Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
466/22.8T8ELV-C.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
OBRIGAÇÃO CARTULAR
OBRIGAÇÃO CAUSAL
LIVRANÇA
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 10/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - No caso de o título executivo ser uma livrança, estando a mesma no domínio das relações imediatas, é lícito aos obrigados cambiários invocar as excepções peremptórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstracção.

II - Assim, nas relações imediatas, a prescrição da obrigação causal acarreta a extinção da obrigação cambiária.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - RELATÓRIO

AA e BB, herdeiros habilitados do Executado CC, deduziram OPOSIÇÃO à execução movida por CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A,

Alegaram, em síntese, o seguinte:

(i)A prescrição da obrigação causal originada num contrato de mútuo, celebrado em 4 de maio de 2009, que por sua vez determinaria a extinção da obrigação cartular consubstanciada numa livrança subscrita pelo primitivo executado CC;

(ii)O abuso de direito por parte da Exequente ao não accionar uma garantia autónoma que tinha exigido aquando da celebração do contrato de mútuo, prestada por G..., S.A. e que garantia, à primeira solicitação, o valor correspondente a 75% do valor mutuado (18.750,00 €). Assim, o preenchimento e utilização da livrança entregue em branco decorridos mais de 10 anos sobre a data em que obrigou CC a contratar a referida garantia, redunda num manifesto abuso de direito, na modalidade de «venire contra factum proprium» e violação dos deveres de boa fé.

A não exigibilidade dos juros peticionados até à data da citação para os termos da execução.

A Exequente /Embargada contestou os embargos pugnando pela sua improcedência.

Decorridos todos os trâmites legais, foi proferida sentença que julgou procedente a excepção de prescrição da obrigação exequenda deduzida pelos embargantes AA e BB, declarando-se prescritos os créditos da embargada/exequente emergentes do contrato de mútuo celebrado em 04-05-2009 com CC e julgou os presentes embargos procedentes, por provados, e, em consequência, determinou a extinção da execução.

Inconformada com tal decisão, a Exequente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora que concedeu provimento ao recurso, por maioria, com um voto de vencido, revogou a decisão recorrida e, declarando improcedentes os embargos de executado no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada , determinou o prosseguimento dos autos para apreciação das demais questões neles suscitadas pelos Embargantes, mais determinando o prosseguimento da acção executiva.

Desta vez, inconformados os Executados, vieram interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

A-Vem o presente recurso de revista interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que julgou procedente a apelação interposta pela exequente/embargada, decisão esta que, a nosso ver, nem sequer incide sobre a questão de direito suscitada nos embargos.

B – Os ora recorrentes entendem que a Sentença proferida em Primeira Instância faz uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, e está fundamentada de forma bastante clara;

C - No exercício da sua atividade creditícia, em 4-09-2009, a Caixa Geral de Depósitos, SA, celebrou com CC um contrato de mútuo, mediante o qual se obrigou a disponibilizar-lhe uma quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), e que aquele se obrigou a reembolsar em 36 (trinta e seis) meses, beneficiando de um prazo de diferimento de amortização de capital de 12 (doze ) meses, durante o qual apenas se venciam juros e outros encargos, em prestações trimestrais, sucessivas e iguais, de capital, juros e outras despesas, vencendo-se a primeira no trimestre seguinte ao do final do prazo de diferimento, no dia correspondente à perfeição do contrato, e as restantes em igual dia dos trimestres seguintes.

D - Como garantia de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, o primitivo executado entregou à Caixa Geral de Depósitos, SA, em 4-05-2009, uma livrança com montante e vencimento em branco, por si subscrita, autorizando-a a preenchê-la a seu juízo e quando se mostrasse necessário, conferindo-lhe a faculdade de (i) fixar a data de vencimento, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, (ii) fixar a sua importância, correspondente ao total das responsabilidades decorrentes do empréstimo, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança, e de (iii) inserir cláusula «sem protesto» e definir o local de pagamento.

E – Em data não concretamente apurada, a Caixa Geral de Depósitos, SA, preencheu a livrança referida em 2), não tendo preenchido o campo destinado à data de emissão, e tendo aposto, no local destinado à data de vencimento, a data de 27-06-2022.

