Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | GARCIA MARQUES | ||
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Nº do Documento: | SJ200211190030281 | ||
Data do Acordão: | 11/19/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE FAMÍLIA DE LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 7080/98 | ||
Data: | 03/19/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1 - "A" intentou, em 8 de Junho de 1994, no Tribunal de Família de Lisboa, a presente acção contra B, pedindo que este fosse condenado a prestar-lhe, mensalmente, a pensão alimentar no montante de Esc. 200.000$00, actualizável anualmente e indexada na proporção indicada pelo Instituto Nacional de Estatística.Alegou, para tanto, em síntese, o seguinte: (a) é casada com o réu do qual tem dois filhos já maiores; (b) desde Dezembro de 1992, ela e o marido encontram-se a viver em casas diferentes e com vidas autónomas; (c) a autora sempre dependeu economicamente do réu, o qual, até Dezembro de 1992, lhe pagava 120.000$00 mensais como se ela fosse empregada da Farmácia C - que ele herdara dos pais -, apesar de ela só efectuar, e de forma irregular, a escrita da farmácia; (d) a partir de Março de 1994, com o fim do subsídio de desemprego que auferia, a autora deixou de ter qualquer meio de subsistência; (e) o requerido aufere rendimento mensal não inferior a Esc.: 1.250.000$00 na exploração da Farmácia C., não suportando despesas especiais ou extraordinárias; (f) a autora tem os filhos a seu cargo e, por falta de auxílio económico do réu, nem sai de casa por falta de dinheiro para os transportes; já tem dívidas na mercearia, vive do auxílio de amigos e familiares, tendo-lhe sido cortada a electricidade da casa por falta de pagamento. Contestando, o réu alegou, em resumo, o seguinte: (a) em acção de divórcio litigioso entre as partes, foi decretado o divórcio, tendo a ora autora sido considerada a única culpada, o que a inibe de reclamar quaisquer alimentos do réu; (b) não invocando a autora quaisquer factos que permitam concluir pela culpa, principal ou exclusiva, do R. na separação/divórcio, a petição inicial é inepta; a autora despediu-se da Farmácia C, deliberadamente, com a exclusiva intenção de vir a reclamar alimentos do réu, incorrendo, por isso, em abuso de direito; (c) a autora pô-lo fora da casa de morada de família, apropriou-se de dinheiro depositado em conta do casal, além de ter outras fontes de rendimento; (d) apenas aufere cerca de 200.000$00 mensais na farmácia, gastando metade desta importância consigo e a outra metade com as despesas da mãe, que tem a seu cargo. Conclui, pedindo o indeferimento da pretensão da autora e a condenação desta como litigante de má fé. Replicando, a autora alegou que foi por ela interposto recurso da acção que a declarou única culpada do divórcio, pelo que a sentença proferida em tal processo não é relevante. E que, em todo o caso, a presente situação sempre se subsumiria ao disposto no nº 2 do artigo 2016º do Código Civil, em face, nomeadamente, da flagrante diferenciação económico-financeira existente entre ambos. Mais alegou que o seu despedimento da Farmácia se deveu à violência verbal e física sobre ela exercida pelo réu. Conclui como na petição inicial. Foi elaborado despacho saneador, no qual se desatendeu a questão prévia relativa à pendência da acção de divórcio, bem como a invocada excepção de abuso de direito. Foi seguidamente condensado o processo através da elaboração da especificação e questionário, que sofreram reclamação, desatendida conforme despacho de fls. 71, tendo havido, todavia, a fls. 142, ampliação do questionário, ao abrigo do artº 650º al.f) do C.P.C. - aditamento dos quesitos 35º a 38º. O réu interpôs recurso de agravo do despacho saneador a fls. 65, o qual foi admitido com subida diferida - fls. 70. A autora requereu a junção do documento de fls. 145, para contraprova dos quesitos 36º e 38º, o qual foi admitido por despacho de fls. 162. Inconformado, o réu agravou de tal despacho, tendo o recurso sido recebido com subida diferida. Instruído o processo, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, sendo julgada a matéria quesitada pela forma constante do acórdão de fls. 