Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | NUNO GOMES DA SILVA | ||
Descritores: | RECURSO PENAL MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA DE PRISÃO HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTATIVA MOTIVO FÚTIL CONCURSO DE INFRACÇÕES CONCURSO DE INFRAÇÕES PENA ÚNICA CÚMULO JURÍDICO BEM JURÍDICO PROTEGIDO PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL ILICITUDE CULPA IMAGEM GLOBAL DO FACTO ALCOOLISMO PLURIOCASIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 01/07/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Área Temática: | DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA. | ||
Doutrina: | - Figueiredo Dias, Comentário do Código Penal, Tomo I, 26, 32; Direito Penal, Parte Geral, 2.ª ed., 51; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 291; “Parecer” em CJ, 4/87, 51 e ss. - Teresa Serra, Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, 63 e 64. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 432.º, N.º 1, AL. C), 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 22.º, 23.º, 30.º, N.º1, 40.º, N.º1, 53.º, N.º1, 71.º, N.º1, 77.º, 131.º,132, N.ºS 1 E 2, AL. E). | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 2010.05.27, PROC. N.º 517/08.9JACBR.C1.S1. -DE 2015.03.12, PROC. N.º 185/13.6GCALQ.L1.S1. | ||
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Sumário : | I - A qualificação do crime de homicídio a que se procede no art. 132° do CP é fruto de uma maior culpa do agente oriunda de uma actuação especialmente censurável ou perversa o que há-de ser avaliado em concreto, funcionando as circunstâncias enumeradas no seu n° 2 como exemplos-padrão que não de aplicação automática. Elas são elementos da culpa e não do tipo e com carácter meramente exemplificativo. II - É apenas a partir dos factos provados que podem ser tiradas as ilações devidas e necessárias e não da interpretação do teor da fundamentação da matéria de facto, de considerações que lá se teçam a respeito da prova produzida. Se o tribunal extrai do depoimento de uma testemunha algo que pode ter relevo do ponto de vista factual, com merecimento para a decisão da causa, como seria qualquer dado a respeito do eventual móbil de um crime deve incluí-lo na matéria de facto provada com recurso aos mecanismos que a lei lhe confere para esse efeito. É essa também uma consequência da estrutura acusatória do processo integrada por um princípio de investigação. III - Se há sempre desproporcionalidade entre o cometimento de um homicídio e a razão que o motiva, seja ela qual for, para se considerar a existência de um «motivo fútil» haverá de ponderar-se uma desproporcionalidade superlativa, perante um motivo acerca do qual se conclua ser insignificante; um motivo que estando na base da reacção de quem pratica o crime, não pode sequer com algum grau de razoabilidade explicar a conduta levada a cabo, que não tem relevo algum. IV - A conduta do arguido surge como totalmente gratuita, num assomo de violência sem razão-base consistente ou de relevo e, portanto, merecedora de especial censurabilidade porque absurda e completamente desajustada à luz do senso comum; por conseguinte com ausência de um qualquer efeito dissipativo dessa especial censurabilidade. Mas ainda que se aceitasse que o motivo da conduta do arguido era a circunstância de querer a casa só para ele ocupar não deixaria isso de ser um motivo singelo demais e puramente egoísta. Pois não está aqui em equação, por exemplo, uma qualquer ancestral disputa sobre a propriedade numa comunidade rural em que essa propriedade assuma além do seu estrito valor patrimonial um outro valor simbólico de posse e poder. Encontra-se assim preenchida a al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP. V - A finalidade útil da pena assume-se numa função basicamente preventiva que se desdobra orientada para a comunidade - prevenção geral - e para o indivíduo - prevenção especial. Na previsão e punição de crimes de homicídio está em causa a protecção do bem jurídico fundamental, a vida. É essa a situação extrema a reclamar a intervenção firme do sistema de administração da justiça. VI - Os factos provados devidamente interpretados apontam para um grave problema de alcoolismo e de perturbação pessoal do arguido que lhe está associada a necessidade de tratamento cuidado e perseverante. Considerando as concretas circunstâncias com efeito agravante em que se deram os crimes, de noite, com verdadeira emboscada e efeito surpresa, e bem assim o dolo directo, a ligação familiar próxima a uma das vítimas e os antecedentes criminais deste entende-se não ser justificada o agravamento das penas parcelares, considerando-se adequadas as penas aplicadas na 1.ª instância: dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, dos arts. 131.º, e 132, n.ºs 1 e 2, al. e), 22.º, 23.º e 30.º, n.º1, todos do CP, nas penas de 5 anos e 6 meses e 5 anos de prisão. VII - Também a pena única de 7 anos e 6 meses de prisão não merece agravamento. No caso, há uma conexão patente de espaço, de tempo, modo de execução e sobreposição de motivo. Quanto à personalidade unitária do arguido ter-se-á que ponderar a sua conduta anterior mormente no que respeita aos crimes praticados com violência em que avultam quatro condenações, mas também se pondera um pesado pano de fundo cuja influência está evidenciada: o do complexo processo social de desenvolvimento dessa personalidade de que foi fazendo parte integrante o comportamento aditivo em particular do álcool, ainda presente e de complicada ultrapassagem, o que permite concluir que na origem do conjunto da actuação do arguido muito mais do que uma tendência criminosa está uma pluriocasionalidade associada e exponenciada pelo alcoolismo. | ||
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Decisão Texto Integral: | 1. – No âmbito do processo nº 145/14.0JAPRT da 1ª Secção Criminal, J2, da Instância Central da Comarca do Porto o arguido AA foi condenado pela prática em autoria material e concurso efectivo por cada um de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, dos arts. 131º e 132º, nº 1 e nº 2, al. e), 22º, 23º e 30º, n º1, todos do Código Penal, nas penas de 5 anos e 6 meses de prisão e 5 anos de prisão (ofendidos BB e CC, respectivamente).
