Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | DESTITUIÇÃO DE GERENTE JUSTA CAUSA PRESSUPOSTOS DEVER DE DILIGÊNCIA DEVER DE LEALDADE BOA FÉ SOCIEDADE POR QUOTAS INQUÉRITO JUDICIAL PROCESSO ESPECIAL | ||
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Data do Acordão: | 02/22/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
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Sumário : | I - A destituição de funções de gerência pressupõe a demonstração da justa causa traduzida na violação dos deveres cometidos ao gerente, que não se basta com a simples violação de algum deles, exigindo a lei que se trate de uma violação grave que comprometa a confiança, desaconselhando ou impedindo a manutenção do vínculo contratual. II - Não definindo a lei o conceito de justa causa, cabe à jurisprudência e à doutrina a sua concretização e pode ser reconduzido às situações em que, segundo a boa-fé, ocorra uma quebra de confiança por forma a que não seja exigível à sociedade a continuidade da relação contratual com o seu gerente. III - O dever de cuidado a que o gerente da sociedade se encontra vinculado consiste na obrigação de cumprir com diligência todos os encargos decorrentes do exercício da respectiva função, nele cabendo o de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade, traduzido na vertente do dever de agir de acordo com uma adequada gestão visando o interesse social. IV - O dever de lealdade adstrito ao gerente impõe-lhe uma exigência comportamental decorrente do princípio geral da boa-fé, acrescida em função da relação fiduciária que estabelece com a sociedade gerando o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade. V - É insuficiente para concluir pela violação grave dos deveres de cuidado e lealdade do gerente ter sido apurado que o gerente nada fez perante a falta de continuidade do pagamento à sociedade requerida de 1% da facturação por parte de outra sociedade levado a cabo no âmbito de um acordo de exploração de uma marca criada por um dos sócios daquela. Para tal efeito, não obstante resultar do processo que a falta comprometia a sustentabilidade financeira da sociedade, mostrava-se indispensável a demonstração do efectivo incumprimento do referido acordo de exploração da marca e dos contornos do contrato. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I – Relatório
1. AA, veio instaurar contra “QUESTSOURCE, LDA.” e BB, acção especial de Inquérito Judicial pedindo que sejam condenados a prestar as seguintes informações: a) Os resultados da empresa até 30/09/2018, com a emissão de balancete certificado pelo ... da empresa. b) Relação, discriminada, do passivo da sociedade, até 30/09/2018. c) Grau de cumprimento e/ou incumprimento de cada um dos passivos. d) Mapa de responsabilidades bancárias da sociedade até 30/09/2018. e) Grau de cumprimento de cada um dos eventuais financiamentos contraídos e suas garantias. h) Rentabilização da marca ... e documento comprovativo de tal negócio. i) Certificação dos suprimentos, prestações suplementares de capital e prestações acessórias porventura existentes na sociedade, com cópia do seu documento de suporte. j) Listagem dos inventários dos últimos três exercícios, incluindo os financeiros, até 30/09/2018. k) Listagem de acções judiciais apresentada pela empresa contra terceiros e de terceiros contra a empresa e estado de cada uma delas. l) Seja informado das diligências adoptadas pela gerência da empresa face ao incumprimento do acordo de parceria celebrado com a sociedade P... Unipessoal, Lda Fundamentou a sua pretensão invocando ser sócio da Ré (com uma quota no valor de 2 500,00€, juntamente com o 2.º Requerido, com uma quota de igual valor, sócio e gerente desde 2006) e ter solicitado (em 17-10-2018) a prestação de tais informações, que lhe foram negadas. - ter sido alterado ou incumprido o acordo de exploração da marca ..., firmado com a sociedade P... Unipessoal, Lda, controlada pelo Requerido, determinando que esta tenha deixado de remeter à Requerida os pagamentos nos termos firmados; - ter saído do capital da Sociedade Requerida, sem qualquer explicação ou fundamento, o valor de 350 000,00€.