220-221, sem reclamações. Em 16 de Maio de 1998, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o réu a pagar à autora a quantia mensal de Esc. 120.000$00, a título de alimentos, a prestar até ao dia 5 de cada mês - fls. 224 a 230. Inconformado, apelou o réu, tendo, porém, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de Março de 2002 (a fls. 293 a 307), decidido: a) por imperativo do disposto nos artigos 291º, nº 2, e 690º, nº 3, do CPC, declarar deserto o recurso de agravo interposto a fls. 165 do despacho de fls. 162; b) negar provimento ao recurso de agravo interposto a fls. 65, confirmando a decisão do despacho saneador exarado a fls. 55 vs e 56, vs.; c) julgar improcedente a apelação, confirmando na íntegra a decisão recorrida. 2 - Continuando inconformado, traz o réu a presente revista, oferecendo, ao alegar, no essencial, as seguintes conclusões: 1. A petição inicial ao omitir, em absoluto, a alegação de qualquer elemento de facto que permita a determinação da culpa na separação subjacente ao pedido de alimentos formulado, carece de um elemento essencial e constitutivo, integrante da causa de pedir em relação ao pedido que, a final, é formulado; 2. Com efeito, por via do disposto no artigo 1675º, nº 3, do Código Civil (1), conjugado, em termos de distribuição de ónus da prova, com os artigos 342º e 344º do Cod. Civil, cabe à autora o ónus de alegar e provar que o réu era o único e principal culpado na separação, sendo tal facto constitutivo do direito por si invocado, o que não ocorreu sequer em termos de alegação; 3. Na linha do afirmado, aliás, pelo Acórdão do STJ de 15.1.1974 (...), segundo o qual estando os cônjuges separados de facto, o pedido de alimentos definitivos em acção intentada pela mulher contra o marido só pode proceder se se provar que a mulher não foi culpada da separação, isto é, que não motivou por actos e atitudes suas o abandono do lar conjugal por parte do marido. A prova destes factos, ou seja, que não foi ela a culpada da separação, cabe à autora, dado o disposto nos artigos 342º e 344º do Código Civil, contrariamente ao propendido pelo Acórdão recorrido; 4. A falta de invocação de tal aspecto não apenas determina a ineptidão da petição inicial, à luz do disposto no artº 467º, nº 1, al. c), do CPC, como ainda a necessária improcedência do pedido formulado; 5. Pois que, fazendo o mencionado artigo 1675º, nº 3, do C.C. depender da viabilidade do pedido a consideração da culpa (melhor do seu afastamento em relação a que peticiona os alimentos) - sic -, cabe a quem os pede demonstrar que reúne e integra tal condição processual; 6. Mesmo que se pugne por tal inversão do ónus da prova, o que não se admite, facto é que os autos revelam claramente que a culpa na separação apenas à recorrida é imputável; 7. Carecendo de enquadramento, nos presentes autos, a invocação do disposto no artigo 2019º do C.C. (...); 8. De facto, e como decorre dos autos de divórcio cuja sentença determinou o aditamento à matéria de facto, a violação reiterada e culposa dos deveres de respeito e de coabitação por parte da recorrida foram causais da separação, obstando a que a mesma tenha legitimidade para lançar mão da demanda por si encetada; 9. Facto é que a recorrida se colocou numa situação de desemprego e de aparente carência de forma voluntária, constituindo, por tal facto, o pedido formulado uma manifestação clara de abuso de direito, insusceptibilizando que a mesma venha reclamar alimentos do recorrente à luz dos artigos 334º e 2004º, nº 2, do C.C.; 10. Não se podendo deixar de assinalar, ainda que residualmente, o desajuste do montante fixado em face dos critérios estabelecidos nos artigos 1676º e 2004º, ambos do C.C.; 11. Violados se revelam os preceitos legais invocados. Contra-alegando, a recorrida pugna pela manutenção do julgado - fls. 335. