Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
652/03.0TYVNG-S.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: FALÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
CONTRATO-PROMESSA
EFICÁCIA REAL
POSSE
DIREITO DE RETENÇÃO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
RESTITUIÇÃO DE BENS
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
CADUCIDADE
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 01/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL - DIREITOS REAIS/ POSSE.
DIREITO DA INSOLVÊNCIA - SENTENÇA DE DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA - VERIFICAÇÃO DO PASSIVO. RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / PROCESSO SUMÁRIO.
Doutrina:
- Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade (Anotação aos artigos 296º a 333º do Código Civil).
- Gama Prazeres, CPEREF, p. 143.
- Menezes Cordeiro, Tratado, I, Parte Geral, p. 196; Tomo IV, p. 225.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, I, p. 294.
- Sousa Macedo, Manual do Direito das Falências, II, p. 327.
- Vaz Serra, RLJ, 107º, p. 24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 331.º, N.º2, 334.º, 413.º, 442.º, 755.º, AL. F), 830.º, N.º1, 879.º, AL. A), 1296.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 484.º, 784.º.
DL N.º 132/93, DE 23/4 (COM AS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELO DL 315/98, DE 20/10), CPEREF: - ARTIGOS 16.º, N.º1, AL. A), 20.º, N.º1, AL. B), 128.º, N.ºS 1 E 2, 201.º, 205.º, N.º2, 207.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16/4/96, NA CJ ANO IV, II, 18; DE 25/11/98, BMJ 481º, 430; DE 24/4/2003 (Pº 03B929); DE 18/9/2003 (Pº 03B1900); DE 8/3/2007 (REVª 487/07); E DE 29/10/2009 (Pº 348-Q/2002.C1.S1).
Sumário :
I - O art. 205.º do CPEREF faz a distinção entre, por um lado, a reclamação de créditos e, por outro, a separação e restituição de bens, referindo-se o n.º 2 desse preceito legal, apenas, à reclamação de créditos, o que não pode senão significar que as acções de separação e restituição de bens não estão sujeitas ao prazo de caducidade ali estabelecido, por se tratar de uma norma excepcional, que não comporta aplicação analógica, nem interpretação extensiva.

II - A acção para verificação do direito à separação ou restituição de bens, prevista no art. 205.º do CPEREF, não está limitada ao prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da falência, podendo ser proposta a todo o tempo.

III - A distinção constante do artº 205º CPEREF assenta na circunstância de no primeiro caso estarem em causa direitos de crédito - ainda que se possa tratar dum direito de crédito de que resulte a entrega duma coisa - e no segundo direitos reais, exclusivos do reivindicante ou coexistentes com direitos do próprio falido.

IV - Na situação de um contrato promessa sem eficácia real, a acção de execução específica – traduzida na prolação duma sentença que produz os efeitos da declaração negocial do contraente faltoso – enquadra-se no âmbito das acções que visam a “verificação ulterior de créditos”, a que se reporta o n.º 2 do art. 205.º do CPEREF; não invalida esta conclusão o facto de ser invocada quer a posse, quer o direito de retenção, sobre o objecto mediato do contrato-promessa.

V - Uma vez que o direito de alegar a caducidade tem natureza potestativa, dificilmente se vislumbra qualquer possibilidade de alegar triunfantemente o abuso do direito em relação a quem alega a caducidade do direito de propor uma acção ao abrigo do art. 205.º, n.º 2, do CPEREF depois de declarada a falência, já que a sentença declaratória da falência tem de ser amplamente publicitada, nos termos do art. 128.º, n.ºs 1 e 2 do CPEREF.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Termos essenciais da causa e da revista
Por apenso ao processo de falência, AA e sua mulher BB instauraram uma acção ordinária para verificação posterior de direitos contra:
1) A Massa Falida de CC - Sociedade de Construções, Ldª;
2) Credores da Massa Insolvente de CC - Sociedade de Construções, Ldª;
3) CC - Sociedade de Construções, Ldª.
