Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | EXECUÇÃO EXEQUENTE EMBARGOS DE EXECUTADO BOA -FÉ ABUSO DO DIREITO HIPOTECA BEM IMÓVEL VALIDADE PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE DA HIPOTECA EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES CONTRATO DE PERMUTA NULIDADE DE ACÓRDÃO EXCESSO DE PRONÚNCIA OFENSA DO CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 12/10/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
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Sumário : | I - A boa-fé, no quadro do abuso de direito (art. 334.º do CC) concretiza-se também através do princípio da primazia da materialidade subjacente que reclama a necessidade de avaliação do exercício do direito em termos materiais, tendo em conta as consequências efectivas do mesmo, assumindo relevância a desproporcionalidade grave e manifesta de posições jurídicas, pelo que a boa-fé impede o exercício manifestamente desproporcionado, ou seja, o desequilíbrio no exercício jurídico, evitando a desproporcionalidade entre as vantagens concretamente auferidas pelo titular de uma posição jurídica e o sacrifício imposto a outrem pelo exercício dessa mesma posição jurídica. II - Age com abuso de direito, porque excede claramente os limites impostos pelo princípio da boa-fé, mediada pela primazia da materialidade subjacente, o banco exequente que executa uma hipoteca na seguinte situação: os executados permutaram com uma sociedade construtora um lote de terreno para construção por três fracções autónomas, livres de ónus ou encargos, e tendo a sociedade dado de garantia ao banco exequente a hipoteca do lote de terreno, comprovou-se que o banco exequente aquando do empréstimo e da análise de risco tinha conhecimento da permuta e de que as fracções, entretanto edificadas, pertenciam aos executados e foram permutadas livres de ónus ou encargos , e porque a hipoteca dada à execução se destinou a garantir o empréstimo concedido à sociedade que havia permutado, sem nenhuma contrapartida ou benefício económico para os executados (terceiros em relação ao contrato de empréstimo), que não obtiveram da exequente qualquer crédito, uma solução que formalmente justificasse a execução hipotecária das três fracções (apenas por aplicação do princípio da indivisibilidade da hipoteca) sem apelo à materialidade subjacente, implicaria uma manifesta desproporcionalidade, sendo evidente o desequilíbrio económico, pois os executados ficariam sem o lote de terreno e sem as fracções permutadas, de que são legítimos proprietários, ou seja, ficariam sem nada, ao passo que o banco exequente já recebeu o pagamento de parte da dívida da sociedade (mutuária), entretanto declarada insolvente, em valor superior ao do lote de terreno declarado na escritura de permuta. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3300/15.1T8ENT-A.E1.S1 ( 1ª Secção) Relator – Jorge Arcanjo Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO 1.1.- Os executados/embargantes - AA e BB - deduziram oposição por embargos de executado à execução comum para pagamento de quantia certa, instaurada pela exequente - Caixa Geral de Depósitos, S.A., pedindo a extinção da execução. Alegaram, em resumo: A exequente interpôs a presente execução com base no Título de Abertura de Crédito com Hipoteca que celebrou com a sociedade J... - Sociedade de Construções, Lda., sendo que essa garantia foi prestada no seguimento da aquisição, pela indicada sociedade aos ora executados, do prédio urbano sito na Rua da ... e Rua ..., em ..., para garantia de mútuo por aquela prestado. A aquisição do prédio dado de hipoteca à exequente foi titulada por escritura de permuta, por via da qual os embargantes receberam, em troca, três fracções autónomas, a integrar no referido prédio urbano a construir, e a identificar na futura propriedade horizontal, mas que seriam excluídas da garantia. A exequente não fez constar que as fracções autónomas não se encontravam abrangidas pela hipoteca, apesar de ter conhecimento dos termos da permuta. Não acautelaram o cancelamento da hipoteca sobre as fracções e a exequente, que não tem sobre si qualquer crédito, tem vindo a adoptar um comportamento abusivo, instaurando a execução com manifesto abuso de direito. 1.2. - A exequente/embargada contestou, defendendo-se, em síntese: Os embargantes não impugnaram a legitimidade e validade do negócio jurídico celebrado com a mutuária J..., Lda., e em momento algum defendeu que os embargantes fossem pessoalmente devedores da quantia peticionada nos autos, mas que, sendo proprietários de bens onerados com hipoteca para garantia do crédito concedido à sociedade J..., Lda., estes bens respondem pela dívida, independentemente de os embargantes não serem devedores da quantia peticionada nos autos. Concluiu pela improcedência dos embargos. 1.3.- Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida (9-10-2018) sentença, que julgou procedentes os embargos, tendo sido determinado a extinção da execução e o levantamento de todas as penhoras realizadas. 1.4. - A exequente/embargada interpôs recurso de apelação e o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 10-10-2019, revogou a sentença, julgando improcedente a oposição à execução e determinando o prosseguimento desta. 1.5.- Inconformados, os embargantes interpuseram recurso de revista, e o STJ, por acórdão de 16-6-2020, decidiu “anular o acórdão recorrido, determinando-se o reenvio dos autos ao Tribunal da Relação de Évora para que se aprecie a questão do abuso de direito invocada pelos embargantes/apelados, ora recorrentes”. 1.6.