Em cúmulo jurídico destas penas, foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão. Foram ainda julgados procedentes os pedidos de indemnização formulados pelos demandantes “Centro Hospitalar do Porto, E.P.E”, e, “Administração Regional de Saúde do Norte, IP” sendo o arguido condenado a pagar-lhes as quantias de € 6 496,33 e € 134,80, respectivamente, acrescidas de juros de mora contados, à taxa legal, desde a notificação para contestar e até integral reembolso. O magistrado do Ministério Público interpôs recurso formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1 . O arguido AA foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, nas penas de 5 anos e 6 meses de prisão e de 5 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão. 2. O Ministério Público não se conformando com o douto Acórdão, datado de 03.07.2015 e proferido a fls. 845 e ss., dos autos, dele vem interpor RECURSO, que incidirá sobre a matéria de direito, por entender que as referidas penas não asseguram suficientemente as finalidades da punição – a protecção de bens jurídicos e a reintegração do referido arguido na sociedade – devendo ser outras, e mais graves, quer as penas parcelares quer a pena única, a impor ao arguido AA, face à gravidade das suas condutas, às exigências de prevenção e ao elevado grau de culpa. 3. Importa salientar a alteração não substancial de factos que o Tribunal entendeu ter resultado provada conforme resulta da ata de fls. 840 e ss., da qual se salienta, que, agora, foi considerado provado que o arguido atingiu os ofendidos, cada um deles, apenas com uma “facada”, que lhes provocou “ferida perfurante abdominal”. 4. Salienta-se também que nos relatórios de perícia médico-legal de 472 e ss., relativo ao ofendido CC, e de fls. 544 e ss., relativo ao ofendido BB, não se faz uma distinção clara entre as lesões que resultaram da agressão e aquelas que resultaram das intervenções cirúrgicas a que os ofendidos foram sujeitos, designadamente, face ao teor das fichas do INEM, relatórios de urgência e notas de alta. 5. Aliás, o Tribunal, na alteração não substancial da matéria de factos, refere, por um lado, que o arguido desferiu uma única facada no ofendido BB e, por outro lado, exclui das lesões produzidas nos ofendidos todas aquelas que resultaram das intervenções cirúrgicas a que os mesmos foram sujeitos, na sequência da assistência médica que lhes foi prestada em consequência das ofensas, neles, perpetradas pelo arguido. 6. As feridas, produzidas nos ofendidos pelo arguido, são perfurantes, e, no caso do CC, apenas com 1 cm, de largura, o que significa que a arma branca foi utilizada, não em movimentos circulares ou a abanar os braços, mas com o intuito claro perfurar os ofendidos. 7. Em face de tais lesões, merecem inteira credibilidade os depoimentos dos ofendidos BB e CC, referidos na motivação, do douto Acórdão, de acordo com os quais foram, ambos, atacados, de forma inopinada, pelo arguido AA, o qual, sem qualquer motivo, que pudesse de algum modo justificar a sua conduta, desferiu, em cada um deles, uma facada no abdómen. 8. Versão que é confirmada, no essencial, pela testemunha DD, o qual referiu que “ouviu o arguido perguntar quem estava ali”, “prosseguindo o seu caminho. Logo de seguida ouviu o BB e o CC queixarem-se e foi ajudá-los …”. 9. O arguido, desferiu as facadas que atingiram os ofendidos, de forma violenta e com o intuito de atingir os órgãos internos dos ofendidos, como resulta, quer da largura da ferida de entrada, com 1 cm, no abdómen do ofendido CC, quer da profundidade das facadas como se extrai dos ferimentos produzidas nos órgãos internos. 10. Face às características das lesões que os ofendidos apresentam, mostra-se que a versão do arguido - de que agiu em sua defesa utilizando para o efeito uma faca, com movimentos circulares ou de que “usou a faca para o largarem, começando a abanar os braços”, não tem qualquer apoio nas lesões que efetivamente produziu nos ofendidos, nem é merecedora de qualquer credibilidade. 11. De facto, se o tivesse feito, os ferimentos que provocou nos ofendidos seriam superficiais e largos, na entrada, e não profundos e estreitos, na entrada, como de facto são. 12. Mostra-se pois que o arguido agiu com forte intenção de matar, sabendo que nos locais atingidos, do abdómen, se situam órgãos essenciais à manutenção da vida, sabendo também que as “facadas” que desferiu nos ofendidos, com a força necessária a atingir os órgãos internos, eram idóneas a causar a morte destes. 13. Sobre a medida das penas unitárias: O douto Acórdão, refere que as exigências, quer de prevenção geral, quer de prevenção especial, são elevadas. 14. Considerando, porém, as circunstâncias agravantes referidas no douto Acórdão, quer os antecedentes criminais do arguido, quer a forma displicente como encara – e demonstrou-o em audiência de julgamento – os factos praticados; a total ausência de arrependimento; e a total ausência de preocupação com a vida dos demais, temos de considerar que as exigências de prevenção especial são mesmo muito elevadas. 15. De facto, o arguido “tem uma personalidade agressiva e violenta sendo permanentes as situações de conflito e agressão, nomeadamente com a família”. 16. As penas fixadas, para cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado, de 5 anos e de 5 anos e 6 meses de prisão, uma é inferior à terça parte do limite máximo da moldura abstrata e, a outra, excede esse limite, mas apenas em 20 dias. Sendo muito baixas, face à gravidade dos crimes praticados e às exigências de prevenção, resultantes da personalidade e dos antecedentes criminais do arguido. 17. Na determinação da pena concreta deverão ser consideradas, para além das circunstâncias referidas em 14, ainda e designadamente; - o dolo direto; - as fortes exigência de prevenção geral; - as muito fortes exigências de prevenção especial; - a ligação familiar que une o arguido a uma das vítimas, …; e, - as concretas sequelas que as vítimas hoje apresentam. 18. O limite mínimo da pena é fixado pelas necessidades de prevenção geral e o limite máximo da pena pela culpa do agente. Dentro desses dois limites intervêm as exigências de prevenção especial, sendo a medida concreta da pena determinada, dentro daqueles limites máximo e mínimo, pelas exigências da prevenção especial. 