Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
487/19.8PALSB-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO PREVENTIVA
TRIBUNAL COLETIVO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL COLECTIVO
PRESIDENTE
COMPETÊNCIA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 12/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O habeas corpus, previsto no artigo 31.º, n.º 1, da Constituição como direito fundamental contra o abuso de poder, constitui uma providência expedita e urgente de garantia privilegiada do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição.

II. A medida de coação de prisão preventiva só pode ser aplicada por um juiz, o qual, em despacho fundamentado, verifica as respetivas condições e pressupostos que a justificam (artigos 193.º, 194.º, n.ºs 1 e 5, 202.º e 204.º do CPP).

III. O juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta, na aceção da alínea j) do artigo 1.º do CPP [artigo 202.º, n.º 1, al. b), do CPP], em que se compreende o crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a), c) e d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, punível com pena de 2 a 5 anos de prisão.

IV. Sendo proferida decisão condenatória, o tribunal procede, sempre que necessário, ao reexame da situação do arguido, podendo aplicar a medida de coação adequada, nos termos do disposto no artigo 375.º, n.º 4, do CPP.

V. A competência para aplicar a medida de prisão preventiva, após a leitura de acórdão condenatório proferido pelo tribunal coletivo, pertence ao presidente do tribunal (artigo 311.º do CPP), isto é, ao juiz a quem o processo é distribuído, ao juiz do processo (artigo 135.º, n.º 1, da LOSJ), o qual, além de presidir ao julgamento, deve praticar todos os atos que, na pendência do processo, requeiram decisão (artigos 203.º e 152.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP), o que  se inscreve nas “demais funções atribuídas por lei” ao presidente do tribunal coletivo [artigo 135.º, n.º 2, al. f), da LOS]J.

VI. Ao aplicar a medida de prisão preventiva, o juiz presidente não age “em representação do tribunal coletivo”; age no exercício de competência própria, como presidente do tribunal, proferindo uma decisão singular, por despacho [artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP], sobre matéria de que deve decidir.

VII. Sendo a decisão proferida por “entidade competente”, válida e exequível, não se verifica o alegado motivo de ilegalidade previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, pelo que o pedido carece de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório

1. AA, com identificação nos autos, preso preventivamente, alegando encontrar-se atualmente em prisão ilegal por incompetência da presidente do tribunal coletivo para aplicar a medida de prisão preventiva imediatamente após a leitura do acórdão que lhe aplicou a pena única de 9 anos de prisão pela prática de seis crimes de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal, por considerar que a situação em que se encontra se compreende na previsão da al. a) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP), apresenta petição de habeas corpus, nos seguintes termos (transcrição):

«I. Enquadramento factual

1.º O arguido, aqui requerente, foi notificado da decisão no processo em epígrafe proferida, por súmula de forma oral em audiência de julgamento, na sua presença, e posteriormente depositada na secretaria, a 13 de dezembro de 2021, pelo Tribunal Coletivo do Juízo Central Criminal ... - Juízo Central Criminal ... - juiz ....

2.º A referida decisão condenou o arguido, aqui requerente, pela prática em autoria material e de forma consumada de 06 (seis) crimes de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º do Código Penal (doravante "CP").

3.º Tal resultou, em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 09 (nove) anos de prisão efetiva.

4.º Foram, ainda, aplicadas as penas acessórias de proibição de estabelecer quaisquer contactos, e por quaisquer meios, com as vítimas dos crimes em causa, com afastamento da residência e local de trabalho destas, pelo período de 05 (cinco) anos, sendo o cumprimento desta medida sujeito a fiscalização com recurso a meios técnicos de controlo à distância, bem como a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica, sob controlo da DGRSP, nos termos previstos dos no art.º 152.º, n.ºs 4 e 5 do CP.

5.º Contudo, ainda que não descrito ou ínsito no acórdão supra referido, depositado na secretaria também indicados, foi decidido, na sessão de audiência de julgamento supra referida, aquando da sua leitura, pela MM.ª Juiz Presidente, aplicar uma outra medida de coação ao Arguido: a prisão preventiva até ao trânsito em julgado da decisão condenatória em questão e supra referida.

6.º Desde já se refira que a aplicação da referida medida de coação de prisão preventiva não tinha qualquer correlacto fundamento nas exigências de prevenção geral e especial do processo em questão, tratando-se de uma medida injustificada e não fundamentada, tendo em conta as especificidades do caso em concreto.