- Na Relação, por acórdão de 24-9-2020, decidiu-se revogar a sentença recorrida, julgar improcedente a oposição e determinar o prosseguimento da execução. 1.7.- Os embargantes recorreram de revista e o STJ, por acórdão de 6-4-2021 decidiu: “Por todo o exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e em consequência: 1.Determina-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora para que nela (ou, por determinação desta, na 1ª instância , sendo necessário) se apreciem os factos, oportunamente alegados, relativamente ao abuso de direito, procedendo a novo julgamento nos termos suprarreferidos quanto a esta matéria”. 2.-Mantém-se tudo o mais decidido, sem prejuízo de eventuais adaptações ao que vier a ser apurado no novo julgamento, ora determinado”. 1.8.- Por acórdão de 23-9-2021, a Relação decidiu-se “determinar a remessa dos autos à 1ª instância para ampliação da matéria de facto para apreciação dos factos oportunamente alegados relativamente ao abuso de direito, como determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça”. 1.9.- O processo foi reenviado à 1ª Instância, que por despacho de 28-1-2022 determinou a abertura da audiência e notificou as partes para indicarem prova para efeitos de ampliação quanto à questão de abuso de direito 1.10.- Por sentença de 22-7-2022 decidiu-se: “Em face do exposto, julgo procedente a oposição mediante embargos de executado deduzida por AA e BB e, em consequência, determino a extinção da execução e o levantamento de todas as penhoras realizadas no processo de execução” Consignou-se o seguinte: “No seguimento do decidido em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 deAbril de 2021 e em Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23 de Setembro de 2021 (onde se determinou a remessa dos autos à 1ª instância para ampliação da matéria de facto, para apreciação dos factos oportunamente alegados, relativamente ao abuso de direito), foi reaberta a audiência, nos termos e com os fundamentos constantes dos autos. Atento o estado dos autos e o teor e âmbito dos recursos interpostos e acórdãos que sobre os mesmos recaíram, reproduzirá o presente Tribunal a sentença anteriormente proferida, aditando-lhe os factos, motivação e fundamentação de direito considerada pertinente apenas quanto à questão do abuso de direito.” 1.11. A embargada recorreu e a Relação, por acórdão de 20-4-2023, decidiu: “Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida, julgando-se improcedente a invocada excepção do abuso de direito, com as legais consequências. Custas a cargo dos Apelados.” 1.12.- Inconformados, os embargantes recorreram de revista, com as seguintes conclusões: 1)Os Recorrentes não se conformam com o teor douto Acórdão da Relação datado de 20-04-2023, na parte em que: i) concluiu pela nulidade da douta sentença a quo por excesso de pronúncia e por violação de caso julgado decorrente do acórdão da Relação de 24/09/2020; ii) Julgou procedente o recurso de Apelação da CGD, concluindo pela improcedência da exceção de abuso direito invocada pelo ora Recorrido e, em consequência, julgou improcedentes os embargos de executado e determinou o prosseguimento da execução. 2)A douta sentença a quo não enferma de nenhuma das nulidades que lhe são apontadas no douto acórdão recorrido previstas no artigo 615.º n.º1 alínea a) e d) do CPC 3)Atendendo ao estado dos autos, o teor e âmbito dos recursos interpostos e acórdãos que sobre os mesmos recaíram, o douto tribunal a quo expressamente ressalvou que iria reproduzir a sentença anteriormente proferida, aditando-lhe os factos, motivação e fundamentação de direito considerada pertinente apenas quanto à questão do abuso de direito 4)Em conformidade, sem contrariar o determinado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.04.2021, nem o decidido no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 24/09/2020, o Tribunal a quo procedeu às adaptações necessárias decorrentes do novo julgamento quanto à matéria de facto ampliada, limitando-se a reproduzir / copiar – nada decidindo quanto a esta matéria - a decisão, por si, anteriormente proferida quanto à validade e eficácia da hipoteca constituída a favor da Recorrente CGD. 5) Estando em causa apenas apreciação e decisão quanto à matéria do abuso de direito da CGD, o Tribunal a quo, não tinha outra forma de apreciar a conduta daquela, que não fosse a de, mediante nova produção de prova - por declarações de parte e prova testemunhal - reapreciar e avaliar da coerência dos depoimentos anteriormente prestados na primeira audiência com os que foram prestados na audiência que foi reaberta, com esta exclusiva finalidade. 6)A douta Sentença recorrida não enferma, assim, salvo o devido respeito, das nulidades por excesso de pronuncia ou por violação de caso julgado do acórdão de 20/09/2020 previstas no artigo 615.º n.º1 a) e d) do CPC, na medida em que, quanto à matéria ali decidida, nenhuma decisão proferiu. 7) Identicamente, quanto à mesma matéria da validade e eficácia das hipotecas, nenhuma alteração / adaptação foi feita à fundamentação de direito preconizada na 1ª douta sentença a quo. 8)Na perspectiva de que, como foi ressalvado pelo douto tribunal de 1ª instância, a douta sentença a quo é uma mera reprodução da sentença anteriormente proferida relativamente à matéria da validade e eficácia da hipoteca e cuidando de atentar ao teor e âmbito dos recursos interpostos e acórdãos que sobre os mesmos recaíram, esta sentença não violou o que, quanto a esta matéria, foi decidido no douto acórdão 20/09/2020. 9) É manifesto e aceite pelos Recorrentes que, na douta sentença a quo, não foi, novamente, apreciada e colocada em crise validade e eficácia da hipoteca da CGD; quanto a esta parte, o poder jurisdicional mostrou-se esgotado com o trânsito em julgado do douto acórdão da Relação de Évora, datado de 20/09/2020. 