Fundamentalmente, e em suma, alegaram o seguinte:
- Que no 9/5/03 a autor celebrou com a 3ª ré um contrato escrito por força do qual esta prometeu vender-lhe e o autor comprar-lhe a fracção autónoma e os dois lugares de garagem identificados nos autos pelo preço global de 157.300,00 €, fixado após as partes terem introduzido um aditamento no contrato inicial, livres de ónus e encargos;
- A título de sinal e princípio de pagamento o autor entregou-lhe, no total, 50 mil €;
- Acordou-se que o incumprimento do contrato por facto imputável a qualquer das partes importaria para a ré a obrigação de restituir ao autor o dobro da quantia recebida a título de sinal e para este a perda dessa importância;
- Estipulou-se ainda “dar ao contrato carácter de execução específica nos termos do disposto no artº 830º do Código Civil” (cláusula 10ª) e que a escritura definitiva seria outorgada no cartório notarial de Vila Real, no prazo a acordar por ambas as partes, comprometendo-se a 3ª ré a entregar o imóvel até 30/9/03, podendo este prazo ser prorrogado por dificuldades inesperadas na conclusão dos trabalhos;
- Até 30/9/03 a prometida compra e venda não foi feita e em Novembro desse ano a 3ª ré entregou ao autor a chave do imóvel;
- A partir de Novembro de 2003 os autores passaram a usar, fruir e administrar o imóvel, ainda inacabado, de forma exclusiva, dele retirando todos os seus frutos e rendimentos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, como coisa sua;
- Perante o incumprimento do contrato promessa por parte da 3ª ré, os autores demandaram-na em 5/9/2007, tendo a acção terminado por transacção judicialmente homologada na qual a ré reconheceu, designadamente, a entrega do apartamento e lugares de garagem aos autores, assim como os actos de posse que têm praticado a partir de Novembro de 2003;
- Com a transacção judicial, a 3ª ré obrigou-se de novo para com os autores a concluir as obras e a tratar de toda a documentação necessária à realização da escritura definitiva;
- Todavia, entrou em falência, decretada por sentença de 13/6/08, tendo a fracção autónoma aqui em causa sido apreendida e posta à venda pela massa falida (1ª ré), através do respectivo administrador, com praça marcada para o dia 21/7/10;
- Sobre a fracção autónoma e os dois lugares de garagem prometidos vender estão constituídos e inscritos no registo predial duas hipotecas e um arresto (apresentações 9, 8 e 42 de 2000/10/10, 2003/11/18 e 2004/01/22, respectivamente).     
Com base nestes factos formularam os pedidos que se reproduzem integralmente:
a) A prolação de sentença que produza os efeitos da declaração negocial em falta, nos termos prescritos no artº 830° do CC, substituindo-se a 1ª ré e a 3ª ré pelos autores na titularidade da fração autónoma do empreendimento “V...” composto por prédio urbano construído e prometido vender pela CC, constituída por Habitação – Entrada A – T – 3 – 2° andar direito, fração E, Bloco A – 2 lugares de garagem “E 1 “ e “E2” no piso menos 4 do Bloco B, com acesso pela Rua …, através do Bloco A, Freguesia de Nossa Senhora …, descrita na C.R.Predial de Vila Real sob o n° … – E, declarando-se transferida a favor da autora tal fração autónoma e 2 lugares de garagem;
b) Declarar-se que as 1ª e 3ª rés são responsáveis e devedoras para com os autores da quantia correspondente ao valor que se vier a apurar na fase de instrução por prova mediante perícia técnica a título de prejuízos patrimoniais pelos trabalhos em falta na fração autónoma e dois lugares de garagem dos autos;
c) Declarar-se que assiste aos autores o direito de se livrarem da sua obrigação de pagar parte do preço em falta pela aquisição da fração autónoma e lugares de garagem dos autos no valor que se vier a apurar na fase de instrução por prova mediante perícia técnica, por via de compensação, nos termos dos artigos 848º e seguintes do CC;
d) Serem as 1ª e 3ª rés condenadas a entregar aos autores os montantes dos débitos garantidos pela hipoteca voluntária registada na CRP de Vila Real pela AF. 9 de 2000/10/10; hipoteca Voluntária registada na CRP de Vila Real pela AP. 8 de 2003/11/18 e arresto registado na CRP de Vila Real pela AP. 42 de 2004/01/22, para efeitos de expurgação de tais ónus ou encargos;
e) Declarar-se a extinção e o levantamento da apreensão de bens em processo de falência que incide sob a fração autónoma e 2 lugares de garagem dos autos registada na CRP de Vila Real sob a AP. 24 de 2008/12/11;
Subsidiariamente, para o caso do alegado em 72° e 74° a 97° da petição inicial não obter vencimento, pediram:
a) Que seja reconhecido o incumprimento da 1ª e 3ª rés no contrato-promessa de compra e venda firmado com o autor marido;
b) Que a 1ª e 3ª rés sejam condenadas no pagamento da quantia de 105. 900,00 €  a título de devolução do sinal em dobro, com juros desde a citação;
c) Que se declare serem os autores titulares do direito de retenção da fracção autónoma e dois lugares de garagem;
Ainda subsidiariamente, para o caso do alegado em 67° a 70°, 72° e 74° a 112° da petição inicial não obter vencimento, pediram que:
a) Se declare que exercem os poderes de facto sobre a fração autónoma e dois lugares de garagem a título de posse, atuando por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade; 
b) Se declare a separação ou, caso assim não se entenda, a restituição da fracção autónoma e dois lugares de garagem aos autores;
c) Se declare a extinção e o levantamento da apreensão de bens em processo de falência que incide sob a fração autónoma e dois lugares de garagem dos autos registada na CRP de Vila Real sob a AP. 24 de 2008/12/11.