2. Os Requeridos apresentaram contestação alegando que o Requerente teve sempre acesso aos elementos contabilísticos da empresa, junto do ... certificado e seu amigo pessoal. Referiram também ter o Requerente, desde meados de 2017, criado uma empresa concorrente da “P... Unipessoal, Lda.” que nesse contexto deixou de utilizar a marca ... e, por isso, perdeu a sua fonte exclusiva de rendimento, ficando inactiva. Concluem no sentido da injustificação do inquérito.
6. Foi então proferida decisão que julgou concluído o inquérito e procedente, por provado, o pedido de destituição das funções de gerente na sociedade “Questsource, Lda.” do réu BB, formulado pelo autor.
7. A referida decisão foi objecto de rectificação com o seguinte aditamento: “Uma vez que o Sr. Perito não aceitou a sua nomeação como gerente da insolvente, nomeia-se para o exercício de tais funções o Sr. Dr. CC, Administrador Judicial (…).”
8. O Requerido interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação ... proferido acórdão que julgou a apelação procedente e revogou a decisão de destituição das funções de BB como gerente na sociedade Requerida.
9.Inconformado vem agora o Requerente interpor revista, concluindo nas suas alegações (transcrição): “I. O aqui Recorrente intentou contra “Questsource, Lda.” e BB, ora Recorrido, ação especial de Inquérito Judicial. II. A Douta sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância julgou concluído o inquérito judicial, julgando procedente, por provado, o pedido de destituição das funções de gerente na sociedade “Questsource, Lda.”, de BB. III. Tendo o Tribunal da Relação ... revogado tal decisão. IV. Ora, entende o aqui Recorrente que o Douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ... viola a lei substantiva, mormente o artigo 64º, n.º 1, al. a) do CSC. V. O Tribunal a quo, no Douto acórdão proferido afirma que “não se provou que a sociedade “P..., Lda” tivesse continuado a utilizar a marca ... nem sequer que esta sociedade tivesse qualquer obrigação contratual de utilizar, ao longo dos anos, tal marca criada pelos sócios da 1ª Requerida”. VI. E que, assim sendo, não se pode dar como certo ou presumível que a “P..., Lda.” tenha incumprido com o contrato de exploração da marca ... nem sequer que esta sociedade tivesse qualquer obrigação contratual de utilizar tal marca. VII. Ora, entende o aqui Recorrente que tal conclusão se mostra totalmente contrária àquelas que se podem extrair do relatório pericial junto aos autos. VIII. Com efeito, no dito relatório consta que: “Na altura, acordaram ambos os sócios que seria utilizada a marca ... – criada por ambos e em nome da Questsource – pela sociedade P.A. e, em contrapartida, esta pagaria o valor correspondente a 1% do seu volume de faturação, que se destinava a cobrir os custos da Questsource, nos quais se incluíam os vencimentos dos sócios e tudo o mais que se destinasse aos sócios e às demais despesas da sociedade”. IX.E que “Através dos elementos constantes no processo, posso ainda aferir que no ano 2017 a Questsource, faturou à empresa P..., Lda, NIF ... o valor de 259.153,22€, relativo a 1% de comissões sobre vendas.” X. Ou seja, no ano de 2017, a Questsource tinha a receber, da sociedade P... Unipessoal, Lda valores sob o volume de faturação pelo uso da marca ..., tendo em conta a fatura emitida. XI. E por isso deu o Tribunal de 1ª instância como provado o facto 7 da Douta sentença proferida. E tendo em conta a prova pericial aferida nos autos, inexistem razões para entendimento diverso. XIII. Por outro lado, afirma o Douto acórdão que qualquer eventual violação dos deveres legais sempre teria de ocorrer exclusivamente em sede de violação dos deveres de lealdade. XIV. Mal andou o Tribunal no que toca à interpretação e aplicação erradas que fez da norma do artigo 64º, al. a) do CSC, violando crassamente o disposto Código das Sociedades Comerciais. XV. Afigura-se claro ao Recorrente que o facto de a sociedade não ter feito quaisquer diligências no sentido de sanar o incumprimento do acordo celebrado, configura uma situação de incumprimento do dever de cuidado, mormente na ausência de diligência de um gestor criterioso e ordenado. XVI. E maior gravidade reveste essa violação quando o ora Recorrido tinha a perfeita