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. II É a seguinte a factualidade dada como assente, tendo já presentes as alterações que lhe foram introduzidas pelo Tribunal da Relação:- A autora e o réu são casados um com o outro desde 15/01/991 - Al.A). - A autora e o réu têm os filhos D e E, ambos ..., nascidos em 17/09/972 e 19/08/974, respectivamente - Al.B). - Desde pelo menos Dezembro de 1992 que a autora e o réu vivem em diferentes domicílios e não mais se encontraram, fazendo vidas autónomas - Al.C). - O réu vive do rendimento, proveniente da Farmácia C, sita em Castelo Branco, que herdou dos pais - Al. D). - A autora recebia a quantia de 120.000$00 mensais e era considerada empregada da referida farmácia - Al. E). - Em Dezembro de 1992 o réu pagou, através da farmácia, a remuneração correspondente a um mês no valor de 120.000$00, mais o subsídio de Natal de igual valor, à autora - Al. F). - A partir de Dezembro de 1992 a autora manteve-se na situação de baixa médica por doença, ficando a auferir o subsídio de doença até ao fim - Al. G). - O réu quando viveu com a autora contribuía para as despesas domésticas e a autora gastava além dessa contribuição a totalidade da sua remuneração de 120.000$00 - Al. H). - A autora requereu alimentos provisórios contra o réu, tendo sido fixado o montante mensal de 120.000$00, por decisão proferida no processo 9050 do 3º Juízo, 2ª Secção deste Tribunal de Família de Lisboa - Al. I). - A autora sempre dependeu economicamente do réu. - Qtº 1º. - A autora encontra-se a viver com os filhos do casal na Rua ..... em Lisboa. - Qtº 2º. - O réu encontra-se a viver em casa que é sua propriedade sita na Parede - Rua ..., . -... - A autora terminou no mês de Março de 1994 a baixa médica por doença, que lhe dava direito a subsídio de doença, ficando assim sem subsídio. - Qtº 7º. - A autora não tem quaisquer outros meios de subsistência ou rendimentos para fazer face às despesas com o seu sustento, habitação e vestuário. - Qtº 8º. - E por exigência do réu nunca exerceu qualquer profissão. - Qtº 9º. - O réu tem um rendimento líquido proveniente da Farmácia C sita em Castelo Branco, não inferior a um milhão de escudos mensais. - Qtº 10º. - O rendimento ilíquido da farmácia é superior a 7.500 contos mensais. - Qtº 11º. - Para o seu sustento, alimentação, água, electricidade, despesas do prédio, telefone, despesas de vestuário e calçado, a autora necessita de quantia não inferior a cem mil escudos. - Qtº 15º. - O réu apesar de condenado a pagar alimentos à autora, não pagou as prestações de Abril e Maio. - Qtº 17º. - A autora está a viver do auxílio de amigos e familiares e do penhor de algumas jóias. - Qtº 19º. - Já deve 30.000$00 de artigos de mercearia. - Qtº 20º. - A electricidade da sua residência foi cortada, por falta de pagamento e teve de pedir dinheiro emprestado para que pudesse ser restabelecida a ligação da mesma. - Qtº 21º. - A autora trabalhava para a Farmácia C e recebia remuneração de 120.000$00 mensais pelo trabalho que ali prestava. - Qtº 26º. - A autora procedia à conferência de stocks, de preços de venda, de fornecedores e outros similares. - Qtº 27º. - Em 17/01/994 a autora veio a despedir-se do seu local de trabalho. - Qtº 35º. Como se disse, o Tribunal da Relação decidiu alterar a factualidade que a 1ª instância dera como provada, tendo-o feito do seguinte modo: Por um lado, por ser meramente conclusiva, confinando-se a um puro juízo de valor, o acórdão recorrido decidiu julgar não escrita a resposta ao quesito 38º, do seguinte teor: "A situação da ruptura entre a autora e o réu tornou impossível a relação de trabalho que a autora efectuava na Farmácia C". Por outro lado, tendo presentes as certidões de fls. 97 a 110 e 283 a 288, considerou também provado o seguinte: - Por decisão proferida no 3º Juízo, 3ª Secção, do Tribunal de Família de Lisboa, transitada em julgado a 24-09-99, foi decretado o divórcio litigioso entre a A. e R. com declaração de culpa exclusiva daquela; - A referida declaração de culpa fundou-se nos seguintes factos: . em princípios de Dezembro de 1992, a ora A. chamou o ora R. de "cabrão" e "chulo"; . em Março de 1993, a A., sem conhecimento do ora R., mudou a fechadura da porta da casa, recusando a entrada deste, deixou de falar com ele, e disse a toda a gente que não mais o queria ver e que se recusava a viver com o mesmo. III Questão prévia:Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do C.P.C.), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas - e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras - artigo 660º, nº 2, também do C.P.C. Em face do exposto, são as seguintes as questões a que cumpre responder: a) Da alegada ineptidão da petição inicial; b) Do alegado abuso de direito por parte da autora/recorrida e da apreciação do mérito do recurso. Vejamos. 