F - Através de carta registada com aviso de receção, expedida a 28-06-22, a Caixa Geral de Depósitos, SA, pretendeu notificar CC, que já tinha falecido em 2016, de que a responsabilidade emergente do contrato de crédito celebrado em 2009-05-04 estava vencida e de que a livrança seria preenchida com a data de 27-06-22.

G - Previamente ao falecimento de CC, a Caixa Geral

de Depósitos, SA não lhe comunicou a existência de prestações em mora, nem o vencimento antecipado da totalidade das prestações.

H – A livrança apresentada à execução não tem aposta a data da sua emissão pelo que não pode valer como título de crédito.

I-Os embargantes, na qualidade de filhos e únicos herdeiros do primitivo executado, foram habilitados no processo e assumiram a posição processual deste, tendo sido citados para a execução em 13-03-2023.

J – Os embargantes, encontrando-se no âmbito das relações imediatas, podem invocar as exceções peremptórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstração e, como tal, invocaram a prescrição das quantias mutuadas, ao abrigo do disposto no artigo 310º, alínea e) do CC, tendo em conta que, desde a data de vencimento de cada prestação, e até mesmo desde 04-05-2012, data de vencimento da totalidade do crédito, até à data da citação, 13-03-2023, decorreram mais de cinco anos;

K - Os executados, no âmbito das relações imediatas, invocaram a prescrição do

crédito, incluindo juros e outras despesas;

L – Decorre do artigo 17.º da LULL que, no domínio das relações imediatas, podem ser invocadas as exceções inerentes à relação fundamental.

M – Nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extracartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessas relações pessoais se fundamentem, sendo lícito, nas palavras do Prof. Ferrer Correia, discutir a “causa debendi”.

N-A prescrição da obrigação subjacente, atribuindo ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, acarreta a extinção da obrigação cambiária;

predeterminado, englobando os juros devidos.

exceção de prescrição tendo ordenado a extinção da execução;

Q - A embargada recorreu da sentença do Tribunal de Primeira Instância, tendo alegado, a título principal que o prazo de prescrição da livrança é de 3 anos e que, como tal, não se encontrava prescrita, questão esta que não foi objeto dos embargos nem da decisão de primeira instância.

R - Porém, o recurso obteve provimento e revogou a decisão do Tribunal de Primeira Instância, com o sumário: “Numa livrança em branco, o prazo de prescrição conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respetivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente”.

S – Não obstante, o acórdão obteve a declaração de voto da Sra Juíza Desembargadora Maria João Faro, com o seguinte teor:

- Declaração de Voto

Estando subjacente à emissão da livrança em branco um crédito emergente de contrato de mútuo bancário em que se estabelecia o pagamento do montante financiado em prestações mensais que incluíam juros remuneratórios e amortização do capital, essas obrigações estão sujeitas ao prazo prescricional de 5 anos.

Nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeita às exceções que nessas relações pessoais se fundamentem ( Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol.III, pag. 67/68).

Tendo a livrança exequenda sido entregue em branco como garantia do cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de contrato de mútuo, a prescrição da obrigação causal determina, no domínio das relações imediatas, a necessária extinção da obrigação cartular.

Esta é, aliás, a posição adotada pelos acórdãos do TRP de 12.1.2023, do TRP de 25.1.2022, do TRC de 21.11.2023 e do TRL de 19.12.2019.

Com todo o respeito pela posição que obteve vencimento, confirmaria a decisão porquanto estando inequivocamente no domínio das relações imediatas, ocorrendo pacificamente a prescrição das obrigações emergentes do negócio causal à emissão da livrança em branco, negócio esse que a justifica e lhe constitui causa, torna-se inexigível a quantia aposta na mesma livrança pela procedência de uma exceção causal suscitada pelos embargantes”.

T – É contra o Acórdão do tribunal da Relação de Évora que os Embargantes se

insurgem, por entenderem que o mesmo viola o disposto nos artigos 17º, 75º, nº 6 e 76º da LULL e 304º, 310º, alínea e) do Código Civil, e não respeita o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022 desse Supremo Tribunal, que versa sobre a matéria em questão.

