Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 3ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MAIA COSTA | ||
| Descritores: | CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO DE INFRAÇÕES CÚMULO JURÍDICO MEDIDA DA PENA PENA ÚNICA | ||
| Data do Acordão: | 11/28/2018 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE RELATIVO AO ARGUIDO AA E REJEITADO À ARGUIDA BB | ||
| Área Temática: | DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES. | ||
| Doutrina: | - Alberto Medina de Seiça, O conhecimento probatório do coarguido, p. 228. | ||
| Legislação Nacional: | CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 71.º E 77.º, N.ºS 1 E 2. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 05-06-2008, PROCESSO N.º 1884/08; - DE 03-09-2008, PROCESSO N.º 2044/08; - DE 07-05-2009, PROCESSO N.º 1213/08; - DE 15-04-2015, PROCESSO N.º 213/05.9TCLSB.L1.S1. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: - ACÓRDÃO N.º 133/10. | ||
| Sumário : | I - Estabelece o art. 77.º, n.º 1, do CP que o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o n.º 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares. II - A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu. III - Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar múltiplos fatores, entre os quais a amplitude temporal da atividade criminosa, a interligação ou diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da atuação criminosa, a pluralidade de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo. IV - Há que considerar que não é tanto à soma aritmética das penas que importa atender, mas sim ao tipo de criminalidade praticado pelo agente, não sendo a repetição, ainda que intensiva, do mesmo tipo que pode agravar qualitativamente a tipologia criminosa. Por outras palavras, a acumulação de penas características da pequena/média criminalidade, ainda que em número elevado, não pode, a não ser que ocorram circunstâncias excecionais, conduzir a uma pena única adequada à punição de um crime integrado na “grande criminalidade”. V - Recordemos, em síntese, as penas em que o recorrente se encontra condenado: - dezanove penas de 4 anos e 6 meses de prisão, por outros tantos crimes de furto qualificado; - cinco penas de 3 anos e 6 meses de prisão, também por crimes de furto qualificado; - uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, por um crime de dano simples; - nove penas de um ano de prisão, por crimes de condução sem habilitação legal; - uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, por um crime de detenção de arma proibida. A moldura do concurso tem pois como limite mínimo 4 anos e 6 meses e máxi-mo 25 anos de prisão, nos termos do citado nº 2 do art. 77º do CPP. No conjunto de condenações avultam as referentes a crimes de furto qualificado, quer pelo número, quer pela medida das penas correspondentes. Esses furtos, num total de vinte e quatro (dezanove em residências, cinco em cemitérios), foram praticados na execução de um plano criminoso cuidadosamente arquitetado pelos arguidos recorrentes (que agregaram depois os não recorrentes), que formaram uma verdadeira “quadrilha”, com funções diferenciadas mas convergentes, com vista a “assaltar” residências de férias ou residências habitualmente desabitadas, na região Oeste. A arguida F… estava encarregada de selecionar as residências a “assaltar”, seleção essa que passava pelo “reconhecimento” dos lugares, bem como de indicar quais os objetos que interessava furtar para posterior venda. Ao arguido cabia deslocar-se depois à residência e cortar a instalação elétrica, para mais tarde confirmar se ela havia sido reposta, e para desligar o sistema de alarme, se existente. Só depois de confirmada a não reposição do sistema eléctrico, o arguido se deslocava à residência, onde entrava por arrombamento, para se apoderar dos objetos pretendidos. Com este procedimento, sucessivamente utilizado, conseguiram apropriar-se de objetos cujo valor total foi variável, mas chegou a ser consideravelmente elevado. Mais tarde alargaram a atividade criminosa aos cemitérios, onde se introduziam por escalamento dos muros, conseguindo apropriar-se de objetos colocados nas campas. À arguida cabia vender os objetos furtados e repartir os lucros. Toda esta atividade criminosa decorreu entre julho/agosto de 2015 e junho de 2016, terminando apenas com a detenção do arguido em 17.6.2016. VI - É incontestável a muito elevada ilicitude dos factos, quer pela existência de um grupo coeso e organizado, de base familiar, que programava com rigor e precisão as condutas criminosas de forma a obter o sucesso das suas ações, quer pela intensidade com que os arguidos atuaram no arco temporal de um ano. O arguido participava com a arguida na programação das ações criminosas e era o principal executor das mesmas, por vezes o único. O seu papel foi pois central em toda a atividade criminosa. VII - Por outro lado, este arguido apresenta um cadastro criminal significativo. O arguido apresenta um percurso delituoso que começou muito cedo (nasceu em 11.8.1981) e se tem mantido quase ininterruptamente, sempre na área da criminalidade não violenta contra o património, podendo caracterizar-se como uma verdadeira “carreira criminal”. Este percurso criminal inseriu-se num percurso vivencial muito acidentado onde sobressai a desestruturação familiar precoce. VIII - Numa visão global dos factos e da personalidade do arguido, para efeitos de determinação da medida concreta da pena, há a considerar a inequívoca tendência do arguido para a prática criminosa, na vertente da criminalidade não violenta contra o património, a duração da atividade criminosa (um ano), só interrompida pela detenção do arguido, o elevado número de crimes de furto qualificado (24), sendo dezanove as penas de 4 anos e 6 meses de prisão e cinco as de 3 anos e 6 meses de prisão, o alarme que terá inevitavelmente provocado na população da região a frequência dos crimes, não esquecendo a perturbação/rejeição que os furtos nos cemitérios terá suscitado, a adesão total ao crime como modo de vida, as fracas expetativas quanto ao comportamento futuro do arguido. IX - Não se pode ignorar que o percurso do arguido é o “destino” frequente dos jovens desamparados familiar e socialmente desde muito cedo. E que desse desamparo são vítimas inocentes. Mas a responsabilização individual de cada pessoa, assente no próprio princípio da dignidade humana, exige a todos os cidadãos um esforço para agirem de acordo com o direito. X - Ponderando pois todas as circunstâncias descritas, conclui-se que são muito fortes as exigências da prevenção geral, pela frequência das condutas e necessidade de salvaguardar o bem jurídico inerente, e também especial, dada a evidente propensão criminosa do arguido. Nenhuma circunstância atenuante relevante se apurou, apenas se provou a “admissão parcial dos factos”. XI - Contudo, há por outro lado a considerar que a pena mais elevada não exce-de 4 anos e 6 meses de prisão, uma pena ainda integrável no conceito de “média crimi-nalidade” (embora estejam em concurso dezanove penas dessa medida). Poderá assim admitir-se, em homenagem ao princípio da ressocialização, e também de alguma forma como estímulo para o próprio arguido, a redução da pena em um ano, o que, crê-se, as exigências preventivas ainda toleram, embora no limite. Assim, fixar-se-á a pena conjunta do arguido em 11 anos de prisão. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
Por acórdão de 4.12.2017 do Juízo Central Criminal de Loures, da Comarca de Lisboa Norte, deliberou-se o seguinte: Quanto ao arguido AA: 1. Absolvê-lo da prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do Código Penal - CP (NUIPCs 10/16.6GBALQ e 239/16.7GDTVD); 2. Condená-lo pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 468/15.0GALNH), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão; 3. Absolvê-lo da prática de sete crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 368/15.4GALNH, 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV); 4. Condená-lo pela prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e), e 3, do CP (NUIPCs 368/15.4GALNH, 387/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes; 5. Condená-lo pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, a) e e), e 3, do CP (NUIPCs 382/15.0GACDV e 69/16.6GACDV), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes; 6. Condená-lo pela prática de onze crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 120/16.0GABBR, 115/16.3GABBR, 239/16.7GDTVD, 120/16.0GCCLD, 171/16.4GCCLD, 157/16.9GCCLD, 164/16.1GCCLD, 8/16.4GBALQ, 269/16.9GALNH, 284/16.2GCTVD e 248/16.6 GDTVD), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes; 7. Condená-lo pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 253/16.2GBCLD), na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes, absolvendo-o da prática dos restantes três crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP, que no âmbito do mesmo processo lhe foram imputados; 8. Condená-lo pela prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, c) e h), e 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 243/16.5GCTVD, 244/16.3GCTVD, 118/16.8GABBR, 103/16.0GAPNI, 136/16.6GAACB), na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes; 9. Condená-lo pela prática de um crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212º, nº 1, do CP (NUIPC 212/16.5GACDV), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; 10. Condená-lo pela prática de nove crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do Decreto-Lei nº 2/98, de 2-1, na pena de 1 ano de prisão por cada um dos crimes; 11. Condená-lo pela prática de um crime de detenção de arma proibida (bastão), p. e p. pelos arts. 3º, nº 2, g) e 86º, nº 1, d), da Lei 5/2006, de 23-2, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; 12. Operado o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão, foi o arguido condenado na pena única de 13 anos e 8 meses de prisão.