19. Já vimos que são elevadas as exigências de prevenção geral e deverão ser consideradas muito elevadas as exigências de prevenção especial. 20. A culpa do arguido é intensa na forma de dolo direto. 21. Pelo que, as penas, parcelares, a impor ao arguido AA não poderão ser inferiores a 7 anos de prisão, no que respeita a crime praticado contra o ofendido CC, e a 8 anos de prisão, no que respeita a crime praticado contra o ofendido BB. 22. Para a fixação da pena única a lei fornece ao Tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena, um critério especial: “na determinação concreta da pena (do concurso) serão considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. 23. Germano Marques da Silva considera que “dentro dos limites máximo e mínimo da penalidade do concurso, o juiz deverá determinar em obediência ao critério legal constante do art.º 77.º, n.º 1, a pena a aplicar: deverá atender em conjunto à gravidade dos diferentes factos ilícitos e ao grau de culpa do agente e à sua personalidade. … importa determinar uma única pena concreta a aplicar ao agente pela prática de vários crimes em concurso que responda às finalidades da punição: tutela dos bens jurídicos e reintegração do delinquente na sociedade, no que é necessário atender á gravidade dos factos ilícitos e ao grau de culpa, na perspectiva da tutela dos bens jurídicos, e à culpa e personalidade do agente, na perspectiva da sua reintegração”. 24. A Jurisprudência vem entendendo, embora como critério complementar e meramente indiciário, que na formulação da pena conjunta, na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade se considere que, tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade (ou, em casos de grande intensidade da culpa, ou da gravidade dos factos 2/3) e um terço de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave entre um terço e, nos casos excecionais de menor culpa ou gravidade, um quarto, de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso. 25. Como resultou comprovado o arguido: agiu com dolo direto; são fortes exigências de prevenção geral; deverão ser consideradas muito fortes exigências de prevenção especial; existe uma ligação familiar forte que une o arguido a uma das vítimas, …; são graves as concretas sequelas que as vítimas hoje apresentam; o arguido tem antecedentes criminais; o arguido encara de forma displicente os factos praticados; o arguido revelou total ausência de arrependimento e total ausência de preocupação com a vida dos demais. 25. Mostra-se pois que o arguido é detentor de uma personalidade gravemente desconforme com o Direito, razão pela qual deverá, para a determinação da pena única, somar-se à pena concreta mais grave metade de pena concreta aplicada ao outro crime em concurso, obtendo-se assim uma pena única, não inferior a 11 anos e 6 meses de prisão. 26. Pena, única, de 11 anos e 6 meses de prisão, que se nos afigura indispensável para assegurar as fortes exigências de prevenção geral e as muito fortes exigências de prevenção especial e não excede a culpa do arguido. 27. O douto Acórdão ora recorrido, impondo ao arguido AA, as penas, parcelares, de 5 anos e 5 anos e 6 meses de prisão, por cada um dos crimes praticados contra os ofendidos CC e BB, e a pena única em 7 anos e 6 meses de prisão, violou, na determinação de cada uma das referidas penas, bem como da pena unitária, em que o arguido foi condenado, as normas dos art.s 40.º, n.º 1, 71.º, n.º 1 e 2, e 77.º, n.º 1 e 2, do C. Penal. 28. Deveria ter fixado as penas de prisão do arguido AA, no que respeita ao crime praticado contra o ofendido CC, na pena de 7 anos de prisão, e no que respeita ao crime praticado contra o ofendido BB, na pena de 8 anos de prisão, e, a pena unitária, em pena de medida não inferior a 11 anos e 6 meses de prisão, pena esta que se mostra indispensável para responder às fortes exigências de prevenção geral e especial, que resultam dos factos praticados e da personalidade do arguido, e que não excede o elevado grau de culpa do arguido. 29. Deverá, pois, o douto Acórdão recorrido ser substituído por outro que, alterando as referidas condenações, do arguido AA, fixe a sua pena, única, em medida não inferior, a 11 anos e 6 meses de prisão.
Não houve resposta ao recurso.
Neste Supremo Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta deu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente quanto ao pedido de aumento das penas considerando, porém, que devem ser desqualificados os crimes de homicídio tentado imputados ao arguido.
Foi cumprido o art. 417º nº 2 CPP sem que houvesse resposta.
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2. – O resultado do julgamento quanto aos factos provados e não provados foi o seguinte (transcrição):
A – FACTOS PROVADOS Da audiência de discussão e julgamento, com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido AA é irmão do BB, e residiam os dois na habitação dos progenitores de ambos, sita na Rua da P., nº xxx, S. P. da C., Gondomar, o arguido naquela habitação e o BB num anexo da mesma. 2. No dia 25 de Janeiro de 2014, BB e CC estiveram no café denominado “C. Q.”, também conhecido por “C. dos C.”, sito na E. D. M., S. P. da C., Gondomar. 3. Ambos saíram do mencionado estabelecimento por volta das 02h00m, e dirigiram-se, pelo mesmo percurso, para as respetivas residências. 4. Uma vez chegados à residência sita na Rua da P., nº xxx, S. P. da C., Gondomar, o BB convidou o CC a beber um copo em sua casa. 5. Assim, o BB abriu o portão e entrou, juntamente com o CC, para o pátio da referida residência. 6. Nesse momento o arguido AA perguntou: «Quem está aí?», ao que o BB respondeu: «Sou eu, o BB; o CC vai beber aqui um copo». 7. De imediato o arguido disse: «Lá para fora … não quero aqui ninguém … a casa é minha», ao mesmo tempo que surgiu da esquina da residência com uma faca de cozinha na mão, e com esta desferiu uma facada no abdómen, do lado direito, do seu irmão BB. 8. Logo de seguida dirigiu-se ao CC e desferiu uma facada na parte superior do abdómen deste, ao mesmo tempo que dizia: «pega lá tu também». 