consciência da verificação do incumprimento em discussão e, enquanto gestor da sociedade “Questsource, Lda.”, nada fez, simplesmente ignorando o dever de cuidado que lhe é legalmente imposto. XVII. Mas não só violou o aqui Recorrido o dever de cuidado previsto no alínea a) do artigo 64º do CSC, mas também o dever de lealdade, previsto na alínea b) do mesmo normativo. XVIII. Do anexo 8 do Relatório Pericial junto aos autos resulta claro que o Recorrido, para além de não ter envidado qualquer esforço ou iniciativa no sentido de ver cumprido o acordo celebrado entre a “Questsource” e a “P..., Lda.”, também o fez para seu único e exclusivo proveito. XIX. Pelo que não poderão existir quanto à verificação de justa causa para a destituição como gerente do aqui Recorrido. XX. Entendimento acolhido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão datado de 09-03-2017, proferido no âmbito do processo n.º 470-12.4TYLSB.L1-6. XXI. Nos termos do número 6 do art.º 257.º do CSC e tendo em conta o supra exposto, ficou demonstrado que o aqui Recorrido não atuou, perante a “Questsource, Lda.”, com todos os deveres de gestão criteriosa a que estava adstrito. XXII. Seguindo, também, este entendimento o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26/02/2019. XXIII. Pelo que sempre terá de ser considerada com justa causa a destituição do gerente BB.”.
10. Não foram apresentadas contra-alegações.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
1. Os factos provados As ocorrências processuais indicadas no Relatório supra, designadamente a factualidade assinalada no ponto I -4 constituíram a base factual da decisão recorrida, constituem as realidades fácticas a atender neste âmbito.
2. O direito No requerimento inicial do inquérito judicial o Requerente, embora tenha invocado o cometimento de irregularidades praticadas pelo Requerido enquanto gerente da Sociedade Requerida, não requereu que se procedesse à destituição do mesmo, pedido que apenas formulou quando notificado do relatório pericial, nos termos e para os efeitos do n.º2 do artigo 1051.º do CPC. O acórdão recorrido, em desacordo com a decisão proferida em 1.ª instância, considerou que a matéria de facto apurada se mostrava insuficiente para fundamentar a destituição do Requerido do cargo de gerente da sociedade Requerida. Inconformado, o Recorrente, sustentado no entendimento da sentença, defende que os factos apurados integram justa causa para a destituição do Requerido como gerente uma vez que denunciam a violação dos deveres de cuidado e de lealdade a que o mesmo se encontrava adstrito (cfr. artigo 64.º, alíneas a) e b) do Código das Sociedades Comerciais[2]). Invoca para o efeito o anexo 8 do Relatório Pericial de onde retira a conclusão de que o Requerido, para além de não ter envidado qualquer esforço ou iniciativa no sentido de ver cumprido o acordo celebrado entre a “Questsource” e a “P..., Lda.”, também o fez para seu único e exclusivo proveito. Conclui que a decisão do tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do artigo 64º, n.º 1, alíneas a) e b), do CSC, uma vez que, em seu entender, o facto de a sociedade não ter feito quaisquer diligências no sentido de sanar o incumprimento do acordo celebrado, configura uma situação de incumprimento do dever de cuidado, mormente na ausência de diligência de um gestor criterioso e ordenado Não podemos concordar com o Recorrente, conforme passaremos a justificar, pois que o mesmo assenta num pressuposto – dever de agir da sociedade Requerida através do seu gerente perante incumprimento contratual por parte da P... Unipessoal, Lda. - que carecia de sustentação fáctica (alegada e provada). Vejamos. O tribunal de 1.ª instância decidiu no sentido da destituição do Requerido da gerência da sociedade Requerida[3] assente na seguinte realidade fáctica, que, em seu entender, assumia gravidade necessária para a pretendida destituição, porquanto revelava gestão danosa para a Requerida: - a marca ... foi criada pelos sócios da Requerida; - por acordo de ambos os sócios, tal marca seria usada pela sociedade “P... Unipessoal, Lda” e pagaria à Sociedade Requerida 1% do seu volume de facturação; - tal facturação atingiu, no ano de 2017, o valor de 259 153,22€; - não se provou qualquer outra facturação da sociedade; - a sociedade Requerida não fez quaisquer diligências no sentido de sanar eventual incumprimento do referido acordo. Concluiu, por isso, que “A quebra do acordo que permitiu à requerida no ano de 2017 uma facturação na ordem dos de 259 153,22€, sem que o gerente reagisse, demonstra que o mesmo não agiu com a diligência que se impunha. Aliás, em face das ligações pessoais do gerente à sociedade P... Unipessoal, Ld.