Quanto à arguida BB: 1. Condená-la pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 468/15.0GALNH), na pena de 3 anos e 9 meses de prisão; 2. Absolvê-la da prática de 5 crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 368/15.4GALNH, 387/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 19/16.0GACDV, 81/16.5GACDV); 3. Condená-la pela prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e), e 3, do CP (NUIPCs 368/15.4GALNH, 387/15.0GACDV), 20/16.3GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV), na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, por cada um dos crimes; 4. Absolvê-la da prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, b) e e), e 3, do CP (NUIPCs 382/15.0GACDV e 69/16.6GACDV); 5. Condená-la pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, a) e e), e 3, do CP (NUIPCs 382/15.0GACDV e 69/16.6GACDV), na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, por cada um dos crimes; 6. Absolvê-la da prática de catorze crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 10/16.6GBALº 120/16.0GABBR, 115/16.3GABBR, 239/16.7GDTVD, 120/16.0GCCLD, 171/16.4GCCLD, 157/16.9GCCLD, 164/16.1GCCLD, 8/16.4GBALQ, 269/16.9GALNH, 284/16.2GCTVD e 248/16.6GDTVD); 7. Condená-la pela prática de catorze crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 10/16.6GBALQ, 120/16.0GABBR, 115/16.3GABBR, 239/16.7GDTVD, 120/16.0GCCLD, 171/16.4GCCLD, 157/16.9GCCLD, 164/16.1GCCLD, 8/16.4GBALQ, 269/16.9GALNH, 284/16.2GCTVD e 248/16.6GDTVD), na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, por cada um dos crimes; 8. Absolvê-la da prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 253/16.2GBCLD); 9. Condená-la pela prática de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 253/16.2GBCLD), na pena de 3 anos e 9 meses de prisão, por cada um dos crimes; 10. Absolvê-la da prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, c) e h), e 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 243/16.5GCTVD, 244/16.3GCTVD, 118/16.8GABBR, 103/16.0GAPNI, 136/16.6GAACB); 11. Condená-la pela prática de cinco crimes de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º e 204º, nºs 1, c) e h), 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPCs 243/16.5GCTVD, 244/16.3GCTVD, 118/16.8GABBR, 103/16.0GAPNI, 136/16.6GAACB), na pena de 3 anos e 3 meses de prisão, por cada um dos crimes; 12. Operado o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão, foi a arguida condenada na pena única de 10 anos de prisão.[1]
Deste acórdão recorreram os arguidos, de facto e de direito, para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 30.5.2018, decidiu:
1º - Alterar a decisão da matéria de facto constante do acórdão da 1ª instância, de forma que os factos constantes dos pontos 62, 83 a 90 e 94 a 99 foram retirados dos factos provados e incluídos nos factos não provados; 2º - Absolver o arguido AA de dois crimes de furto qualificado dos artigos 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g) e 3, do CP, referentes aos NUIPCs 120/16GCCLD e 171/16.4GCCLD; 3º - Absolver a arguida BB de um crime de furto qualificado dos artigos 203º, 204º nºs 1, h) e 2, e) e g), e 3, do CP (NUIPC 120/16GCCLD) e de dois crimes de furto qualificado dos arts. 203º e 204º, nºs 1, h), 2, e) e g), e 3, referentes aos NUIPCs 239/16.7GDTVD (2ª ocorrência) e 171/16.4GCCLD; 3º - Condenar o arguido AA na pena única de 12 anos de prisão; 4º - Condenar a arguida BB na pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.[2] Deste acórdão recorreram os arguidos para este Supremo Tribunal de Justiça.
Alega o arguido AA:
1. O princípio da presunção da inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova. 2. Todo o processo nasce a partir de uma dúvida e dados os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida permanece a final, malgrado o esforço para a superar. 3. Neste caso, o princípio da presunção da inocência imporá a absolvição, já que, sendo a condenação penal e a pena um castigo destinado a resgatar a culpa e a ressocializar o delinquente, é inaceitável que seja condenado sem que haja a certeza moral da culpabilidade a redimir. 4. A livre valoração da prova pelo tribunal não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjecturas de difícil ou impossível objectivação. 5. Deve, tratar-se, ao invés, de uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. 6. A apreciação global da prova que se mostra transcrita e que pode ser confirmada mediante audição da prova gravada, permite-nos pôr em crise a factualidade tida por assente pelo tribunal a quo e demonstrar que existe um non liquet na questão da prova. 7. O tribunal a quo inverteu o ónus da prova, ao considerar que todos os objectos furtados encontrados na bancada da feira e na residência dos arguidos eram resultado do cometimento pelos próprios dos crimes de furto. 8. Não existem no processo quaisquer elementos de prova que demonstrem tal facto. 9. O tribunal a quo ignorou, por completo, o depoimento do co-arguido CC na matéria em que seria favorável ao co-arguido AA, pese embora tenha considerado que o mesmo demonstrou isenção e rigor no depoimento e na descrição dos factos que presenciou e cometeu em co-autoria com este último. 10. A situação de non liquet surgiu na audiência de julgamento. 11. De facto, a conclusão de que o arguido foi o autor material e singular dos crimes de furto qualificado referentes aos NUIPC 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV não se baseia em qualquer elemento de prova constante nos autos. 12. O tribunal a quo, confrontado com a dúvida sobre a autoria dos furtos - esta dúvida existiu, assumiu uma posição arbitrária e discricionária, concluindo que a mesma era do recorrente, apenas porque o seu depoimento não foi convincente e que já tinha sido condenado, por diversas vezes. 13. Verifica-se aqui uma situação em que o tribunal, confrontado com a dúvida, não valorou a prova a favor do arguido, condenando-o e violando o princípio in dubio pro reo. 14. É notório que o tribunal não decidiu com a firme certeza que a lei lhe exige. 15. Ora, quando a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras de experiência e a liberdade de apreciação da prova, conduziu à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva sobre a existência ou inexistência do facto, impõe-se ao tribunal que aplique o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio constitucional da presunção da inocência. 16. O tribunal ad quem deve valorar a prova dos autos e aplicar o princípio do in dubio pro reo. 17. Verificamos, pois, em face do supra alegado, que o acórdão recorrido, ao condenar o recorrente, violou o equilíbrio existente entre o princípio da presunção da inocência e o princípio da livre apreciação da prova. 18. De facto, perante uma situação em que não existe prova que permita concluir que os factos foram praticados pelo recorrente, somos levados a concluir que existe violação do princípio da livre apreciação da prova. 19. Daqui resulta, entre outras consequências, a inadmissibilidade de qualquer espécie de “culpabilidade por associação” ou “colectiva” e que todo o acusado tenha direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular. 20. A presunção da inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. 21. A livre apreciação da prova não pode ir para além dos factos que são apresentados ao tribunal, não pode assentar numa predisposição mental anterior à apresentação dos factos. 