Feitas as citações, só a 1ª ré contestou, invocando a excepção da caducidade do direito de propor a presente ação por se encontrar ultrapassado o prazo do artº 205º do CPEREF.
O autor respondeu, dizendo manter o alegado na petição inicial e que, respeitando a acção à verificação de direitos com vista à restituição e separação de bens e não a uma mera reclamação de créditos, não se lhe aplica o disposto no artº 205º, nº 2, do CPEREF, podendo, por tal motivo, ser proposta a todo o tempo.
Alegou ainda que a ré reconheceu o seu direito ao não impugnar os factos articulados na petição inicial, reconhecimento esse impeditivo da caducidade, nos termos do artº 331º, nº 2, do CC.
Por último alegou que a ré abusa do seu direito ao invocar a caducidade já que, apesar de o autor estar na posse dos imóveis, nunca o informou do processo de insolvência.
Foi proferido despacho saneador-sentença no qual se considerou que o direito de propor a presente acção caducou, nos termos do artº 205º, nº 2, do CPEREF, uma vez que esta disposição se aplicaria tanto ao caso de reclamação de novos créditos como ao de separação ou restituição de bens; em consequência, julgou-se a acção improcedente, por extemporânea.
Os autores apelaram, mas a Relação, com fundamento diverso, confirmou a decisão da 1ª instância por acórdão unânime de 10/5/12.
Mantendo-se inconformados, os autores interpuseram recurso de revista excepcional, que a formação a que se refere o artº 721º-A, nº 3, do CPC, admitiu por considerar verificado o pressuposto do artº 721º-A, nº 1, a), do CPC - estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
E alegando, concluíram, resumidamente (na parte que agora releva), o seguinte:  
1ª) Em bom rigor, a presente acção diz respeito a verificação de direitos, com vista à restituição e separação de bens, como se alcança do pedido formulado na petição inicial;
2ª)  Daí que não se trate de mera reclamação de créditos;
3ª) É jurisprudência pacífica e unânime do STJ que o regime previsto no nº 2 do artigo 205° do CPEREF não é aplicável aos casos de reivindicação, restituição ou separação de bens, mas tão-somente aos de reclamação de créditos;
4ª) A interpretação extensiva ou analógica do nº 2 do artº 205° do CPEREF é inadmissível (artº 11º do CC), pois trata-se de uma disposição excepcional (fixa um prazo de caducidade);
5ª) Por isso, uma acção como a presente pode ser interposta a todo o tempo, não estando sujeita a caducidade;
6ª) A ré não impugnou os factos alegados na petição inicial, que,  por tal motivo, devem considerar-se admitidos por acordo;
7ª) Por esta via, reconheceu os direitos invocados pelo autor, sendo que tal reconhecimento impede a caducidade, por se tratar de prazo fixado por disposição legal relativa a direito disponível (artº 331°, n° 2 do CC);
8ª) O autor nunca foi informado do processo de insolvência da ré, e muito menos da sentença nele proferida;
9ª) A ré deveria ter informado o processo de insolvência da existência do contrato-promessa e da tradição do imóvel para o autor, para que este pudesse exercer os seus direitos;
10ª) E ao invocar a caducidade da acção nos termos constantes da sua defesa excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito, contra o disposto no artº 334º do CC (abuso do direito).