ª facilmente se percebe que o mesmo teve em vista beneficiar a outra sociedade”. O acórdão recorrido, ao invés, qualificando o contrato estabelecido entre a sociedade e o gerente como contrato atípico, submetido às regras próprias do tipo societário em causa previstas no CSC, às regras dos outros tipos societários previstas no mesmo Código e às previsíveis convenções das partes, introduzidas ao abrigo da liberdade contratual, revogou tal decisão rejeitando o entendimento da 1.ª instância considerando inexistirem elementos de facto que permitissem concluir pela existência de justa causa de destituição. Alicerçou-se na seguinte ordem de fundamentos: - a justa causa de destituição do gerente, que pressupõe a violação grave dos respectivos deveres e/ou a incapacidade para o exercício normal das respectivas funções, não exige que a respectiva conduta seja culposa; - a conduta (objectivamente ilícita) justificativa da destituição do gerente da sociedade pode consubstanciar uma violação quer dos deveres específicos a que o mesmo se encontra adstrito[4], quer dos deveres legais gerais ou convencionais que são inerentes ao exercício dessas funções (deveres fundamentais de gestão aludidos no artigo 64.º do CSC, reconduzidos aos deveres de cuidado e de deveres de lealdade na prossecução dos interesses da sociedade); - A indefinição da matéria factual quanto aos termos do acordo celebrado entre a sociedade Requerida e a P... Unipessoal, Lda para utilização e exploração da marca ... criada por ambos os sócios, impede que se possa concluir que a falta de pagamento de 1% do volume de facturação consubstanciasse uma situação de incumprimento do contrato de exploração de marca por parte desta última; nessa medida, que impusesse uma reacção do Requerido enquanto gerente da sociedade Requerida; - sendo o gerente da requerida sócio e gerente da sociedade P... Unipessoal, Lda, a inércia perante um incumprimento do acordo nunca poderia assumir uma questão de violação do dever de diligência, mas uma questão de violação do dever de lealdade e da obrigação de não concorrência, que, igualmente, não se encontra factualmente sustentada por não se encontrar demonstrado que tenha ocorrido uma situação de incumprimento do contrato de exploração, pois só assim poderia concluir-se pelo assumir de uma conduta em benefício de outra sociedade, adoptando comportamento contrário aos interesses societários da 1.ª Requerida. Refere o aresto: “No caso dos autos, discute-se precisamente a existência ou não de uma situação de “justa causa” de destituição do aqui Recorrente. Nos termos do n.º 6 deste art.º 257.º do CSC “Constituem justa causa de destituição, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções.” Refere Coutinho de Abreu que é justa causa “(…) a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.” É essencial que a violação dos deveres de gerente seja grave, no sentido de – usando as palavras de Joaquim Tavares da Fonseca - “(…) séria, apreciável, significativa e ou especialmente censurável, de modo a extinguir a confiança essencial à subsistência da relação contratual. A lesão deverá também causar, ou ser apta a provocar, prejuízos relevantes.”. Por outro lado, discute-se na doutrina e na jurisprudência se a conduta justificativa de “justa causa” necessita ou não de ser culposa. Em nosso entendimento, o elemento literal da lei é claro na opção de não fazer qualquer alusão a um elemento subjectivo. Além disso, é manifesto que, a par com a primeira situação tipificada, a lei consagra uma segunda situação justificativa de justa causa exclusivamente assente em razões objectivas. Entendemos, assim, estarmos em face de um tipo exclusivamente baseado na ilicitude, não sendo exigível a existência de um comportamento culposo do gerente. (…) Não se equacionando nos autos a incapacidade para o exercício das funções, a questão central a dilucidar no presente recurso prende-se com a definição dos deveres do gerente e, por referência a estes, com a densificação da cláusula geral “violação grave”. Os deveres cuja violação é passível de constituir justa causa de destituição podem ser deveres legais específicos, deveres legais gerais ou convencionais. (…) Todas as demais actuações ou omissões concretas dos gerentes estão sujeitas à regulamentação geral do art.