9. O BB e o CC começaram a gritar por socorro, e conseguiram caminhar até às escadas que dão acesso à residência, local onde ficaram caídos no chão. 10. Nessa altura o DD e o EE ouviram os gritos, dirigiram-se aos ofendidos e chamaram o INEM, enquanto o arguido se trancou no interior da sua residência. 11. Em consequência da facada, o CC sofreu ferida perfurante abdominal com 1 cm no hipocôndrio esquerdo, com traumatismo de órgãos intra-abdominais com ferimento penetrante da cavidade e laceração da superfície hepática anterior (segmento III) com saída na face hepática posterior. 12. Em consequência da facada, o BB sofreu ferida perfurante abdominal no hipocôndrio direito, com traumatismo do peritoneu, laceração da superfície hepática anterior (segmento V) com saída na face hepática posterior, perfuração da parede gástrica anterior com saída a nível da parede gástrica posterior e perfuração do pâncreas com hematoma associado. 13. Após intervenção cirúrgica efetuada no tratamento dos ferimentos de que foi alvo, resultaram, para o CC, no abdómen: cicatriz vertical do tipo cirúrgico ao nível da linha média, de consistência endurecida e sem aparentes aderências as planos profundos, estendendo-se do apêndice xifóide até à cicatriz umbilical, com 13 cm de comprimento; cicatriz horizontal linear, regular, de consistência endurecida e coloração hipercrómica, localizada no hipocôndrio esquerdo, com 1,6 cm de comprimento. 14. Após intervenção cirúrgica efetuada no tratamento dos ferimentos de que foi alvo, resultaram, para o BB, no abdómen: cicatriz do tipo cirúrgico, linear, de cor rósea, disposta verticalmente na linha média da região abdominal e passando à esquerda da cicatriz umbilical, medindo 16 cm de comprimento, sem aderência a planos profundos, sem retrações e sem queixas subjetivas associadas; cicatriz de cor rósea, com 1,5 cm por 0,5 cm na parte de maiores dimensões, localizada à direita da linha média na região anterior do abdómen (referida pelo examinado como sendo onde terá sido colocado o dreno direito, observa-se cicatriz linear, de cor rósea, medindo 1 cm de comprimento, disposta horizontalmente). 15. Bem sabia o arguido que, ao desferir as facadas nas vítimas, tendo em atenção o instrumento usado, o modo como atacou, a forma abrupta e inopinada como se abeirou das vítimas, e o número e local em que desferiu as facadas, que estas eram idóneas a causar a morte, o que quis e que só não aconteceu devido à intervenção de terceiros que retiraram as vítimas do local, a que acresceu a pronta intervenção do INEM. 16. O arguido atuou de forma deliberada, livre e consciente, querendo atingir mortalmente o BB e o CC, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 17. O BB residia, à data, no anexo da habitação supra identificada, e o CC residiu, em data não concretamente apurada, num quarto da mesma habitação, ambos contra a vontade do arguido, tendo este atuado com o propósito, já anteriormente manifestado, de não partilhar aquele espaço com mais ninguém. 18. O arguido já foi condenado: . nos autos de processo sumário nº 73/99, do 2º juízo criminal de Gondomar, por decisão proferida em 04.03.1999, pela prática, em 03.03.1999, de um crime de condução ilegal de veículo motorizado, p. e p. pelo nº 1 do art.º 3º do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 500$00; . nos autos de processo comum singular nº 373/99, do 1º juízo criminal de Gondomar, por decisão transitada em julgado em 09.03.2000, pela prática, em 22.05.1999, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art.º 347º do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão, cuja execução se decidiu suspender pelo período de 2 anos; . nos autos de processo comum coletivo nº 255/00, do 1º juízo criminal de Gondomar, por decisão transitada em julgado em 30.11.2000, pela prática, em 1998, de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo nº 1 do art.º 21º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 7 anos de prisão; . nos autos de processo comum singular nº 330/00, do 1º juízo criminal de Gondomar, por decisão transitada em julgado em 11.062001, pela prática, em 25.04.1999, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo nº 1 do art.º 143º do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão; . nos autos de processo comum coletivo nº 86/98.6GAGDM; do 1º juízo criminal de Gondomar, por decisão transitada em julgado em 25.11.2003, pela prática, em 17.02.1998, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pela conjugação das normas consagradas no art.º 146º e no nº 2 do art.º 132º do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; Em cúmulo jurídico desta pena com as penas aplicadas no âmbito dos processos nº 73/99, nº 373/99, nº 255/00 e nº 330/00, o arguido foi condenado na pena única de 9 anos de prisão, que cumpriu, sendo-lhe concedida a liberdade definitiva a 25 de Outubro de 2008; . nos autos de processo sumário nº 66/07.2PAVLG, do 2º juízo de Valongo, por decisão transitada em julgado em 19.02.2007, pela prática, em 30.01.2007, de um crime de condução de veículo motorizado sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º do Decreto-Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00; Por força do não pagamento, esta pena de multa foi convertida em 120 dias de prisão subsidiária, que o arguido cumpriu, sendo restituído à liberdade a 13 de Março de 2009; . nos autos de processo nº 33/2006 do Julgado de 1º Instância de Burgo Osma (Soria), Espanha, por decisão transitada em julgado em 15.11.2006, pela prática, em 28.10.2006, de um crime de maus-tratos e/ou ameaça no âmbito familiar, na pena de 5 meses de prisão. 