Não houve contra-alegações.

II.  Fundamentação
Constituem objecto do presente recurso as seguintes questões:
1ª- Saber se à acção para separação e restituição de bens é aplicável o prazo de um ano fixado no artº 205º, nº 2, do CPEREF;
2ª- Saber que tipo de acção é a presente, no contexto de tal norma: uma acção destinada a reconhecer “novos créditos”, ou, antes, o “direito à separação ou restituição de bens”?
3ª- Saber se caducou o direito accionado pelos autores;
4ª- Saber se há abuso do direito da ré ao invocar a caducidade.
a) Análise da 1ª questão
Aplica-se ao caso sub judice o CPEREF aprovado pelo DL 132/93, de 23/4 (com as alterações introduzidas pelo DL 315/98, de 20/10), porquanto o processo de falência a que a acção está apensa teve início em 2003, sendo certo que o actual CIRE, aprovado pelo DL 53/2004, de 18/3, só se aplica aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, que ocorreu em 14/9/04.
Na parte que interessa, o artº 205º do CPEREF dispõe:
1. Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda novos créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, por meio de acção proposta contra os credores, efectuando-se a citação destes por éditos de 14 dias.
2. A reclamação de novos créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita no prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração de falência.
Da simples leitura do preceito resulta que nele se faz a distinção entre, de um lado, a reclamação de créditos, e, do outro, a separação e restituição de bens; ora, o nº 2 apenas se refere à reclamação de créditos, o que não pode senão significar que as acções de separação e restituição de bens não estão sujeitas ao prazo de caducidade ali estabelecido; e tratando-se de uma norma excepcional, uma vez que fixa um prazo de caducidade, não pode haver lugar à sua aplicação analógica, estando de igual modo vedada a interpretação extensiva porquanto se torna evidente que o legislador exprimiu em termos adequados o seu pensamento, não tendo dito nem mais nem menos do que aquilo que queria.
O STJ tem seguido de modo uniforme este entendimento, como pode ver-se dos acórdãos de 24/4/2003 (Pº 03B929), 18/9/2003 (Pº 03B1900), 8/3/2007 (Revª 487/07) e 29/10/2009 (Pº 348-Q/2002.C1.S1). Pela sua pertinência e clareza, reproduzimos o essencial da fundamentação adoptada neste último aresto em vista da demonstração da tese aqui também seguida:
“....
No regime anterior ao CPEREF – o previsto no CPC – a possibilidade de reconhecimento de novos créditos e do direito à restituição ou separação de bens, na sequência de pedido formulado após o prazo fixado para as reclamações, achava-se contemplada no art. 1241º.
Dispunha este preceito:
1 – Findo o prazo para as reclamações, é possível ainda reclamar novos créditos, se o credor provar que a falta oportuna de reclamação não foi devida a culpa sua.
2 – A restituição ou a separação de bens pode também ser pedida findo o prazo da reclamação.
3 – A reclamação de novos créditos nos termos do nº 1 só pode ser feita no ano seguinte ao da declaração da falência.
4 – (…).
Como aponta o acórdão de 16.04.96, o n.º 3 deste art. 1241º e o n.º 2 do art. 205º do CPEREF não teriam qualquer sentido, na sua referência apenas às reclamações de créditos, e não também ao direito de restituição ou separação de bens, se não reflectissem tratamentos jurídicos diferentes para uma e outra das apontadas figuras jurídicas. É, a este respeito, particularmente impressivo o texto do normativo do CPC, com a sua expressa referência, no n.º 3, apenas à hipótese do n.º 1 (reclamação de créditos), aparecendo o direito à restituição ou separação de bens no n.º 2.
A querer para a acção de restituição ou separação de bens, a que aludiu no n.º 2, o mesmo regime, quanto ao prazo para a sua instauração, que preconizou para a reclamação de créditos, a que se referiu no n.º 1, o modelo de legislador razoável – aquele que consagra as soluções mais acertadas e sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º/3 do CC) – previsto pela ordem jurídica, não deixaria de o manifestar de forma clara, fazendo inserir no n.º 3 expressa referência àquela acção.
