Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
628/22.8PFSXL.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: NUNO GONÇALVES
Descritores: DECISÃO SINGULAR
CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Data da Decisão Sumária: 11/28/2025
Votação: - -
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA
Sumário :
I. Quando ao arguido é acusado no processo – que tem outros incorporados - por um concurso efetivo de crimes, algum com atos de execução em diversas circunscrições, o critério para determinar o tribunal competente para o julgamento é o da conexão processualmente relevante.

II. Quando assim seja, no mesmo processo julgam-se todos os crimes cometidos pelo/s mesmo/s arguido/s ainda que realizados e consumados na circunscrição de diferentes tribunais.

III. Competente para o julgamento de arguida/o acusada/o por um concurso de crimes em que a execução de um desses ocorreu na circunscrição de dois tribunais, é o tribunal da circunscrição onde primeiramente foi aberto o inquérito para investigar qualquer dos crimes do concurso.

Decisão Texto Integral:
Conflito negativo de competência territorial


DECISÃO:


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a. relatório:

Dos elementos que instruem este procedimento incidental, extrai-se, com relevância para a decisão a proferir aqui que: -----------------

1. Mediante participação da PSP, foi aberto nos serviços do Ministério Público do Seixal, em 14.07.2022, o inquérito com o NUIPC 628/22.8PFSXL, para investigar a prática de crimes de violência doméstica.

2. Inquérito no qual se vieram a incorporar o NUIPC 75/23.4PFSXL e o NUIPC 76/23.2PFSXL, abertos pelo Ministério Público do Seixal em 26.01.2023 e em 30.01.2023, igualmente mediante participação da PSP e para investigar crimes de violência doméstica.

3. E também vieram a incorporar-se o NUIPC 248/23.0PBVCT e o NUIP 1199/23.3 GDSTB - este mediante participação da GNR de Palmela - abertos igualmente para investigar crimes de violência doméstica.

4. Encerrando o inquérito, o Ministério Público, em 3.02.2025, deduziu acusação em processo comum para julgamento por tribunal coletivo, contra a arguida AA imputando-lhe os factos aí narrados e, com isso, a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de quatro crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artº 152º, nºs 1, alíneas b) e e) e nº 2, alínea a) do Código Penal.

5. Não tendo sido requerida instrução, o processo foi remetido para julgamento, com distribuição ao Juízo central criminal de Almada – Juiz 2.

4. Tribunal no qual, a Exma. Juíza, por despacho de 2.09.2025, entendendo que o último ato de execução do crime de violência doméstica agravado - em que a vítima indicada é o companheiro da arguida -, ocorreu na casa onde ambos moravam, na Localização 1, sita na circunscrição dos Juízos criminais de Setúbal, invocando o disposto no art.º 19º n.ºs 1 e 3, do CPP, conhecendo oficiosamente, declarou a incompetência territorial daquele tribunal para a fase de julgamento nestes autos.

5. Competência relativa que atribuiu ao juízo central criminal de Setúbal, ordenando que o processo se lhe remetesse.

6. Recebidos os autos nesse tribunal com distribuição ao -Juiz 2, o Exmo. Juiz, por despacho de 11.09.2025, atentando que “autos efetivam conexão de situações e crimes”, - terá querido dizer: conexão processual - em que a arguida vem acusada de ter cometido, em concurso efetivo, quatro crimes, com a mesma moldura penal e verificando que “a primeira notícia dos factos ocorre na área territorial de do Seixal, sendo esse o critério decisivo para a atribuição de competência para a fase de julgamento”, invocando o disposto no art.º 28.º al.ª c) do CPP. conhecendo oficiosamente, declarou a incompetência, em razão do território, do Juízo local criminal de Setúbal para a fase de julgamento destes autos.

7. Competência relativa que atribuiu ao Juízo central criminal de Almada, por ter sido na sua circunscrição que primeiramente houve notícia dos crimes que a acusação imputa ao arguido.

8. Deparando-se com o conflito negativo de competência territorial assim surgido no processo, suscitou a resolução ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.

b. parecer do Ministério Público:

O Digno Procurador-Geral Adjunto, em douto e circunstanciado parecer, retirando da acusação “que os 4 crimes se consumaram no Seixal”, entendendo ser aplicável no caso o disposto no artº 19º, nº 1, do CPP, pronuncia-se pela atribuição da competência territorial ao Juízo central criminal de Almada.

c. a arguida, notificada, nada vieram dizer.

d. o conflito:

No caso, dois tribunais de 1.ª instância, especializados em matéria criminal e funcionalmente competentes para a fase de julgamento de um processo penal, recusam a competência própria, atribuindo-a ao outro.

Estabelece a lei, o tribunal pode conhecer da sua própria competência, oficiosamente ou mediante requerimento dos sujeitos processuais e pode declarar-se incompetente, em razão do território até ao início do debate instrutório, havendo instrução ou até ao início da audiência, tratando-se de tribunal de julgamento – art.º 32.º n.º 2 al.ªs a) e b) do CPP.

No caso, a audiência ainda não foi declarada aberta.

