Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4558
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MAIA COSTA
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REFORMATIO IN PEJUS
ROUBO AGRAVADO
COISA TRANSPORTADA EM VEÍCULO
TRANSPORTE COLECTIVO
Nº do Documento: SJ200802030045583
Data do Acordão: 02/13/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :

I - Se a pretensão do recorrente [MP] se cinge à qualificação jurídica dos factos, e não aos próprios factos, a alteração requerida é enquadrável no art. 358.º, n.º 3, do CPP.
II - Neste caso, tendo o arguido tido oportunidade de contestar a pretensão do recorrente quando foi notificado da motivação de recurso e ainda quando foi notificado, já neste STJ, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, cumprido se mostra o princípio do contraditório e, consequentemente, assegurado ficou o exercício pleno dos direitos de defesa.
III - E não existe qualquer limitação ao agravamento da pena, uma vez que o recurso foi interposto apenas pelo MP – mas não no interesse da defesa (art. 409.º do CPP) –, situação em que não funciona a proibição da reformatio in pejus.
IV - Subjacente à previsão do art. 204.º, n.º 1, al. b), do CP [Quem furtar coisa móvel alheia: (…) b) Transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais; (…) é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias] existe uma clara intenção, por parte do legislador, de garantir uma confiança generalizada nos transportes e comunicações, por meio de um reforço da tutela penal da segurança na sua utilização, e que se funda numa ideia de maior exposição ou vulnerabilidade das coisas transportadas ou depositadas à apropriação ilícita, quer porque elas não estão sob a guarda do seu proprietário ou possuidor, quer porque este último, embora podendo vigiá-las, está submetido a circunstâncias em que o exercício dessa vigilância pode ser perturbado ou seriamente reduzido.
V - Na primeira situação prevista no preceito, a tutela penal dirige-se às coisas transportadas em veículo, seja este público ou privado, e independentemente do lugar onde ele se encontre e do responsável pelo transporte. É o simples facto de a coisa ser transportada em veículo que o legislador considera merecedor de tutela reforçada, em homenagem à protecção da confiança das pessoas nos transportes.
VI - Por sua vez, na segunda, a tutela incide sobre um âmbito espacial restrito (o dos transportes colectivos e das adjacentes estações, gares e cais) e sobre um âmbito material também limitado: coisas transportadas por passageiros desses transportes.
VII - A expressão utilizada pelo legislador «coisa transportada por passageiros utentes de transporte colectivo» revela que pretende abranger todas as coisas que é o próprio passageiro que transporta, sob a sua responsabilidade e sob o seu domínio efectivo (ao seu alcance directo), não as que eventualmente confia à empresa transportadora ou que deposita nos locais próprios dos meios de transporte.
VIII - Desse conjunto restrito de coisas que o passageiro normalmente traz consigo, que integram o seu “património inseparável” em qualquer deslocação, e que estão sob o seu directo domínio e alcance, fazem parte, desde logo, as coisas que leva dentro da roupa, nomeadamente nos bolsos (como as carteiras de homem, porta-cheques, porta-moedas, porta-chaves, telemóveis, transístores, mp3 e outros aparelhos electrónicos, etc.), mas também os objectos sobre os quais ele mantém uma ligação física ou corporal (como as pastas, as carteiras de senhora, os computadores portáteis), por serem levados à mão, pois todos esses objectos integram o mesmo núcleo restrito de objectos pessoais que tanto podem ser levados nos bolsos, como à mão, como metidos dentro de recipientes transportados à mão, ao ombro ou às costas (carteiras, mochilas, sacolas, etc.), mas sempre ao alcance imediato do domínio, da disponibilidade, da mão do passageiro.
IX - A razão de ser desta previsão reside na circunstância de a utilização de transportes colectivos de há muito fazer parte da rotina quotidiana obrigatória da generalidade das pessoas, sobretudo nos meios urbanos e de, apesar do incremento constante dos meios preventivos de protecção pessoal de passageiros e mercadorias (reforço do policiamento, vigilância electrónica, etc.), os transportes colectivos e as suas áreas adjacentes continuarem a ser um lugar privilegiado para a prática de crimes contra o património: a normal aglomeração de gente e ambiente de confusão que tantas vezes se regista dentro dos meios de transporte ou nas estações, o desconhecimento e incerteza de muitos passageiros quanto à localização, o horário ou o concreto meio de transporte a escolher e, nas viagens longas, o cansaço inevitável que se apodera da generalidade dos passageiros são tudo factores que propiciam a delinquência contra as coisas transportadas pessoalmente pelos passageiros, nomeadamente por parte dos “carteiristas”, que se movem particularmente à vontade nestes ambientes.
X - É claro que todas as situações de ajuntamento de pessoas (como os grandes espectáculos, as feiras, e até as manifestações e as procissões) de alguma forma facilitam essa prática criminosa. Mas a particular protecção concedida ao património dos passageiros de transportes colectivos assenta na já assinalada opção, razoável e fundamentada, de atribuir uma tutela penal reforçada aos transportes, pelo papel essencial e indispensável que eles desempenham na vida quotidiana das pessoas, sobretudo nos grandes centros urbanos, mas não só.
XI - É, pois, de concluir que o preceito em análise – al. b) do n.º 1 do art. 204.º do CP –, no seu último segmento, abrange todos os objectos transportados pessoalmente pelos passageiros de transportes colectivos, isto é, aqueles que se integram na esfera corporal do passageiro, que estão sob o seu domínio directo, ao alcance da sua mão.
XII - Assim, numa situação em que:
- o arguido se acercou de HM, que acabara de sair do comboio na Estação… e pediu-lhe dinheiro;
- perante a resposta negativa do HM, o arguido, dirigindo-se-lhe, disse: “Deixa-me ver o telemóvel, se não vou ter de me chatear”, ao mesmo tempo que lhe exibia a mão fechada, como se estivesse a guardar algum objecto;
- o HM, temendo pela sua integridade física, entregou ao arguido o seu telemóvel, de marca Nokia e modelo 3330, avaliado em € 160;
- o arguido retirou o cartão do telemóvel, e devolveu-o ao HM, após o que, com o telemóvel em seu poder, abandonou o local em passo apressado, dirigindo-se para o interior da estação da CP;
é de concluir, quer pelo espaço (estação ferroviária), quer pelas características do objecto apropriado (coisa transportada pessoalmente por um passageiro dos transportes colectivos), que os factos integram a previsão típica dos arts. 210.º, n.º 2, al. b), e 204.º, n.º 1, al. b), in fine, do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. RELATÓRIO