Não podemos deixar de concordar com aquele mencionado acórdão – mesmo sem deixar de ponderar a consabida falibilidade do argumento a contrario sensu – quando enfatiza que este “é mesmo dos casos mais patentes de cabimento correcto” deste argumento, “do qual resulta que o prazo de caducidade do n.º 3 do art. 1241º do CPC não abrangia o direito cujo alcance directo e imediato fosse a restituição ou separação de bens, tal como veio, também, a reflectir-se no art. 205º do Código de 1993”, o CPEREF.
Nem vale argumentar, ex adversu, com o disposto no art. 201º, a que se arrima a tese contrária e em que também se funda o acórdão recorrido. É que a referência deste preceito às “disposições relativas à reclamação e verificação de créditos” – que torna aplicáveis à restituição e separação de bens – envolve apenas os dispositivos anteriores, os respeitantes às reclamações de créditos deduzidas dentro do prazo fixado na sentença declaratória da falência. A não ser assim – é dizer, a dar-se relevo ao argumento de que aquela indicada referência do art. 201º justifica a não inclusão, no n.º 2 do art. 205º, por desnecessária, de expressa alusão à acção para a restituição ou separação de bens – seria igualmente dispensável e inútil a inserção, no n.º 1 do art. 205º, do segmento “bem como o direito à separação ou restituição de bens”.
Também não nos impressionam os demais argumentos da tese acolhida no acórdão recorrido.
Quanto à necessidade do protesto e às consequências da sua falta [art.206º/b)], não se entende o alcance do argumento. A assinatura do protesto tem como principal finalidade, no caso de acção de restituição ou separação de bens, assegurar a suspensão da liquidação relativamente aos bens abrangidos, tornando mesmo a venda impugnável se, inadvertidamente, ela ocorrer quanto a esses bens. Não se vê que essa finalidade se justifique no caso de sujeição da propositura da acção ao prazo de um ano e deixe de justificar-se ou se torne inviável no caso de a acção não estar sujeita a prazo. Se assim fosse, como entender que a norma respectiva – i.e., a respeitante à falta de assinatura do protesto ou caducidade dos seus efeitos – se mantenha no Código actual [cfr. art. 147º/b)], que precisamente consagra a solução repudiada no acórdão recorrido?
E o mesmo se dirá quanto ao argumento extraído do art. 203º, cuja doutrina bem se compreende para o caso a que se aplica – aos bens apreendidos depois de findo o prazo fixado para as reclamações. O que este preceito quer significar é que, se o direito de restituição ou separação desses bens for exercido nos cinco dias posteriores à apreensão, tudo se passa como se ele fosse actuado dentro daquele prazo, sendo, por isso, exercido pela mesma forma: por meio de requerimento, apensado ao processo principal. O art. 203º não é mais do que o complemento do disposto no art. 201º, mandando aplicar, à situação que prevê, o regime para que remete o n.º 1 deste art. 201º.
É evidente que, como já se deixou assinalado, transcorrido esse prazo de cinco dias, não fica afastada a possibilidade de reclamar a restituição ou separação. O que acontece é que terá esta reclamação de ser feita por meio de acção autónoma, proposta contra os credores (e parece que também contra o falido), sob a forma de processo sumário (art. 207º), e, portanto, com tramitação processual diferente da reclamação deduzida no prazo fixado para as reclamações de créditos.
Vale, aliás, em relação ao art. 203º, o que acima deixamos referido para o art. 206º. Se houvesse qualquer incompatibilidade entre a solução que defendemos para o n.º 2 do art. 205º e o art. 203º, mal se entenderia que, estabelecendo a nova lei (o CIRE), no art. 146º/2, que «o direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo», mantivesse, no art. 144º, preceito idêntico ao do art. 203º.
Quanto à celeridade do processo de falência, a que também se apega o acórdão recorrido, é princípio expressamente mantido no CIRE (art. 9º), o que significa que com ele não colide a regra do n.º 2 do art. 146º.
Nem é de causar espanto que a lei estabeleça, fora do prazo das reclamações de créditos, soluções diferentes para os casos de reclamação de novos créditos e de separação ou de restituição de bens.
Como bem evidencia o acórdão deste Supremo Tribunal supra citado, trata-se de hipóteses cujos pressupostos são diferentes: enquanto “nas reclamações de créditos estão por natureza, em causa, direitos obrigacionais ou creditícios”, “os casos de restituição ou separação de bens já pressupõem direitos reais dos reivindicantes, ora plenos e exclusivos (restituição), ora co-existentes com direitos do próprio falido (separação)”.