Assim, a declaração de incompetência territorial foi conhecida, oficiosamente e tempestivamente declarada pelos tribunais em dissídio.

Porque os tribunais em conflito, - embora sejam de 1ª instância -, pertencem a circunscrição de diferentes tribunais da Relação – um à de Lisboa, o outro à de Évora -, é ao Presidente da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça que, nos termos do art.º 11º n.º 6, al.ª a) do CPP, compete resolver o vertente conflito negativo de competência territorial.

e. critérios da competência territorial:

A competência em processo penal - a cada crime corresponde um processo para o qual é competente o tribunal predeterminado em função das regras sobre competência material, funcional e territorial - é, por princípio, unitária, respondendo a exigências precisas de determinação prévia do tribunal competente, para prevenir a manipulação avulsa ou arbitrária de competência em contrário do respeito pelo princípio do juiz natural1, com estatuto supra legal firmado no art.º 32.º n.º 9 da Constituição da República.

O objeto do processo penal é definido pela acusação e/ou pela pronúncia. Que devem incluir, sempre que possível, o lugar da prática dos factos imputados ao arguido.

O local onde o crime foi cometido, não sendo relevante para a verificação da factualidade típica, é o referencial fáctico para aplicação do regime normativo que rege sobre a determinação da competência territorial do tribunal de julgamento.

O critério geral da competência territorial do tribunal para o julgamento das causas penais é o locus delicti commissi ou, na expressão do legislador, aquele com jurisdição no local “onde se tiver verificado a consumação” – art. 19.º do CPP.

O crime cometido por ação considerando-se praticado tanto no lugar em que o agente atuou como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido no tipo se produzir – art. 7º n.º 1 do Cód. Penal.

Quanto ao momento considera-se praticado quando o agente agiu independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido – art. 3º do CPP.

Mas, a realização de todos os elementos da infração pode, em alguns tipos de crime, não coincidir com o momento em que a ação é levada a cabo e, em outros, o ação típica inclui uma pluralidade de atos sucessivos ou reiterados ou um ato que se prolonga no tempo.

Com frequência, o mesmo agente comete no mesmo ou em diferentes locais, vários crimes, não só subjetivamente conexionados (unidade de agente) como também podem conexionar-se objetivamente – cfr. art. 24.º a 27.º do CPP.

E, não raramente, a acusação e/ou a pronúncia omitem a indicação do local da prática de alguns ou de todos os factos constitutivos do crime ou crimes como também do último ato de execução no caso de crime/s de execução sucessiva ou por atos reiterados ou em crimes de resultado, onde o mesmo se produziu ou completou.

Não constando da acusação ou pronúncia o local da ocorrência dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados ao arguido não pode o tribunal, para ajuizar da sua competência territorial ou para a atribuição da mesma a outro, pesquisar em autos ou termos do processo dados ou factos que aquelas peças nucleares omitiram.

O legislador, prevendo que assim possa suceder, estabeleceu critérios específicos para predeterminar o tribunal territorialmente para conhecer da causa penal nessas situações.

Quando ao arguido é acusado ou pronunciado no mesmo processo por um concurso efetivo de crimes, o legislador sobrepôs, ao critério geral -consagrado no art.º 19.º do CPP - o regime da conexão subjetiva e/ou objetiva – dedicando-lhe uma secção -, de modo que num só processo se julguem todos os crimes cometidos pelo/s mesmo/s arguido/s ainda que realizados e consumados em locais pertencentes à circunscrição de diferentes tribunais.

Trata-se de uma opção legislativa na base da qual se surpreende sempre a conveniência da Justiça. Ou porque há entre os crimes uma tal ligação que se presume que o esclarecimento de todos será mais fácil ou mais completo quando processados conjuntamente, evitando-se possíveis contradições de julgados e realizando-se consequentemente melhor justiça, ou porque o mesmo agente responde por vários crimes e é conveniente julgá-los a todos no mesmo processo até para mais fácil e melhor aplicação da punição do concurso de crimes (art.º 77.º do Código Penal)”.

f. apreciação:

No caso, os tribunais em dissídio invocam diferentes normas adjetivas para amparar a declaração da respetiva incompetência em razão do território: o de Almada, o art.º 19º n.º 1 e 3 do CPP; o de Setúbal, o art. 28º al.ª c), também do CPP.

Conforme se sinalizou no antecedente relatório, a arguida vem acusado neste processo - que tem incorporados os quatro acima identificados- de ter cometido, em autoria material e em concurso efetivo 4 crimes de violência doméstica agravados em que as vítimas indicadas são o seu companheiro e três crianças, suas filhas. Crimes que têm, evidentemente, a mesma moldura penal.

Como nota o Digno Procurador-Geral Adjunto, quanto aos crimes em que, na economia da acusação, a vítima é cada filha da arguida, nem sequer vem questionado que não se tenham consumada em outra circunscrição que não seja a do tribunal de Almada.