*

A Embargada/Exequente apresentou contra alegações nas quais pugnou pela improcedência do recurso e consequente confirmação do acórdão recorrido, concluindo:

a)As presentes contra-alegações têm por objeto o Recurso, apresentado pelos Executados e Recorrentes AA e BB,do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que decidiu revogar a decisão proferida em primeira instância, declarando improcedentes os embargos de executado no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada e determinando que os mesmos devem prosseguir os seus termos no Tribunal recorrido para apreciação das demais questões neles suscitadas pelos Embargantes, com a consequência da prossecução da ação executiva.

b) Em suma, considerou que não se corroborou nenhum preenchimento abusivo das livranças, seja na vertente de violação do pacto de preenchimento, seja na vertente de abuso do direito ao livre preenchimento da livrança.

c) Tal entendimento do Tribunal “a quo” deve-se ao facto de ter sido considerado provado que houve uma subscrição válida da livrança e que, nesse contexto, foi-lhe aposta a data de vencimento em consonância com o pacto de preenchimento, mediante o qual o exequente foi autorizado, verificado o incumprimento, a preencher a livrança pelo valor devido e a fixar-lhe a data de vencimento.

d)Nesta senda o Douto Tribunal da Relação, concluiu que não se verifica a prescrição, dado que, a data de vencimento corresponde à data de 27/06/2022, os Recorrentes foram devidamente interpelados para o seu pagamento e a presente execução deu entrada em Juízo em 15/07/2022.

e) O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora foi proferido nos termos e parâmetros da lei e não merece qualquer censura como de seguida se explanará.

f) No exercício da sua atividade creditícia, a Exequente celebrou, em 04/05/2009, com o Executado CC um contrato de mútuo ao qual foi atribuído o n.º PT ...............91, nos termos do qual foi mutuado o valor de € 25.000,00 (Vinte e Cinco Mil Euros), para reforço do Fundo do Maneio ou dos capitais permanentes.

g) O contrato foi celebrado por um período global de 36 (trinta e seis) meses, sendo os primeiros 12 (doze) meses de diferimento (em que não havia lugar a amortizações de capital) e24 (vinte e quatro) meses de cobrança de prestações de capital, juros e outros encargos.

h) Os créditos emergentes desse financiamento encontram-se titulados pela LIVRANÇA n.º ................62, de € 33.500,83 (trinta e três mil e quinhentos euros e oitenta e três cêntimos), vencida em 27/06/2022, subscrita pelo Executado CC e avalizada pela Executada DD.

i) Por força do disposto nas Condições Particulares de ambos os contratos, o Banco ficou irrevogavelmente autorizado a fazer uso das garantias que lhe foram prestadas e, em consequência, a preencher o montante e data de vencimento da livrança, na data em que julgar conveniente.

j) O empréstimo deixou de ser pago a partir de 04/02/2011, ficando em dívida, a título de capital, o valor de € 18.234,27 (Dezoito Mil Duzentos e Trinta e Quatro Euros e Vinte e Sete Cêntimos).

k) Atendendo ao reiterado incumprimento, não restou alternativa à Recorrida senão preencher a livrança dada em garantia do cumprimento contratual, com vencimento em 27/06/2022 e interpelar o subscritor e a avalista para o seu pagamento.

l) Não obstante a matéria de facto dada como provada, o douto Tribunal da primeira instância considerou que assiste razão aos ora Recorrentes e que a situação dos autos deve ser enquadrada na situação prevista na alínea e) do artigo 310.º do Código Civil, que determina a aplicação de um prazo excecional de prescrição de cinco anos.

m) Deste modo, a Exequente, ora Recorrida, recorreu da decisão do Tribunal da primeira instância, sendo que por Acórdão do dia 11/04/2024, os Juízes concederam provimento ao Recurso apresentado e, julgaram improcedentes os embargos de executado, no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada, determinado a reapreciação das demais questões suscitadas pelos Embargantes no Tribunal Recorrido, mais determinando o prosseguimento da ação executiva.

n)Não conformados com a decisão, os Executados, ora Recorrentes, apresentaram Recurso de Revista, nos termos e dispostos no artigo 671º, nº 1 e 674º, alínea a) do Código Processo Civil, olvidando que o Tribunal “ad quem” não se pode pronunciar sobre questões que não foram apreciadas pela Relação.

