de Montreal, não sendo esta convenção aplicável para a determinação da competência internacional do tribunal na presente causa.

Portanto, destes normativos resulta que o Regulamento em questão - Regulamento (CE) nº 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004 – é aplicável ao caso dos autos pela circunstância de o voo em causa partir de aeroporto (de Lisboa) situado em território de um Estado-Membro, apesar de os autores residirem em país terceiro (Chile) e a ré ter a sua administração principal e sede também em país terceiro (Suíça).

Resta saber se é aplicável a Convenção de Lugano II de 16.09.88, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (assinada pela Comunidade Europeia, Dinamarca, Islândia, Noruega e Suíça, estando transposta para a nossa ordem jurídica pelo decreto n° 52/91 de 30.10.

O artigo 2º nº 1 da mencionada Convenção, prescreve o seguinte:

Sem prejuízo do disposto na presente convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado vinculado pela presente convenção devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.


Há que ter em conta os princípios e normas a que a própria interpretação da Convenção de Lugano II se encontra sujeita, consagrados no Protocolo nº 2 à mesma Convenção. Pela importância decisiva deste Protoloco para a resolução da questão objecto do presente recurso se transcreve o seu conteúdo integral:

“PROTOCOLO N.º 2

Relativo à interpretação uniforme da convenção e ao Comité Permanente

PREÂMBULO

AS ALTAS PARTES CONTRATANTES,

TENDO EM CONTA o artigo 75.º da presente convenção,

CONSIDERANDO a ligação substancial entre a presente convenção, a Convenção de Lugano de 1988 e os instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,

CONSIDERANDO que ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias foi atribuída competência para decidir sobre a interpretação das disposições dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,

CONSIDERANDO que a presente convenção passa a fazer parte integrante das normas comunitárias e que, por conseguinte, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem competência para decidir sobre a interpretação das disposições da presente convenção no que respeita à sua aplicação pelos tribunais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia,

COM PLENO CONHECIMENTO das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre a interpretação dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção até à data da assinatura da mesma, bem como das decisões proferidas pelos tribunais das partes contratantes na Convenção de Lugano de 1988 sobre esta última até à data da assinatura da presente convenção,

CONSIDERANDO que a revisão paralela das Convenções de Lugano de 1988 e de Bruxelas, que levou à redacção de um texto revisto em relação a estas convenções, se baseou principalmente nas decisões acima mencionadas relativas às Convenções de Bruxelas de 1968 e de Lugano de 1988,

CONSIDERANDO que o texto revisto da Convenção de Bruxelas foi incorporado, após a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, no Regulamento (CE) n.º 44/2001,

CONSIDERANDO que o referido texto revisto constituiu igualmente a base para o texto da presente convenção,

DESEJANDO, no pleno respeito pela independência dos tribunais, impedir interpretações divergentes e chegar a uma interpretação tão uniforme quanto possível das disposições da presente convenção e das disposições do Regulamento (CE) n.º 44/2001, cujo conteúdo é em grande medida reproduzido na presente convenção, e dos outros instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção,


ACORDARAM NO SEGUINTE:

Artigo 1.º

1. Na aplicação e na interpretação das disposições da presente convenção, os tribunais terão em devida conta os princípios definidos em qualquer decisão pertinente proferida pelos tribunais dos Estados vinculados pela presente convenção e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativamente à ou às disposições em causa ou a disposições análogas da Convenção de Lugano de 1988 ou dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da convenção. [Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, bem como todas as suas alterações, da Convenção relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinada em Bruxelas, em 27 de Setembro de 1968, e do Protocolo relativo à interpretação desta convenção pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 1971, na redacção que lhes foi dada pelas convenções de adesão à referida convenção e ao referido protocolo pelos Estados aderentes às Comunidades Europeias, bem como do Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinado em Bruxelas em 19 de Outubro de 2005]

2. No que diz respeito aos tribunais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia, a obrigação estabelecida no n.º 1 aplica-se sem prejuízo das suas obrigações em relação ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias resultantes do Tratado que institui a Comunidade Europeia ou do Acordo entre a Comunidade Europeia e o Reino da Dinamarca relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, assinado em Bruxelas em 19 de Outubro de 2005.