1 - Entende o recorrente que a petição inicial, ao omitir a alegação de qualquer facto que permita a determinação da culpa na separação subjacente ao pedido de alimentos, carece de um dos elementos integrantes da causa de pedir, sendo, por isso, inepta. Mas não tem razão, como o acórdão recorrido já demonstrara com suficiente clareza e cópia de fundamentação, ao julgar o recurso de agravo que fora interposto do despacho saneador exarado a fls. 55/56. 1.1. Ainda que, in casu, ocorresse insuficiência ou deficiência da causa de pedir com omissão de facto necessário para o reconhecimento do direito do autor, nunca tal insuficiência ou deficiência acarretaria ineptidão da petição inicial, conduzindo antes ao naufrágio da acção. Na verdade, é unânime o entendimento nesse sentido. Isto é, a mera deficiência da causa de pedir, traduzida na omissão de facto necessário ao reconhecimento do direito do autor não acarreta a ineptidão da petição inicial, conduzindo, antes, ao soçobro da acção (2). Ou seja, não é inepta a petição inicial quando, tendo sido indicada a causa de pedir, esta é insuficiente para servir de base jurídica à procedência da acção. O que é causa de ineptidão da petição é a falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, ou a contradição do pedido com a causa de pedir - artigo 193º, nº 2, alíneas a) e b), do CPC. Aliás, em face da formulação da conclusão 4ª (3), o recorrente pretende a cumulação da declaração da ineptidão da petição inicial com a improcedência do pedido, não se dando conta da contradição ínsita a uma tal pretensão. É que, enquanto que a ineptidão da petição inicial faz com que o juiz se abstenha de conhecer do pedido, absolvendo o réu da instância (artigos 193º, nº 1, 494º, alínea b), e 288º, nº 1, alínea b), do CPC), a improcedência do pedido dá causa ao soçobro da acção, com a consequente absolvição do réu do pedido. Assim, refuta-se, por manifestamente incorrecta, a referida afirmação constante das conclusões 1ª a 5ª. É que a falta de alegação de qualquer elemento de facto relativo à determinação da culpa na separação não é de molde a implicar ineptidão da petição, mas sim, eventualmente, a provocar a improcedência do pedido, ou seja, o soçobro da acção. 1.2. - Acresce, porém, que, no caso dos autos, nem sequer se poderá falar em deficiência ou insuficiência da causa de pedir (4). Com efeito, estamos perante uma acção de alimentos fundada na separação de facto na vigência da sociedade conjugal, em face do disposto pelos artigos 1675º e 2015º do Código Civil, diploma a que pertencerão os normativos que, doravante, se indiquem sem menção da origem. Ora, na óptica dos nºs 2 e 3 do artigo 1675º, os elementos estruturantes da causa de pedir consistem na alegação da relação matrimonial e da situação da separação dos cônjuges. Ou seja: a factualidade atinente à culpa na separação não participa como elemento identificador da causa de pedir. A prová-lo está, de resto, a possibilidade excepcional, aberta, após a Reforma de 1977, pela segunda parte do nº 3 do artigo 1675º, nos termos da qual o tribunal pode, por motivos de equidade, impor o dever de assistência ao cônjuge inocente ou menos culpado, "considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração que o outro cônjuge tenha prestado á economia do casal" (5). Ou seja: no caso de a separação ser duradoura e devida a facto imputável a um dos cônjuges, só este será, em princípio, obrigado a prestar assistência ao outro cônjuge (inocente ou menos culpado). Mas pode, excepcionalmente, o dever de assistência ser imposto a favor também do único ou principal culpado, atendendo o julgador, de modo especial, à duração do casamento ou à colaboração que esse cônjuge tenha prestado à economia do casal (6). Ademais, tem vindo a fazer caminho entre a doutrina e a jurisprudência o entendimento segundo o qual a culpa na separação imputável ao cônjuge demandante constitui facto impeditivo, recaindo, por isso, sobre