o) Em sede de motivação de Recurso alegam os Recorrentes, em suma, que:

a.O Tribunal “a quo” “(…) viola o disposto nos artigos 17º, 75º, nº 6 e 76º da LULL e 304º, 310º,alínea e)do Código Civil,e nãorespeitao AcórdãoUniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022 desse Supremo Tribunal, que versa sobre a matéria em questão. (…)”;

b.A livrança apresentada à execução não tem aposta a data da sua emissão pelo que não pode valer como título de crédito; e

c.A Recorrida, em sede de Recurso anterior, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, alegando que “(…) o prazo de prescrição da livrança é de 3 anos, contados da data do vencimento da livrança, questão esta que não foi objeto dos embargos nem da decisão de primeira instância.

p) No caso em apreço, os ora Recorrentes alegam que o Tribunal “a quo” decidiu apenas sobre a prescrição da livrança, e não sobre a questão levantada pelos mesmo, na sequência dos embargos apresentados, acusando o Tribunal “a quo” de optar por uma solução que os ora Recorrentes não quiseram submeter ao seu juízo.

q) Todavia, não corresponde à verdade, dado que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles que se baseiam as exceções invocadas, tal como vem previsto no artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

r) Deste modo, a aqui Recorrida, em sede de contestação, referindo-se à alegada prescrição da dívida, pronunciou-se no sentido de não ter existido preenchimento abusivo da livrança, não importando para o efeito a data da resolução do contrato subjacente (ou do incumprimento definitivo), mas sim a data de vencimento da mesma, concluindo pela plenitude e completude do título dado à execução e pela inexistência de prescrição.

s) O Tribunal “a quo”, tal como já supramencionado, delimitou o objeto do recurso ao prazo prescricional a considerar quando está em causa uma livrança em branco, atendendo ao facto de a dívida emergente do contrato n.º PT ...............91 ser titulada por uma livrança em branco.

t) Deste modo, determinou que, atendendo ao título executivo em causa, se deveria averiguar qual o prazo de prescrição que se lhe aplica e qual o momento em que este se inicia.

u) Tal como o bem decidiu o Tribunal “a quo”, a Recorrida não pode deixar de começar por salientar que as obrigações cambiárias estão sujeitas aos prazos especiais de prescrição previstos no artigo 70.º da Lei Uniforme Relativa a Letras e Livranças (adiante abreviadamente designado por LULL).

v)O legislador português não fixou um limite temporal para a livrança em branco, pelo que o prazo prescricional previsto no artigo 70.º da LULL corre a partir do dia do vencimento inscrito pelo portador, desde que não se mostre infringido o pacto de preenchimento.

w) Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2019, Relator Acácio das Neves, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que concluiu o seguinte:

“Tendo sido concedido à exequente, no pacto de preenchimento, liberdade para fixar a data de vencimento das livranças subscritas em branco, ao invés de a fixar por referência à data relevante do incumprimento ou da resolução dos contratos garantidos por tais títulos, como pretende a embargante, carece de fundamento o invocado preenchimento abusivo das livranças dadas à execução. Para efeitos de prescrição de tais títulos o que releva é a data de vencimento neles aposta pela exequente.” (sublinhado nosso).

x) No entendimento da Recorrida, a obrigação exequenda não se encontra prescrita, uma vez que a livrança se venceu em 27/06/2022 e a presente ação executiva foi intentada em 15/07/2022.

y) Ainda assim que não se entenda, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, sem conceder, sempre se dirá que tendo sido consideradas vencidas todas as prestações devido ao incumprimento definitivo registado no contrato, ficou sem efeito o plano de pagamento acordado, pelo que os valores em dívida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital e juros sujeitos ao prazo ordinário de prescrição de vinte anos.

z) In casu, e salvo o devido respeito por opinião diversa, não pode ser subsumível apresente situação à previsão contida na alínea d) e e) do artigo 310º do Código Civil, uma vez que estamos na presença de uma única obrigação (um contrato de empréstimo).

aa) O mesmo nos ensina a doutrina, onde refere que “Na verdade, na situação prevista no artigo 310.º, alínea e) não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição de vinte anos”.

bb) Ou seja, ainda que embora passível de ser fracionada e diferida no tempo, jamais pode ser equiparada a uma prestação periódica, renovável e cuja constituição depende do decurso do tempo, sendo que, os mútuos bancários, independentemente das várias formas que possam assumir, nunca prescrevem antes de decorridos, pelo menos, 20 anos.

cc) Veja-se que, o artigo 310º alínea e) do Código Civil, abrange as hipóteses de obrigações periódicas, pagáveis em prestações sucessivas e que correspondam a duas frações distintas: uma de capital e outra de juros em proporção variável a pagar conjuntamente.