19. O processo social de desenvolvimento da personalidade de AA apresenta referências de perturbação transversal dos diferentes contextos de vivência como o do núcleo familiar de origem, o da formação académica, o profissional, o pessoal afetivo e o social. O arguido é o penúltimo descendente de uma fratria de 9 irmãos, sendo o seu processo de desenvolvimento decorrido no agregado familiar de origem, perturbado pela ocorrência de alguns conflitos relacionais promovidos pela figura paterna, quando alcoolizado, sendo a condição financeira insuficiente para satisfazer as necessidades do agregado. A desmotivação pelas aprendizagens e o absentismo reduziram o aproveitamento académico, provocaram o abandono precoce da escolarização, com 10 anos de idade, inadequadamente habilitado com o 3º ano do 1º ciclo do ensino. Iniciou precocemente atividade laboral como aprendiz das tarefas de funcionário de oficina de ourives, a qual exerceu durante cerca de 8 anos, após o que trabalhou como operário de construção civil até 1997, ano em que se iniciou no consumo de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, em contexto de convívio de pares, comportamento aditivo que se tornou compulsivo e determinante dos subsequentes confrontos do arguido com o sistema de justiça. O advento do comportamento de abuso do consumo de estupefacientes e de bebidas alcoólicas, a persistência do estado compulsivo indiferente a qualquer intento de tratamento vulnerabilizou a capacidade de trabalho de AA, aumentou a degradação pessoal, familiar e social numa marginalidade de convivências transgressivas e criminais com prejuízo da prestação dos cuidados educativos ao filho, nascido de relacionamento amoroso com companheira em idêntica circunstância toxicómana, acabando o descendente por ficar aos cuidados da avó materna, dada a incapacidade dos progenitores de assegurarem os cuidados básicos. Cumpriu a pena única em que foi condenado no cúmulo operado no processo 86/98.6GAGDM e quando lhe foi concedida a liberdade condicional, restabeleceu residência no domicílio materno e exerceu atividade laboral no ramo da construção civil, incluindo dois períodos de permanência em Espanha. Devido à ocorrência de conflitos com colegas de trabalho, retornou a Portugal e reintegrou o mesmo agregado. Até ao termo daquela medida ocorreram algumas situações de conflito familiar devido à recidiva do arguido no consumo abusivo de bebidas alcoólicas. O termo daquela medida ocorreu em 25-10-2008 e em 14-11-2008 foi novamente preso, à ordem do processo 66/07.2PAVLG para cumprir a pena de 120 dias de prisão subsidiária, terminada em 13-03-2009. Desde então tem permanecido no domicílio materno, com um multiplicar de ocorrências de situações de agressividade com todos os familiares, principalmente, violência física extrema para com os do sexo masculino, irmãos e cunhados, quando ébrio. . Ao nível das condições sociais e pessoais, AA apresenta historial de comportamento agressivo para com os familiares, espoletado caso os familiares não correspondessem aos seus anseios ou o contrapusessem, o arguido resolveu aquelas desavenças/problemas de modo descontrolado com recurso à agressividade, assumindo o papel dominador e opressor. Apresenta menor habilidade cognitiva para resolver os problemas como a dependência crónica das bebidas alcoólicas, da precária análise das situações e reduzida capacidade de aproveitamento dos sinais ambientais externos para orientar as escolhas e as respostas apropriadas, agravada pela tendência em agir “no aqui e agora”. AA nunca conseguiu entender a necessidade de procurar o apoio terapêutico para superar a recorrência das suas atitudes de oposição pela agressividade e de descontrolo da impulsividade na concretização dos seus objetivos pessoais. À data de ocorrência dos factos inscritos na acusação destes autos, o arguido mantinha residência no agregado materno, sito na Rua da P., xxx, B. de B., S. P. da C., Gondomar, e a dependência do abuso de bebidas alcoólicas apresentando um estado ébrio crónico. Era elemento familiar não contributivo para as despesas, suportadas pela parca pensão materna. . Ao nível do impacto da situação jurídico-penal, o arguido está preso no Estabelecimento Prisional do Porto à ordem dos presentes autos desde o passado dia 25-01-2014, acusado da autoria de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada. A conduta do arguido em meio prisional tem sido concordante com o disciplinado exigido, ocupando-se nas atividades laborais no sector da cozinha. Manifesta apreensão com a situação jurídica, com a perda do apoio familiar e com o futuro incerto, projetando-se num papel ativo na área da construção civil. AA não é bem recebido no agregado materno, atualmente composto pela sua irmã FF e filha daquela, pessoa encarregue de prestar os devidos cuidados à mãe, pessoa acamada e dependente. Tal posição é igualmente assumida por outros irmãos, em consequência do comportamento adotado pelo arguido. O arguido assume uma atitude de distanciamento dos factos que compõem a acusação, defensiva dos seus direitos e da sua realidade, deixando transparecer ambivalência afetiva para com as vítimas, irmão e amigo. Já consegue admitir que se torna mais impulsivo e descontrolado quando intoxicado por bebidas alcoólicas. O contexto de reclusão, controlador, tem possibilitado ao arguido manter um estado abstémio. Porém, as necessidades de educação para o direito demonstram-se elevadas se conjugadas com a gravidade dos factos de que está acusado, com a carreira criminal cujas condenações não atingiram as finalidades preventivas, realçadas pelas circunstâncias de vida passadas e presentes, pelas dificuldades do arguido em controlar o comportamento violento e de não apresentar as estratégias de resolução dos seus problemas. No meio comunitário, os sucessivos conflitos e as necessárias intervenções das autoridades sobressaltaram a rede vicinal, conhecedora da realidade violenta do arguido. . O processo de socialização de AA foi conturbado pela latente instabilidade pessoal exacerbada pela persistência do comportamento impulsivo/agressivo, toxicómano e alcoólico, promotor do processo de marginalização social e de conflito generalizado, que tão só a impediram de assegurar a prestação dos cuidados básicos ao filho como a autodeterminação de modo independente. AA demonstra maior sensibilidade à gravidade dos factos, aos prejuízos causados às vítimas e às vulnerabilidades consequentes pela intoxicação com bebidas alcoólicas carecendo ainda de intervenção terapêutica de controlo dos impulsos, da agressividade e dos conflitos pessoais em que vive. 20. Antes de ser detido, o arguido vivia, sozinho, em casa da progenitora, é solteiro, e tem um filho, com 15 anos, que vive com a mãe e a avó. 21. Fazia biscates de construção civil, concretamente em serviços de pintura e pichelaria, auferindo cerca de € 120,00 mensais, ao que acresciam € 170,00 de rendimento social de inserção.