22. Quando isso não é possível, por existirem situações de non liquet na questão da prova, o tribunal deve inibir-se de aplicar extensivamente o princípio da livre apreciação da prova e retirar conclusões com base numa experiência que, num determinado caso, irá conduzi-lo a uma leitura errónea e falsa dos factos apresentados. 23. O princípio da livre apreciação da prova, quando aplicado de forma extensiva entra em choque directo com o princípio da presunção da inocência, pois entra na atmosfera da dúvida e da falta de uma firme certeza. 24. Esta é a situação que qualifica o acórdão sob censura. 25. Deu-se como provado que os furtos inerentes aos NUIPC 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV foram praticados pelo recorrente; no entanto, não existem quaisquer provas que revelem que o mesmo tenha acedido às respectivas habitações – ninguém viu. 26. Estes espaços em branco ou em suspenso foram preenchidos através de um raciocínio conclusivo, sustentado apenas pelo facto do tribunal não valorar a versão apresentada pelo recorrente. 27. O acórdão sob censura violou, entre outros, os artigos 18º, n.º 2, e 32º, nº 28. O douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, deveria ter aplicado sem mais os princípios constitucionais da presunção da inocência e in dubio pro reo, absolvendo o arguido AA da prática dos crimes que lhe são imputados nos NUIPC 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV, o que ora se impetra a Vossas Excelências. 29. Paralelamente entende o arguido que a pena de 12 anos de prisão, que lhe foi aplicada, é manifestamente desproporcionada. 30. Os factos que sobre si recaem foram confirmados pelo arguido que os confessou integralmente e sem reservas, de livre e espontânea vontade, demonstrando um arrependimento sincero e interiorização da ilicitude da sua conduta. 31. Daí que, ao determinar a medida da pena, o douto Tribunal a quo poderia e deveria ter levado em conta a confissão, o arrependimento e vontade manifestada pelo arguido em reparar a sua atitude e tomar um novo rumo na sua vida. 32. Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no Artigo 71.° do Código Penal. 33. Na determinação concreta da pena deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido e contra ele, designadamente o modo e execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (grau de ilicitude do facto); a intensidade do dolo; os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados; as condições pessoais e económicas do agente; a conduta anterior e posterior ao facto e ainda a falta de preparação para manter uma conduta licita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 34. O grau de ilicitude sendo elevado, é de salientar o facto do recorrente na altura da prática dos factos se encontrar num momento de instabilidade emocional, caracterizado pelo nível de consciência alterado e com o seu auto controle diminuído pela contracção de doença crónica e gravemente incapacitante, que o afectou psico-socialmente, em termos de avaliar o desvalor da sua conduta. 35. Na audiência de discussão e julgamento, mostrou uma postura de humildade e arrependimento sinceros, consternação pela sua conduta e assumiu a gravidade dos factos por si praticados, verbalizando o reconhecimento da necessidade de mudar de vida. 36. Actualmente, o Recorrente, apresenta uma forte censura quanto aos crimes que praticou e apresenta-se consciente das consequências que daí advêm, o que mostra a possibilidade de um juízo de prognose favorável à sua reintegração na sociedade. 37. É intenção do Recorrente reorganizar a sua vida e estabilidade familiar. 38. O Recorrente demonstra sensibilidade à pena aplicada, uma vez que pelo facto de se encontrar doente, fê-lo repensar na sua vida e desenvolver capacidade para procurar alterar as suas atitudes, identificando claramente os comportamentos e hábitos que deve alterar para mudar a sua vida, demonstrando um esforço sério para iniciar o seu processo de reintegração na sociedade: objectivo fundamental do Direito Penal na recuperação do delinquente. 39. Nessa medida e no que concerne ao quantum da pena aplicada pelo Tribunal a quo ao arguido, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto no Artigo 71.° do Código Penal. 40. É entendimento do Recorrente que, mantendo este Colendo Tribunal a decisão recorrida quanto aos factos provados, poderá contudo condená-lo numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face ás circunstâncias acima expostas, de acordo com o disposto no Artigo 71.° do Código Penal, que não deverá ultrapassar os 8 anos de prisão, por entender que desta forma se realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a protecção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do agente na Sociedade. 41. Por todo o exposto, e pelos fundamentos invocados, deverá este Colendo Tribunal conceder provimento ao presente recurso, revogando o douto Acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que absolva o recorrente da prática dos crimes de furto qualificado inerentes aos NUIPC 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV, e consequentemente dos respectivos pedidos cíveis ou, caso assim não entenda, actue de acordo com o supra exposto.
Respondeu o Ministério Público, dizendo:
De acordo com o disposto no artigo 434°, do Código de Processo Penal, os recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça visam, exclusivamente, o reexame da matéria de Direito;- Sem prejuízo do estabelecido nos números 2 e 3 do artigo 410°, do mesmo Código, ou seja, conhecer dos vícios elencados nas alíneas a) a c), do n° 2 e a verificação de nulidades insanáveis.- Contrariamente àquilo que parece resultar das Conclusões formuladas pelo recorrente, não pode ser apreciada, reapreciada ou alterada a matéria de facto provada, estando tal intervenção excluída dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça.- Aliás, o recorrente, quanto a esta questão, limitou-se a invocar a violação de princípios constitucionais e processuais.- Não invocou, nem demonstrou a existência, no texto da decisão recorrida, de qualquer um dos vícios a que alude o n° 2, do artigo 410°, do Código de Processo Penal, ou de qualquer nulidade que não se deva considerar sanada.- Quiçá, porque a decisão impugnada não contém tais vícios ou nulidades, ao menos, da análise que efectuamos da mesma.- Assim como não descortinamos a alegada violação dos mencionados princípios, posto que, contrariamente ao invocado pelo recorrente, não detectamos quaisquer sinais de que o Tribunal se tenha debatido com dúvidas acerca da autoria dos factos que deu como provado terem sido cometidos pelo mesmo.- Idêntica conclusão haverá de ser extraída quanto à medida da pena única alcançada - 12 anos de prisão -. Que, contrariamente ao defendido pelo recorrente, é uma pena justa, proporcional e adequada, em si e em comparação com as penas aplicadas aos demais arguidos, concretamente, a pena única aplicada à arguida, também recorrente, BB- O douto acórdão recorrido não violou o disposto no artigo 71°, do Código Penal, nem qualquer outra disposição legal aplicável. O acórdão recorrido não merece qualquer censura, tendo feita correcta interpretação e aplicação do Direito, não tendo violado qualquer preceito legal nem qualquer princípio geral, e aplicou ao recorrente penas parcelares e única proporcionadas, justas e razoáveis, devendo ser integralmente confirmado.