10) Naquele douto acórdão concluiu-se, em síntese, pela validade e oponibilidade da hipoteca da CGD, relativamente aos ora Recorrentes, por força da anterioridade do registo da mesma a favor da CGD, relativamente ao registo de aquisição das frações, a favor dos ora Recorrentes. 11)Mas, “mesmo que assim não fosse”, entendeu o douto Tribunal a quo que “atenta a factualidade em apreço e no seguimento do expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 06 de Abril de 2021” nos presentes autos sempre cumpria chamar à colação o Abuso de direito. Ou seja, e se dúvidas restassem, na douta sentença de 1ª instância desde logo se avançou para a decisão sobre o abuso de direito considerando-se, conforme decidido no douto acórdão de 20/09/2020, a validade e eficácia da constituição das hipotecas da CGD. 12)O que significa que, mesmo na hipótese de este douto Supremo Tribunal de Justiça, vir a confirmar a nulidade da sentença a quo por violação do caso julgado no douto acórdão da Relação de Évora – essa nulidade não alteraria ainda assim, o sentido da douta decisão a quo que, por via do abuso de direito, sempre culminaria com a procedência dos embargos à execução deduzidos pelos aqui Recorrentes e pelo consequente, extinção da execução. 13)Relativamente à questão do Abuso de Direito e revogando, nesta parte, a douta sentença de primeira instância, decidiu-se no douto acórdão recorrido que, perante os factos assentes, ao propor a presente execução para cobrança da dívida hipotecária, nomeadamente com a penhora das três fracções prediais dos Recorrentes, a CGD tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, ou seja, que seja abusivo o exercício do seu direito, conforme previsto no art.º 334.º do C. Civil. 14)Para tanto, atendeu o douto tribunal ad quem aos seguintes factos e fundamentos: i) A possibilidade de sociedade J...Lda. poder constituir sobre o terreno “quaisquer hipotecas” consta expressamente da escritura pública que formalizou o contrato de permuta – vide ponto 5 dos factos provados); ii) O conhecimento da permuta não permitir concluir, sem mais, que a CGD exerceu abusivamente o seu direito ao executar a hipoteca – vide facto provado 16. iii) A CGD não interveio no contrato de permuta, não estando alegado, nem demonstrado, que deu o seu consentimento, nem que concordou com os termos da permuta, ou que tenha tomado comportamento contrário ao exercício do direito de penhorar todas as fracções do prédio em causa. iv) Que a afirmação dos embargantes de que a exequente prescindiu da hipoteca sobre as três fracções autónomas que lhes foram dadas em permuta do terreno e que veio, agora, acionar essa garantia sobre bens com os quais nunca contou para garantir o seu crédito, carece de correspondência com a factualidade provada. v) Que o facto 6, aditado por via da ampliação da matéria de facto foi dado como não provado vi) Ou seja, que, em síntese, a factualidade referida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, sobre a qual não havia incidido pronúncia quanto à sua verificação, e que seria suscetível de revelar a ocorrência do abuso de direito, não se provou. 15)Salvo o devido respeito, não cuidou o douto tribunal ad quem de atentar ao facto de que, ainda que mantendo o julgamento da matéria de facto, o douto tribunal a quo justificou cabalmente que firmou a sua convicção, quanto à questão do abuso de direito, na nova prova que foi produzida com a reabertura da audiência. 16)Pelo que não só podia como devia o douto Tribunal de recurso ter formado a sua própria convicção por referência à prova constante dos autos e, com base nela, determinar a alteração do julgamento de facto, designadamente por a prova ter sido mal apreciada ou interpretada ou constatar a existência de outros elementos probatórios relevantes, invocados pelos recorrentes na sua alegação, que não foram tidos em consideração pelo julgador de 1.ª instância. 17)No douto acórdão a quo foi totalmente ignorada, a exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram / fundamentaram o sentido da sentença de 1ª instância e que, mesmo com base no julgamento da matéria de facto que ali foi feito - e integralmente mantido no douto acórdão recorrido – teria sido possível concluir pela existência de abuso de Direito da CGD quanto executou a hipoteca contra os ora Recorrentes. 18)Pelo que ainda que cientes de que a decisão sobre a suficiência da fundamentação na referência ao “exame crítico’’ das provas não integra os poderes de cognição deste douto Supremo Tribunal, não podem os ora Recorrentes deixar de entender que o douto Tribunal da Relação incorreu em erro de julgamento. 19)Contrariamente ao que se infere no douto acórdão recorrido, perante os factos assentes, não só era possível, como era expectável, que o douto tribunal ad quem tivesse concluído que a propositura da presente execução para cobrança de dívida hipotecária, designadamente, por via da penhora das frações dos ora Recorrentes excedeu, efectiva e manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico desse direito, ou seja, em abusivo exercício do seu direito. 20) E que, em face das circunstâncias concretas do caso sub judice, a execução da hipoteca da CGD contra os Recorrentes foi abusiva e gritantemente injusta! 21)Efectivamente, resultou provado – Facto Provado 16 – que a CGD tinha conhecimento da permuta. 22) A prova desse conhecimento não podia ter deixado se der devidamente interpretada de acordo com a nova prova produzida em sede de reabertura de audiência de julgamento. 