Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
215/20.5T8MNC.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
LEGITIMIDADE
INVENTÁRIO
PARTILHA
HERANÇA
QUINHÃO HEREDITÁRIO
APREENSÃO
MASSA INSOLVENTE
INCONSTITUCIONALIDADE
ACESSO AO DIREITO
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
PROPRIEDADE PRIVADA
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Nos termos prescritos pelo art. 80.º, n.º 3, da Lei do TC, considera-se que, da interpretação das normas dos n.ºs 1 e 4 do art. 81.º do CIRE, conjugada com o disposto no n.º 1 do art. 1085.º do CPC, resulta que o administrador da insolvência tem legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Relatório

1. AA, na qualidade de administrador da Massa Insolvente de BB, requereu a abertura de processo de inventário por óbito da mãe da Insolvente, CC.

Arguida, nos autos, pelo cabeça-de-casal, a ilegitimidade da Massa Insolvente de BB para requerer o inventário, foi proferida decisão, em 31-10-2021, que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da requerente e absolveu o cabeça-de-casal e demais requeridos da instância, nos termos conjuntos dos arts. 30.º, 278.º n.º 1 alínea d), e n.º 3, a contrario sensu, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, alínea e), 1085.º, n.º 1, alínea a), a contrario sensu, todos do Código de Processo Civil.

2. Inconformada, a Massa Insolvente, por intermédio do Sr. Administrador, interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Guimarães, vindo a ser proferido acórdão que julgou a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

3. Desta decisão interpôs a Massa Insolvente recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça invocando o fundamento previsto no art. 672.º, n.º 1, alínea c), do CPC, e, subsidiariamente o fundamento da alínea a) do mesmo preceito, formulando as seguintes conclusões:

“i. A douta decisão recorrida negou legitimidade ao recorrente administrador para requerer a partilha da herança da mãe da insolvente, por entender que agia no processo, não em nome da insolvente, ou como representante, mas na qualidade de substituto processual, e portanto como parte autónoma;

ii. Actuando como substituto processual, ele é a parte e não o representante da parte, e segundo tal pressuposto formal, não pode considerar-se interessado directo;

iii. Ao contrário, no acórdão fundamento, considera-se que o administrador judicial actua em representação do insolvente ou falido, ou seja, como representante legal (“os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador de insolvência”), podendo assim requerer inventário;

iv. Visto que a questão dirimida num e noutro acórdãos é a mesma (legitimidade ou ilegitimidade do administrador para requerer inventário), e o quadro legislativo (insolvencial e processual) deve considerar-se idêntico, como se explicita na alegação que aqui se dá por reproduzida, deve a revista ser admitida com este fundamento;

v. Não sendo porventura admitido o recurso com fundamento na oposição de acórdãos (artº 672 nº 1 alª c) CPC, requere-se a sua admissão com fundamento no artº 672 nº 1 alª a) CPC, considerando a falta de jurisprudência superior, a relevância da questão que subjaz ao recurso, e a necessidade de aprofundamento interpretativo da lei, para que a aplicação do direito resulte esclarecida e fique salvaguardada a sua certeza e segurança; por outro lado, as consequências de decisões em sentidos diversos são intoleráveis, não havendo uma racionalidade que as suporte; tudo a concorrer para que seja devidamente clarificada a questão em litígio;

vi. O douto acórdão recorrido considera a intervenção do administrador de insolvência, no processo de inventário, para partilha da herança da mãe da insolvente, como substituto processual, agindo assim como parte e não como representante legal da insolvente;

vii. Todavia, é como representante (do devedor) que a letra da lei expressa a intervenção do administrador na acção em causa, na medida em que lhe confere legitimidade para as acções que interessam à massa insolvente, as intentadas após a declaração de insolvência (artº 81 nº 4 CIRE); esta legitimidade atribuída pelo legislador ao administrador está conexionada, como dos seus termos resultam, com um interesse directo e legítimo, adveniente da utilidade da procedência da acção (artº 30 nº 2 CPC);