Por sua vez a arguida BB alegou:
I. A Arguida/Recorrente foi condenada em cúmulo jurídico pela prática como co-autora material de diversos crimes de furto qualificado na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão; II. Inconformada com a Douta Decisão de que se recorre, em tempo, vem interpor Recurso para este Venerando Supremo Tribunal de Justiça; III. O Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, declarou como improcedentes as alegações de Recurso da ora arguida/recorrente o seguinte, afirmando que a ora Recorrente não “logrou provar que a mesma tivesse conhecimento prévio sobre o assalto a esse local, sem contudo ensaiar a mínima concretização das razões da discordância, nem indicar quais os específicos meios de prova, com referência aos suportes da gravação, em que se baseia na sua apreciação e que impõem não tribunal de recurso um juízo probatório distinto”; IV. Entendimento com o qual a Recorrente não concorda pois elencou nas suas Motivações de Recurso os concretos meios de prova em que se baseia de forma a obter uma decisão distinta da proferida; V. Uma vez que estes meios de prova se encontravam devidamente identificados e contextualizados deveria a gravação da prova ter sido levada em consideração pelo Venerando Tribunal da Relação, o que com o devido respeito não foi feito, remetendo apenas para o texto do Douto Acórdão do Mmo. Tribunal de Primeira Instância; VI. Atribuindo-se o valor de prova plena às declarações dos demais co-arguidos, sendo certo que a ora Recorrente exerceu o seu legítimo direito ao silêncio; VII. Pelo que as declarações prestadas nestes termos sem serem acompanhadas por outros elementos que as corroborem constituem uma limitação do seu direito ao silêncio; VIII. Ao mesmo tempo que incorreu, salvo o devido respeito e melhor opinião, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ao não conhecer da impugnação da matéria de facto, já que não lhe deu a resposta adequada, com exame efectivo e análise crítica da prova documentada, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.ºs 379.º, n. º 1, al. c) e 425. º, n.º 4, do CPP ; IX. Tendo condenado a Recorrente como instigadora relativamente a um tipo subjectivo de ilícito que a maioria da doutrina considera que é um crime necessariamente doloso, pois releva a específica intenção de apropriação de algo que se sabe ser alheio; X. Alicerçando-se assim o Venerando Tribunal da Relação apenas e tão-somente no depoimento de dois dos co-arguidos, partes interessadas na causa, que em alguma medida tenderam em fazer diminuir a sua culpa e a sua responsabilização pela prática de tais actos, que, livre e conscientemente, realizaram; XI. Perante toda esta exposição e salvo o devido respeito e melhor opinião, a condenação da arguida pela prática de toda esta pluralidade de crimes constitui uma violação do nº. 4 do art. 343º do Código de Processo Penal, bem como do artigo 32º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa no sentido em que em caso de dúvida prevalecerá o princípio da inocência com a sua consequente absolvição, não sendo admissível, como prova, para condenar um Arguido as declarações de outro co-Arguido; XII. Uma vez que a prova apresentada se mostra manifestamente insuficiente, sendo certo que do texto do Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação nas páginas 93 a 96 a fim de determinar as consequências jurídicas do crime, este não individualiza os critérios da punição, e bem assim faz uma análise em conjunto dos quatro arguidos não individualizando a concreta medida da culpa e do dolo de cada agente de per si, desta forma, violando o disposto no art. 71º do C.P. e o art. 30º da C.R.P.; XIII. E também encontra-se violado o artigo 26º do Código Penal porquanto resulta que é imprescindível ao preenchimento do tipo de ilícito o ânimo de quem pratica os actos e salvo melhor entendimento, dos autos não resulta sequer que a arguido tenha perpetrado tal ilícito, nem foram recolhidos quaisquer elementos (impressões digitais, elementos biológicos ou outros) que permitam aferir de tal conclusão; Nestes termos deverá a nulidade supra invocada, por verificada, ser suprimida, antes de ser apreciado o demais recurso; E em consequência da violação das normas acima indicadas deverá a Arguida ser absolvida.
O Ministério Público respondeu da seguinte forma:
1 - A Recorrente, BB, vem interpor o presente recurso do acórdão proferido em 30 de Maio de 2018 pelo Tribunal da Relação de Lisboa que concedeu provimento parcial ao recurso que interpusera do acórdão proferido em 4 de Dezembro de 2017 pelo juízo Central Criminal de Loures, Juiz 6, condenando a Recorrente na pena única de oito anos e seis meses de prisão. 2 - O douto acórdão recorrido, proferido em 30/05/2018 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, - Alterou a decisão da matéria de facto constante do acórdão proferido pela 1ª Instância para que os factos constantes dos pontos 62, 83 a 90 e 94 a 99 sejam retirados do elenco dos factos provados e incluídos nos factos não provados; - Revogou parcialmente o acórdão proferido pela 1ª Instância e absolveu o arguido AA de dois crimes de furto qualificado dos arts. 203° e 204° n.°s 1 al. h), 2 al. e) e 3, referentes aos NUIPC 120/16GCCLD e 171/16.4GCCLD, absolveu a arguida BB de um crime de furto qualificado dos arts. 203° e 204° n.°s 1 al. h), 2 al. e) e 3, (NUIPC 120/16.0GCCLD) e de dois crimes de furto qualificado dos arts. 203° e 204° n.°s 1 al. h), 2 al. e) e 3, (NUIPCs 239/16.7GDTVD, 2ª ocorrência, e 171/16.4GCCLD), absolveu o arguido CCde três crimes de furto qualificado dos arts. 203° e 204° n.°s 1 al. h), 2 al. e) e 3, (NUIPCs 120/16.0GCCLD, 239/16.7GDTVD, 2ª ocorrência, e 171/16.4GCCLD), absolveu a arguida DD de um crime de furto qualificado dos arts. 203° e 204° n.°s 1 al. h), 2 al. e) e 3, (NUIPC 239/16.7GDTVD, 2ª ocorrência); - Condenou o arguido AA na pena única de doze anos de prisão, a arguida BB na pena única de oito anos e seis meses de prisão, o arguido CC na pena única de seis anos de prisão e a arguida DD na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspendendo a execução por igual período de tempo; - Absolveu os arguidos/demandados AA, BB e CC do pedido cível formulado pelos lesados EE e FF pelos factos constantes do NUIPC 171/16.4GCCLD; e - Em tudo o mais, manteve o decidido no acórdão proferido pela 1ª Instância. 