23)O conhecimento que a CGD tinha da permuta não se limitou ao mero conhecimento decorrente da publicidade do registo da permuta. A CGD estava, e sempre esteve, absolutamente ciente do teor do próprio contrato permuta – conforme confessa expressamente e por escrito no seu requerimento com a Ref. ...91 – confissão que se viu obrigada a fazer no seguimento da produção de prova no primeiro julgamento. 24) A CGD teve conhecimento do teor e termos do contrato de permuta em momento anterior à concessão do crédito - ao contrato de abertura de crédito com hipoteca com a identificação interna n.º PT ...91 -à sociedade J...Lda. e que veio a ser garantido por meio de hipoteca sobre o terreno no qual foi construído o prédio e vieram a ser constituídas as frações dos Recorrentes Doutro modo, nunca se explicaria como é que da documentação atinente, constava um “mapa de expurgo” das hipotecas do qual, para as frações que tinham sido adquiridas pelos Recorrentes, nenhum valor vinha indicado! O tal documento que procurou, por diversas vezes, sonegar aos presentes autos. 25)Se é verdade que na escritura pública de permuta se previa que a sociedade J...Lda. podia constituir sobre o terreno “quaisquer hipotecas” – vide facto provado 5.Também é verdade que, estando ciente do teor dessa escritura aquando da concessão do financiamento para construção de edifício no terreno hipotecado, a CGD tinha também conhecimento de que em troca do terreno, a J...Lda. cedeu aos Recorrentes, que aceitaram, “as três seguintes frações autónomas, a integrar no referido prédio urbano a construir, e a identificar na futura propriedade horizontal, respectivamente, pelas letras "H", "L" e "O " – facto Provado 3E ainda que os bens seriam “permutados livres de quaisquer ónus ou encargos" – facto provado 26) Factos esses que resultam de prova documental inequívoca (prova essa que a CGD procurou a todo o custo esconder) e que foram cabalmente corroborados, como bem refere a douta sentença de 1ª instância, pela prova produzida em sede de reabertura da audiência, designadamente, pelo depoimento prestado pela testemunha CC, Diretor comercial da CGD. Essencial para a prova do conhecimento da CGD, foi a junção aos autos de Cópia de escrito designado de“contrato de abertura de crédito com hipoteca, com a identificação interna n.º PT ...91”, quanto ao respectivo teor, nomeadamente no que concerne ao capital mutuado e intervenientes no mesmo, bem como toda a documentação ao mesmo atinente, nomeadamente os “mapas de expurgo” 27) A CGD sempre soube que as fracções “H”, “L” e “O” eram propriedade dos Recorrentes e que as mesmas lhes foram transmitidas livres de ónus ou encargos. 28) Apesar de sobre as referidas hipotecas ter sido validamente constituída hipoteca a favor da CGD, foi expressamente reconhecido e aceite, por esta, que nenhum valor teria a receber por conta destes três imóveis; tanto assim foi que, nenhum valor atribuiu para o expurgo das hipotecas constituídas sobre aquelas fracções. 29)A garantia (hipoteca) do empréstimo concedido à sociedade J...Lda. pela CGD nunca abrangeu aquelas concretas fracções. 30) Sobre a CGD SA impendia, pois, o dever de nunca executar a sua hipoteca sobre as fracções dos Recorrentes ou, no limite, emitir os respectivos títulos de cancelamento a custo zero tão logo as mesmas passaram formalmente paraa esfera jurídica e patrimonial daqueles pois que, comprovadamente, nunca contou os imóveis dos Recorrentes para garantia do seu crédito. 31) Repisa-se, a prova do conhecimento da permuta pela CGD - facto provado 16 – deveria ter sido interpretada, em face da fundamentação apresentada na douta sentença de 1ª instância, com a verdadeira amplitude desse conhecimento: repisa-se a CGD sempre soube que, não obstante hipotecadas a seu favor, as três fracções dos Recorrentes não constituíam garantia do seu crédito! 32) Apesar de julgado como não provado o facto 16, o abuso de direito da CGD resultou ainda assim demonstrado nos autos. 33)O douto tribunal ad quem devia ter atendido e feito a correta interpretação da fundamentação avançada pelo douto tribunal a quo para ter dado tal factualidade como não provada. 34)Nenhumas dúvidas subsistem que as hipotecas da CGD incidentes sobre as fracções dos Recorrente foram validamente constituídas, pelo menos do ponto de vista formal, atendendo à natureza constitutiva do respectivo registo sobre as fracções dos Recorrentes, na Conservatória do Registo Predial. 35) A falta de prova da factualidade vertida no ponto 6 dos factos não provados – ou seja, o conhecimento e reconhecimento da CGD de que as frações dos Recorrentes não lhe estavam hipotecadas – foi assim sustentada, essencialmente pela inscrição das mesmas hipotecas no registo predial sobre as frações dos Recorrentes. 36) O douto tribunal a quo não pode dar como provado que as frações dos Recorrentes não estavam hipotecadas à CGD, por que, efectivamente, foram hipotecadas a CGD. 37) A CGD sabia, porém, que de tais frações (à data bens futuros) nunca resultaria o recebimento de quaisquer quantias por forma a liquidar o empréstimo que garantido; o que resultou manifesto análise do mapa de expurgos junto aos autos. 38) A CGD conhecia e expressamente reconheceu naquele documento que nenhum valor receberia pelo expurgo da hipoteca constituída sobre as fracções dos Recorrentes e ainda assim, de forma flagrantemente abusiva, valeu-se do funcionamento do registo predial da hipoteca sobre aquelas fracções, para ““um manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico de que se arroga”, executar essas hipotecas contra os Recorrentes. Conduta que foi exemplarmente censurada e sancionada pelo douto Tribunal a quo ao concluir que, ao executar a hipoteca contra os ora Recorrentes, o direito da CGD foi abusivamente exercido nos termos e para os efeitos previstos no artigo 334.