o cônjuge demandado o ónus da respectiva prova, atento o disposto pelo nº 2 do artigo 342º (7) . Como explica Antunes Varela, na versão primitiva do Código (artigo 1673º, nº 2 (8), era sobre o requerente dos alimentos que recaía o ónus da prova de que a separação lhe não era imputável. Todavia, segundo a redacção actual, isto é, em face da redacção dada ao nº 3 do artigo 1675º pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, "é ao cônjuge demandado que incumbe o ónus da prova de que a separação de facto é imputável ao demandante"(9) . Cumpre concluir, de quanto se expôs, que não existe o imputado vício de ineptidão da petição inicial, pelo que improcedem as conclusões 1ª a 6ª. Por outro lado, a conclusão 7ª aborda matéria irrelevante para a decisão do presente recurso, na medida em que o conteúdo do artigo 2019º é exterior à economia dos presentes autos. 2 - Apreciando agora o cerne dos fundamentos relativos ao mérito da revista, poderá questionar-se se, como pretende o Recorrente, o facto de a A./recorrida ter sido declarada exclusiva culpada do divórcio, será fundamento suficiente para a procedência do recurso. Já se viu, porém, em face da alteração resultante da Reforma de 1977, que assim não é necessariamente, tendo, designadamente, presente o disposto na segunda parte do nº 3 do artigo 1675º (10). Vejamos, porém, por forma algo mais sistemática. 2.1. - Recorde-se que estamos no âmbito de uma acção de alimentos fundada em separação de facto na vigência da sociedade conjugal. Atento o disposto nos artigos 1672º e 2015º, os cônjuges estão reciprocamente vinculados à prestação de alimentos, que se encontra integrada no dever de assistência. Como já se viu, se a separação de facto for imputável única ou predominantemente a um dos cônjuges, só excepcionalmente e por motivos de equidade é que o tribunal pode impor ao cônjuge inocente ou menos culpado o dever de prestar alimentos. Os motivos de equidade serão aferidos, em especial, em função da duração do casamento e do contributo prestado pelo cônjuge culpado (único ou principal) à economia do casal. Por outro lado, como também já se disse, o ónus de prova da culpa recai sobre o cônjuge demandado por se tratar de facto impeditivo da manutenção do dever de assistência (artigo 342º, nº 2). Tendo isto presente, cabe ao cônjuge demandante, em face do disposto no artigo 2004º, alegar e provar: (a) a relação matrimonial; (b) a ocorrência da separação de facto; (c) a sua situação de necessidade de alimentos; (d) as condições de o demandado os prestar. Da factualidade dada como provada, resulta, sem lugar a dúvidas, o preenchimento, in casu, dos aludidos requisitos. Importa, por isso, apreciar a eventual relevância dos argumentos do recorrente, segundo os quais: (a) não se encontra provado qualquer facto que determine a sua culpa na separação; (b) os únicos elementos atributivos da culpa na separação são imputáveis à recorrida, em conformidade com a sentença de divórcio constante das certidões supra identificadas. Ainda antes de entrar na apreciação das circunstâncias em que, excepcionalmente, o tribunal pode, por motivos de equidade, conceder alimentos ao cônjuge que a eles não teria direito, importará ponderar se, no caso sub judice, foi feita prova bastante no que se refere à culpa dos cônjuges na separação, a qual, repete-se, por constituir facto impeditivo, incumbe ao réu/recorrente. Concorda-se com o acórdão recorrido quando, a esse propósito, conclui que tal prova não foi feita (pelo que se remete para a respectiva fundamentação, que aqui se dá por reproduzida). É que, por um lado, não foi quesitada a matéria constante dos artigos 52 e seguintes da contestação, no âmbito dos quais o R. alegara, em suma, que a A. lhe tomara a casa de assalto e o impedira de ali aceder, que o injuriara e difamara perante terceiros e que afirmara não precisar do R. para nada, muito menos para viver. Certo é, porém, que, na acção de divórcio, ficou provado que «em princípios de Dezembro de 1992, a ora A. chamou o ora R. de "cabrão" e "chulo"». Todavia, daí não se extrai que a separação do casal tenha ocorrido em consequência desse facto, por forma a ser imputável à A. Também ficou provado, naquela