3 - Das conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do Tribunal quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades (art. 410° n.°s 2 e 3 do CPP e ac. do STJ n.° 7/95, publicado no DR, I Série, de 28/12/1995), extrai-se, em suma, que a Recorrente pretende a sua absolvição e, para o efeito, - vem invocar nulidade por omissão de pronúncia alegando que o acórdão recorrido, proferido pelo TRL, não conheceu da impugnação da matéria de facto que deduziu, tendo violado os arts. 379° n.° 1 al. c) e 425° n.° 4, do C. de Processo Penal; - vem insurgir-se com o enquadramento jurídico dos factos provados considerando violados o art. 26° do C. Penal e o art. 343° n.° 4, do C. de Processo Penal, bem como o art. 32° n.° 1 da CRP;e - vem ainda invocar violação do art. 71° do C. Penal, bem como do art. 30° da CRP, pretendendo que o douto acórdão recorrido não individualizou a sua medida concreta da culpa e do dolo. 4 - Quanto à invocada omissão de pronúncia: - é patente que a Arguida/Recorrente não cumpriu o preceituado no art. 412° n.° 3 e n.° 4 do CPP, não permitindo a reapreciação da prova gravada nem a alteração da decisão em matéria de facto, revelando-se assim o recurso manifestamente improcedente, o que foi claramente apontado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no douto Acórdão recorrido; - não se verifica, portanto, a invocada omissão de pronúncia, inexistindo a invocada nulidade, não tendo sido violado o disposto no art. 379° n.° 1 al. c) e no art. 425° n.° 4, do C. de Processo Penal, devendo consequentemente improceder o recurso da Recorrente nesta parte. 5 - Quanto à condenação da Recorrente como instigadora, a mesma vem insurgir-se com o enquadramento jurídico dos factos provados considerando violados o art. 26° do C. Penal e o art. 343° n.° 4, do C. de Processo Penal, bem como o art. 32° n.° 1 da CRP. Porém, - a Recorrente defende que em sua opinião a prova foi mal apreciada para a integração da sua conduta a título de instigação, invocando em suma que na fixação da matéria de facto o tribunal atribuiu erradamente valor de prova plena às declarações dos demais co-arguidos, desacompanhadas de quaisquer outros elementos de prova, e defendendo que os factos provados não são susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo das infracções criminais pelas quais foi condenada; - faz assim depender a eventual procedência deste segmento do seu recurso da pretensa procedência da impugnação da matéria de facto que a mesma deduziu sem sucesso; - dado que não se verifica a alegada nulidade por omissão de pronúncia, tem de considerar-se como assente a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido, pelo que é forçoso concluir no sentido da improcedência do recurso também neste segmento da impugnação da decisão quanto à matéria de direito. Por outro lado, - não corresponde à verdade que na fixação da matéria de facto o tribunal tivesse atribuído erradamente valor de prova plena às declarações dos demais co-arguidos, desacompanhadas de quaisquer outros elementos de prova (veja-se, designadamente, o teor dos factos provados 3 a 6, inclusive, e a fundamentação do tribunal ao justificar a sua convicção quanto a estes factos - pelo resultado de vigilâncias e seguimentos pelos militares da GNR, conjugados com as declarações do arguido CC em sede de julgamento e as declarações da arguida DD), pelo que falece a argumentação da Recorrente; - face à matéria dada como provada, que se mostra assente, a Recorrente deteve o domínio do facto (a descrição factual evidencia uma situação de acordo, ainda que meramente tácito, ou pelo menos uma consciência de colaboração bilateral, e uma actuação ou execução conjunta, sob um desígnio comum; tendo-se provado a arguida BB, agindo livre, voluntária e conscientemente, indicava ao arguido AA e, posteriormente, também aos arguidos CC e DD, quais os objectos e quantidade que pretendia, indicando as residências a assaltar e por si previamente marcadas, que era igualmente BB quem recebia os objectos subtraídos que osa outros dois ou três traziam, os vendia e repartia entre eles o lucro da venda, ordenando-lhes ainda que fizessem mais assaltos, quando não ficava satisfeita com o que eles traziam, assim determinando os demais arguidos a cometer os assaltos nas residências e cemitérios, deve ser punida como autora dos crimes cometidos, sob a forma de instigação), pelo que se impunha a sua condenação como autora, sob a forma de instigação, face ao preceituado no art. 26° do C. Penal. - inexiste, pois, a invocada violação do art. 26° do C. Penal e do art. 343° n.° 4, do C. de Processo Penal, bem como o art. 32° n.° 1 da CRP, devendo consequentemente improceder o recurso da Recorrente nesta parte. 6 - Quanto à alegada falta de individualização da medida concreta da culpa e do dolo da Recorrente, a Recorrente vem ainda invocar violação do art. 71° do C. Penal, bem como do art. 30° da CRP, pretendendo que o douto acórdão recorrido não individualizou a sua medida concreta da culpa e do dolo. - Também a nosso ver não lhe assiste razão neste aspecto, pois o douto acórdão recorrido, proferido pelo TRL, individualizou a sua medida concreta da culpa e do dolo, - o douto acórdão sob recurso confirmou as penas parcelares aplicadas pelo acórdão proferido pela 1ª Instância, absorvendo a respectiva fundamentação, com o que absorveu, fazendo seus, os respectivos fundamentos, e, na aplicação da pena única, considerou, em conjunto, os factos e a personalidade da arguida; - o douto acórdão recorrido não violou o disposto nos arts. 26° e 71° do C. Penal, nem o art. 30° da CRP, nem qualquer outra disposição legal aplicável, devendo, pois, o recurso da arguida improceder; - as penas parcelares e única aplicadas à Recorrente não são desproporcionadas nem ultrapassam a medida da culpa, e respeitam os interesses preventivos gerais e especiais, mostrando-se justas e razoáveis, não tendo sido violada qualquer norma legal. 7 - O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, tendo feita correcta interpretação e aplicação do Direito, não tendo violado qualquer preceito legal nem qualquer princípio geral, e tendo aplicado à Recorrente penas parcelares e única proporcionadas, justas e razoáveis, devendo ser integralmente confirmado.