Dos Pedidos de Indemnização Civil 22. Na sequência dos factos acima descritos, entre 25 e 31 de janeiro de 2014 o BB recorreu aos serviços do “Centro Hospitalar do Porto, E.P.E.”, tendo esta instituição prestado àquele cuidados médicos cujo custo global ascende a € 3 107,27. 23. Na sequência dos factos acima descritos, entre 25 e 29 de janeiro de 2014 o CC recorreu aos serviços do “Centro Hospitalar do Porto, E.P.E.”, tendo esta instituição prestado àquele cuidados médicos cujo custo global ascende a € 3 389,06. 24. Na sequência dos factos acima descritos, entre 31 de janeiro de 2014 e 03 de julho de 2014 o CC recorreu aos serviços da Unidade de Saúde Familiar de S. Pedro da Cova, aí recebendo cuidados médicos cujo custo global ascende a € 134,80. B – FACTOS NÃO PROVADOS Com interesse para a decisão da causa, resultou não provado o seguinte facto:
* 3. – O recurso interposto pelo magistrado do Ministério Público centra-se na discordância sobre a medida das penas parcelares e da pena única impostas ao arguido. É isso que resulta claramente desde logo do teor da conclusão 2ª da motivação. O certo é que, ao longo de uma parte da motivação, com expressão nas conclusões 3ª a 11ª, há diversas considerações sobre a matéria de facto que, além de dificilmente inteligíveis, são irrelevantes assente como está que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recursos ordinários é precisamente reservada ao reexame da matéria de direito de acordo com o disposto nos arts. 432º, nº 1, al. c) e 434º CPP. O arguido foi condenado por dois homicídios tentados, qualificados pela alínea e) do nº 2 do art. 132º C. Penal. Recorde-se que sendo o crime de homicídio previsto no art. 131º C. Penal punido com pena de 8 a 16 anos de prisão, o art. 132º, nº 1 do mesmo diploma determina que «se a morte for produzida em condições que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de 12 a 15 anos de prisão». Por sua vez, o nº 2 do citado art. 132º dispõe que «é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade» um conjunto de circunstâncias a seguir elencadas, a título exemplificativo, exemplificação essa revelada pelo uso da expressão «entre outras». É por demais sabido que a qualificação do crime de homicídio a que se procede no art. 132º será fruto de uma maior culpa do agente oriunda de uma actuação especialmente censurável ou perversa o que há-de ser avaliado em concreto, funcionando as circunstâncias enumeradas no seu nº 2 como exemplos-padrão que não de aplicação automática. Elas são, portanto, elementos da culpa e não do tipo como acentua o acórdão recorrido, e, repete-se, com carácter meramente exemplificativo. A qualificação surge quando se verifica «um tipo de culpa agravado» que está «assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a um conceito indeterminado como é o da “especial censurabilidade ou perversidade do agente”»; essa verificação é «indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto outros relativos ao autor exemplificativamente elencados» no citado nº 2 do art. 132º[1]. Na síntese feita no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 2010.05.27[2] «a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, inclusivamente, uma perigosidade merecedora de particular atenção». Depois de ter sido afastada, na decisão recorrida, a imputação feita na acusação relativa à prática dos factos com utilização de meio particularmente perigoso, e assim tida como não verificada a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do art. 132º, foi concretamente considerado que a conduta do arguido deveria ser qualificada pela alínea h) do dito nº 2 do art. 132ª por ser essa conduta especialmente censurável em virtude de ele ter agido por «motivo fútil». No seu “parecer” a Sra. Procuradora-Geral Adjunto põe em dúvida que uma tal circunstância, actuação baseada em «motivo fútil», resulte dos factos provados. Há, porém, que frisar um ponto: é apenas a partir dos factos provados que podem ser tiradas as ilações devidas e necessárias e não já da interpretação do teor da fundamentação da matéria de facto, de considerações que lá se teçam a respeito da prova produzida. Se o tribunal extrai do depoimento de uma testemunha algo que pode ter relevo do ponto de vista factual, com merecimento para a decisão da causa, como seria qualquer dado a respeito do eventual móbil de um crime deve incluí-lo na matéria de facto provada com recurso aos mecanismos que a lei lhe confere para esse efeito. É essa também uma consequência da estrutura acusatória do processo integrada por um princípio de investigação. Vem isto a propósito porque um dos argumentos em que se pretende suportar a ideia de afastar a circunstância «motivo fútil» radica no que se diz ser uma afirmação proferida pela vítima CC, apenas referida na fundamentação e não nos factos provados segundo a qual «teria sido obrigado [pelo arguido] a sair de forma não pacífica [de um quarto da habitação onde residia o arguido – cfr facto provado 17], acabando por deixar de falar com o arguido AA».[3] A ser assim, diz-se no “parecer”, já não haveria «motivo fútil» por ser comum a prática de crimes «por causa da utilização/partilha de bens e defesa da propriedade». «Motivo fútil» é o motivo de actuação do agente que «avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito»[4]. Se há sempre desproporcionalidade entre o cometimento de um homicídio e a razão que o motiva, seja ela qual for, para se considerar a existência de um «motivo fútil» haverá de ponderar-se uma desproporcionalidade superlativa, passe a expressão, perante um motivo àcerca do qual se conclua ser insignificante; um motivo que estando na base da reacção de quem pratica o crime, não pode sequer com algum grau de razoabilidade explicar a conduta levada a cabo, que não tem relevo algum. Refere a jurisprudência que «para se avaliar se um motivo é fútil tem que se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparado com o mal que se provoca com este»[5]. Contudo, no caso concreto, ao contrário