Vejamos,

7.º Em audiência de julgamento, e após a leitura da súmula do acórdão, o Ministério Público interveio, propondo então a aplicação desta medida:

[00:21:51] Ministério Público (Sr.a Procuradora): "Portanto, considerando aqui os factos dados como provados no Acórdão que a Meritíssima Juiz Presidente acabou de ler, tendo em conta principalmente o facto de o Arguido não ter feito aqui qualquer ato de contrição, mesmo tendo em conta as consequências graves e duradouras verificadas nas vítimas e demonstradas aqui em audiência de julgamento e mesmo a existência de alguns comportamentos posteriores à separação resultantes aqui das declarações do menor, o Ministério Público entende que existe aqui um concreto perigo de continuação da atividade criminosa em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da própria personalidade do agente. Por outro lado, o Arguido também se encontra desempregado, já desempenhou funções noutros países, poderá também de alguma forma eximir-se ao cumprimento desta pena, até porque está proibido de contactar, neste caso, com os familiares, portanto, tendo em conta todos estes perigos concretos, o Ministério Público entende que é adequado, necessário e proporcional a aplicação desde já de uma medida de coação de prisão preventiva nos termos dos artigos 202.º, alínea b), 204.º, alíneas a) e c) e também o 193.º da adequação da necessidade e proporcionalidade. E é tudo, senhora doutora".

8.º Nesse seguimento, veio a MM.ª Juiz Presidente a proferir as seguintes declarações:

[00:23:40] MM.a Juiz Presidente: "Vai então ficar a constar da ata o seguinte despacho: o Arguido encontra-se sujeito desde o início do inquérito à medida de coação termo de identidade e residência, a qual consubstancia a medida de coação menos gravosa consagrada pelo sistema processual penal vigente. Porém, face ao Acórdão ora proferido, nos termos do qual ficou provado que o Arguido cometeu em autoria material seis crimes de violência doméstica pelos quais foi condenado na pena única de 9 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 3 anos de prisão, 4 anos de prisão, 3 anos e 6 meses de prisão, 3 anos e 3 meses de prisão, 3 anos e 6 meses de prisão e 3 anos e 4 meses de prisão, cumpre questionar se a medida de coação que o Arguido mantém é adequada e proporcional ao caso. Inequivocamente, que o Arguido, confrontado com a circunstância de ter de cumprir os 9 anos de prisão em que vai condenado, pese embora não se possa ainda prever o momento em que ocorrerá o trânsito em julgado desta condenação, poderá ver-se tentado a furtar-se ao cumprimento dessa pena até porque resulta da prova produzida em audiência que no passado exerceu funções profissionais fora do país, concretamente, em ..., sendo ainda certo que as suas habilitações académias e experiência profissional são aptas a que a qualquer momento possa vir a receber proposta de trabalho fora do país ou mesmo a candidatar-se a um emprego em país estrangeiro. Na verdade, o Arguido encontra-se presentemente desempregado e sem vínculo laboral, o que potencia o risco de tal suceder seja por opção profissional, seja por força da condenação que ora conheceu.

Existe assim em concreto o perigo de a qualquer momento o Arguido se ausentar para parte incerta frustrando a execução da pena e as consequências punitivas decorrentes dos crimes que cometeu. Por outro lado, se é nítido que presentemente o Arguido se encontra separado da Assistente e vítima BB e dos filhos, à exceção da vítima CC que tem consigo residido com algum carácter de frequência, não pode o Tribunal ignorar o facto de tal separação não impedir o Arguido de, quando está com os filhos na residência que habita, bem como noutros locais, os agredir fisicamente e lhes dirigir palavras insultuosas e lesivas da sua honra e consideração pessoal, humilhando-os. Tal foi o que resultou de forma expressa das declarações para memória futura prestadas nos Autos pelos menores DD e EE no dia 04/11/2020 e que foram devidamente valoradas pelo Tribunal para a formação da sua convicção, permitindo concluir que a permanência do Arguido em liberdade proporciona, em concreto, o perigo de continuação da atividade criminosa, não sendo o Tribunal insensível à circunstância de os seus contactos com os filhos potenciarem nestes maior instabilidade psíquica, mercê das características manipuladoras que o Arguido apresenta. Na verdade, por várias vezes ao longo da audiência, pretendeu o Arguido que os menores fossem ouvidos em julgamento tendo pretextado que os mesmos lhe confessaram pretender repor a verdade e com isso desvalorizar e relativizar o que haviam declarado na referida diligência ocorrida nos Autos a 04/11/2020 e que se encontra documentada a folhas 371 e seguintes.