Neste Supremo Tribunal de Justiça, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
1 – Por decisão proferida a 4/12/2017, na sequência de Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18/10/2017, o Tribunal Colectivo do Juízo Central Criminal de Loures, Juiz 6, da Comarca de Lisboa Norte, condenou, na parte crime, entre outros, os co-arguidos AA e BB, nos seguintes termos: (…) 2 – Inconformados, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 30/5/2018, decidiu: (…) 3 – Ainda irresignados, recorreram os mesmos arguidos, AA e BB, para este Venerando Tribunal, em tempo e com legitimidade. O MºPº respondeu a ambos os recursos tempestivamente e com legitimidade. Os recursos foram admitidos com o efeito e modo de subida devidos. Os recorrentes não requereram audiência, pelo que os recursos serão decididos em Conferência. 4 - Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o seu âmbito – cfr. art. 412.º do CPP e Ac. do STJ, de Fixação de Jurisprudência, n.º 7/95, de 19/10/1995, in D.R., 1ª Série-A, de 28/12/1995. 4.1 - A recorrente levou às conclusões de recurso as seguintes questões: “1 - vem invocar nulidade por omissão de pronúncia alegando que o acórdão recorrido, proferido pelo TRL, não conheceu da impugnação da matéria de facto que deduziu, tendo violado os arts. 379º n.° 1 al. c) e 425° n.° 4, do C. de Processo Penal; 2 - vem insurgir-se com o enquadramento jurídico dos factos provados considerando violados o art. 26° do C. Penal e o art. 343° n.° 4, do C. de Processo Penal, bem como o art. 32° n.° 1 da CRP; e 3 - vem ainda invocar violação do art. 71° do C. Penal, bem como do art. 30° da CRP, pretendendo que o douto acórdão recorrido não individualizou a sua medida concreta da culpa e do dolo.” 4.2 - O recorrente AA conclui a sua motivação de recurso, discutindo as seguintes matérias: - O Acórdão recorrido violou os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo e da livre apreciação da prova; - As penas parcelares e única impostas pecam por excesso e desproporcionalidade, o Tribunal recorrido não considerou devidamente as atenuativas provadas em seu favor. O MºPº no Tribunal recorrido respondeu, pugnando pela manutenção do julgado, que não merece censura. 4.2 - Dando aqui inteiramente por reproduzidas as proficientes contra-motivações das Colegas Procuradores-Gerais Adjuntas no Tribunal recorrido, apenas se nos oferece acrescentar o seguinte: Nos termos do art. 434.º, do CPP o, Supremo Tribunal procede, exclusivamente, ao reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no art. 410.º, n.º 2 e 3. Do texto da decisão recorrida não resultam, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, quaisquer dos vícios elencados nos n.ºs 2 e 3 do CPP. A matéria de facto provada é suficiente para a decisão. Não se captam quaisquer contradições entre a fundamentação ou entre esta e a decisão. Não se verifica erro, muito menos notório, na apreciação da prova. A matéria de facto mostra-se fixada. 4.3 – Do recurso da arguida BB 4.3.1 - Questão prévia: No que concerne ao recurso interposto pela arguida BB, as conclusões VI, VII, X a XII, reportam-se a matéria de facto fixada e com a qual a recorrente não se conforma. O STJ, enquanto Tribunal de Revista, não vai delas conhecer, pelo que deve rejeitar-se parcial e liminarmente o recurso em causa, no que tange às conclusões VI, VII, X a XII, nos termos e para os efeitos dos arts. 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), do CPP. 4.3.2 - Questões de Mérito Com a devida vénia, acompanho e dou aqui por reproduzida a proficiente resposta da Srª. PGA no tribunal recorrido, nada mais se nos oferecendo acrescentar. Do recurso do arguido AA 4.4 - Questão prévia O recorrente AA parece confundir, com o devido respeito, os conceitos contidos nos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, como resulta da leitura das conclusões 1ª a 28ª. O princípio da presunção de inocência impera desde a fase do inquérito até ao momento do trânsito da decisão condenatória do agente e significa que este goza de um estatuto de “inocência” até que seja definitivamente condenado. O princípio in dubio pro reo, que se manifesta durante o inquérito crime, aquando do despacho final proferido pelo MºPº e, depois, na fase de decisão judicial, significa que se o tribunal tiver e mantiver dúvidas sobre a culpabilidade do agente, sem hipótese de as ultrapassar, deve decidir a favor do arguido. Ambos os princípios, porém, são atinentes a matéria de facto e não de direito, pelo que este Venerando Tribunal não poderá conhecer da pretendida violação, porquanto, relativamente ao princípio in dubio pro reo só assume a natureza de matéria de direito se da decisão ora recorrida resultasse expressamente que o tribunal teve dúvidas sobre a culpabilidade do agente e, mesmo assim, decidiu contra este, em seu prejuízo. Não é o caso dos autos. O Tribunal respeitou o princípio da presunção da inocência do recorrente e só perante toda a prova produzida decidiu pela sua condenação. O tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto à culpabilidade do agente e não ilustrou na decisão qualquer dúvida que sobre ela lhe persistisse e que houvesse resolvido contra o arguido recorrente. As conclusões 1ª a 28ª do recurso do arguido versam matéria de facto pelo que nos termos dos arts. 434.º, 410.º, n.º 2 e 3, 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.º 1, al. c), todos do CPP, deve ser rejeitado parcial e liminarmente o recurso do arguido, no segmento em que suscita questões sobre a matéria de facto. Quanto à medida da pena única aplicada ao recorrente, de 12 anos de prisão, acompanhamos a resposta da Srª. PGA no tribunal recorrido, nada mais nos oferece acrescentar-lhe. 5 - Pelo exposto e pelo que mais diz o MºPº nas contra-motivações, emite-se parecer no sentido de - rejeiçãoo liminar e parcial dos recursos dos arguidos BB e AA que concerne às questões de facto que suscitam. - improcedência de ambos os recursos relativamente ao quantum das respectivas penas únicas de prisão aplicadas pelo Tribunal recorrido.
Dado cumprimento ao disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), os recorrentes nada disseram. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação
É a seguinte a matéria de facto relativa aos recorrentes: (…)
1. Recurso do arguido AA
1.1. O arguido coloca as seguintes questões: a) Não existem provas de que tenha cometido os crimes que lhe foram imputados nos procs. nºs 387/15.0GACDV, 382/15.0GACDV, 20/16.3GACDV, 69/16.6GACDV, 19/16.0GACDV e 81/16.5GACDV, dos quais deve ser absolvido, tendo sido violados os princípos da presunção de inocência e in dubio pro reo; b) A pena conjunta aplicada é manifestamente desproporcionada, devendo ser reduzida para medida não superior a 8 anos de prisão.
1.2. Quanto à primeira questão, o arguido parece esquecer que os recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça visam exclusivamente a matéria de direito, conforme estabelece o art. 434º do CPP. É certo que são ressalvados os nºs 2 e 3 do art. 410º do CPP, mas estes preceitos referem-se aos vícios previstos nas alíneas desse nº 2, e às nulidades insanáveis. Ainda assim, o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo que os vícios do nº 2 do art 410º não podem ser matéria de recurso para este Tribunal, sendo apenas de conhecimento oficioso. Ora, o que o recorrente invoca é somente que “não existem provas” de que não cometeu os factos imputados nos processos acima identificados, como se o Supremo Tribunal de Justiça pudesse rever toda a prova produzida em audiência, mediante a audição de toda a prova gravada! Nem o recurso da matéria de facto para a Relação tem tal alcance, limitado que está aos precisos termos indicados no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP! Aliás, o recorrente nem sequer invoca qualquer vício do nº 2 do art. 410º. Alega, sim, que foi violado o princípio in dubio pro reo por o Tribunal ter decidido contra ele numa situação de non liquet. É certo que a violação desse princípio, enquanto questão de direito, pode ser analisada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Contudo, este Tribunal terá de o fazer necessariamente a partir da análise da motivação da matéria de facto da sentença recorrida, pois só através dela pode avaliar se o tribunal, finda a produção da prova, concluiu por uma situação de non liquet, ou seja, de incerteza insuperável quanto ao sentido da prova, e nessa situação decidiu em sentido desfavorável ao arguido. O non liquet é um juízo do tribunal, não das partes. Por isso, é a avaliação que o tribunal julgador faz das provas que deve ser apreciada para efeitos de controlo do respeito pelo princípio in dubio pro reo. Analisada a motivação de facto relativa aos crimes mencionados, constata-se que o Tribunal de 1ª instância cumpriu satisfatoriamente o seu dever de fundamentação, indicando os meios de prova utlizados e fazendo o exame crítico dos mesmos (fls. 3909 v.-3912), permitindo ao tribunal superior avaliar o processo argumentativo e conclusivo percorrido, não se detetando qualquer dúvida quanto ao sentido da prova. A Relação analisou esta motivação e concluiu pela sua correção, confirmando-a (fls. 5090-5091). Tanto basta pois para concluir pela improcedência do recurso, nesta parte.