Artigo 2.º

Qualquer Estado vinculado pela presente convenção que não seja Estado-Membro da Comunidade Europeia pode apresentar alegações ou observações escritas, em conformidade com o artigo 23.º do Protocolo relativo ao Estatuto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, sempre que um tribunal de um Estado-Membro da Comunidade Europeia apresentar ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial sobre a interpretação da presente convenção ou dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da mesma.

Artigo 3.º

1. A Comissão das Comunidades Europeias instituirá um sistema de intercâmbio de informações relativo a decisões pertinentes proferidas nos termos da presente convenção, bem como nos termos da Convenção de Lugano de 1988 e dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção. O sistema deve ser acessível ao público e incluir as decisões proferidas pelos tribunais de última instância e pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, bem como as decisões de especial relevância transitadas em julgado e proferidas nos termos da presente convenção, da Convenção de Lugano de 1988 e dos instrumentos referidos no n.º 1 do artigo 64.º da presente convenção. As decisões devem ser classificadas e acompanhadas de um resumo. O sistema inclui a transmissão à Comissão, pelas autoridades competentes dos Estados vinculados pela presente convenção, das decisões proferidas pelos tribunais desses Estados tal como acima referido.

2. O Secretário do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias efectuará uma selecção das causas com especial relevância para o correcto funcionamento da convenção e apresentará a jurisprudência seleccionada na reunião de peritos, em conformidade com o artigo 5.º do presente protocolo.

3. Até à instituição do sistema referido no n.º 1 pelas Comunidades Europeias, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias mantém o sistema de intercâmbio de informações estabelecido pelo protocolo n.º 2 da Convenção de Lugano de 1988 relativo a decisões proferidas ao abrigo da presente convenção e da Convenção de Lugano de 1988.

Artigo 4.º

1. É instituído um Comité Permanente, composto por representantes das partes contratantes.

2. A pedido de uma parte contratante, o depositário da presente convenção convoca reuniões do Comité para efeitos de:

— consulta sobre a articulação entre a presente convenção e outros instrumentos internacionais,

— consulta sobre a aplicação do artigo 67.º, designadamente sobre as adesões previstas aos instrumentos relativos a matérias especiais, em conformidade com o n.º 1 do artigo 67.º, e a propostas de legislação em conformidade com o protocolo n.º 3,

— exame da adesão de novos Estados. Em especial, o Comité pode colocar questões aos Estados aderentes, referidos no n.º 1, alínea c), do artigo 70.º, sobre o seu sistema judicial e a aplicação da presente convenção.

O Comité pode igualmente analisar a oportunidade de se proceder a eventuais adaptações da presente convenção tendo em vista a sua aplicação nos Estados aderentes,

— aceitação de novas versões linguísticas que fazem fé, nos termos do n.º 3 do artigo 73.º da presente convenção, e das alterações necessárias ao anexo VIII,

— consulta sobre uma revisão da convenção, nos termos do artigo 76.º,

— consulta sobre alterações aos anexos I a IV e ao anexo VII nos termos do n.º 1 do artigo 77.º,

— adopção de alterações aos anexos V e VI, nos termos do n.º 2 do artigo 77.º,

— retirada das reservas e das declarações efectuadas pelas partes contratantes nos termos do protocolo n.º 1 e de adopção das alterações necessárias ao anexo IX.

3. O Comité estabelece as regras processuais que regulam o seu funcionamento e a tomada de decisões. Essas regras devem prever a possibilidade de efectuar consultas e adoptar decisões mediante procedimento escrito.

Artigo 5.º

1. O depositário pode convocar, sempre que necessário, uma reunião de peritos para trocar opiniões sobre o funcionamento da convenção, em especial sobre o desenvolvimento da jurisprudência e de nova legislação que possam influenciar a aplicação da convenção.

2. Esta reunião é composta por peritos das partes contratantes, dos Estados vinculados pela presente convenção, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e da Associação Europeia de Comércio Livre. As reuniões são abertas à participação de outros peritos cuja presença seja considerada adequada.

3. Eventuais problemas resultantes do funcionamento da convenção podem ser apresentados ao Comité Permanente referido no artigo 4.º do presente protocolo, a fim de serem tomadas as medidas necessárias.”