Existe assim, em concreto, o forte perigo de fuga do Arguido e o forte perigo da continuação da atividade criminosa, caso permaneça sujeito apenas a termo de identidade e residência sendo ainda evidente que se mostra fortemente indiciada a prática dos crimes pelos quais vai agora condenado na pena única de 9 anos de prisão. Por conseguinte, impõe-se a conclusão de que no caso em apreço se encontra excluída a aplicação de qualquer outra medida de coação que não a prisão preventiva, pois que mais nenhuma se afigura suficiente, adequada e proporcional à salvaguarda das exigências cautelares do caso, nomeadamente, tendo em vista evitar o perigo de fuga e de continuação da sua atividade criminosa. Não pode ainda olvidar-se a patente proporcionalidade da prisão preventiva à gravidade dos ilícitos por cuja prática o Arguido já se mostra condenado, embora sem que se verifique ainda o trânsito em julgado desta condenação. Nesta conformidade, determina o Tribunal que o Arguido AA aguarde em prisão preventiva os ulteriores termos do processo e de imediato será conduzido ao estabelecimento prisional através dos mandados de detenção e condução que agora se assinaram."

9.º Se a aplicação desta medida de coação vai ser alvo de impugnação própria, nos meios, tempos e instrumentos legais aplicáveis, a verdade é que o procedimento de decretação de uma medida de coação após a leitura do acórdão obedece a formalismos específicos e concretos que, in casu, não foram respeitados.

10.º E ao não ser respeitados, desde já se sublinha que também não pode aquela medida de coação ser aplicada de forma válida ou legitima, sendo, por isso também, ilegal a prisão do aqui Requerente.

Assim,

II - O caso concreto: a nulidade insanável (artigo 119. °, n.º 1, CPP)

Sucede que,

11.º As audiências de julgamento tiveram início no dia 10 de novembro de 2021, tendo-se prolongado por várias sessões (10, 17 e 24 de Novembro, e 3 de Dezembro de 2021), sendo que a produção de prova terminou, precisamente, na sessão da audiência de julgamento de 3 de Dezembro de 2021.

12.º Na sessão de audiência de julgamento de 13 de dezembro de 2021, após ter procedido à leitura do Acórdão supra referido, a Digníssima Representante do Ministério Público requereu que fosse aplicada medida de coação privativa da liberdade - in casu, a prisão preventiva - sendo que a MM.ª Juiz Presidente do Colectivo decidiu imediatamente e de forma singular no sentido de deferir a medida supra referida.

Porém, saliente-se que,

13.º Decidiu a MM.ª Juiz Presidente, de forma autónoma e independente (isto é, sem a validação dos outros juízes integrantes do colectivo) aplicar uma medida de coação privativa da liberdade - in casu, a prisão preventiva nos termos dos artigos 202.º, 204.º e seguintes do CPP - tendo por isso, por forma injustificada e não fundamentada, e dentro do leque de medidas de coação disponíveis no Código de Processo, escolhido a mais gravosa e de ultimíssima ratio (o que não se admite)!

14.º E fê-lo, também, quando o Colectivo já tinha encerrado a sua deliberação.

15.º Nesta fase, manifesto se revela que,

a)    Já estava encerrada a deliberação e votação;

b)   E a MMª Juiz já elaborara o acórdão pelo que, na verdade, se encontrava também já extinto o seu poder de cognição.

16.º Resulta, portanto, inequívoco que o Tribunal Coletivo não deliberou, em conjunto, a aplicação da medida de coação referida - de prisão preventiva.

17.º Como bem sabemos, este é um Tribunal Colectivo, que toma as suas decisões neste processo tendo em conta essa mesma particularidade da sua constituição, conforme o disposto nos seguintes artigos:

Artigo 14.º CPP

"1 - Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.

2 - Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:

a)     Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa; ou

b)    Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime"

Artigo 133.º da Lei Da Organização Do Sistema Judiciário (LOSJ)

"1 - O tribunal coletivo é composto, em regra, por três juízes privativos.

2 - Quando se justifique, o Conselho Superior da Magistratura, ouvido o presidente do tribunal de comarca, designa os juízes necessários à constituição do tribunal coletivo, devendo a designação recair em juiz privativo da mesma comarca, salvo manifesta impossibilidade.

3 - Nos juízos centrais criminais de Lisboa e do Porto há um juiz militar por cada ramo das Forças Armadas e um pela GNR, os quais intervêm nos termos do Código de Justiça Militar."

· Artigo 134.º da Lei Da Organização Do Sistema Judiciário (LOSJ) "Compete ao tribunal coletivo julgar:

a)     Em matéria penal, os processos a que se refere o artigo 14º do Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro;

b)     As questões de facto e de direito nas ações e nos incidentes e execuções que sigam os termos do processo de declaração, sempre que a lei do processo o determine."