1.3.1. Impugna também o arguido a medida da pena conjunta em que se encontra condenado (12 anos de prisão), que pretende ver reduzida a 8 anos de prisão. Invoca em seu favor nomeadamente a confissão dos factos, o arrependimento, a interiorização da ilicitude da sua conduta e a vontade de tomar um novo rumo na sua vida. 1.3.2. Estabelece o já citado art. 77º, nº 1, do CP que o concurso é punido com uma pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E o nº 2 acrescenta que a pena única aplicável tem como limite máximo a soma das penas parcelares (não podendo ultrapassar 25 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares. Optou o legislador penal, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que impôs a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, sem determinação prévia das penas referentes a cada infração). Essa moldura, por sua vez, é construída através da combinação de dois princípios: o da acumulação material e o do cúmulo jurídico. O primeiro manifesta-se apenas por meio do estabelecimento do limite máximo da moldura, que é constituído pela soma aritmética das penas parcelares. O segundo estabelece que a pena é fixada em função de uma consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, aproximando de alguma forma o sistema do da pena unitária, sem porém de forma nenhuma se confundir com este. O princípio da acumulação material é amplamente compensado pelo do cúmulo jurídico, que irá moderar os excessos a que aquele, se isolado, conduziria, permitindo obter decisões que, avaliando a globalidade dos factos no seu relacionamento com a personalidade do agente, apliquem o direito ao caso concreto, apliquem a justiça do caso. A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda a um critério A determinação da pena única, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida. Como em qualquer outra pena, é a justiça do caso que se procura, e ela só é atingível com a criteriosa ponderação de todas as circunstâncias que os factos revelam, sendo estes, no caso do concurso, avaliados globalmente e em relação com a personalidade do agente, como se referiu. Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de caráter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto devendo considerar múltiplos fatores, entre os quais a amplitude temporal da atividade criminosa, a interligação ou diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da atuação criminosa, a pluralidade de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo. Há que considerar que não é tanto à soma aritmética das penas que importa atender, mas sim ao tipo de criminalidade praticado pelo agente, não sendo a repetição, ainda que intensiva, do mesmo tipo que pode agravar qualitativamente a tipologia criminosa. Por outras palavras, a acumulação de penas características da pequena/média criminalidade, ainda que em número elevado, não pode, a não ser que ocorram circunstâncias excecionais, conduzir a uma pena única adequada à punição de um crime integrado na “grande criminalidade”.
1.3.3. Recordemos, em síntese, as penas em que o recorrente se encontra condenado: - dezanove penas de 4 anos e 6 meses de prisão, por outros tantos crimes de furto qualificado; - cinco penas de 3 anos e 6 meses de prisão, também por crimes de furto qualificado; - uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, por um crime de dano simples; - nove penas de um ano de prisão, por crimes de condução sem habilitação legal; - uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, por um crime de detenção de arma proibida. A moldura do concurso tem pois como limite mínimo 4 anos e 6 meses e máximo 25 anos de prisão, nos termos do citado nº 2 do art. 77º do CPP. No conjunto de condenações avultam as referentes a crimes de furto qualificado, quer pelo número, quer pela medida das penas correspondentes. Esses furtos, num total de vinte e quatro (dezanove em residências, cinco em cemitérios), foram praticados na execução de um plano criminoso cuidadosamente arquitetado pelos arguidos recorrentes (que agregaram depois os não recorrentes), que formaram uma verdadeira “quadrilha”, com funções diferenciadas mas convergentes, com vista a “assaltar” residências de férias ou residências habitualmente desabitadas, na região Oeste. A arguida BB estava encarregada de selecionar as residências a “assaltar”, seleção essa que passava pelo “reconhecimento” dos lugares, bem como de indicar quais os objetos que interessava furtar para posterior venda. Ao arguido AA (geralmente acompanhado pelo arguido CC) cabia deslocar-se depois à residência e cortar a instalação elétrica, para mais tarde confirmar se ela havia sido reposta, e para desligar o sistema de alarme, se existente. Só depois de confirmada a não reposição do sistema eléctrico, o arguido se deslocava à residência (acompanhado do arguido CC e, por vezes, da arguida DD), onde entrava por arrombamento, para se apoderar dos objetos pretendidos. Com este procedimento, sucessivamente utilizado, conseguiram apropriar-se de objetos cujo valor total foi variável, mas chegou a ser consideravelmente elevado. Mais tarde alargaram a atividade criminosa aos cemitérios, onde se introduziam por escalamento dos muros, conseguindo apropriar-se de objetos colocados nas campas. À arguida BB cabia vender os objetos furtados e repartir os lucros. Toda esta atividade criminosa decorreu entre julho/agosto de 2015 e junho de 2016, terminando apenas com a detenção do arguido AA em 17.6.2016.
1.3.4. É incontestável a muito elevada ilicitude dos factos, quer pela existência de um grupo coeso e organizado, de base familiar, que programava com rigor e precisão as condutas criminosas de forma a obter o sucesso das suas ações, quer pela intensidade com que os arguidos atuaram no arco temporal de um ano. O arguido AA participava com a arguida BB na programação das ações criminosas e era o principal executor das mesmas, por vezes o único. O seu papel foi pois central em toda a atividade criminosa. Por outro lado, este arguido apresenta um cadastro criminal significativo. Na verdade, para além de diversas condenações por condução sem habilitação legal, o arguido, entre 2002 e 2006, sofreu sete condenações por crimes de furto qualificado, tendo cumprido pena de prisão até 12.8.2011, data em que saiu em liberdade condicional. Com 14 anos de idade, e devido a condutas delituosas, fora-lhe aplicada a medida de internamento em Centro Educativo, que se prolongou até à maioridade. O arguido apresenta pois um percurso delituoso que começou muito cedo (nasceu em 11.8.1981) e se tem mantido quase ininterruptamente, sempre na área da criminalidade não violenta contra o património, podendo caracterizar-se como uma verdadeira “carreira criminal”. Este percurso criminal inseriu-se num percurso vivencial muito acidentado, que começou com a separação dos pais quando era muito pequeno, se prolongou com a morte da avó materna, a quem estava entregue, aos 6 anos e a consequente entrada na Misericórdia de Santarém, onde não se adaptou, denunciando instabilidade comportamental, acabando por sair aos 13 anos. Não tendo conseguido o acolhimento junto da mãe, iniciou então um estilo de vida de grande instabilidade que o conduziu rapidamente a comportamentos desviantes, que motivaram o internamento em Centro Educativo, a que já se fez referência. Quando saiu da instituição, frustrada a integração na família do pai e também na da mãe, que morreu em 2003, o arguido, sem perspetivas de trabalho regular, acabou por relacionar-se com grupos com comportamentos delituosos, envolvendo-se naturalmente nesse tipo de atividades. Algum tempo após a saída da prisão, em 2011, iniciou um relacionamento amoroso com a coarguida BB, com quem vivia maritalmente à data dos factos destes autos. 1.3.5. Numa visão global dos factos e da personalidade do arguido, para efeitos de determinação da medida concreta da pena, há a considerar a inequívoca tendência do arguido para a prática criminosa, na vertente da criminalidade não violenta contra o património, a duração da atividade criminosa (um ano), só interrompida pela detenção do arguido, o elevado número de crimes de furto qualificado (24), sendo dezanove as penas de 4 anos e 6 meses de prisão e cinco as de 3 anos e 6 meses de prisão, o alarme que terá inevitavelmente provocado na população da região a frequência dos crimes, não esquecendo a perturbação/rejeição que os furtos nos cemitérios terá suscitado, a adesão total ao crime como modo de vida, as fracas expetativas quanto ao comportamento futuro do arguido. Não se pode ignorar que o percurso do arguido é o “destino” frequente dos jovens desamparados familiar e socialmente desde muito cedo. E que desse desamparo são vítimas inocentes. Mas a responsabilização individual de cada pessoa, assente no próprio princípio da dignidade humana, exige a todos os cidadãos um esforço para agirem de acordo com o direito. Ponderando pois todas as circunstâncias descritas, conclui-se que são muito fortes as exigências da prevenção geral, pela frequência das condutas e necessidade de salvaguardar o bem jurídico inerente, e também especial, dada a evidente propensão criminosa do arguido. Nenhuma circunstância atenuante relevante se apurou, apenas se provou a “admissão parcial dos factos”. Estas considerações recomendam a confirmação da pena estabelecida na Relação. Contudo, há por outro lado a considerar que a pena mais elevada não excede 4 anos e 6 meses de prisão, uma pena ainda integrável no conceito de “média criminalidade” (embora estejam em concurso dezanove penas dessa medida). Poderá assim admitir-se, em homenagem ao princípio da ressocialização, e também de alguma forma como estímulo para o próprio arguido, a redução da pena em um ano, o que, crê-se, as exigências preventivas ainda toleram, embora no limite. Assim, fixar-se-á a pena conjunta do arguido AA em 11 anos de prisão.