Na 9ª Vara Criminal de Lisboa foi o arguido AA julgado, acusado da autoria de dois crimes de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do CP, sendo condenado, por esses crimes, na pena de 18 meses de prisão por cada um, e, em cúmulo, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão.
Esta decisão foi tomada por maioria, já que um dos Juízes adjuntos, considerando que o arguido deveria ter sido condenado por um crime de roubo simples e outro de roubo qualificado, p. e p. pelos arts. 210º, nº 2, b) e 204º, nº 1, b) do CP (factos de 24.8.2004), propunha a condenação do arguido na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão, correspondente às penas parcelares de 18 meses de prisão (crime de roubo simples) e de 3 anos e 10 meses de prisão (crime de roubo qualificado).
O MP não se conformou com a decisão e interpôs recurso, concluindo assim a sua motivação:

1ª – O disposto no segmento final da alínea b) do n.° 1 do artigo 204° do CP, como circunstância agravante qualificativa dum crime de roubo, tutela a segurança de bens transportados por utente de transporte colectivo, como resulta da sua própria expressão literal.
2ª – Ali se visa, na linha da medieval “paz dos caminhos”, proteger os bens de passageiro de transporte colectivo, como refere José Faria Costa nas suas anotações a fls. 59 a 62 do Tomo II do Comentário Conimbricense do Código Penal.
3ª – Daí que, na interpretação daquele específico segmento, não tenha sentido a distinção operada no acórdão recorrido entre a subtracção de coisa móvel que está no domínio efectivo da vítima e a subtracção de coisa móvel que não está sujeita a esse domínio, restringindo a sua aplicação à subtracção de coisa que não está sujeita ao domínio efectivo da vítima, quando é certo que, para tanto, bastava a previsão que se contém no primeiro segmento da mesma a alínea.
4ª – Assim, a subtracção violenta do telemóvel Nokia de modelo 3330 que teve por cenário a estação de comboios da Damaia e por vítima BB, utente do transporte colectivo de comboios, configura um crime de roubo agravado previsto e punível nos termos dos artigos 210º n.°s 1 e 2 alínea b) do CP com referência ao requisito (circunstância) previsto no segmento final da alínea b) do n ° 1 do artigo 204° do mesmo CP.
5ª - Ora, desta qualificação jurídico-criminal decorre a alteração da moldura penal aplicável que implica uma nova determinação da medida concreta da pena que, observando os critérios legais fixados no artigo 71° do CP, deverá, a nosso ver, situar-se em torno de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
6ª - Finalmente, operando-se o cúmulo jurídico desta pena com a pena de 18 (dezoito) meses de prisão aplicada ao crime de roubo simples pelo qual o arguido foi também condenado, entende-se que a pena única a aplicar deverá situar-se entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses e 4 (quatro) anos de prisão.
7ª – Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido violou as já citadas disposições legais.