18.º Não é permitido, por isso, à Mm.ª Juiz Presidente tomar esta decisão sem a presença e aval dos restantes membros do Tribunal Colectivo - tal desvirtua a importância, necessidade e oportunidade da existência destes Tribunais! - cfr. artigo 135.º da LOSJ:

"1 - O tribunal coletivo é presidido pelo juiz do processo.

2 - Compete ao presidente do tribunal coletivo:

a)      Dirigir as audiências de discussão e julgamento;

b)     Elaborar os acórdãos nos julgamentos penais;

c)     Proferir a sentença final nas ações cíveis;

d)     Suprir as deficiências das sentenças e dos acórdãos referidos nas alíneas anteriores, esclarecê-los, reformá-los e sustentá-los nos termos das leis de processo;

e)      Organizar o programa das sessões do tribunal coletivo;

f)       Exercer as demais funções atribuídas por lei."

Ora,

19.º Resulta por isso claro que da articulação legal entre o artigo 133.º, número 1 e artigo 135.º, ambos da LOSJ, e tendo em conta o espectro de definição sistemática ínsito no artigo 14.º do CPP, o Presidente de um Tribunal Colectivo tem competências especificamente definidas por lei, que foram ultrapassadas largamente neste caso, e que, mais importante, actos de privação de liberdade do Arguido, mormente a escolha pela aplicação da medida mais gravosa de prisão preventiva, sempre devem ter a aquiescência e o contributo decisório dos restantes elementos constituintes do Colectivo.

20.º De acordo com o disposto no artigo 119.º n.º 1 do CPP:

"Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;''

21.º Conforme o disposto no artigo 122.º, também, do CPP:

"1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.

3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela."

22.º Este Tribunal, ao aplicar a supracitada medida de coação, na pessoa da MM.ª Juiz Presidente, sem que o Tribunal Colectivo estivesse devida e legalmente constituído - na ausência dos restantes juízes parte daquele Colectivo e sem que aqueles tenham dado o seu assentimento à aplicação da medida de coação referida (prisão preventiva, que, sendo de ultimíssima ratio e de utilização excecionalíssima, sempre deveria ser especialmente fundamentada e considerada) - incorre então numa nulidade insanável - cfr. artigo 119.º n.º 1 do CPP.

23.º E, de tal, só pode resultar que o acto praticado pela MM.ª Juiz Presidente é nulo e inválido, o que também comporta os subsequentes e respectivos efeitos práticos no processo, nomeadamente quanto à ilegalidade da prisão preventiva.

24.º. Como tal, estando ferida de nulidade a aplicação da medida de coação em causa, e não havendo qualquer base legal ou fundamento factual para a sua aplicação ou manutenção, encontra-se o aqui Arguido privado da sua liberdade de forma manifestamente ilegal.

III – Do pedido de habeas corpus

Complementando o que supra se expôs, vejamos,

25.º O artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe "Habeas corpus em virtude de prisão ilegal dispõe o seguinte:

"1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a)   Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b)   Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c)    Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial."

26.º In casu, como foi já esmiuçado e comprovado supra, a MM.ª Juiz Presidente não tinha competência para analisar, em representação do Tribunal Colectivo, a necessidade e a consequente aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, quanto mais uma de ultimíssima ratio e de aplicação excepcional como é a prisão preventiva!

27.º Esta acção por parte da MM.ª Juiz Presidente comporta uma nulidade insanável, tornando o acto inválido e, portanto, a autoridade que aplicou esta medida de coação ao Arguido considera-se incompetente para os devidos efeitos legais.

28.º Estando assim verificado o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, pelo que deve a prisão preventiva ser declarada extinta!

Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V.ª Ex.ª, deve ser dado provimento a este pedido de Habeas Corpus, sendo declarada a ilegalidade da detenção do arguido, aqui requerente, por violação do disposto no artigo 222.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal, ordenando-se a imediata colocação do Arguido em liberdade.»

2. Da informação prestada pela Senhora Juíza presidente do tribunal de julgamento, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a prisão, consta o seguinte (transcrição):

«Nos termos do disposto no art.º 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), remeta de imediato, ao Colendo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a petição de habeas corpus que antecede, apresentada pelo arguido AA, acompanhada da seguinte informação:

1. O requerente/ arguido encontra-se preso, à ordem destes autos de processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 487/19...., do juiz ... do Juízo Central Criminal ..., desde o passado dia 13.12.2021;

2. A prisão do requerente/ arguido mantém-se e encontra-se a ser cumprida pelo mesmo desde o referido dia 13.12.2021, no Estabelecimento Prisional do ...;

3. A prisão preventiva foi decretada, como medida de coacção, em acto subsequente à leitura do acórdão condenatório do arguido/ requerente, proferido no indicado dia 13.12.2021.»