dd) O que claramente não acontece com o crédito exequendo, uma vez que não se configura como “quotas de amortização, mas antes como dívida global proveniente da denominada “relação de liquidação”, correspondente ao valor do capital em dívida.

ee)Acresce ainda, que nada resulta do disposto no artigo 310º do Código Civil, que permita a interpretação que aquele prazo de prescrição tem aplicabilidade nos mútuos bancários à totalidade do capital em dívida à data do incumprimento, uma vez que, o vencimento imediato das prestações restantes significa, por si só, que o plano de pagamento faseado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício o prazo de pagamento contido em cada uma das prestações, ficando sem efeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado e os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros.

ff) E que, ao ser desfeita a união anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e dívida de juros ao mesmo prazo prescricional.

gg) Dado que, passamos a estar perante a obrigação da globalidade da dívida, que pela sua natureza unitária, faz com que deva ser aplicado o prazo de prescrição ordinário previsto no artigo 309º do Código Civil.

hh) Aliás, veja-se que a Recorrida peticionou pela condenação dos Recorrentes no pagamento do capital acrescido de juros moratórios em face do seu vencimento, exigiu a totalidade da dívida e não o pagamento de prestações avulsas, pois embora tenha existido um plano de pagamento este não influencia o conteúdo global e unitário desta obrigação.

ii)

jj) No entendimento da Recorrida, estamos perante uma prestação fracionada e não somos confrontados com uma obrigação periódica renovável. E, por conseguinte, ao não se estar perante um cenário de quotas de amortização, isso implica que não há lugar à prescrição da totalidade da obrigação no prazo de 5 (cinco) anos, até porque na maioria das situações o plano de pagamento não se mostra integralmente esgotado, mas apenas é interrompido pela não satisfação da contrapartida ajustada.

kk) Face à natureza contratual estabelecida, não existindo normalmente a possibilidade económica de garantir o pagamento unitário e total da dívida contraída, nos contratos de mútuo ou de financiamento bancário, o ordenamento jurídico concede às partes a possibilidade de contratualizarem um prazo de pagamento escalonado.

ll) Em caso de incumprimento, a consequência imediata é a perda do benefício do pagamento em prestações e não o início da contagem da prescrição de curto prazo. Uma vez verificado esse incumprimento injustificado é desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros.

mm) E esta posição não surge isolada na jurisprudência nacional, como resulta da interpretação dos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2016, do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/03/2017, do Tribunal da Relação de Coimbra 12/06/2018, entre os mais recentes, todos consultáveis em www.dgsi.

nn)No entendimento da Recorrida, o prazo de prescrição da dívida de capital é, assim de 20 anos, sendo esta a interpretação que decorre do enunciado normativo, a qual não se pode deslocar dos critérios de correspondência verbal impostos pelo artigo 9º do Código Civil.

oo) Acresce ainda que, no entendimento da Recorrida, a interpretação do artigo 310.º, al. e) do Código Civil, de que se aplicará a regra prescricional excecional de cinco anos aos contratos de financiamento liquidáveis em prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, quando o vencimento das obrigações ocorre por incumprimento contratual do mutuário e que essa prescrição abrange a totalidade da dívida viola de forma clamorosa a Constituição da República Portuguesa.

pp) Com efeito, a Recorrida entende que é violado o princípio da segurança jurídica, uma vez que, na contratação confiou as suas expetativas de que poderia recuperar os seus créditos, em caso de incumprimento, no tempo previsto para a generalidade dos contratos, sendo certo que, a essa data, o entendimento subjacente à interpretação do artigo 310.º, al. e) do Código Civil era esse mesmo.

qq) Neste seguimento, entende a Recorrida que está em causa a violação de expectativas legítimas criadas em função de uma alteração de entendimento doutrinal e jurisprudencial quanto à aplicação das normas referentes à prescrição das dívidas.

rr) Ademais, criar-se um mecanismo de ilibar os devedores de honrar os seus compromissos é nada mais, nada menos de que frustrar os princípios basilares que regem a celebração dos contratos: pacta sunt servanda.