do que defende a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, os factos provados – e são apenas estes podem ser considerados – não revelam qualquer séria dissensão anterior a respeito da utilização/partilha de bens e/ou defesa da propriedade. Está provado no facto 1 que o arguido e uma das vítimas, o seu irmão BB, residiam ambos na casa dos seus progenitores e como está também provado no facto 17 o arguido manifestara anteriormente o propósito de não partilhar o espaço habitacional da casa dos pais com mais ninguém. Mas não está provado, repete-se, que realmente houvesse qualquer divergência anterior ou contemporânea significativa sobre a propriedade/partilha da habitação sendo certo que se foi ao irmão que o arguido dirigiu o ataque inicial, a outra vítima, CC, que não residia já no local que anteriormente ocupara (cfr ainda facto 17) foi atacado de modo totalmente inopinado apenas precedido esse ataque da expressão algo inócua – em relação à existência prévia de alguma questão com a vítima – «pega lá tu também». A conduta do arguido surge assim como totalmente gratuita, num assomo de violência sem razão-base consistente ou de relevo e, portanto, merecedora de especial censurabilidade porque absurda e completamente desajustada à luz do senso comum; por conseguinte com ausência de um qualquer efeito dissipativo dessa especial censurabilidade. O que, aliás, não pode deixar de ser conectado com o que demais está provado mormente no tocante à situação pessoal do arguido. Note-se a tal respeito o seguinte (facto provado 19, §§ 8º e 9º): «Desde então tem permanecido no domicílio materno, com um multiplicar de ocorrências de situações de agressividade com todos os familiares, principalmente, violência física extrema para com os do sexo masculino, irmãos e cunhados, quando ébrio. Ao nível das condições sociais e pessoais, AA apresenta historial de comportamento agressivo para com os familiares, espoletado caso os familiares não correspondessem aos seus anseios ou o contrapusessem, o arguido resolveu aquelas desavenças/problemas de modo descontrolado com recurso à agressividade, assumindo o papel dominador e opressor». Mas ainda que se aceitasse que o motivo da conduta do arguido era a circunstância de querer a casa só para ele ocupar não deixaria isso de ser um motivo singelo demais e puramente egoísta. Pois não está aqui em equação, por exemplo, uma qualquer ancestral disputa sobre a propriedade numa comunidade rural em que essa propriedade assuma além do seu estrito valor patrimonial um outro valor simbólico de posse e poder e cuja defesa, frequentemente, «mobiliza emocionalmente, de forma intensa, a generalidade das pessoas, sendo consequentemente, fonte de conflitos extremos e despertando paixões violentas»[6]. Dito, em suma, de outro modo: a ponderação global das circunstâncias, externas e internas, presentes no facto concreto[7] mais não evidenciam do que uma atitude egoísta e leviana com um despropósito maximizado por parte do arguido onde, repete-se, se evidencia especial censurabilidade. Como vem afirmado desde há muito[8] o tribunal pode considerar como homicídio qualificado a conduta de um agente que não se acompanhasse de qualquer das circunstâncias descritas no art. 132º mas sim de outras, e pode, por outro lado, deixar de operar tal qualificação apesar da existência clara de uma ou mais dessas circunstâncias. Essencial é então que exista um acrescido grau de culpa subjacente à especial censurabilidade ou perversidade que fundamente a agravação. Esse especial grau de culpa expressa afinal «uma maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples»[9]. Procurando realçar o que se vem afirmando dir-se-á com recurso ao aforismo, de um modo porventura mais expressivo, em abono da clarificação da ideia, que é merecedor de um juízo de especial censurabilidade quem «por dá cá aquela palha» esfaqueia um terceiro com o propósito de lhe tirar a vida. Ora, os factos provados nada mais revelam do que uma atitude desse tipo por parte do arguido.
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4. – Posto isto, vejamos então se os fundamentos do recurso são procedentes. 4.1 - É sabido e sempre invocado pela jurisprudência que a superação de teorias absolutas que atribuem à pena um fim que se esgota primacialmente no seu conteúdo retributivo conduziu ao desenvolvimento de teorias relativas cuja ideia central é a de que a sanção penal é um meio para obtenção de fins úteis em que sobreleva o de evitar a comissão de crimes assim se logrando a protecção da sociedade. A finalidade útil da pena assume-se numa função basicamente preventiva que se desdobra orientada para a comunidade – prevenção geral – e para o indivíduo – prevenção especial. A prevenção geral não se reconduz somente ao efeito dissuasor que o anúncio da aplicação de uma pena exercerá sobre o potencial infractor no que se designa como prevenção geral negativa. Contém em si e principalmente uma mensagem de reafirmação e de consolidação da validade da lei penal como meio de «manter e reforçar a “confiança” da comunidade na validade e na vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantibilidade da ordem jurídica»[10], na faceta de prevenção geral positiva sendo então, decerto, nas normas que, no sistema, tutelam bens que assumem expressão e valor que essa expectativa da comunidade na validade de tais normas, na restauração da paz jurídica, encontra o seu pleno sentido e a sua máxima expressão. Já a vertente da prevenção especial reconduz-se ao objectivo de evitar a recidiva mediante a ressocialização ou reinserção social sem embargo de se lhe adicionar também, numa deriva mais securitária, o objectivo de intimidação individual e de inocuização. A culpa, por seu turno, intervém como pressuposto necessário e limitativo da aplicação da pena, da punição pela prática de um crime, mas não é, contudo, pressuposto suficiente para tal ficando ainda subordinada à condição de se mostrar necessária do ponto de vista preventivo (geral e especial).