3. O processo encontra-se instruído com documentação dos seguintes atos processuais relevantes:

(a) Ata de audiência de discussão e julgamento para leitura de acórdão, de 13 de dezembro de 2021, da qual constam a audição e o parecer do Ministério Público no sentido de aplicação da medida de prisão preventiva e a decisão da juíza presidente que aplica esta medida;

(b) Acórdão de 13 de dezembro de 2021, que condenou o requerente na pena única de 9 anos de prisão, pela prática de seis crimes de violência doméstica, p. p. pelo artigo 152.º do Código Penal;

(c) Mandado de condução do requerente ao estabelecimento prisional, de 13 de dezembro de 2021;

(d) Dados de pesquisa de recluso na base de dados de Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e informação certificada de que o requerente se encontra preso preventivamente, desde o dia 13 de dezembro de 2021, no Estabelecimento Prisional do ....

4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP. Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

5. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais, privativas do direito à liberdade.

O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade. Exceptua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui a prisão preventiva, no processo penal, por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos [n.º 3, al. b)].

Como se tem sublinhado (por todos, o acórdão de 22.09.2021, Proc, n.º 3825/21.0T9CSC-A.S1, publicado em www.dgsi.pt), a prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.).

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição, que se inspira diretamente no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e em outros textos internacionais como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar (assim, o acórdão de 2.12.2021, Proc. 4490/15.9T8BRG-I.S1, Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 478 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2001, DR II,  n.º 163, de 17.07.2002), o direito à liberdade de movimentos, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção (Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 300).

O direito à liberdade visa proteger o direito à liberdade física da pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, que ocupa um lugar central no conjunto dos direitos fundamentais que protegem a segurança física de uma pessoa numa sociedade democrática [como vem reiterando jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) desde o acórdão Engel e outros c. Países Baixos, de 8.6.1976, § 58; por todos, o acórdão MacKay c. Reino Unido, 3.10.2016, § 30], conferindo o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração (por todos, do TEDH, o acórdão Del Río Prada c. Espanha, de 21.10.2013, § 125).

6. A prisão preventiva, que tem natureza excecional (artigo 28.º, n.º 2, da Constituição), constitui uma medida de coação de ultima ratio que só pode ser aplicada por um juiz, o qual, em despacho fundamentado, verifica os pressupostos de que depende a sua aplicação, incluindo a admissibilidade, a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, bem como as respetivas condições, que a justificam (artigos 193.º, 194.º, n.ºs 1 e 5, 202.º e 204.º do CPP).

Dispõe o artigo 194.º, n.º 1, do CPP que “à exceção do termo de identidade e residência, as medidas de coação e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade”.

Nos termos do artigo 202.º, n.º 1, do CPP, “se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando”, entre outras situações, quando “houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta” [al. b)].

Constituem “criminalidade violenta” as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos [artigo 1.º, al. j), do CPP].

Os crimes de violência doméstica, por que o arguido, agora requerente, foi condenado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), c) e d), e n.º 2, al. a), do Código Penal, incluem-se no Capítulo III – “Dos crimes contra a integridade física” – do Título I – “Dos crimes contra as pessoas” – da Parte Especial do Código Penal e são punidos com pena de prisão de dois a cinco anos, por ocorrerem as circunstâncias de gravação previstas no n.º 2, constituindo, por conseguinte, condutas que se compreendem no conceito de criminalidade violenta.

Dispõe este preceito:

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…)

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; (…)

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (…)

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

7. A prisão preventiva está sujeita aos prazos de duração máxima previstos no artigo 215.º do CPP, a contar do seu início, findos os quais se extingue.

Havendo condenação em 1.ª instância, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido um ano e seis meses ou dois anos, em casos de criminalidade violenta, sem que a condenação tenha transitado em julgado [artigo 215.º, n.º 1, al. d), do CPP].

8. As decisões relativas à aplicação e reexame da prisão preventiva podem ser impugnadas por via de recurso ordinário, nos termos gerais (artigos 219.º, n.º 1, e 399.º e segs. do CPP), designadamente quanto aos pressupostos e às questões processuais que lhes digam respeito, sem prejuízo de recurso à providência de habeas corpus contra abuso de poder por virtude de prisão ilegal (artigos 31.º da Constituição e 222.º a 224.º do CPP), com os fundamentos enumerados no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Dispõe este preceito que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

9. Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a decidir que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido ou atos que lhes digam respeito, ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (artigos 399.º e segs. do CPP).