acção, que "em Março de 1993, a A., sem conhecimento do ora R., mudou a fechadura da porta da casa, recusando a entrada deste, deixou de falar com ele, e disse a toda a gente que não mais o queria ver e que se recusava a viver com o mesmo". Mas, como bem se observa no acórdão recorrido, está-se perante factualidade posterior à separação a que os presentes autos se reportam, a qual ocorreu em Dezembro de 1992, razão por que não pode servir de suporte à verificação da culpa relativamente a tal separação. Importa, por outro lado, ter ainda presente a norma - oriunda da Reforma de 1977, que permitiu que, excepcionalmente, por razões de equidade, o Tribunal possa impor o dever de assistência ao cônjuge inocente ou menos culpado em benefício do cônjuge única ou predominantemente culpado. Tratou-se, na verdade, de uma alteração prenhe em consequências, entre as quais se inscreve, como se viu, a da alteração da parte sobre quem passou a impender o ónus da prova a respeito da imputabilidade da separação. Torna-se, assim, necessário reflectir acerca da razão de ser da referida alteração legislativa, corporizada na norma em apreço, e ter presente que os índices nela referidos (duração do casamento e colaboração que o outro cônjuge tenha prestado à economia do casal) o são a título exemplificativo, por serem susceptíveis de exprimir uma particular ligação à relação matrimonial. Ora, em face do restante circunstancialismo verificado, é perfeitamente razoável subsumir ao índice "duração do casamento" - a aferir pelo tribunal em termos de equidade -, o facto de a relação entre A. e R. ter tido origem há bem mais de vinte anos, como o evidencia o facto de ambos serem os pais de dois filhos maiores, nascidos, respectivamente, em 1972 e 1974- cfr. certidões de fls. 53 e 54. Facto, bem mais relevante, em face do espírito da lei (11) (isto é, do já citado nº 3 do artigo 1675º) do que a efectiva duração do presente casamento entre ambos, o qual vigora desde 15/01/1991 (12). Também relevante, em face do segunda circunstância exemplificativamente enunciada no citado nº 3 do artigo 1675º é o facto constante da alínea F) da especificação, segundo a qual "o réu quando viveu com a autora contribuía para as despesas domésticas e a autora gastava além dessa contribuição a totalidade da sua remuneração de 120.000$00". Ademais, os índices constantes da parte final do nº 3 do artigo 1675º são, repete-se, enunciados a título exemplificativo. Ora, seria ignorar o sentido e alcance da mens legis (13) olvidar a profunda diferença de estatuto económico entre os cônjuges a as aflitivas carências financeiras da A., bem evidenciadas na matéria de facto dada como provada. Na verdade, tenha-se presente o seguinte quadro de facto: - Os cônjuges estão casados desde 1991 não obstante terem já dois filhos nascidos em 1972 e 1974 o que indicia que desde tais datas faziam vida em comum, ou, pelo menos, se entreajudavam, quanto mais não fosse em função dos descendentes; - A autora, por exigência do réu, nunca exerceu qualquer profissão, para além de ter trabalhado, até Janeiro de 1994 na Farmácia C, explorada pelo réu e na qual auferia, como empregada ou como tal formalmente considerada, Esc.: 120.000$00 mensais. - O Réu enquanto viveu com a autora contribuía para as despesas domésticas e a autora gastava além dessa contribuição, a totalidade da sua remuneração de 120.000$00. - A autora sempre dependeu economicamente do réu e não tem quaisquer meios de subsistência ou rendimentos para fazer face às suas despesas. - Ela está a viver do auxilio de amigos e familiares e do penhor de algumas jóias. - Devia, à data da propositura da acção Esc.: 30.000$00 na mercearia. - A electricidade da sua residência foi cortada por falta de pagamento e teve de pedir dinheiro emprestado para que pudesse ser restabelecida a ligação. - Para o seu sustento, alimentação, água, electricidade, despesas do prédio onde habita (que é propriedade do casal - cfr. artº 4º da petição), telefone, vestuário e calçado a autora necessita de quantia não inferior a 100.000$00. - Por seu turno o réu tem um rendimento liquido proveniente da Farmácia C, não inferior a um milhão de escudos. Vive ou, pelo menos, tem na sua