ss) Acresce que a referida interpretação normativa tende a impedir o acesso aos Tribunais para cobrança de créditos, decorridos mais de cinco anos, desde que a dívida seja liquidável em prestações, aquando da sua constituição, violando, assim, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

tt) Esta limitação da possibilidade de cobrança judicial dos créditos, imposta por tal interpretação normativa, fundamenta-se num manifesto erro interpretativoque tem por base uma proteção desnecessária e desmesurada dos Devedores, tendo em consideração os mecanismos existentes na nossa Ordem Jurídica para prevenir situações de insolvência.

uu) Se o espírito normativo fosse de findar com o prazo geral de prescrição, a norma que o contempla já teria sido erradicada da Ordem Jurídica, o que não sucedeu.

vv) Atento a todo o exposto, entende a ora Recorrida que deverá ser considerada, concretamente, inconstitucional a interpretação segundo a qual aos contratos liquidáveis em prestações, de capital e juros, se aplica o prazo excecional de cinco anos.

Nestes termos e nos demais de direito, deve o recurso a que se responde ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra o Acórdão recorrido, prosseguindo a execução os seus trâmites normais, fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!

II-OS FACTOS

Nas instâncias vêm dados como assentes os seguintes factos:

1.No exercício da sua actividade creditícia, em 04-09-2009, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. celebrou com CC um contrato de mútuo (Linha de Crédito PME Investe III – Caixa), ao qual foi atribuído o n.º PT ...............91, mediante o qual se obrigou a disponibilizar-lhe uma quantia de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), para reforço do fundo de maneio ou dos capitais permanentes, e que aquele se obrigou a reembolsar em 36 (trinta e seis) meses, beneficiando de um prazo de diferimento de amortização de capital de 12 (doze) meses, durante o qual apenas se venciam juros e outros encargos), em prestações trimestrais, sucessivas e iguais, vencendo-se a primeira no trimestre seguinte ao do final do prazo de diferimento, no dia correspondente à perfeição do contrato, e as restantes em igual dia dos trimestres seguintes.

2.Como garantia do pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do negócio referido em 1., da qual CC se confessou devedor, este entregou à Caixa Geral de Depósitos, S.A., em 04-05-2009, uma livrança com montante e vencimento em branco, por si subscrita e avalizada por DD, autorizando-a a preenchê-la a seu juízo e quando se mostrasse necessário, conferindo-lhe a faculdade de (i) fixar a data de vencimento, em caso de incumprimento das obrigações assumidas, (ii) fixar a sua importância, correspondente ao total das responsabilidades decorrentes do empréstimo, nomeadamente capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança, e de (iii) inserir cláusula «sem protesto» e definir o local de pagamento.

3. Em 04-09-2009, para garantia do pagamento de 75% do capital mutuado no âmbito do negócio referido em 1., a sociedade G..., S.A. prestou a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A. uma garantia autónoma, com o n.º 2009.3858, à primeira solicitação.

4. No âmbito do negócio referido em 3., a G..., S.A. obrigou-se a pagar à Caixa Geral de Depósitos, S.A. os montantes garantidos ou antecipadamente vencidos, na percentagem em que os mesmos se encontrassem garantidos, sem quaisquer juros, sobretaxas ou encargos, no prazo máximo de 10 (dez) dias após recepção de carta registada com aviso de recepção a solicitar o pagamento, tendo sido convencionado que a garantia caducaria e ficaria sem efeito se a Caixa Geral de Depósitos, S.A. não solicitasse o pagamento no prazo de 90 dias imediatamente posteriores ao respectivo vencimento ou à comunicação do vencimento antecipado das prestações.

5. Em 04-05-2009, CC adquiriu à Caixa Geral de Depósitos, S.A., pelo preço de 380,00 € (trezentos e oitenta euros), 380 acções nominativas, com o valor nominal de 1,00 € (um euro) cada, com os números de ordem ...................00 (3x100) e ...................30 (8x10), representativas do capital da G..., S.A..

6. Sobre as acções nominativas referidas em 4. foi constituído penhor a favor da G..., S.A. para garantia das obrigações decorrentes da garantia autónoma referida em 3.

7. Em data não concretamente apurada, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. preencheu livrança referida em 2., não tendo preenchido o campo destinado à data de emissão e apondo, no local destinado à importância, a menção de 33.500,83 € (trinta e três mil e quinhentos euros e oitenta e três cêntimos) e, no local destinado à data de vencimento, a menção de 27-06-2022.