O arguido não respondeu.
Neste STJ, o MP, no seu visto inicial, pronunciou-se pela procedência do recurso quanto à qualificação do roubo, mas acrescentou, depois de considerar que se verifica uma alteração substancial dos factos, que “não poderá ser alterada a correspondente pena (e a subsequente ao concurso) sem que se mostre cumprido o art. 359° do CPP”.
Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2 do CPP, o arguido nada disse.
Realizou-se a audiência de julgamento, nos termos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

É a seguinte a matéria de facto fixada:

1. No dia 24 de Agosto de 2004, pelas 14h. 50m., o arguido acercou-se de BB que acabara de sair do comboio na Estação da Damaia, na Amadora, e pediu-lhe dinheiro;
2. Perante a resposta negativa do BB o arguido, dirigindo-se-lhe, disse “Deixa-me ver o telemóvel, se não vou ter de me chatear” ao mesmo tempo que lhe exibia a mão fechada, como se estivesse a guardar algum objecto;
3. O BB, temendo pela sua integridade física, entregou ao arguido o seu telemóvel de marca Nokia e modelo 3330, avaliado em 160 €;
4. O arguido retirou o cartão do telemóvel, e devolveu-o ao BB após o que, com o telemóvel em seu poder, abandonou o local em passo apressado, dirigindo-se para o interior da estação da CP;
5. No dia 25 de Agosto de 2004, pelas 11h. 30m., quando o CC caminhava na ponte pedonal à saída da estação da CP que dá acesso ao Bairro da Cova da Moura, na Damaia, o arguido AA aproximou-se dele e pediu-lhe dinheiro;
6. O CC respondeu negativamente e prosseguiu o seu caminho;
7. O arguido seguiu-o dizendo-lhe que lhe iria fazer mal;
8. Percorridos alguns metros agarrou um fio de ouro que o CC levava ao pescoço e puxou-o com força fazendo com que o fio se rompesse e ficasse na sua mão;
9. Com o fio em seu poder, abandonou o local em passo apressado;
10. O arguido bem sabia que o telemóvel e o fio em ouro não lhe pertenciam;
11. Sabia igualmente que só por meio da ameaça e da violência conseguiria, como conseguiu, retirar o fio ao CC e que o BB lhe entregasse o telemóvel;
12. Agiu livre e conscientemente;
13. Sabia que a sua conduta era proibida por lei;
14. Do seu CRC constam as seguintes condenações: em 6/2/2003 por um crime de roubo praticado em 27/9/1999 na pena de seis meses de prisão substituída por igual tempo de multa. Esta pena foi declarada extinta em 24/9/2004 (proc. n° 108/00 2SRLSB do 2° Juízo Criminal de Lisboa); em 4/6/2004 por um crime de abuso sexual de crianças agravado praticado em 5/6/2001, na pena de 18 meses de prisão suspensa por um período de três anos subordinada a regime de prova. Esta suspensão foi revogada em 21/10/2005, por incumprimento do regime de prova aguardando-se neste processo pelo cumprimento dos mandados de captura para cumprimento da pena (proc. n° 539/01.OSRLSB da 1ª Vara Criminal de Lisboa).

A única questão colocada pelo recorrente é a da integração dos factos praticados pelo arguido em 24.8.2004 no crime de roubo qualificado nos termos dos arts. 210º, nº 2, b) e 204º, nº 1, b) do CP.
Como vimos, o arguido foi acusado, por esses factos, da autoria de um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do CP, qualificação jurídica que obteve a concordância maioritária do tribunal colectivo, mas que mereceu a oposição de um dos Juízes adjuntos.
O acórdão fundamentou assim a decisão, nessa parte:

Acompanha-se a qualificação jurídica da acusação por se entender que o facto de o BB ter sido abordado pelo arguido AA à saída do comboio não permite qualificar este roubo ao abrigo da alínea b) do n° l do art° 204º do C.Penal.
Dispõe-se nesta alínea que o crime é agravado, e consequentemente punível com pena mais grave, quando o bem furtado for transportado por passageiro utente de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais.
As circunstâncias agravantes p. nesta alínea encontram a sua razão de ser na confiança que os transportes e os lugares destinados à guarda dos objectos merecem dos utentes em geral.
Não haverá por isso agravação “(…) quando a coisa furtada, embora em transporte, é pessoalmente levada pela vítima que detém sobre ela um domínio efectivo” (Guilhermina Marreiros, Revista do Ministério Público, ano 6, vol. 21, pág. 101, citada em C. Penal anotado, Leal Henriques e Simas Santos, 2° volume pag. 438, e no mesmo sentido, acórdão do TRL de 14/12/1988, publicado no BMJ, n° 382, pág. 520, no qual se diz que “não se verifica, no crime de furto, a agravante qualificativa p. no art° 297º, n° l, al. g) do C. Penal (actual al. b) do n° l do art° 204º) se a coisa foi subtraída da carteira de um utente dos transportes colectivos)”.
Com efeito, afigura-se-nos que a lei quis conferir especial protecção aos bens transportados por utentes dos transportes públicos, ou seja aos bens que tenham uma certa autonomia relativamente à pessoa que os transporta, ao passageiro utente e sobre os quais, como bem refere a autora acima citada, o passageiro não tenha domínio efectivo.
Não estarão, por isso, incluídos nesta circunstância agravante os bens que se incorporem no próprio passageiro (cfr. ainda acórdão do STJ de 14/10/1993, proc. n° 44280).

Por sua vez, do voto de vencido consta a seguinte fundamentação:

Ficou provado, na sequência do que já constava da acusação, que o roubo ocorrido no dia 24 de Agosto de 2004 teve lugar na Estação da CP da Damaia, quando o ofendido saía do comboio relativamente a bens que o mesmo transportava.
Dispõe o art. 204°, n.º1, b), do Código Penal a qualificação do furto para quem furtar coisa móvel alheia “… transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais” e, em articulação com essa incriminação, estabelece o art. 210.º, n.º 2, b), do Código Penal a qualificação do roubo se “se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos nºs 1 e 2 do artigo 204º”, passando o roubo a ser punível com pena de 3 a 15 anos de prisão.
Tal como decidido, mais recentemente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 4692/06-5 (recurso de Acórdão também proferido nesta 9ª Vara, 2ª Secção), seguindo, designadamente, para além de diversa jurisprudência ali citada, Faria Costa in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, p. 59, o passageiro de transporte colectivo está numa situação de menor atenção sobre os seus bens pela própria preocupação de viajar, cansaço, confusão e aumento da sujeição a acções contra o património, especificamente sujeitando-se ao conhecimento dos criminosos do percurso dos transportes públicos em que abundam oportunidades de consumação criminosa pela desprotecção das vítimas e dificuldade da fuga ou do pedido de socorro (e daí a criação, ainda que insuficiente, de uma brigada dentro das forças policiais destinada exclusivamente ao patrulhamento de transportes públicos).
Face aos factos provados é, portanto, patente o preenchimento da qualificativa referida, devendo o arguido ser condenado pela prática de um roubo qualificado e de um roubo simples (mesmo na segunda situação – factos de 25 de Agosto – só a dúvida sobre a inclusão da área referida nos factos provados na zona da Estação da CP propriamente dita – por constituir um acesso – permite que não se sustente a qualificação do roubo).

Conhecidos os argumentos das duas teses em presença, analisemos o caso.
Previamente, consigna-se, porém, que a alteração pretendida pelo recorrente se cinge à qualificação jurídica dos factos, e não aos próprios factos, pelo que a situação não é enquadrável no art. 359º do CPP, mas sim no art. 358º, nº 3 do mesmo diploma.
Tendo o arguido tido oportunidade de contestar a pretensão do recorrente quando foi notificado da motivação de recurso e ainda quando foi notificado, já neste STJ, nos termos do art. 417º, nº 2 do CPP, cumprido se mostra o princípio do contraditório e consequentemente assegurado ficou o exercício pleno dos direitos de defesa.
E não existe qualquer limitação ao agravamento da pena, uma vez que, no caso, não funciona a proibição da reformatio in pejus, já que o recurso foi interposto apenas pelo MP e não no interesse da defesa (art. 409º do CPP).
A questão suscitada no recurso não é nova e sobre ela existe alguma doutrina e diversa jurisprudência, que vêm citadas no acórdão e nas alegações do recorrente. Embora tenham sido defendidas as duas posições reflectidas nos autos, pode dizer-se maioritária a tese propugnada pelo recorrente.
E é essa a posição que merece acolhimento, pelas razões que passam a ser expostas.
O art. 204º, nº 1, b) do CP tinha, ao tempo da prática da infracção e da prolação da decisão condenatória, a seguinte redacção:

1. Quem furtar coisa móvel alheia:
(…)
b) Transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais;
(…)
é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

A Lei nº 59/2007, de 4-9, alterou a redacção, embora de forma irrelevante para o caso dos autos. (1).

São três as situações típicas previstas no preceito: apropriação de coisa transportada (ou colocada) em veículo; apropriação de coisa depositada; e apropriação de coisa transportada por passageiros de transportes colectivos, alargando-se o âmbito espacial da incidência típica, neste último caso, às estações, gares ou cais dos respectivos transportes.
Subjacente ao preceito existe uma clara intenção, por parte do legislador, de garantir uma confiança generalizada nos transportes e comunicações, por meio de um reforço da tutela penal da segurança na sua utilização, o que aliás é tradicional no direito penal, e que se funda numa ideia de maior exposição ou vulnerabilidade das coisas transportadas ou depositadas à apropriação ilícita, quer porque elas não estão sob a guarda do seu proprietário ou possuidor, quer porque este último, embora podendo vigiá-las, está submetido a uma situação em que o exercício dessa vigilância pode ser perturbado ou reduzido seriamente.
Na primeira situação prevista, a tutela penal dirige-se às coisas transportadas em veículo, seja este público ou privado, e independentemente do lugar onde ele se encontre e do responsável pelo transporte. É o próprio e simples facto de a coisa ser transportada em veículo que o legislador considera merecedora de tutela reforçada, em homenagem à protecção da confiança das pessoas nos transportes.
Por sua vez, na última situação prevista, a tutela incide sobre um âmbito espacial restrito (o dos transportes colectivos e as adjacentes estações, gares e cais) e sobre um âmbito material também limitado: coisas transportadas por passageiros desses transportes.
Como interpretar esta descrição típica? Abrangerá ela apenas as coisas pertencentes ao passageiro transportadas no veículo de transportes colectivos, isto é, fisicamente separadas do passageiro ou fora do seu alcance directo (como decidiu o acórdão recorrido), ou também as coisas transportadas pessoalmente pelo passageiro (como entendeu o Juiz vencido e pretende o recorrente)?
Relativamente às primeiras (coisas pertencentes ao passageiro transportadas no veículo), certo é que elas estariam sempre incluídas no primeiro segmento do preceito, que abarca no seu âmbito, como vimos, qualquer coisa transportada em todo e qualquer veículo. Na verdade, as malas e outras bagagens que o passageiro de transportes colectivos eventualmente traga consigo não são transportadas propriamente por ele, mas sim no veículo.
Daí a desnecessidade de o legislador acrescentar a última situação típica se ele quisesse apenas proteger as coisas transportadas por passageiro mas dele fisicamente separadas e confiadas aos serviços de transportes, ou depositadas nos lugares destinados a esse fim nos meios de transporte, aquelas coisas sobre as quais ele não tem o domínio efectivo.
Portanto, se o legislador aditou a previsão do último segmento do preceito em análise é porque quis dizer algo mais, que não está contido na sua parte inicial. A expressão utilizada pelo legislador (“coisa transportada por passageiros utentes de transportes colectivos”) revela que pretende abranger todas as coisas que é o próprio passageiro que transporta, sob a sua responsabilidade e sob o seu domínio efectivo (ao seu alcance directo), não as que eventualmente confia à empresa transportadora ou que deposita nos locais próprios dos meios de transporte.
É esse conjunto restrito de coisas que o passageiro normalmente traz consigo, que integram o seu “património inseparável” em qualquer deslocação, e que estão sob o seu directo domínio e alcance, que a lei quer proteger. Desse conjunto fazem parte, desde logo, as coisas que leva dentro da roupa, nos bolsos nomeadamente (como as carteiras de homem, porta-cheques, porta-moedas, porta-chaves, telemóveis, transístores, mp3 e outros aparelhos electrónicos, etc.), mas também os objectos sobre os quais ele mantém uma ligação física ou corporal (como as pastas, as carteiras de senhora, os computadores portáteis), por serem levados à mão, pois todos esses objectos integram o mesmo núcleo restrito de objectos pessoais que tanto podem ser levados nos bolsos, como à mão, como metidos dentro de recipientes transportados à mão ou ao ombro ou às costas (carteiras, mochilas, sacolas, etc.), mas sempre ao alcance imediato do domínio, da disponibilidade, da mão do passageiro.
É, pois, esse património pessoal inseparável, que acompanha necessariamente o passageiro dos transportes colectivos nas suas viagens, mesmo nas deslocações mais curtas do seu dia-a-dia, que o legislador quis proteger reforçadamente. E há razões para isso.
Na verdade, a utilização de transportes colectivos de há muito faz parte da rotina quotidiana obrigatória da generalidade das pessoas, sobretudo nos meios urbanos. E apesar do incremento constante dos meios preventivos de protecção pessoal de passageiros e mercadorias (reforço do policiamento, vigilância electrónica, etc.), os transportes colectivos e as suas áreas adjacentes continuam a ser um lugar privilegiado para a prática de crimes contra o património.
O que se deve a vários factores, como a normal aglomeração de gente e o ambiente de confusão que tantas vezes se regista, dentro dos meios de transporte ou nas estações, o desconhecimento e incerteza de muitos passageiros quanto à localização, o horário ou o concreto meio de transporte a escolher, e, nas viagens longas, o cansaço inevitável que se apodera da generalidade dos passageiros. Tudo isto propicia a delinquência contra as coisas transportadas pessoalmente pelos passageiros, nomeadamente por parte dos “carteiristas”, que se movem particularmente à vontade nestes ambientes.
É claro que todas as situações de ajuntamento de pessoas (como os grandes espectáculos, as feiras, e até as manifestações e as procissões) de alguma facilitam essa prática criminosa.
Mas a particular protecção concedida ao património dos passageiros de transportes colectivos assenta na já assinalada opção, razoável e fundamentada, de atribuir uma tutela penal reforçada aos transportes, pelo papel essencial e indispensável que eles desempenham na vida quotidiana das pessoas, sobretudo nos grandes centros urbanos, mas não só.
Consequentemente, entende-se que o preceito em análise, a al. b) do nº 1 do art. 204º do CP, no seu último segmento, abrange todos os objectos transportados pessoalmente pelos passageiros de transportes colectivos, isto é aqueles que se integram na esfera corporal do passageiro, que estão sob o seu domínio directo, ao alcance da sua mão.
Procede, pois, a tese do recorrente.