º do CPC; no mesmo sentido, veja-se, v.g., o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado 03/11/2016, Proc.º n.º 1774/13.4TBLLE.E1, disponível em www. dgsi.pt 39)O douto tribunal ad quem não fez assim o correcto e esperado julgamento de direito pois não atendeu, como se impunha, à douta sentença a quo como um todo. Ou ainda, caso não o tivesse feito - como não fez – não cuidou de, cabalmente, analisar a extensa prova, oral e escrita, produzida e elucidativa quanto ao clamoroso abuso de direito da CGD e, na verdade temerária e dolosa litigância. 40) Ao douto tribunal superior faltou conhecer também do modo e do processo de formulação do juízo lógico contido da douta decisão a quo (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, ter formulado diferente juízo, incorrendo em manifesto erro de julgamento. 41)O douto acórdão recorrido foi assim proferido em violação dos artigos 615.º n.º1 alínea d), 2ª parte, 619.º, n.º1, 621.º, 628.º, todos do CPC e artigo 334.º do CC. 42)Em face do exposto, deve ser revogado o douto acórdão recorrido na parte em que, decidindo do mérito da acção, julgou procedente a Apelação e, em consequência ser mantida a douta decisão a quo na parte em que julgou verificado o abuso de direito! 1.13.- A exequente/embargada contra-alegou no sentido da improcedência do recurso. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. – O objecto do recurso As questões submetidas a revista, delimitada pelas conclusões, são as seguintes: A validade e eficácia da hipoteca a favor da exequente CGD sobre as fracções pertencentes aos executados – Nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, e o caso julgado; O abuso de direito. 2.2. – Os factos provados (descritos no acórdão) 1. A 27 de Setembro de 2010, no Cartório Notarial ..., celebraram os Embargantes e a sociedade “J...– Sociedade de Construções, Lda.” escritura pública de “Permuta”. 2. Da escritura aludida em 1) resulta: "os primeiros outorgantes (ora Executados) cedem à sociedade representada do segundo outorgante (J...Lda.), que aceita, no valor de trezentos e trinta mil euros o prédio urbano composto de lote de terreno para construção, designado por lote dezoito, com a área de trezentos e vinte vírgula cinquenta metros quadrados, denominado "...", ( ... ) no qual irá ser edificado pela sociedade representada do segundo um prédio urbano susceptível de ser constituído em regime de propriedade horizontal, cuja construção foi licenciada ( ... ) ". 3. Mais resulta que, em troca, a J...Lda. "cede aos primeiros outorgantes, AA e mulher BB, que aceitam (…) as três seguintes fracções autónomas, a integrar no referido prédio urbano a construir, e a identificar na futura propriedade horizontal, respectivamente, pelas letras "H", "L" e "O ", no valor atribuído a cada uma de cento e dez mil euros: a)Segundo Andar Frente, para habitação, tipo T-Três; b)Terceiro Andar Frente , para habitação, tipo T-Três; e c) Quarto Andar Frente, para habitação, tipo T-Três”. Todas estas fracções (…), farão parte do edifício a construir no lote de terreno objecto da presente permuta pela dita sociedade (…), que irá, oportunamente, submeter o referido prédio ao regime de propriedade horizontal”. 4. Ficou ainda consignado que "os bens são permutados livres de quaisquer ónus ou encargos". 5. Da escritura supra aludida em 1 consta, igualmente: “O referido prédio urbano é cedido à sociedade “J..., Lda.” em plena propriedade, pelo que a mesma poderá sobre ele constituir quaisquer hipotecas”. 6. Encontra-se registada, a favor da “J...– Sociedade de Construções, Lda.” pela AP....53 de 2010/09/27, a aquisição por permuta, do prédio aludido em 2), que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...26. 7. Após a celebração da escritura supra aludida, a J...Lda., a fim de aí promover a construção que veio efectivamente a erigir, celebrou com a Embargada escrito designado de “contrato de abertura de crédito com hipoteca, com a identificação interna n.º PT ...91”. 8. Os embargantes não tiveram intervenção na celebração do escrito aludido em 7. [Facto aditado na sequência da reabertura da audiência] 9. Para garantia do escrito designado em 7), a sociedade J...Lda. constituiu a favor da Embargada hipoteca sobre o imóvel aludido em 2). 10. A referida hipoteca foi registada pela Ap. ...77 de 2010/10/21. 11. Foi constituída e registada a propriedade horizontal relativa ao prédio urbano aludido em 2) pela AP. ...45/ de 2011/12/15. [A anterior redacção era a seguinte: «Foi constituída e registada a propriedade horizontal relativa ao prédio urbano aludido em 2) pela AP....45/ de 2011/12/15, com as seguintes fracções: A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P, Q.”] 12. Os Executados procederam ao registo da propriedade das fracções aludidas em 3) (“H”, “L” e “O”), pela Ap....68 de 2012/01/20. 13. Aquando da inscrição da aquisição das fracções penhoradas nos presentes autos, os Embargantes não procederam ao cancelamento das hipotecas que incidem sobre as fracções autónomas aludidas em 3) e 11). 14. A sociedade J...Lda. foi declarada insolvente no âmbito do processo 55/12.5... corre termos no 11 da Secção de Comércio da Instância Central de ... do Tribunal da Comarca de .... 15. A Embargada reclamou créditos no âmbito do processo aludido em 14, tendo já recebido a quantia de € 398.050,00. 16. A Embargada tinha conhecimento da permuta. 