O dissídio radica somente na divergência sobre a consumação do crime de violência doméstica de que é vítima, indiciariamente, o companheiro da arguida.

g. critério da al.ª c) do art. 28.º do CPP:

Será que, mesmo que assim fosse, tal seria relevante para afastar o critério atributivo da competência territorial assente na conexão de processos?

A resposta é clara: não.

Conforme se realçou, o legislador firmou a opção de que o arguido que cometeu um concurso de crimes, na mesma ou em diferentes circunscrições, deve ser julgado e sentenciado, por todos, no mesmo processo e tribunal e não em outro ou tantos outros quantos, segundo o critério do locus delicti commissi, seriam territorialmente competentes para algum dos crimes do concurso efetivo imputado ao acusado.

Critério que também se impõe na determinação da competência material e funcional – art. 27.º do CPP.

Para os casos de concurso efetivo de crimes e em que um deles, é, na economia da acusação de localização plurilocalizada, a competência territorial do tribunal, é a que decorre dos critérios estabelecidos no art.º 28.º do CPP, segundo os quais, se o julgamento fosse “da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer de todos:

a. O tribunal competente para conhecer do crime couber pena mais grave; ;

b. Em caso de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem da qual estiver maior número;

c. Se não houver arguidos presos ou o seu número for igual, o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes.

Prevendo situações como a dos autos em que os crimes imputados à arguida são de igual gravidade e não estando a mesma presa à ordem do processo, o legislador, atribuiu a competência territorial ao tribunal com jurisdição na área onde primeiro tiver havido notícia do crime.

Critério supletivo que está consagrado para diversas situações, como sucede com as normas dos art.ºs 20º n.º 3, 21º n.º 2, 22º n.º 1, 28º al.ª c) e 264º n.º 2, todos do CPP, precisamente para contornar as dificuldades práticas que possam advir da aplicação dos critérios fundados na regra do locus delitci comissi (art.º 19º do CPP) essencialmente destinados a fixar a competência territorial do tribunal para o julgamento de apenas um crime, quer a consumação seja instantânea ou ocorra por atos sucessivos ou ainda por atos que se prolongam no tempo.

Pelo que, vindo a arguida acusada pela prática, em concurso efetivo de quatro crimes de violência doméstica agravados, um dos quais aparece conexionado com duas áreas territoriais, a competência para a fase de julgamento pertenceria, segundo a regra basilar do locus delicti comissi, a dois tribunais. Mas, segundo o critério da conexão, o competente para o julgamento de todos os crimes do concurso é aquele onde primeiro houve notícia do crime - art. 28.º, do CPP.

O processo penal só existe juridicamente quando o Ministério Público declara aberto o inquérito para investigar da existência de um crime de que teve conhecimento ou recebeu a correspondente notícia. Constituindo o inquérito a fase preliminar - primeira (a, segunda, facultativa, é a instrução) -, do processo deve considerar-se proposta a ação penal para efeitos da definição da competência, quando o inquérito é instaurado, conforme temos decidido, aliás, em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal.

h. onde primeiramente se abriu inquérito:

O legislador não pode ter querido e não seria razoável que, sempre que se tenha de recorrer aos critérios do art.º 21.º e 28.º al.ª c) do CPP, o denunciante – e o mesmo vale para os OPCs -, possa determinar o tribunal competente para o julgamento. O que sucederia se se interpretasse que a competência do tribunal de julgamento em vez da abertura do inquérito – como entendemos -, é fixada pelo recebimento da denúncia ou pela participação.

No caso sub judice, dos elementos com que vem instruído o vertente procedimento incidental, apura-se que o vertente processo foi aberto no Ministério Publico do Seixal, área da circunscrição do Juízo central criminal de Almada.

Resta então a aplicação ao caso do critério residual da alínea c) do art. 28.º do CPP, segundo o qual, havendo conexão processual por imputação de concurso de crimes de igual gravidade, um dos quais de execução plurilocalizada e não estando a arguida presa à ordem do processo, a competência territorial atribui-se, de entre os dois tribunais com competência territorial segundo a regra do locus delicti, àquele em que primeiramente foi aberto qualquer dos inquéritos abertos, no Ministério Público, pelas participações dos factos pelos quais a arguida vem acusada.

Destarte, conclui-se que territorialmente competente para tramitar o processo na fase de julgamento e realizar a audiência nos presentes autos é, nos termos do art.º 28º al.ª c) do CPP, o Juízo central criminal de Almada, por ter sido na respetiva circunscrição que o Ministério Público primeiramente adquiriu notícia de qualquer dos crimes pelos quais a arguida está vem acusada.

i) dispositivo:

Pelo que, de conformidade com o exposto decido, nos termos do art. 36º n.º 1 do CPP, resolver o conflito negativo surgido nos autos, atribuindo a competência territorial para o processamento dos mesmos e o julgamento em 1ª instância, ao Juízo central criminal de Almada – Juiz 2.


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Comunique-se e notifique-se como determina o art.º 36º n.º 3 do CPP.

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Lx. 28.11.2025

O Presidente da 3ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça

Nuno Gonçalves (relator)

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1. Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 06-10-2004, processo n.º 04P1139