 “Daí que as situações de restituição e separação, assentes em direitos reais, tivessem e tenham normatividade específica”.
Podemos, pois, concluir, tal como o faz o aresto a que vimos aludindo: o n.º 2 do art. 205º do CPEREF só se aplica a situações de reclamações de créditos, e não a caso em que o peticionante reivindica restituição ou separação de bens com base, directa ou imediata, em direito real”.
Conclui-se, assim, que a acção para verificação do direito à separação ou restituição de bens prevista no artº 205º do CPEREF não está limitada ao prazo de um ano subsequente ao trânsito em julgado da sentença de declaração da falência, podendo ser proposta a todo o tempo.
b) Análise da 2ª questão
Trata-se de decidir perante que espécie de acção estamos, no quadro do artº 205º do CPEREF. Para tanto importa analisar os pedidos - principal e subsidiários - formulados, bem como os respectivos fundamentos; em função do que se concluir, logo se verá se ocorre ou não a caducidade excepcionada pela ré.
A 1ª instância não tomou posição explícita sobre o assunto; mas tomou-a de modo implícito, já que partiu do pressuposto que a acção visa o reconhecimento do “direito à separação ou restituição de bens”; e como esta foi proposta em 12/7/2010, tendo a falência da 3ª ré sido decretada por sentença de 13/6/08, que transitou em julgado no dia 11/8/08, considerou, logicamente, ter ocorrido a caducidade do direito accionado, uma vez que perfilhou a tese (contrária à por nós seguida e acima exposta) de que o prazo de um ano estabelecido no artº 205º, nº 2, do CPEREF vale tanto para a reclamação de novos créditos como para o exercício do direito à restituição e separação de bens.
A 2ª instância, por seu turno, decidiu que se aplica a regra fixada no indicado preceito porque o contrato promessa ajuizado tem eficácia meramente obrigacional, significando isto, para o efeito aqui em causa, que o direito de que os autores se tornaram titulares é um direito de crédito; daí que tenha mantido a decisão recorrida, embora com diverso fundamento.
Vejamos.
A distinção que artº 205º do CPEREF estabelece entre as acções para verificação ulterior de créditos e as destinadas à restituição e separação  de bens da massa falida – distinção que se projecta no estabelecimento dum prazo de caducidade somente para a proposição das primeiras – é facilmente compreensível; ela assenta na circunstância, justamente, de no primeiro caso estarem em causa direitos de crédito (ainda que se possa tratar dum direito de crédito de que resulte a entrega duma coisa), enquanto que no segundo se pressupõe a existência de direitos reais, “ora plenos e exclusivos do reivindicante (reivindicação), ora co-existentes com direitos do próprio falido (separação)” – acórdão do STJ de 16/4/96, na CJ Ano IV, II, 18, citando Sousa Macedo, Manual do Direito das Falências, II, 327, e Gama Prazeres, CPEREF, 143.  Tais direitos reais são aqueles a que o artº 201º, nº 1, c) do CPEREF alude, respeitantes a “bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens dos quais o falido não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à falência ou insusceptíveis de apreensão para a massa”.