viii. Certo é que à intervenção na acção, como representante, ou como substituto processual (decisão recorrida), subjazem realidades jurídicas ou institutos bem diferenciados, e propósitos distintos, pelo que não faz qualquer sentido afirmar que o legislador utilizou o termo representante, quando queria referir-se a substituto; através da representação, o representante não se substitui à parte processual, enquanto na substituição, o substituto é que é a própria parte, sendo assim realidades jurídicas muito diferenciadas;

ix. Portanto, quando o legislador (disposições do artº 81-4 e 85-3 do CIRE) admite na primeira o administrador como representante do insolvente, e na segunda como seu substituto, vê-se que expressou com rigor o que entende por representação e o que entende por substituição, e que aplica os conceitos a realidades jurídicas bem diversas, como a jurisprudência e doutrina as representa; deste modo, não pode afirmar-se, como se afirma no douto acórdão recorrido, que o que o legislador expressou por “representante” pode ou deve significar “substituto processual”;

x. Tal forma de interpretação viola o princípio básico da interpretação, assente no artº 9 nº 2 e 3 CC, segundo o qual não pode aceitar-se um sentido da lei, que não tenha nesta um mínimo de correspondência verbal; e a ultrapassar-se este mínimo de correspondência verbal, já não estamos no domínio da lei, mas do arbítrio;

xi. Por outro lado, o elemento teleológico da lei deve corresponder aos propósitos do legislador, e a estes não devem andar alheios os interesses da massa insolvente e da própria insolvente (no caso em apreço), pressuposto da intervenção do administrador, que ficam incontestavelmente mais salvaguardados se for concretizada a partilha sucessória; além de que compete ao administrador de insolvência, no âmbito dos seus poderes de administração (artº 55 CIRE), rentabilizar os meios activos de que dispõe, actuando no melhor interesse da massa insolvente e do próprio insolvente (artº 184 CIRE);

xii. Partilha esta que não pode ser arredada por qualquer esforço interpretativo, pois o herdeiro legitimário (mesmo insolvente) não pode ser privado do direito de suceder, do direito a que lhe sejam transmitidos os bens por sucessão, e do direito de requerer a sua divisão; este último qualifica-o a lei de direito irrenunciável e imprescritível (artº 2033 nº 1 e 2101 CC);

xiii. E assim, em obediência aos fins da lei e imperativo da mesma, se o insolvente, por si, não pode intervir em partilha judicial ou extrajudicial (falta de capacidade de exercício), e se não pode ser privado desses direitos de designação, sucessão, transmissão e partilha, então impõe-se que a lei supra essa incapacidade específica (artº 2, 27 e 28 CPC; artº 26 CRP);

xiv. Portanto, só através do instituto de representação vai o insolvente usufruir dos direitos consignados na lei e de que não pode ser privado; e se os demais interessados da herança não tomarem a iniciativa da partilha (como não tomaram), não deve impedir-se que o insolvente (por meio do seu representante) a tome, como tomou (81 nº 4 CIRE; 1085 nº 1 alª a) CPC);

xv. Assim a interpretação colhida nos termos do douto acórdão, a de que o insolvente não pode requerer nem ser requerido no processo de inventário, e a de que o administrador não pode representar o insolvente (para suprir a sua incapacidade), implica que o insolvente nunca poderá ver concretizado o seu quinhão hereditário, o mesmo é dizer que a interpretação da lei, acolhida no douto acórdão, priva o insolvente de um dos direitos fundamentais – o direito de propriedade e o direito de ver transmitida, pela via sucessória, a parte do acervo que lhe toca (artº 2033 CC e artº 17 e 62 CRP);

xvi. A interpretação que o tribunal fez, decidindo como acaba de se expor, é vincadamente inconstitucional, por violar, entre outros, os princípios do direito de propriedade, da sucessão, e de tutela jurisdicional efectiva (entre outros, artº 17, 20 e 62 da CRP);

xvii. Decidindo como decidiu, fez o tribunal uma errada interpretação das disposições referidas no recurso e parte conclusiva, e ainda a do artº 1085 CPC (na medida em que afastou do direito de requerer inventário um herdeiro legitimário), com a consequente violação das mesmas.”.