Retornando agora ao caso dos autos, constatamos que os factos praticados em 24.8.2004 consistem na apropriação, pelo arguido, na Estação da CP da Damaia, por meio de ameaça, de um telemóvel que o ofendido BB, que acabara de sair de um comboio, trazia consigo.
Quer pelo espaço (estação ferroviária), quer pelas características do objecto apropriado (coisa transportada pessoalmente por um passageiro dos transportes colectivos), os factos integram a previsão típica do preceito citado, no seu último segmento.
Praticou, pois, o arguido (além de um crime de roubo simples, p. e p. pelo art. 210º do CP, relativo aos factos de 25.8.2004) um crime de roubo agravado, p. e p. pelos arts. 210º, nº 2, b) e 204º, nº 1, b) do CP.
Atentas as condenações já sofridas pelo arguido, e considerando nomeadamente que, sendo anteriormente condenado em prisão suspensa com regime de prova, viu essa suspensão revogada por incumprimento desse regime, entende-se adequada a condenação do arguido, pelo crime de roubo agravado, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, como pretende o recorrente.
A pena correspondente ao cúmulo dessa pena com a pena de 18 meses de prisão, correspondente ao crime praticado no dia 25.8.2004, será fixada em 4 (quatro) anos de prisão, também conforme proposta do recorrente.

III. DECISÃO

Com base no exposto, concedendo-se provimento ao recurso, condena-se o arguido, pelos factos praticados no dia 24.8.2004, como autor material de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos arts. 210º, nº 2, b) e 204º, nº 1, b) do CP, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão e, em cúmulo com a pena de 18 meses de prisão, correspondente ao crime praticado em 25.8.2004, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, no mais se mantendo a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2008


Maia Costa (relator)
Pires da Costa
Raul Borges
Henriques Gaspar
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(1)- É a seguinte a redacção actual: “b) Colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais”.