2.3. – Os factos não provados (descritos no acordão) 1 - Os Embargantes tivessem expressamente autorizado a J...Lda. a constituir hipoteca sobre as fracções autónomas identificadas em 3 dos factos provados. 2 - Os Embargantes soubessem que sem o financiamento bancário em naturalmente, a constituição de hipoteca sobre o bem permutado, jamais as fracções autónomas futuras igualmente permutadas existiriam. 3 - Sendo, consequentemente aquele financiamento condição essencial do negócio celebrado. 4 - Por isso a autorização expressa para a constituição de quaisquer hipotecas. 5 - Não tenha sido intentada qualquer acção porque sempre foi reconhecido, pelos Embargantes, a validade e eficácia da hipoteca registada. 6 - A CGD sempre soube e em tempos assim o reconheceu, que as fracções objecto da hipoteca que agora executa não lhe estavam hipotecadas (facto não provado aditado na sequência da reabertura da audiência). 2.4. - A validade e eficácia da hipoteca a favor da exequente CGD sobre as fracções pertencentes aos executados – Nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, e o caso julgado. O acórdão recorrido de 20-4-2023 decidiu que a sentença ao afirmar a validade e eficácia da hipoteca sobre as fracções pertencentes aos embargantes enferma de nulidade por excesso de pronúncia e violou o caso julgado formado pelo acórdão da Relação de 24-9-2020, relativamente a esta questão. Os recorrentes não põem em causa a validade e eficácia das hipotecas, alegando apenas que não houve excesso de pronúncia e violação do caso julgado porque a sentença não decidiu de novo sobre tal matéria, reproduzindo a sentença anterior. Por isso, os recorrentes aceitam a validade e eficácia das hipotecas sobre as fracções, afirmando que a questão essencial está na apreciação do abuso de direito A Relação argumentou no acórdão de 24-9-2020, tal como já o fizera anteriormente, que o contrato de permuta celebrado entre a J...Lda. e os embargantes teve por objecto, bens futuros (como sucedia com as fracções autónomas do edifício a construir),pelo que a transferência do direito de propriedade sobre eles apenas se produzia após construção do edifício e constituição do regime da propriedade horizontal, que é o título que as individualiza e lhes confere autonomia jurídica e daí que a sociedade J...Lda., ao ter adquirido, por mero efeito do contrato, a propriedade plena do lote de terreno para construção, tivesse todo o direito de o onerar com a constituição da hipoteca (arts 408, nº 2, 879.º, al. a), 939.º, 1417.º e 1418.º, CC ).Assim, força do princípio da indivisibilidade a hipoteca incide sobre as fracções autónomas, entretanto, constituídas ( art.696 e 691 nº1 c) CC) e porque beneficia de registo anterior e foi validamente constituída, prevalece sobre esse direito de propriedade e daí que a exequente, que dela beneficia, possa opor aos embargantes o direito de prioridade que lhe advém do registo. Ora, como se diz no acórdão recorrido, “tendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido no acórdão de 06/04/2021, determinar a remessa dos autos para ampliação da matéria de facto, relativamente ao abuso de direito, mantendo tudo o demais decidido no acórdão da Relação, a anulação resultante desta decisão, agora, foi meramente parcial, ou seja, apenas quanto à questão do abuso de direito, não abrangendo, por conseguinte, o mais decidido no acórdão então recorrido. Por isso, a sentença de 22-7-2022 ao decidir a procedência dos embargos com base no mesmo fundamento, que já havia sido invocado na sentença anterior, excedeu a pronúncia (art.615 nº1 d) (2ª parte) CPC), violando o caso julgado do acórdão do STJ ( arts. 619 nº1, 621, 628 CPC) como foi explicitado no acórdão recorrido, para o qual se remete. 2.5. – O abuso de direito A sentença considerou existir o abuso de direito convocando a primazia da materialidade subjacente, com a implícita invocação da desproporcionalidade e do desequilíbrio económico. Já o acórdão recorrido, depois de discorrer sobre o instituto, rejeitou o abuso de direito dizendo, em síntese, que: “E o facto de a exequente ter conhecimento da permuta não permite concluir, sem mais, exercer abusivamente o seu direito ao executar a hipoteca. “A exequente/recorrente não interveio no contrato de permuta, e não está alegado, nem demonstrado, que deu o seu consentimento, nem que concordou com os termos da permuta, ou que tenha tomado comportamento contrário ao exercício do direito de penhorar todas as fracções do prédio em causa.” Não há qualquer impedimento à aplicação do instituto do abuso de direito na acção executiva, como, de resto, se reconhece jurisprudencialmente ( cfr., por ex, Ac STJ de 5-6-2018 ( proc nº 10855/15), Ac STJ de 7-11-2019 ( proc nº 41118/17), em www dgsi ). O art.334 do CC estatui - “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido. Pode asseverar-se, em jeito de síntese, que o instituto do abuso de direito implica a flexibilização dos direitos subjectivos ao impor limites ao seu exercício, impedindo que os seus titulares pratiquem actos que, muito embora cobertos pela legitimidade, sejam contrários ao ordenamento jurídico no seu conjunto. Neste contexto, o abuso de direito emerge como um princípio normativo aplicável na situação concreta por servir de fundamento de resolução, reclamando apelo a uma dialética entre o sistema e o problema. Por isso se entende que o abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como “válvula de escape” a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico (cf., por ex., Ac STJ de 18-12-2008 (proc nº 08B2688), Ac STJ de 19-10-2017 ( proc nº 1468/11), disponíveis em www dgsi). A boa-fé, que enforma o