Tanto do Preâmbulo do Protocolo como das suas regras deriva que as partes contratantes da Convenção de Lugano II reforçaram os meios para alcançar o objectivo de uniformização das decisões em matéria de competência judiciária, assim como de reconhecimento e de execução das decisões judiciais. Não se limitaram a fixar, na Convenção, regras uniformes sobre tais matérias, antes adoptaram, no Protocolo nº 2, um sistema que visa assegurar que a interpretação daquelas regras será realizada, também ela, de modo uniforme. Além disso, reconheceram a função, para esse efeito primacial, do Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr. o Preâmbulo do Protocolo nº 2 e as previsões dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do mesmo Protocolo) e adoptaram, entre outros, um mecanismo que permite a “Qualquer Estado vinculado pela presente convenção que não seja Estado-Membro da Comunidade Europeia” pronunciar-se no âmbito dos processos de reenvio prejudicial suscitados junto do Tribunal de Justiça pelos tribunais dos Estados-Membros (cfr. artigo 2º do Protocolo).


“Assim sendo, é de concluir que, na actividade de interpretação e de aplicação das normas da Convenção de Lugano II, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da União Europeia, vinculado (ao abrigo do nº 2 do artigo 1º do Protocolo nº 2 à mesma Convenção) a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento nº 44/2001, tal como realizada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia; e, em caso de dúvida sobre tal interpretação, a proceder a reenvio prejudicial para o mesmo Tribunal de Justiça”. Neste sentido decidiram o acórdão do STJ de 3.10.2019[1], e o acórdão do TJUE de 9.07.2009, processo n°C-204/08[2], ainda no âmbito do Regulamento (CE) n° 44/2001 de 22/12/2000.


Nesse acórdão, decidiu-se estar o STJ vinculado, ao abrigo do n.º 2 do art. 1.º do Protocolo n.º 2 à Convenção de Lugano II, na actividade de interpretação e aplicação das normas da Convenção, a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento n.º 44/2001, tal como realizada pelo TJUE. Dessa forma seguiu-se a interpretação realizada pelo TJUE no acórdão de 09-07-2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no art. 7.º do Regulamento n.º 261/2004, tendo o TJUE resolvido a questão preliminar da delimitação entre o âmbito material de aplicação do Regulamento n.º 44/2001 e o da Convenção de Montreal, no sentido do afastamento desta última.

Assim, decidiu o STJ que, considerando que a norma do n.º 1 do art. 67.º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais é substancialmente idêntica à norma do n.º 1 do art. 71.º do Regulamento n.º 44/2001, a mesma deve ser interpretada de acordo com a orientação do acórdão do TJUE de 09-07-2009 acima referido, pelo que, em consonância, tendo o pedido do autor sido apresentado com base apenas no Regulamento n.º 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II.

Nos termos do mesmo Acórdão do TJUE, o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n.º 261/2004 é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoas colectivas, e de acordo com o art. 60.º, n.º 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social.

De acordo com a jurisprudência acima referida, no caso concreto dos autos, uma vez que a ré tem sede em país que não integra a União Europeia, não é aplicável o Regulamento nº 1215/2012, de 12 de Dezembro.

Uma vez que a ré tem sede na Suíça, Estado que é parte da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II), é aplicável esta convenção internacional e, seguindo a jurisprudência do TJUE no acórdão de 09-07-2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), uma vez que os autores fundam o seu pedido unicamente no Regulamento n.º 261/2004, tal pedido deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II, afastando-se a aplicação da Convenção de Montreal.

E seguindo a mesma jurisprudência do TJUE no acórdão acima referido, nos termos da Convenção de Lugano II, os autores podiam optar por demandar a ré na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, ou seja, nos tribunais portugueses, como o fizeram, sendo por isso improcedente a excepção de incompetência internacional, como bem decidiram as instâncias.


Conclui-se, assim, pela competência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente acção.


Indicamos, de seguida, pela importância que revestem, o sumário do acórdão do STJ de 03.10.2019 e o dispositivo do Acórdão do TJUE de 9 de Julho de 2009 acima indicados:

“I - Ainda que esteja em causa acórdão da Relação que apreciou decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, o recurso é admissível ao abrigo do art. 671.º, n.º 2, al. a), do CPC; com efeito, tendo como fundamento a violação das regras de competência internacional, trata-se de uma das situações em que o recurso é sempre admissível, independentemente do valor da acção (cfr. art. 629.º, n.º 2, al. a), do CPC), sendo afastado o obstáculo da dupla conforme (cfr. ressalva inicial do n.º 3 do art. 671.º do CPC). 