Termina, pedindo a revogação do acórdão e a prolação de decisão que declare a legitimidade do administrador da insolvência para instaurar o inventário judicial.

4. Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Por acórdão de 08.09.2022 a Formação de juízes prevista no n.º 3 do art. 672.º do CPC, o recurso foi admitido.

6. Por acórdão de 21.03.2023 o objecto do recurso foi assim identificado: “assume-se, in casu, como questão central a de saber se o administrador da insolvência pode, em representação da devedora e no que concerne à composição da massa insolvente, requerer o inventário para partilha da herança da qual faça parte um quinhão hereditário daquela (devedora/insolvente)”.

O recurso foi julgado improcedente, considerando-se que o administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha.

7. Deste acórdão, interpôs o requerente recurso para o Tribunal Constitucional que foi por este admitido.

8. Por acórdão do Tribunal Constitucional de 29.04.2025, foi proferida a seguinte decisão:

“a) Não julgar inconstitucional a norma decorrente da articulação do n.º 1 do artigo 81.º do CIRE com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do CPC, na interpretação normativa segundo a qual o herdeiro insolvente, apesar da sua qualificação como interessado direto para efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do CPC, não pode requerer abertura do processo de inventário para efeitos de cessação da comunhão hereditária e partilha de bens, não podendo, igualmente, quinhoar na herança legitimária; e, consequentemente,

b) Julgar improcedente o recurso quanto à norma indicada na alínea anterior.

c) Julgar inconstitucional, por restrição desproporcional da garantia constitucional do acesso ao direito e tutela judicial efetiva e da propriedade privada (respetivamente, artigos 20.º e 62.º da CRP), a interpretação normativa extraída da articulação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 81.º do CIRE com a alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do CPC, de acordo com a qual o administrador de insolvência não pode requerer abertura do processo de inventário para efeitos de cessação da comunhão hereditária e partilha de bens, não sendo considerando, nessa qualidade, como interessado direto para efeitos do disposto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 1085.º do CPC; e, consequentemente,

d) Conceder nesta parte provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo positivo de inconstitucionalidade.

(…)”.

9. Retornados os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, por jubilação dos Senhores Juízes Conselheiros que integravam o colectivo que proferiu a decisão a reformar, foram os mesmos redistribuídos em 13.10.2025.

Cumpre dar cumprimento ao determinado no acórdão do Tribunal Constitucional.

II – Reforma da decisão proferida pelo acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Março de 2023

Recorde-se que a única questão objecto do recurso de revista é a seguinte:

• Saber se o administrador da insolvência pode, em representação da devedora e no que concerne à composição da massa insolvente, requerer o inventário para partilha da herança da qual faça parte um quinhão hereditário daquela devedora insolvente.

Sob a epígrafe Transferência dos poderes de administração e disposição, o art. 81.º, n.ºs 1 e 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe o seguinte:

“1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

(…)

4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.”.

Por sua vez, sob a epígrafe Legitimidade, o art. 1085.º, n.º 1, do CPC estabelece que:

“1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;

(…).”.

Nos termos prescritos pelo art. 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional ( “No caso de o juízo de constitucionalidade ou de legalidade sobre a norma que a decisão recorrida tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em determinada interpretação da mesma norma, esta deve ser aplicada com tal interpretação no processo em causa”), considera-se que, da interpretação das normas dos n.ºs 1 e 4 do art. 81.º do CIRE, conjugada com o disposto no n.º 1 do art. 1085.º do CPC, resulta que o administrador da insolvência tem legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha.

Conclui-se, assim, pela procedência do recurso de revista.

III – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso de revista procedente, revogando-se a decisão do acórdão do Tribunal da Relação de 24 de Março de 2022 e declarando-se que AA, na qualidade de administrador da Massa Insolvente de BB, tem legitimidade para requerer a abertura do inventário por óbito da mãe da Insolvente, CC; determinando-se a baixa do processo ao Tribunal da 1.ª Instância para prosseguimento dos autos.

Custas pelos requeridos.

Lisboa, 27 de Novembro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Fernando Baptista