º 64.º do CSC, o qual prescreve um conjunto de “deveres fundamentais de gestão” que os gerentes devem observar: a) Deveres de cuidado, relevando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado e; b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores. A decisão recorrida assenta cumulativamente na violação destes dois deveres gerais. (…) O dever de cuidado, com origem no duty of care do direito anglo-saxónico consiste na “obrigação de os administradores cumprirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com um cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias similares”13. Tal como explica Coutinho de Abreu, desdobra-se em a) dever de controlo ou vigilância organizativo-funcional; b) dever de actuação de procedimentalmente correcto (para a tomada de decisões) e c) dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis. Todos estes deveres são, no entanto, obrigações de meios (no sentido de best practices). Finalmente, o padrão de “diligência de um gestor criterioso e ordenado” deve ser aferido, não por recurso ao conceito civilista do bonus pater familia, mas por parâmetros mais exigentes, por elevados padrões de pois que o mesmo, a quem se impunha a demon diligência. O critério a atender será o do “bom gerente”, o daquele que age de acordo com os seus deveres e de forma diligente, legal e tendo sempre em vista o concreto interesse da sociedade. Descendo ao caso concreto, resulta da Certidão Permanente de fls. 7 e ss. que a 1.ª Requerida tem por objecto social “Importação, exportação, comércio por grosso e a retalho e agente do comércio por grosso e a retalho de têxteis, calçado, vestuário, acessórios de moda e artigos de couro”, tendo como sócios respectivamente o Requerente e o 2.º Requerido. As partes, por outro lado, estão de acordo em que a sociedade “P..., Lda, s... unipessoal, Lda.” era detida exclusivamente pelo 2.º Requerido. Está dado como provado que, em contrapartida da utilização da marca ... criada por ambos os sócios, em nome da sociedade requerida, a sociedade “P... Unipessoal, Ld.ª” pagaria à sociedade requerida, 1% do seu volume de facturação. Bem como que, em concretização deste acordo, no ano de 2017 a Questsource facturou à P... unipessoal Ld.ª o valor de 259 153,22€. O Requerente alegou no requerimento inicial que foi alterado ou incumprido o contrato de exploração da marca ..., existente com a “P..., Lda.”, sociedade esta detida e controlado pelo 2.º Requerido. Acrescenta que o 2.º Requerido continua a explorar a mesma, sem que remeta à 1.ª Requerida o respectivo e atempado pagamento. A este propósito apenas se deu como provado que a sociedade requerida não fez quaisquer diligências no sentido de sanar eventual incumprimento do acordo de parceria celebrado com a sociedade P..., Lda” Ou seja, não se provou que a sociedade “P..., Lda” tivesse continuado a utilizar a marca ... nem sequer que esta sociedade tivesse qualquer obrigação contratual de utilizar, ao longo dos anos, tal marca criada pelos sócios da 1.ª Requerida. Assim sendo, não vemos como se pode equacionar como certo, ou sequer como presumido, que a “P..., Lda.” tenha incumprido o dito contrato de exploração da marca ..., designadamente deixando de pagar à 1.ª Requerida a percentagem acordada de 1 % da respectiva facturação. Aliás, em face desta indefinição factual, e apesar de igualmente não se ter considerado provado, é equacionável como possível e, principalmente, legítimo e legal, que - nos termos alegados pelo Recorrente – a “P..., Lda.” tenha deixado de utilizar a marca ..., há mais de 02 anos. Finalmente, atendendo a que as partes estão de acordo em que a dita sociedade “P..., Lda” era detida exclusivamente pelo Recorrente, nunca teria qualquer razão de ser considerar violação do dever de cuidado como gerente da 1.