II - Na resolução da questão da competência internacional, considera-se que o percurso metodológico adequado para o efeito implica: (i) determinar o instrumento normativo pertinente; (ii) identificar a norma ou normas aplicáveis; (iii) interpretar a norma ou normas identificadas. 

III - Tal como entendeu o acórdão recorrido, tendo em conta a data de propositura da presente acção (04-01-2018), deve ponderar-se a aplicabilidade das regras do Regulamento n.º 1215/2012, de 12-12 (Regulamento Bruxelas IBis) ou das regras da Convenção assinada em Lugano a 30-10-2007, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II). 

IV - Por interpretação a contrario do art. 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1215/2012, entende-se comummente que o critério geral para definir o âmbito espacial de aplicação daquele regime de direito europeu é o de que o demandado tenha domicílio no território de um dos Estados-Membros da UE. No caso dos autos, verifica-se ter a ré sede na Suíça, pelo que – de acordo com o disposto no art. 63.º, n.º 1, al. a), do Regulamento n.º 1215/2012 – não se encontra domiciliada no território de um Estado-Membro da UE; deste modo, por falta de inserção no respectivo âmbito espacial de aplicação, é de concluir pelo afastamento do regime do Regulamento n.º 1215/2012. 

V - No que respeita ao âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II, convenção que tem como objectivo primacial estender às partes contratantes os princípios do Regulamento n.º 44/2001 (antecessor do Regulamento n.º 1215/2012), nela se adopta (art. 4.º, n.º 1) uma regra equivalente à do art. 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 1215/2012. Deste modo, sendo o âmbito espacial de aplicação da Convenção de Lugano II definido em razão de o demandado ter domicílio no território de uma das partes contratantes e encontrando-se a ré domiciliada no território da Suíça, Estado que é parte contratante da Convenção de Lugano II, confirma-se a inserção da presente lide no respectivo âmbito espacial de aplicação. 

VI - No presente recurso suscitam-se dúvidas sobre a inserção do caso sub judice no âmbito material de aplicação da Convenção de Lugano II, pretendendo a recorrente que, ao abrigo da previsão do n.º 1 do art. 67.º da mesma Convenção, seja antes aplicável a Convenção de Montreal – Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional que contém regras próprias de competência internacional (art. 33.º), que conduzem a um resultado distinto do que resulta da aplicação das normas da Convenção de Lugano II. 

VII - Ora, na actividade de interpretação e aplicação das normas da Convenção de Lugano II, encontra-se este Supremo Tribunal vinculado, ao abrigo do n.º 2 do art. 1.º do Protocolo n.º 2 à mesma Convenção, a respeitar a interpretação das normas equivalentes do Regulamento n.º 44/2001, tal como realizada pelo TJUE. 

VIII - No acórdão de 09-07-2009, proferido no Processo C-204/08 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), relativo a um caso idêntico ao caso dos autos, em que estava em causa uma acção para, numa situação de “cancelamento” de voo, exercer o direito de indemnização previsto no art. 7.º do Regulamento n.º 261/2004, o TJUE resolveu a questão preliminar da delimitação entre o âmbito material de aplicação do Regulamento n.º 44/2001 e o da Convenção de Montreal, no sentido do afastamento desta última. 

IX - Assim, ainda que não se ignorem as objecções críticas feitas a esta orientação jurisprudencial do TJUE, sobretudo em razão do princípio da exclusividade ínsito no art. 29.º da Convenção de Montreal, considera-se que a norma do n.º 1 do art. 67.º da Convenção de Lugano II que ressalva as convenções especiais, sendo substancialmente idêntica à norma do n.º 1 do art. 71.º do Regulamento n.º 44/2001, deve ser interpretada de acordo com a orientação do acórdão do TJUE referido em VIII; em consonância, tendo o pedido do autor sido apresentado com base apenas no Regulamento n.º 261/2004, deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II. 