No caso presente, ao pedir a título principal a execução específica do contrato promessa os autores visam obter, em última análise, a transferência do direito de propriedade da titularidade da 3ª ré para a deles, autores, o que significa, obviamente, que tal direito não lhes pertence. Na verdade, a execução específica traduz-se na prolação duma sentença que produz os efeitos da declaração negocial do faltoso, como diz o artº 830º, nº 1, do CC, declaração negocial essa que no caso da compra e venda, e no que respeita ao vendedor, tem por efeito essencial a transmissão da propriedade da coisa, nos termos do artº 879º, a), do mesmo diploma. Tal pedido, aliás, está em perfeita harmonia e coerência com a causa de pedir invocada, consistente no incumprimento por parte da 3ª ré do contrato promessa realizado e ao qual as partes se abstiveram de atribuir eficácia real, nos termos do artº 413º CC. O mesmo é de dizer em relação à pretensão de restituição do sinal em dobro, conforme o disposto no artº 442º, nº 2, CC, que radica, sem qualquer dúvida, no mencionado incumprimento e é uma consequência da natureza obrigacional do contrato. A invocação a título subsidiário, quer da posse, quer do direito de retenção, não invalida o que se deixou exposto. Por um lado, como é sabido, a posse resultante da tradição dos bens, por si só, não confere o direito de propriedade, sendo certo que os autores não invocaram, nem podiam eficazmente invocar a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião por não ter ainda decorrido à data em que a acção foi proposta o tempo necessário para esse efeito (artº 1296º do CC). Por outro lado, o direito de retenção reconhecido pelo artº 755º, f), do CC ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido funda-se, como a própria lei refere, no crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artº 442º. Ou seja: o direito de retenção é um direito real na medida em que confere ao seu titular um poder directo e imediato sobre uma coisa oponível erga omnes, cuja finalidade, porém, consiste em garantir o cumprimento de uma obrigação do devedor que no caso não é a obrigação nuclear do contrato promessa; efectivamente, a obrigação que assegura não é a da entrega da coisa em consequência da realização da compra e venda prometida, mas sim a da restituição do sinal em dobro por incumprimento do promitente vendedor. Conclui-se assim que, tal como se configuram, nem a tradição do imóvel, nem o direito de retenção têm a força jurídica bastante para, afastando o direito real de gozo da 1ª ré (massa falida da 3ª ré), proporcionar a sua separação (e menos ainda a restituição) a favor dos autores, em prejuízo dos credores reclamantes.
Portanto, respondendo à pergunta colocada, dir-se-á que a presente acção, vistos os seus fundamentos e o objecto dos pedidos, se enquadra no âmbito das que visam a “verificação ulterior de créditos” a que o artº 205º, nº 2, do CPEREF se refere.
Análise da 3ª questão
O acórdão recorrido enunciou esta questão como sendo uma das duas a apreciar, colocando-a, e bem, na dependência do que viesse a decidir quanto ao problema aqui abordado em segundo lugar. Todavia, não o fez, crê-se que por lapso ou inadvertência. Em todo o caso, como se trata de questão jurídica claramente enunciada nas alegações e conclusões da revista, e indissociável, em termos práticos, da questão já resolvida (aqui e na Relação) sobre a “qualificação” da acção, não pode este STJ deixar de sobre ela se pronunciar, apesar de não ter sido arguida a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.
De quanto se expôs até ao momento retira-se a conclusão de que procede a excepção de caducidade arguida pela ré (massa falida), uma vez que decorreu mais de um ano entre o trânsito em julgado da sentença que declarou a falência (11/8/08) e a entrada em juízo da presente acção (12/7/10).
Os autores sustentam, no entanto, que  ocorre a causa impeditiva da caducidade prevista no artº 331º, nº 2, do CC (reconhecimento do direito).
Esta norma dispõe:
Nº 1: Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou a convenção atribua efeito impeditivo.
Nº 2: Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.
De acordo com a doutrina que reputamos conforme ao espírito do instituto da caducidade, o reconhecimento só será impeditivo “se tiver o mesmo efeito que teria a prática do acto sujeito a caducidade e se ocorrer antes de esgotado o prazo respectivo” (Ana Filipa Morais Antunes – Prescrição e Caducidade (Anotação aos artigos 296º a 333º do Código Civil). E só vale como tal - diz-se no acórdão deste STJ de 25/11/98 (BMJ 481º, 430) - um reconhecimento que seja “expresso, correcto e preciso, de modo a não subsistirem dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor”. Tratando-se, como é aqui o caso, de prazo de proposição de uma acção judicial, o reconhecimento deve ser tal que, como ensina Vaz Serra (RLJ 107º, pág. 24), “torne o direito certo e faça as vezes da sentença, porque tem o mesmo efeito que a sentença pela qual o direito fosse reconhecido”. E deve ainda, para impedir a caducidade, “ter lugar antes de o próprio direito em jogo ter caducado” (Menezes Cordeiro, Tratado, I, Tomo IV, pág. 225) [1].
Ora, não é isto o que ocorre na situação ajuizada.