ª Requerida, na sub-modalidade de controlo ou vigilância oraganizativo-funcional, a omissão de este ter empreendido qualquer diligência junto daquela sociedade para apurar da existência do referido eventual incumprimento. Dito de outra forma, em face da especial posição do Recorrente na sociedade “P..., Lda”, este tinha necessariamente conhecimento da sua actuação empresarial e, em concreto, do cumprimento ou incumprimento da parceria em referência nos autos. Consequentemente, qualquer eventual violação dos deveres legais de gerente teria de ocorrer exclusivamente em sede de violação dos deveres de lealdade, na sub-modalidade de obrigação de não concorrência. Neste âmbito, a decisão recorrida entendeu que, em face das ligações pessoais do gerente à sociedade “P... Unipessoal, Ld.ª”, facilmente se percebe que o mesmo teve em vista beneficiar a outra sociedade. O dever de lealdade preenche uma importante função do contrato de sociedade, através do qual o sócio e, com particular ênfase, o sócio-gerente, está impedido de adoptar comportamentos contrários ao interesse societário. Tem a sua origem nos fiduciary duties do direito anglo-saxónico e, seguindo os ensinamentos de Pereira de Almeida15 pode decompor-se na: a) obrigação de não concorrência (competition with the corporation); b) obrigação de não apropriação de informações internas ou negócios com a sociedade (inside trading); c) obrigação de transparência, mantendo informados ou outros administradores, sócios e público, de todos os factos relevantes (duty of disclosure). Refere-se, a este propósito, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/14, tendo como Relator Fonseca Ramos16 que “O dever de lealdade é indissociável do princípio de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. O acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma actividade que vise lucros. A eticização do direito e da vida societária impõem uma actuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela actuação do ente societário através da actuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela actuação da sociedade, o que convoca os princípios da actuação de boa fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito. O dever de lealdade está associado à obrigação de não concorrência, à obrigação de não aproveitar em benefício próprio possíveis oportunidades de negócio, a actuação de boa-fé ao respeito pelo princípio da confiança e à omissão de procedimentos que provoquem conflitos de interesses.” No caso dos autos, as considerações acima feitas a respeito da apreciação da violação dos deveres de cuidado revelam, por si só, a não verificação igualmente deste dever específico do Recorrente, enquanto gerente. Desde logo, face às alegações do próprio Recorrido, deve presumir-se que o Recorrente/gerente estava autorizado a ser simultaneamente gerente da sociedade “P..., Lda”, arredando-se a eventual violação da disposição legal do art.º 254.º do CSC. Independentemente disso, e principalmente, os factos considerados pelo tribunal recorrido não permitem a construção de uma situação de conflito de interesses, resolvido pelo Recorrente em prejuízo dos interesses societários da 1.ª Requerida. Como já ficou referido acima, não se provaram os específicos contornos do contrato de exploração da marca ... celebrado entre os sócios da 1.ª Requerida e a “P..., Lda.” Não se provou que a sociedade “P..., Lda” tivesse continuado a utilizar a marca ... nem sequer que esta sociedade tivesse qualquer obrigação contratual de utilizar, ao longo dos anos, tal marca criada pelos sócios da 1.ª Requerida. Consequentemente, não havendo factualidade nos autos apta a concluir pelo incumprimento deste contrato por parte da “P..., Lda.”, entendemos não estarmos habilitados a entender que o Recorrente tivesse actuado tendo em vista beneficiar a outra sociedade, adoptando comportamento contrário aos interesses societários da 1.ª Requerida, designadamente violando o dever de lealdade e, em concreto, a obrigação de não concorrência.” – (negrito nosso) A transcrição de parte da decisão recorrida, ainda que extensa, justifica-se por forma a evidenciar que a fundamentação tecida pelo acórdão recorrido mostra-se consistente, acertada e, nessa medida, merece a nossa concordância.