A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. «Os fundamentos da providência [de habeas corpus] revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação direta e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a direta, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» [acórdão de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B.S1; assim também, entre outros, os acórdãos de 02.11.2018, proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

A providência de habeas corpus não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões sobre questões de natureza processual que possam afectar a situação de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos (assim, Canotilho/Vital Moreira e Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit., e Maia Costa, comentário ao artigo 222.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, 2016). A diversidade do âmbito de proteção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, numa relação de complementaridade, em que aquela providência permite preencher um espaço de proteção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

10. O pedido de habeas corpus pressupõe a actualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que este é apreciado, como também tem sido reiteradamente sublinhado (acórdão de 26.07.2019 cit. e, de entre outros, os acórdãos de 21.11.2012, proc. n.º 22/12.9GBETZ-0.S1, de 9.2.2011, proc. n.º 25/10.8MAVRS-B.S1, de 11.02.2015, proc. n.º 18/15.9YFLSB.S1, e de 17.03.2016, proc. n.º 289/16.3JABRG-A.S1, em www.dgsi.pt).

11. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível (prisão ordenada por entidade competente), (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 22.1.2020, Proc. 4678/18.0T8LSB-B.S1, acessível em https://www.stj.pt/wp-ontent/uploads/2021/02/ criminal_sumarios-2020.pdf) e de 09.01.2019, proc. n.º 589/15.0JALRA-D.S1, em www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/criminal_ sumarios_ janeiro_ 2019 .pdf).

12. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a apreciação e decisão, que:

- Por acórdão de 13 de dezembro 2021, o arguido foi condenado na pena única de 9 anos de prisão pela prática de seis crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal [sendo um deles punível pelos n.ºs 1, al. a) e c), e 2, al. a), e os restantes pelos n.ºs 1, al. d), e 2, al. a)];

- Após a leitura do acórdão, a juíza presidente do tribunal coletivo “questionou” a magistrada do Ministério Público “quanto à eventualidade de, querendo, se pronunciar quanto ao estatuto coativo do arguido, tendo a mesma dito que”:

considerando os factos dados como provados no acórdão que a Mma. Juiz Presidente acabou de ler, tendo em conta principalmente o facto de o arguido não ter feito ato de contrição, mesmo tendo em conta as consequências graves e duradouras verificadas nas vítimas e demonstradas aqui em audiência de julgamento e mesmo a existência de alguns comportamentos posteriores à separação resultantes aqui das declarações do menor, o Ministério Público entende que existe aqui um concreto perigo de continuação da atividade criminosa em razão da natureza e das circunstâncias do crime e da própria personalidade do agente. Por outro lado, o arguido também se encontra desempregado, já desempenhou funções noutros países, poderá também de alguma forma eximir-se ao cumprimento desta pena, até porque está proibido de contactar, neste caso, com os familiares. Tendo em conta todos estes perigos concretos, o Ministério Público entende que é adequado, necessário e proporcional a aplicação desde já de uma medida de coação de prisão preventiva nos termos dos artigos 202.º, alínea b), 204.º, alíneas a) e c) e art. 193.º" (como consta da ata);

- Seguidamente, a juiz presidente deu a palavra ao mandatário do arguido, “tendo o mesmo referido que não se encontram reunidos os pressupostos da prisão preventiva, sendo que para os devidos efeitos legais declara em ata que irá proceder à interposição de recurso, apresentando motivação dentro do prazo legal concedido” (da ata).

- Após o que a juiz presidente proferiu despacho aplicando a medida de prisão preventiva, nos seguintes termos, constantes da ata de audiência:

O arguido encontra-se sujeito, desde o início do inquérito, à medida de coação termo de identidade e residência, a qual consubstancia a medida de coação menos gravosa consagrada pelo sistema processual penal vigente.

Porém, face ao acórdão ora proferido, nos termos do qual ficou provado que o arguido cometeu, em autoria material, seis crimes de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, pelos quais foi condenado na pena única de 9 anos de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 3 anos de prisão, 4 anos de prisão, 3 anos e 6 meses de prisão, 3 anos e 3 meses de prisão, 3 anos e 6 meses de prisão e 3 anos e 4 meses de prisão, cumpre questionar se a medida de coação que o arguido mantém é adequada e proporcional ao caso.