instituto, concretiza-se também através dos princípios mediadores da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente. O abuso de direito, na variante do “venire contra factum proprium”, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (o factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa-fé. E o Prof. Baptista Machado ( Obra Dispersa, vol.1º, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium é a do “ dolus praesens”, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia os três pressupostos que caracterizam o instituto: – (a) uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura, afirmando que “ o ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira. Pode tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico – negocial, que por qualquer razão seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico; (b) - Investimento na confiança – o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada; (c) - A boa fé da contraparte que confiou – a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa-fé tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico. Por sua vez, a primazia da materialidade subjacente traduz a ideia da necessidade de avaliação do exercício do direito em termos materiais, tendo em conta as consequências efectivas do mesmo, sendo que este princípio se realiza segundo as seguintes vias: “a conformidade material das condutas”, a “idoneidade valorativa”, e “o equilíbrio no exercício das posições” ( cf Prof. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo I, 1999, pág.189) No âmbito da concretização da boa-fé pela tutela da materialidade subjacente assume relevância a desproporcionalidade grave e manifesta de posições jurídicas, pelo que a boa-fé, no quadro do abuso de direito, impede o exercício manifestamente desproporcionado, ou seja, o desequilíbrio no exercício jurídico, evitando a desproporcionalidade entre as vantagens concretamente auferidas pelo titular de uma posição jurídica e o sacrifício imposto a outrem pelo exercício dessa mesma posição jurídica ( cf., por ex., Ac STJ de 6-12-2018 ( proc nº 300/13), em www dgsi ). Por escritura de 27-9-2010, os embargantes, sendo proprietários do prédio urbano (lote de terreno para construção), no valor de € 330.000,00, cederam à J...Lda. por troca de três fracções , em propriedade horizontal, designadas pelas letras H),L),O), tendo expressamente convencionado que “os bens são permutados livres de quaisquer ónus ou encargos”. E como a sociedade tinha por objectivo a construção, convencionaram também que a J...Lda. pode constituir quaisquer hipotecas no prédio. Após a escritura de permuta, e com vista a obter financiamento, a J...Lda. celebrou com a CGD um contrato de abertura de crédito com garantia de hipoteca sobre o lote de terreno, registada em 21-10-2010. A CGD, quando celebrou o contrato de abertura de crédito com garantia de hipoteca tinha conhecimento da permuta ( cf ponto 16). Tendo conhecimento da permuta, sabia que as fracções haviam sido permutadas livres de quaisquer ónus ou encargos, e que as mesmas seriam propriedade dos embargantes. Note-se que a exequente teve conhecimento disso mesmo aquando do contrato de abertura de crédito e a análise do risco da mutuária J...Lda., como confessou no articulado de 17-4-2018, requerimento em que juntou o documento, por si elaborado, do mapa de expurgos, com remissão para os requerimentos de 6-2-2018 e de 27-3-2018, alegando expressamente naquele que “era do conhecimento da aqui embargada, aquando da contratação do crédito exequendo , a existência do contrato de permuta, tendo a decisão da concessão de crédito sido tomada com expresso conhecimento desse facto”( 17) e que “ o crédito foi concedido porque, expectavelmente, o valor das restantes fracções seria suficiente para pagar integralmente o crédito” ( 23). De tal modo que no “Mapa de Valores de Expurgação”, cuja letra e assinatura não foi questionada, antes também admitido pela exequente, as fracções pertencentes aos embargantes não foram, pura e simplesmente, contabilizadas pela Caixa Geral de Depósitos, já que à frente de cada uma aparece escrito “Permuta”, sem qualquer valor atribuído. Ao executar a hipoteca que por força da indivisibilidade abrange as fracções pertencentes aos embargantes e exigir judicialmente deles o pagamento do remanescente da dívida da J...Lda. actua com manifesto abuso de direito. O exercício é abusivo porque excede claramente os limites impostos pelo princípio da boa-fé, não pela tutela da confiança, mas pela desproporcionalidade e desequilíbrio económico. Na verdade, a hipoteca dada à execução destinou-se a garantir o empréstimo concedido à J...Lda., mas não houve nenhuma contrapartida ou benefício económico para os embargantes ( terceiros em relação ao contrato de abertura de crédito), que não obtiveram da exequente qualquer crédito. Nesta medida, uma solução que formalmente justificasse a execução hipotecária, apenas por aplicação do princípio da indivisibilidade da hipoteca ( art.696 CC), sem apelo à materialidade subjacente, implicaria uma manifesta desproporcionalidade, sendo evidente o desequilíbrio económico, pois os embargantes ficariam sem o lote de terreno e sem as fracções permutadas, de que são legítimos proprietários, ou seja, ficariam sem nada, ao passo que a exequente já recebeu o pagamento de parte da dívida, mais exactamente a quantia de € 398.050,00 ( cf ponto 15), valor superior ao do lote de terreno declarado ( € 330.000,00) na escritura de permuta. Muito embora os factos apurados sejam insuficientes para o abuso de direito na modalidade da tutela da confiança, como sublinhou o acórdão