Com efeito, a acção segue os termos do processo sumário (artº 207º CPEREF); por isso, a circunstância de a recorrida não ter impugnado especificadamente os factos articulados na petição inicial (resumidos na secção I deste acórdão), não determina necessariamente a procedência dos pedidos, já que o efeito cominatório se circunscreve à admissão (reconhecimento) daquela factualidade (artºs 484º e 784º CPC); e reconhecimento dos factos não equivale, obviamente, a reconhecimento do direito, desde logo porque pode dar-se o caso de se admitir a sua veracidade na suposição de que eles são insuficientes, por inconcludência ou outra razão juridicamente atendível, para justificar o atendimento da pretensão formulada pelo autor. De todo o modo o reconhecimento, ainda que fosse possível reputar como tal a falta de contestação da recorrida, seria sempre ineficaz, pois teve lugar já depois de caducado o direito accionado (e não, como seria mister, durante o prazo de um ano fixado no artº 205º, nº 2, CPEREF).
Análise da 4ª questão
Finalmente, os autores invocam ainda o abuso do direito, com o fundamento de que “a ré deveria ter informado o processo de insolvência da existência do contrato promessa e da tradição do imóvel para o autor” (fls 121) e que “ao invocar a caducidade da acção nos termos constantes da sua defesa excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito” (fls 122).
É hoje largamente maioritária, senão mesmo unânime, a doutrina que temos seguido e segundo a qual o abuso do direito é de conhecimento oficioso no sentido de que o tribunal deve declará-lo e extrair dele as consequências jurídicas que se impuserem mesmo que o interessado não o tenha expressamente mencionado; a aplicação do instituto, no entanto, dependerá sempre da alegação e prova dos competentes factos constitutivos e da formulação do correspondente pedido (cfr. neste preciso sentido Menezes Cordeiro, Tratado, I, Parte Geral, pág. 196, com indicação de numerosa jurisprudência).
Ora, no caso em exame afigura-se que a alegação dos recorrentes  tendente à demonstração do invocado abuso é inconcludente, não podendo, por isso, conduzir a uma resposta positiva acerca da sua verificação. E isto é assim independentemente de não se saber com exactidão se foi o devedor - 3ª ré - que se apresentou à falência, situação esta em que a lei lhe impõe o dever de indicar na petição todos os credores e respectivos domicílios, especificando os montantes dos respectivos créditos, as datas de vencimento e as garantias de que beneficiam (artº 16º, nº 1, a), CPEREF). Na verdade, mesmo admitindo que se tratou de falência por apresentação (não o sabemos, pois o presente processo corre por apenso ao da falência, que não foi remetido com o recurso para este STJ), torna-se inviável concluir que há abuso a partir da eventual constatação de que os autores não foram incluídos na relação dos credores nem, consequentemente, citados nos termos do artº 20º, nº 1, b), daquele diploma. É que semelhante omissão pode ter acontecido, desde logo, por a falida estar convicta, de boa fé, que os autores não eram seus credores -  que, mais exactamente, o contrato promessa concluído em 9/5/03 tinha sido integralmente cumprido por ela até à data da apresentação à falência. Para se poder falar com um mínimo de verosimilhança na existência de abuso teria sido necessário alegar e provar que a falta de citação dos autores para a falência foi intencionalmente provocada com o fim de obstar a que reclamassem o seu crédito, ou que, no mínimo, a falida representou essa possibilidade, mostrando-se-lhe indiferente apesar de ter consciência da existência e exigibilidade daquele direito dos recorrentes. Sem esta prova carece por inteiro de base a invocação do abuso, tal como o artº 334º do CC o configura, tanto mais que, podendo dizer-se que o direito de alegar a caducidade tem natureza potestativa, só uma conduta abertamente lesiva da boa fé por parte da recorrida antes de declarada a falência teria aptidão para deter o seu exercício e impedir a correspondente eficácia jurídica no quadro do instituto do abuso de direito. E dizemos antes de declarada a falência porque depois disso dificilmente se vislumbra qualquer possibilidade de alegar triunfantemente o abuso, já que a sentença declaratória da falência tem de ser amplamente publicitada, nos termos do artº 128º, nºs 1 e 2, CPEREF, devendo designar o prazo, até trinta dias, para a reclamação de créditos, e ser objecto de registo oficioso na competente conservatória, além de publicada  por extracto no Diário da República, num dos jornais mais lidos da localidade e por editais à porta da sede e sucursais do falido, e ainda no lugar do próprio tribunal.

III. Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, nega-se a revista.
Custas pelos autores.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2013

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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[1] No mesmo sentido cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, I, 294.