2. Recurso da arguida BB
2.1. Coloca a arguida as seguintes questões: a) Nulidade do acórdão recorrido, por não ter apreciado a impugnação da matéria de facto; b) Valorização das declarações dos coarguidos como prova plena, face ao silêncio da recorrente; c) Não individualização dos critérios de punição e de determinação da medida concreta da pena. Termina pedindo a absolvição de todos os crimes imputados.
2.2. É inteiramente sem fundamento a primeira questão proposta. Na verdade, a arguida não impugnou nos termos devidos a matéria de facto fixada pelo acórdão da 1ª instância. Com efeito, o art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP obriga o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto a especificar os concretos pontos de factos (ou seja, os factos individualizados) que considera mal julgados, e também as concretas provas que impõem decisão diferente, e eventualmente as provas que devem ser renovadas, devendo ainda, se as provas tiverem sido gravadas, fazer as especificações com referência ao consignado na ata de julgamento, estando o recorrente obrigado a indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação. Nada disto fez a recorrente no recurso para a Relação, como se pode constatar pela leitura das alegações de fls. 3977 ss. Ela limita-se a considerações gerais e não fundamentadas sobre a “fragilidade” da prova, sem qualquer concretização dos pontos especificamente impugnados nem das provas que imporiam decisão diferente. Sem impugnação específica, nos precisos e exatos termos prescritos pelo citado art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, não há lugar ao recurso da matéria de facto, que não é um segundo julgamento de facto, mas apenas uma reapreciação pontual e rigorosamente delimitada e fundamentada da matéria de facto. Não tendo cumprido os requisitos enunciados no citado art. 412º, nºs 3 e 4, a Relação não devia nem sequer podia reapreciar a matéria de facto. Note-se que é jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça que não há lugar a convite à correção das conclusões para suprir essa omissão[3], posição que o Tribunal Constitucional não considerou inconstitucional.[4] Consequentemente nenhuma omissão de pronúncia foi cometida pelo Tribunal recorrido.
2.3. Alega a recorrente que foi condenada apenas com base nas declarações dos coarguidos, aos quais teria sido atribuída força de “prova plena”, o que constituiria violação do nº 4 do art. 343º do CPP e do art. 32º, nº 1, da Constituição, “no sentido em que em caso de dúvida prevalecerá o princípio da inocência (…) não sendo admissível como prova para condenar um arguido as declarações de outro coarguido”. Não se compreende sinceramente a convocação do art. 343º, nº 4, do CPP, que se limita a regular a forma de prestação de declarações dos coarguidos em audiência. Porventura, a recorrente pretenderá referir-se ao nº 4 do art. 345º do mesmo diploma. Transcreve-se todo o artigo:
Artigo 345º
1. Se o arguido se dispuser a prestar declarações, cada um dos juízes e os jurados pode fazer-lhe as perguntas sobre os factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declarações prestadas. O arguido pode, espontaneamente ou a recomendação do defensor, recusar a resposta a algumas ou a todas as perguntas, sem que isso o possa desfavorecer. 2. O Ministério Público, o advogado do assistente e o defensor podem solicitar ao presidente que formule ao arguido perguntas, nos termos do número anterior. (…) 4. Não podem valer como meio de prova as declarações de um coarguido em prejuízo de outro coarguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos nºs 1 e 2.
Constata-se da leitura do artigo que as declarações do coarguido são válidas, nos termos gerais, ou seja, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), e nunca obviamente como “prova plena”, com a restrição imposta pelo nº 4. Para além disso, tem sido considerado que viola o princípio da presunção de inocência a fundamentação exclusiva da condenação nas declarações do coarguido, exigindo-se que outros meios de prova corroborem essas declarações.[5] No caso dos autos, e relativamente à arguida BB, a prova baseou-se, é certo, nas declarações dos coarguidos CC, seu filho, e DD, conforme resulta da motivação da matéria de facto (fls. 3907-3909). Mas estas declarações não estão abrangidas pela exceção estabelecida no nº 4 do art. 345º do CPP, pois eles prestaram declarações sem quaisquer restrições. Por outro lado, a convicção do Tribunal fundou-se ainda no depoimento do coordenador da investigação, que indicou ao Tribunal os passos que foram dados sucessivamente no aprofundamento dessa investigação, que incluiu vigilâncias aos arguidos, nomeadamente aos comportamentos da arguida BB, que foi observada a passar no cemitério de B.....a dois ou três dias antes do furto aí verificado, e que ela “fazia quilómetros sem destino, parava em zonas de moradias, avaliava as casas e depois ia-se embora” (fls. 3907 v.). Não é pois verdade que a convicção do Tribunal tivesse assentado apenas nas declarações dos coarguidos, aliás validamente prestadas como já se referiu. Improcede pois esta segunda questão colocada pela recorrente.
2.4. Por último, carece também de fundamento a alegação de falta de individualização da medida da pena. Com efeito, o acórdão recorrido confirmou o acórdão da 1ª instância, exceto quanto aos crimes imputados nos NPUICs 120/16GCCLD, 239/16.7GDTVD (2ª ocorrência) e 171/16.4GCCLD, dos quais absolveu a arguida. A Relação tinha apenas que corrigir a pena conjunta, face a essa absolvição, e foi o que fez. Nenhuma censura há a fazer ao procedimento adotado. E nenhuma outra questão foi colocada pela arguida, nomeadamente quanto à medida da pena. Improcede pois o recurso da arguida na totalidade.
III. Decisão
Com base no exposto, decide-se: a) Julgar procedente o recurso do arguido AA quanto à medida da pena conjunta, que é reduzida para 11 (onze) anos de prisão, improcedendo na parte restante o recurso; b) Negar provimento ao recurso da arguida BB; c) Manter, no mais, o acórdão recorrido.
Sem custas quanto ao recorrente AA. A recorrente BB vai condenada em 5 UC de taxa de justiça.
Lisboa, 28 de novembro de 2018
Maia Costa (Relator) Pires da Graça _____________ |