Inequivocamente, que o arguido, confrontado com a circunstância de ter de cumprir os 9 anos de prisão em que vai condenado, pese embora não se possa ainda prever o momento em que ocorrerá o trânsito em julgado desta condenação, poderá ver-se tentado a furtar-se ao cumprimento dessa pena até porque resulta da prova produzida em audiência que no passado exerceu funções profissionais fora do país, concretamente, em ..., sendo ainda certo que as suas habilitações académicas e experiência profissional são aptas a que a qualquer momento possa vir a receber proposta de trabalho fora de Portugal ou mesmo a candidatar-se a um emprego em país estrangeiro. Na verdade, o arguido encontra-se presentemente desempregado e sem vínculo laboral, o que potencia o risco de tal suceder seja por opção profissional, seja por força da condenação que ora conheceu.

Por outro lado, se é nítido que, presentemente, o arguido se encontra separado da assistente e vítima BB e dos filhos, à excepção da vítima CC, que consigo tem residido com algum carácter de frequência, não pode o tribunal ignorar o facto de tal separação não impedir o arguido de, quando está com os filhos, na residência que habita, bem como noutros locais, os agredir fisicamente e de lhes dirigir palavras insultuosas e lesivas da sua honra e consideração pessoal, humilhando-os. Tal foi o que resultou de forma expressa, das declarações para memória futura prestadas nos autos pelas menores DD e EE no dia 4.11.2020, e que foram devidamente valoradas pelo tribunal para a formação da sua convicção, permitindo concluir que a permanência do arguido em liberdade proporciona, em concreto, o perigo de continuação da atividade criminosa, não sendo o tribunal insensível à circunstância de os seus contactos com os filhos potenciarem neste maior instabilidade psíquica mercê das características manipuladoras que o arguido apresenta. Na verdade, por várias vezes ao longo da audiência, pretendeu o arguido que os menores fossem ouvidos em julgamento, tendo pretextado que os mesmos lhe confessaram pretender repor a verdade e, com isso, desvalorizar e relativizar o que haviam declarado na referida diligência ocorrida nos autos a 04.11.2020, documentada a fls. 371 a 375.

Existe assim em concreto o perigo de fuga do arguido e o forte perigo de continuação da atividade criminosa caso permaneça sujeito, apenas, a termo de identidade e residência, sendo ainda evidente que se mostra fortemente indiciada a prática de crimes pelos quais vai condenado na pena única de 9 anos de prisão.

Por conseguinte, impõe-se a conclusão de que, no caso vertente, se encontra excluída a aplicação de qualquer outra medida de coação que não a prisão preventiva, pois que mais nenhuma se afigura suficiente, adequada e proporcional à salvaguarda das exigências cautelares que o caso impõe, nomeadamente tendo em vista evitar o perigo de fuga e de continuação da sua atividade criminosa por parte do arguido AA.

Não pode, ainda, olvidar-se a patente proporcionalidade da prisão preventiva à gravidade dos ilícitos por cuja prática já se mostra condenado, embora sem que se verifique ainda o respetivo trânsito em julgado.

Nesta conformidade, e atenta a fundamentação aduzida, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva – artigos 191.º, 102.º, 193.º, 202.º, n.º 1, al. a), e 204.º, alíneas a) e c), todos do Código de Processo Penal

Passe, de imediato, mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional".

- O arguido, agora requerente, foi, então, em cumprimento desta decisão, conduzido, no mesmo dia, ao estabelecimento prisional, onde atualmente se encontra.

13. Na petição da presente providência de habeas corpus, o arguido alega, em síntese, que a decisão de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, tomada pela juíza presidente do tribunal coletivo, depois de este ter encerrado a sua deliberação, estando “extinto” o seu poder de cognição, sofre de nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, n.º 1, al. a), do CPP, que afeta a validade e legalidade da prisão preventiva, (artigo 122.º do CPP), pois que, sendo este um tribunal coletivo “que toma as suas decisões neste processo, tendo em conta a particularidade da sua constituição”, “não é permitido ao juiz presidente tomar esta decisão sem a presença e o aval dos restantes membros do tribunal coletivo”.