1. A destituição de funções de gerência visada pressupõe a demonstração da justa causa, conforme decorre do artigo 257.º, n.º4, do CSC, justa causa que, de acordo com o n.º6 do mesmo preceito legal, ocorre nas situações de “a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções.”. Não definindo a lei o conceito de justa causa, cabe à jurisprudência e à doutrina a sua concretização, vindo a ser reconduzida neste tribunal às situações em que, segundo a boa-fé, ocorra uma quebra de confiança por forma a que não seja exigível à sociedade a continuidade da relação contratual com o seu gerente[5]. No caso, o comportamento imputado ao Requerido não se encontra perspectivado em termos de incapacidade para o exercício das funções de gerência, mas no âmbito do incumprimento dos deveres inerentes ao exercício dessas funções expressos no artigo 64.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CSC: os deveres de cuidado e de lealdade. Todavia, para que ocorra justa causa de destituição, não basta a simples violação de algum desses deveres pois que a lei exige que se trate de uma violação grave que comprometa a confiança no gerente, desaconselhando ou impedindo a manutenção do vínculo contratual. O dever de cuidado a que o gerente da sociedade se encontra vinculado consiste na obrigação de cumprir com diligência todos os encargos decorrentes do exercício da respectiva função, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o cuidado que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares[6]. Na sua concretização este dever assume várias manifestações ou subdeveres, como sejam, entre outros, o de controlar, ou vigiar, a organização e a condução da actividade da sociedade, as suas políticas, práticas, etc; no (ii) dever de se informar e de realizar uma investigação sobre a atendibilidade das informações que são adquiridas e que podem ser causa de danos[7], os quais podem conjugar-se e absorverem-se enquanto “subdever (global e uno) de controlar e vigiar a evolução económico-financeira da sociedade”[8]. Cremos ter sido nesta perspectiva do dever de cuidado que a decisão de 1.ª instância analisou o comportamento do Requerido ao lhe atribuir a violação de um dever de agir perante a falta de continuidade do pagamento de 1% da facturação por parte da P... Unipessoal, Lda. Todavia, os factos provados não permitem assacar ao Requerido uma efectiva violação do dever de cuidado na vertente do dever de agir de acordo com uma adequada gestão visando o interesse social. Para tal seria necessário que tivessem sido apurados os concretos termos do acordo celebrado entre a Requerida e a P... Unipessoal, Lda (por forma a avaliar de eventual incumprimento daquela sociedade ao cessar os pagamentos), o que, de todo, não foi conseguido, embora tivesse sido um dos pontos de averiguação visados pelo inquérito judicial (h) Rentabilização da marca ... e documento comprovativo de tal negócio e l) Seja informado das diligências adotadas pela gerência da empresa face ao incumprimento do acordo de parceria celebrado com a sociedade P..., Lda).