É este programa politico-criminal que está consagrado essencialmente nos arts. 40º, nº 1 e 71º, nº 1 do C. Penal como, aliás, sublinha o magistrado recorrente escorado na doutrina que cita. Ora, na previsão e punição de crimes de homicídio está em causa a protecção do bem jurídico fundamental, a vida, e decerto se não negará que aí se exponenciam as exigências de prevenção geral positiva como natural resposta às já mencionadas expectativas comunitárias, aqui a respeito da protecção do bem jurídico mais valioso. É essa, digamos, a situação extrema a reclamar a intervenção firme do sistema de administração da justiça. E se é isso que o magistrado recorrente pretende ver reconhecido no agravamento das penas parcelares impostas ao arguido também se afigura ter certa proeminência no seu argumentário o reconhecimento de que há no caso particulares exigências de prevenção especial parecendo revelar-se um certo pendor para a sobredita via securitária que demonstra preferência pela inocuização. Daí se invocarem as «muito fortes exigências de prevenção especial» e se dar relevo a aspectos – que, em rigor, não constam entre os provados e não poderiam ser considerados – como a «total ausência de arrependimento» e a «forma displicente como encara os factos praticados».[11] E se aludir, do mesmo passo, aos antecedentes criminais do arguido. Ora, os factos não são «de mármore» nem têm um caracter espectral. São dinâmicos, e são a expressão de uma dada realidade precisando de ser interpretados para deles se retirarem consequências jurídicas e essa interpretação feita do modo que se julga adequado conduz a conclusões que se não coadunam, crê-se, com a pretensão do recorrente. O arguido com um início precoce de consumo de estupefacientes e bebidas alcoólicas manteve «persistência do estado compulsivo indiferente a qualquer intento de tratamento que aumentou a degradação pessoal, familiar e social». Após cumprimento de uma pena de prisão apresentou «recidiva no consumo de bebidas alcoólicas» e mantinha até ao momento em que foi avaliada a prova manifestas dificuldades de recuperação do seu problema de alcoolismo traduzidos no que está provado do seguinte modo: «Apresenta menor habilidade cognitiva para resolver os problemas como a dependência crónica das bebidas alcoólicas, da precária análise das situações e reduzida capacidade de aproveitamento dos sinais ambientais externos para orientar as escolhas e as respostas apropriadas, agravada pela tendência em agir “no aqui e agora”. AA nunca conseguiu entender a necessidade de procurar o apoio terapêutico para superar a recorrência das suas atitudes de oposição pela agressividade e de descontrolo da impulsividade na concretização dos seus objetivos pessoais. À data de ocorrência dos factos inscritos na acusação destes autos, o arguido mantinha residência no agregado materno, sito na Rua da P., xxx, B. de B., S. P. da C., Gondomar, e a dependência do abuso de bebidas alcoólicas apresentando um estado ébrio crónico. O processo de socialização de AA foi conturbado pela latente instabilidade pessoal exacerbada pela persistência do comportamento impulsivo/agressivo, toxicómano e alcoólico, promotor do processo de marginalização social e de conflito generalizado, que tão só o impediram de assegurar a prestação dos cuidados básicos ao filho como a autodeterminação de modo independente. AA demonstra maior sensibilidade à gravidade dos factos, aos prejuízos causados às vítimas e às vulnerabilidades consequentes pela intoxicação com bebidas alcoólicas carecendo ainda de intervenção terapêutica de controlo dos impulsos, da agressividade e dos conflitos pessoais em que vive.» Seria inútil procurar precisar, nesta altura, perante a impossibilidade de em rigor obter essa aprova, se o arguido estava ou não embriagado no momento da prática dos crimes e em que medida o poderia estar. Mas os factos evocados devidamente interpretados apontam para um grave problema de alcoolismo e de perturbação pessoal que lhe está associada a necessitar de tratamento cuidado e perseverante. Mas não é por isso que pugna o magistrado recorrente pese embora a obrigação legal que sobre si impende de pautar todas as suas intervenções processuais por critérios de estrita objectividade (art. 53º, nº 1 CPP) que imporiam, naturalmente, a ponderação do mencionado problema. A proposta feita de agravamento das penas salientando aspectos negativos que é certo não serem escamoteáveis como os antecedentes criminais e o histórico de violência desconsidera o dito problema. Assim como não faz alusão, por exemplo, às relativamente reduzidas sequelas das ofensas sofridas pelas vítimas. Considerando de modo relevante os aspectos mencionados assim como as concretas circunstâncias com efeito agravante em que se deram os crimes, de noite, com verdadeira emboscada e efeito surpresa, e bem assim o dolo directo, a ligação familiar próxima a uma das vítimas e os antecedentes criminais deste entende-se não ser justificada a proposta de agravamento das penas parcelares feita pelo recorrente. 4.2 – Também a proposta de agravamento da pena única não se afigura merecer acolhimento. O art. 77º do C. Penal estabelece as regras da punição do concurso de crimes e decisiva é aquela que consta da 2ª parte do seu nº 1: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente». O modo como deve ser feita esta consideração foi há muito objecto de reflexão da melhor doutrina cujo ensinamento permanece actual[12]: «Tudo deve passar-se (...) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». Há, no caso, uma conexão patente de espaço, de tempo, modo de execução e sobreposição de motivo (melhor seria dizer falta dele) que não se pode dizer que potenciem a gravidade do ilícito global. E para procurar avaliar a personalidade unitária do arguido se é certo que terá de se ponderar e não escamotear a sua conduta anterior mormente no que respeita aos crimes praticados com violência em que avultam quatro condenações não é menos certo que há um pesado pano de fundo cuja influência está evidenciada: o do complexo processo social de desenvolvimento dessa personalidade de que foi fazendo parte integrante o comportamento aditivo em particular do álcool, ainda presente e de complicada ultrapassagem, sempre de acordo com os factos provados, o que permite concluir que na origem do conjunto da actuação do arguido muito mais do que uma tendência criminosa estará uma pluriocasionalidade associada e exponenciada pelo alcoolismo. Não é assim de sufragar, desligada deste contexto, a afirmação do recorrente de que «o arguido é detentor de uma personalidade gravemente desconforme com o Direito». Pelo que se entende não ser de alterar a medida da pena única.
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5. – Em face do que se decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Sem tributação.
Como solicitado no ofício que antecede remeta de imediato cópia do presente acórdão. Supremo Tribunal de Justiça, 07 de Janeiro de 2016 [1] Cfr Figueiredo Dias, Comentário do Código Penal, Tomo I, pag. 26. [2] Proc 517/08.9JACBR.C1.S1. [3] Há na fundamentação da matéria de facto outras considerações de semelhante teor referindo-se ao sintetizar as declarações da testemunha Daniel Soares ter este afirmado que o arguido agiu assim «no intuito de o afastar pois queria a casa dos pais só para ele». [4] Figueiredo Dias, ob cit, pag 32. [5] Cfr v.g. Acórdãos STJ de 2010.05.27, citado supra na nota 2 e de 2015.03.12, proc 185/13.6GCALQ.L1.S1. [6] Cfr o Acórdão de 2015.03.12 citado na nota anterior. [7] Cfr Teresa Serra, “Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pags. 63 e 64. [8] Cfr v.g. Figueiredo Dias, “Parecer” em CJ, 4/87, pag 51 e ss. [9] Cfr Aut e ob cit, pag 52. [10] Cfr Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed. pag. 51. [11] Embora na fundamentação feita na decisão recorrida se lhes faça referência como circunstâncias agravantes tidas em conta. [12] Cfr Figueiredo Dias, « Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», 1993, pag 291. |