Invoca o artigo 14.º do CPP, sobre a competência do tribunal coletivo, e os artigos 133.º, 134.º e 135.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto –, sobre a composição e competência do tribunal coletivo e do seu presidente, concluindo que a juíza presidente “não tinha competência para analisar, em representação do Tribunal Colectivo, a necessidade e a consequente aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, quanto mais uma de ultimíssima ratio e de aplicação excecional como é a prisão preventiva”, pelo que, sendo “a autoridade que aplicou esta medida de coação ao arguido” incompetente, se verifica o motivo de ilegalidade da prisão previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

14. Como já se referiu, a prisão preventiva é sempre aplicada por um juiz, o qual, em despacho fundamentado, verifica os pressupostos de que depende a sua aplicação, incluindo a admissibilidade, a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida, bem como as respetivas condições de aplicação, que a justificam.

Nos termos do disposto no artigo 375.º, n.º 4, do CPP, sendo proferida decisão condenatória, o tribunal procede, sempre que necessário, ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coação admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requer.

15. A competência do tribunal coletivo, definida nos artigos 14.º do CPP e 133.º e 134.º da LOSJ, invocados e transcritos pelo requerente na petição, é a competência para julgar processos, proferindo sentenças, sob a forma de acórdão (artigo 97.º, n.º 1, al. a), e n.º 2 do CPP), que conheçam do seu objeto, devendo essas decisões respeitar os requisitos impostos pelo artigo 374.º do CPP. Nos termos do n.º 3 deste preceito, a sentença termina pelo dispositivo, que contém, além do mais, as disposições legais aplicáveis e a decisão condenatória ou absolutória, não tendo que se pronunciar sobre a situação processual do arguido.

Nenhuma norma legal atribui ao tribunal coletivo competência para, em caso de condenação, proceder ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o a medidas de coação, nos termos do artigo 375.º, n.º 4, do CPP.

Tal competência pertence ao presidente do tribunal, na aceção do artigo 311.º do CPP, isto é, ao juiz a quem o processo é distribuído, ao juiz do processo, na formulação do artigo 135.º, n.º 1, da LOSJ, que deve presidir ao julgamento e praticar todos os atos que, na pendência do processo, requeiram decisão (artigos 203.º e 152.º, n.º 1, do CPC, ex vi artigo 4.º do CPP). Nos termos do artigo 135.º da LOSJ o tribunal coletivo é presidido pelo juiz do processo, ao qual, para além de dirigir as audiências de discussão e julgamento e de elaborar os acórdãos nos julgamentos penais, compete exercer as demais funções atribuídas por lei [n.º 2, al f)].

Na fase de julgamento, e nas fases subsequentes, até ao trânsito da decisão, cabe ao titular do processo (ao presidente do tribunal, se for coletivo ou de júri), ao juiz presidente da audiência em tribunal coletivo, decretar, quando necessário, a aplicação ou modificação das medidas de coação (assim, Maia Costa, comentário ao artigo 194.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, e Pinto de Albuquerque, anotação ao artigo 194.º, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed., Católica Editora, 2011).

16. Devendo o reexame da situação do arguido ser efetuado por um juiz, com imposição, se disso for caso, da medida de prisão preventiva, nos termos do artigo 375.º, n.º 4 do CPP, o que é da sua competência reservada e exclusiva, corresponde este ato ao exercício de uma função atribuída por lei, nos termos daquela disposição legal.

Ao proferir a decisão de aplicação de medida de coação, depois de proferido o acórdão condenatório, o juiz presidente não age “em representação do tribunal coletivo”, usando a expressão do peticionante. Age no exercício de competência própria, como presidente do tribunal, proferindo uma decisão singular, por despacho [artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP], sobre matéria de que deve decidir.

17. A decisão, com observância do contraditório, foi proferida após audição do Ministério Público, nos termos do artigo 194.º, n.º 1, do CPP, não ocorrendo o motivo da nulidade cominada neste preceito.

18. Assim, não cabendo no âmbito deste processo apreciar dos pressupostos, condições e requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade de que depende a aplicação da prisão preventiva e sendo a decisão proferida por “entidade competente”, válida e exequível, impõe-se concluir que não se verifica o alegado motivo de ilegalidade previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

Para além disso, foi a decisão motivada por facto pelo qual a lei a permite, por ser admissível a prisão preventiva, mantendo-se dentro do prazo legalmente fixado, não ocorrendo também, por conseguinte, qualquer dos motivos de ilegalidade da prisão previstos nas alíneas b) e c) do n.º 2 do mesmo preceito.

19. Em consequência, deve concluir-se que o pedido carece de fundamento, devendo ser indeferido [artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP].

III. Decisão

20. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4, alínea a), do artigo 223.º do CPP, acordam os juízes da secção criminal em indeferir o pedido por falta de fundamento bastante.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de dezembro de 2021.

(assinado digitalmente)


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria do Carmo Silva Dias

Maria Helena Loureiro Fazenda