X - Estando em causa uma acção de responsabilidade por incumprimento de contrato de transporte aéreo, da aplicação conjugada das normas do art. 5.º, n.º 1, da Convenção de Lugano II, resulta a necessidade de determinar qual é o “lugar de cumprimento da obrigação do transportador” (al. a)), sendo que – uma vez que o contrato de transporte se integra na categoria mais ampla do contrato de prestação de serviços – esse lugar será “o lugar num Estado vinculado pela presente convenção onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados” (al. b), segundo travessão). 

XI - Também quanto às dúvidas interpretativas das normas indicadas em X – e em razão da previsão do n.º 2, do art. 1.º, do Protoloco n.º 2 à Convenção de Lugano II –, se encontra este Supremo Tribunal, enquanto tribunal de um Estado-Membro da UE, vinculado a respeitar a interpretação que o TJUE fez de normas do Regulamento n.º 44/2001, desde que substancialmente equivalentes a normas daquela Convenção. 

XII - Tais dúvidas foram apreciadas e decididas pelo TJUE a respeito das normas equivalentes do Regulamento n.º 44/2001, no referido acórdão de 09-07-2009 (Peter Rehder contra Air Baltic Corporation), em sentido que, nos termos do Protocolo n.º 2 à Convenção, é aplicável à interpretação das normas da Convenção, a saber: o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado em contrato de transporte aéreo e no Regulamento n.º 261/2004 é aquele, à escolha do demandante, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do voo, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato; sem prejuízo da possibilidade de o demandante se dirigir ao tribunal do lugar do domicílio do demandado, que, no caso de pessoas colectivas, e de acordo com o art. 60.º, n.º 1, da Convenção de Lugano II, é o lugar da sede social, ou da administração central ou do estabelecimento social. 

XIII - Deste modo, no caso dos autos, para exercer o direito de indemnização previsto no art. 7.º do Regulamento n.º 261/2004, o autor podia optar por demandar a ré: (i) na jurisdição do lugar de partida do voo cancelado, a jurisdição portuguesa; (ii) ou na jurisdição do lugar do destino do mesmo voo, a jurisdição suíça, que, simultaneamente, é a jurisdição do lugar do domicilio da demandada”. 


“Dispositivo

O artigo 5.º, n.º 1, alínea b), segundo travessão, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de transporte aéreo de pessoas de um Estado Membro com destino a outro Estado Membro, realizado com base num contrato celebrado com uma única companhia aérea que é a transportadora operadora, o tribunal competente para conhecer de um pedido de indemnização baseado nesse contrato de transporte e no Regulamento (CE) n.º 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos e que revoga o Regulamento (CEE) n.º 295/91, é aquele, à escolha do requerente, em cujo foro se situa o lugar de partida ou o lugar de chegada do avião, tal como esses lugares são estipulados no referido contrato”.


Nesta conformidade, improcedem as conclusões da recorrente.


SUMÁRIO

(i) - Tendo a ré sede em país que não integra a União Europeia, não é aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de Dezembro.

(ii) - Tendo a ré sede na Suíça, Estado que é parte da Convenção assinada em Lugano a 30 de Outubro de 2007, entre os Estados da União Europeia, a Suíça, a Noruega e a Islândia, relativa à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial” (Convenção de Lugano II), é aplicável esta convenção internacional e, uma vez que os autores fundam o seu pedido unicamente no Regulamento n.º 261/2004, tal pedido deve ser examinado à luz da Convenção de Lugano II, afastando-se a aplicação da Convenção de Montreal de 28.05.1999.

(iii) – Também não é aplicável o Regulamento (UE) n° 1215/2012, por a ré não ter domicílio num Estado Membro da União Europeia.

(iv) – Tal como vem entendido no acórdão recorrido, numa acção em que é pedida indemnização ao abrigo do Regulamento (CE) n° 261/2004, pelo cancelamento de um voo num contrato de transporte aéreo celebrado entre cidadãos não nacionais, residentes no Chile e uma transportadora com sede na Suíça, sendo o local de partida Lisboa e o local de destino S. Paulo, com escala em Zurique, é internacionalmente competente para julgar a causa o Tribunal Português onde foi intentada a acção, por o aeroporto de partida ter conexão com a prestação da obrigação contratual, nos termos do artigo 5º n° 1 da Convenção de Lugano II de 16/09/1988.


III - DECISÃO

Atento o exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 29.10.2020


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Ferreira Lopes

________

[1] Procº nº 268/18.7T8LSB-A-L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[2]http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=76299&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=835685