disponibilidade para habitar, uma casa própria sita na Parede. Em face de quanto se expôs, e sem necessidade de mais desenvolvimentos, consideram-se verificados os fundamentos para atribuição à A. da prestação alimentar atribuída pelas instâncias até à dissolução do casamento pelo divórcio em 1999, a qual se considera fixada em montante equilibrado, sendo adequada às circunstâncias do caso. 3 - Por tudo quanto se disse, é por demais manifesto ter-se a A. limitado ao exercício do seu direito. O R. alegou, ao contestar, que a R. se despedira voluntariamente sem qualquer justificação e que recusou, pelo menos, uma oferta de trabalho - cfr. artigos 33º a 36º da contestação. Tais imputações deram origem aos quesitos 35º a 38º, posteriormente aditados - fls. 142. No entanto, resulta das respostas negativas aos quesitos 36º e 37º que o R. não conseguiu provar que a A. se tenha despedido sem motivo justificado ou que tenha recusado uma oferta de emprego. Nem sequer a circunstância de a Relação ter dado como não escrita, por ser conclusiva, a resposta ao quesito 38º, segundo a qual a R. se teria despedido da Farmácia C, dada a impossibilidade de ali continuar, em consequência da ruptura do casal, permite concluir de outro modo. É que daí não se pode retirar a ilação de que se tenha provado que a R. se despediu sem qualquer justificação. Ou seja, em face do desconhecimento das razões determinantes do despedimento, falta a base de facto minimamente indispensável para se poder afirmar que a A. incorreu em abuso do direito - artigo 334º. Improcedem, pois, as conclusões do Recorrente, não se mostrando violados os normativos legais por ele enumerados. Termos em que se nega a revista. Custas pelo Recorrente. Lisboa, 19 de Novembro de 2002 Garcia Marques Ferreira Ramos Pinto Monteiro ------------------------ (1) Por lapso manifesto, escreveu-se, no texto, "Cod. Proc. Civil". (2) Cfr. Alberto dos Reis, "Comentário (...)", 2º, pág. 372 e Acórdão do STJ de 12 de Março de 1974, no BMJ, nº 235, pág. 310, e na RLJ, Ano 108º, págs. 73 e segs. (3) Do seguinte teor: "A falta de invocação de tal aspecto não apenas determina a ineptidão da petição inicial; a luz do disposto no artº 467º, nº 1, al. c), do CPC, como ainda a necessária improcedência do pedido formulado". (4) Resumindo, poderá dizer-se que a causa de pedir é o facto jurídico concreto ou o título gerador do direito invocado, não se confundindo com os factos materiais alegados, nem com as razões jurídicas invocadas, devendo definir-se em função da qualificação jurídica desses factos que constituem apenas factos instrumentais necessários à individualização do "facto jurídico" - tudo invocado como "os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção", em conformidade com a alínea c) do nº 1 do artigo 467º - veja-se, neste sentido, o Acórdão deste STJ de 15 de Março de 2001, Revista nº 3640/00. (5) Cfr. também a norma análoga do artigo 2016º, nº 2. (6) Cfr. Antunes Varela, "Direito de Família", Livraria Petrony, 3ª edição, 1º volume, pág. 350. (7) Pode ler-se no sumário do Acórdão de 22 de Maio de 2001 da Relação de Lisboa (C.J., Ano XXVI, 2001, Tomo III, pág. 95), o seguinte: A culpa exclusiva ou principal, de quem solicita alimentos é um facto impeditivo do respectivo direito, a provar por aquele a quem é exigido o cumprimento da obrigação alimentar". (8) Que dispunha o seguinte: "Estando os cônjuges separados de facto, só aquele a quem não for imputável a separação pode exigir o cumprimento do dever de assistência". (9) Cfr. "Direito de Família", Livraria Petrony, 3ª edição, 1º volume, pág. 350, nota (1). (10) Cfr. também a norma homóloga do artigo 2016º, nº 2, já citado. (11) Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, "Noções Fundamentais do Direito Civil", vol, 2º, 5ª edição pág. 130. (12) Cfr. as alíneas A) e B) da Especificação. (13) Interpretar uma lei não é mais do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja, determinar o seu sentido e alcance decisivos; o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é o de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei - cfr. Manuel de Andrade, "Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis", págs. 21 a 26. |