recorrido, o mesmo não sucede quanto à concretização a boa-fé pela tutela da materialidade subjacente, pelas razões já referidas. Acolhe-se a justificação constante da sentença: “A Embargada sabia, assim, que tais fracções (à data bens futuros) estavam arredadas da disponibilidade da sociedade J...Lda. e que das mesmas nunca resultaria o recebimento de quaisquer quantias por forma a liquidar o empréstimo que concedeu, o que é patente pela análise do mapa de expurgos. Ora, conhecedora de tal circunstancialismo e atenta a insolvência da sociedade a quem concedeu o empréstimo, pretender “agarrar-se” à tabua que decorre do funcionamento do sistema de registo predial consubstancia, em nosso entendimento, um manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito de que se arroga. Note-se que os Embargantes não se aventuraram em investimentos ou actividade empresarial, sujeita aos riscos inerentes ao próprio funcionamento do mercado; os Embargantes celebraram um contrato de permuta e, em troca de um lote de terreno, receberam 3 fracções autónomas, fracções essas que eram, à data, bens futuros e, assim, não eram passiveis de registo. Por outro lado, com a constituição da propriedade horizontal desdobrou-se automaticamente a hipoteca que anteriormente incidia sobre lote de terreno por todas as fracções autónomas constituídas, incluindo as que foram cedidas aos Embargantes em troca do prédio urbano. Citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 06 de Abril de 2021 nos presentes autos, “É sabido que o instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, se apresenta “como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito. Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem», então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido”. Analisada, com cuidado e atenção, a situação em apreço nos autos cremos que a actuação da Embargada se reconduz a grave injustiça que seria prevenida se assim o legislador a tivesse previsto, mais se traduzindo em absoluta negação dos legítimos e sensíveis interesses dos Embargantes. (…) Ora, em jeito de síntese e no seguimento do que antecede, o exercício do direito de que se arroga a Embargada, nos termos em que o pretende fazer, com o conhecimento que tinha e o circunstancialismo que o envolve, ofende o sentimento que o Tribunal tem de justiça, sentimento esse que cremos ser extensível à comunidade como um todo, o que resulta, desde logo, do depoimento prestado pela testemunha CC, funcionário da Embargada que, conforme já aludido, confrontado pelo Tribunal quanto à questão dos autos, acaba por concluir que, pese embora a Embargada seja “pessoa de bem”, “acha mal que o Sr. AA fique sem os apartamentos”. Afirmado o abuso de direito na execução da garantia hipotecária contra os embargantes, impõe-se a procedência dos embargos e a extinção da execução. Concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido, repondo-se a decisão constante da sentença que julgou procedentes os embargos e extinta a execução. 2.6. – Síntese conclusiva 1.A boa-fé, no quadro do abuso de direito ( art.334 CC ) concretiza-se também através do princípio da primazia da materialidade subjacente que reclama a necessidade de avaliação do exercício do direito em termos materiais, tendo em conta as consequências efectivas do mesmo, assumindo relevância a desproporcionalidade grave e manifesta de posições jurídicas, pelo que a boa-fé impede o exercício manifestamente desproporcionado, ou seja, o desequilíbrio no exercício jurídico, evitando a desproporcionalidade entre as vantagens concretamente auferidas pelo titular de uma posição jurídica e o sacrifício imposto a outrem pelo exercício dessa mesma posição jurídica. 2. Age com abuso de direito, porque excede claramente os limites impostos pelo princípio da boa-fé, mediada pela primazia da materialidade subjacente, o banco exequente que executa uma hipoteca na seguinte situação: Os executados permutaram com uma sociedade construtora um lote de terreno para construção por três fracções autónomas, livres de ónus ou encargos, e tendo a sociedade dado de garantia ao banco exequente a hipoteca do lote de terreno, comprovou-se que o banco exequente aquando do empréstimo e da análise de risco tinha conhecimento da permuta e de que as fracções, entretanto edificadas, pertenciam aos executados e foram permutadas livres de ónus ou encargos , e porque a hipoteca dada à execução se destinou a garantir o empréstimo concedido à sociedade que havia permutado, sem nenhuma contrapartida ou benefício económico para os executados ( terceiros em relação ao contrato de empréstimo), que não obtiveram da exequente qualquer crédito, uma solução que formalmente justificasse a execução hipotecária das três fracções ( apenas por aplicação do princípio da indivisibilidade da hipoteca) sem apelo à materialidade subjacente, implicaria uma manifesta desproporcionalidade, sendo evidente o desequilíbrio económico, pois os executados ficariam sem o lote de terreno e sem as fracções permutadas, de que são legítimos proprietários, ou seja, ficariam sem nada, ao passo que o banco exequente já recebeu o pagamento de parte da dívida da sociedade ( mutuária), entretanto declarada insolvente, em valor superior ao do lote de terreno declarado na escritura de permuta. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Conceder a revista e revogar o acórdão recorrido, decidindo-se julgar procedentes os embargos de executado e declarar extinta a execução contra os embargantes. 2) Condenar a exequente/embargada nas custas. Lisboa, 10 de Dezembro de 2024. Jorge Arcanjo (Relator) Maria João Vaz Tomé António Magalhães |