2. O dever de lealdade, traduzido essencialmente na obrigação de zelar pelos interesses da sociedade e dos seus sócios e cuidar da sustentabilidade daquela e não quebrar os laços de confiança, assume, na concretização do seu conteúdo, para além da exigibilidade comportamental decorrente do princípio geral da boa fé que deve nortear a relação contratual entre o gerente e a sociedade, uma exigência acrescida configurada pela “(…) relação fiduciária – e a confiança especial que lhe subjaz – que se estabelece entre a sociedade e o administrador como o fundamento adequado: gera o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fim (lucrativo) que os sócios perseguem quando constituem a sociedade, enquanto instrumento que esta é para a consecução desse fim e a correspondente satisfação do interesse social”[9]. Na prossecução do interesse social relativamente ao negócio, o dever de lealdade “não admite ponderações, enquanto não está disponível para fragmentações derivadas de escolhas do administrador, entre o “interesse da sociedade” e o interesse próprio e/ou de terceiros – aqui é um dever absoluto.”[10]. Nesta ordem de ideias, um gerente “criterioso e ordenado” “é aquele que a gere para o fim correspondente à maximização do interesse social e à concordância possível com os interesses do stakeholders (particularmente, credores, trabalhadores, clientes e outros especialmente interessados …)”[11]. Neste plano, igualmente não é possível imputar ao Requerido uma violação do dever de lealdade. Para tal efeito, ou seja, para que se pudesse concluir que o Requerido havia grosseiramente desprezado os interesses da sociedade que administrava permanecendo numa posição de inércia quanto a uma situação comprometedora da sustentação financeira da empresa visando beneficiar outra empresa, mostrava-se indispensável a demonstração de uma situação de incumprimento do acordo celebrado com a sociedade P... Unipessoal, Lda relativamente à exploração da marca .... Sem essa demonstração, que impunha, necessariamente, que fossem conhecidos (alegados e provados) os termos do referido acordo, não é possível considerar que o Requerido, enquanto gerente, lhe cabia o dever de (re)agir (balizado pela adstrição ao dever de cuidado ou ao dever de lealdade) zelando pelos interesses da sociedade sem os sobrepor a interesses de outra ordem, designadamente o interesse pessoal. A factualidade apurada é em absoluto parca pois não só não foram apuradas as razões que levaram à cessação do pagamento de 1% da facturação por parte da P... Unipessoal, Lda. relativamente à Requerida, como não foram alegadas e demonstradas as condições desse pagamento. Com relevo para a apreciação da pretensão de destituição do Requerido com justa causa, limitou-se o tribunal de 1ª instância a considerar provado, em face da prova produzida, designadamente pela peritagem levada a cabo, que: - Em contrapartida da utilização da marca ... criada por ambos os sócios, em nome da sociedade requerida, a sociedade “P... Unipessoal, Ld.ª” pagaria à sociedade requerida, 1% do seu volume de facturação. Em concretização deste acordo, no ano de 2017 a Questsource facturou à P... unipessoal Ld.ª o valor de 259 153,22€. - A sociedade requerida não fez quaisquer diligências no sentido de sanar eventual incumprimento do acordo de parceria celebrado com a sociedade P..., Lda Trata-se, sem dúvida, de matéria de facto exígua, não sendo possível a concretização de qualquer comportamento indevido (em termos de violação grave dos deveres previstos no artigo 64.º, da LSC) que possa ser assacado ao Requerido, pelo que não pode deixar de se manter a decisão recorrida, improcedendo, na sua totalidade, as conclusões das alegações.
IV. DECISÃO
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2022
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Ricardo Costa
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[5]Cfr. Acórdãos do STJ de 30-05-2017, proferido no âmbito do Processo n.º 4891/11.1TBSTS.P1.S1,(onde são citados outros arestos, designadamente o de 26-02-2019, Processo n.º 219/13.4TYLSB.L2.S, ambos aa que se pode aceder através das Base Documentais do ITIJ. |