8. No âmbito do negócio referido em 1., os contraentes convencionaram que as comunicações e os avisos escritos enviados pela Caixa Geral de Depósitos, S.A. a CC seriam remetidos para o endereço constante do contrato (Rua ..., freguesia de Nossa ..., concelho de ...), tendo-se por efectuados se só por culpa do destinatário não fossem por ele oportunamente recebidos.

9. Através de carta registada com aviso de recepção, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. dirigiu a CC comunicação com o seguinte teor:

«(…) Exmo. Senhor,

Como é do conhecimento de Vs. Exa, encontra-se vencida, e não paga, a responsabilidade emergente do contrato de abertura de crédito, celebrado em 2009-05-04.

De acordo com o estabelecido no referido contrato, que se encontra em poder desta Caixa devidamente assinado por V. Exa., havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantias, são consideradas vencidas todas as restantes, sendo exigível o pagamento da totalidade do nosso crédito.

Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencida nesta data a totalidade do nosso crédito e fixámos para o dia 2022-06-27 o vencimento da livrança em branco, subscrita por V. Exa. e avalizada por DD, que preenchemos pelo valor de € 33.500,83, correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixada, a que acrescem juros de mora, e legais acréscimos, até integral pagamento.

Solicitamos que proceda à sua liquidação no prazo de 5 dias, a contar da receção da presente carta, sob pena de adequado procedimento judicial para cobrança do crédito.

Mais informamos que demos conhecimento aos demais intervenientes no título do conteúdo desta carta (…)».

10. À carta (objecto postal) referida em 8. foi atribuído, pelos serviços postais, o n.º de registo RG.......61PT.

11. A carta (objecto postal) referida em 8. foi expedida para a Rua ..., ... ..., em 28-06-2022, tendo ficado disponível para levantamento na Loja CTT de ... entre 29-06-2022 e 08-07-2022, data em que foi devolvida ao remetente com a menção «Objecto não reclamado».

12. CC faleceu em ...-...-2016.

13. Previamente ao falecimento de CC, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. não lhe comunicou a existência de prestações em mora, nem o vencimento antecipado da totalidade das prestações.

14. AA e BB foram habilitados a prosseguir nos autos em substituição de CC por sentença proferida em 31-01-2023.

15. AA e BB foram citados para os termos da execução em 13-03-2023.

Não foram elencados factos não provados.

III-O DIREITO

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Assim, de acordo com as referidas conclusões, única questão a apreciar consiste em saber se a dívida exequenda se extinguiu por prescrição, sabendo que o título executivo nesta execução é constituído por uma livrança em branco que veio a ser preenchida nas circunstâncias que estão descritas na factualidade apurada.

Ora, de acordo com a análise que a 1.ª instância elaborou sobre o assunto, apesar de o título executivo ser uma livrança, estando a mesma no domínio das relações imediatas, é lícito aos obrigados cambiários invocar as excepções peremptórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstracção. Ora, a relação causal é um contrato de mútuo, nos termos do qual a quantia mutuada, acrescida de juros remuneratórios e outros encargos, deveria ter sido integralmente reembolsada até ao dia 04-05-2012, mediante o pagamento dos juros remuneratórios e outros encargos no período entre 01-04-2009 e 01-04-2010 e a amortização do capital no período compreendido entre 01-04-2010 e 04-05-2012, em prestações trimestrais, razão pela qual as obrigações decorrentes do referido empréstimo para CC se venceram integralmente em 04-05-2012. Por força do prazo previsto no art.º 310 e) do Código Civil, à data da citação dos ora Recorrentes e Executados, há muito estaria prescrita a dívida relativa ao contrato de mútuo. Assim, no domínio das relações imediatas, a prescrição da obrigação causal determinaria a extinção da obrigação cartular, o que foi declarado pela 1.ª instância.

Reapreciada a questão pelo Tribunal da Relação, este Tribunal centrou-se apenas na questão do prazo prescricional quando está em causa uma livrança em branco. Abstraiu assim, completamente, do facto de estarmos no âmbito das relações imediatas. Com efeito, pode ler-se no acórdão recorrido: “cremos que a decisão em causa não considerou o facto de estarmos perante uma livrança em branco. Numa livrança em branco, o prazo de prescrição conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente.” Na verdade, assim seria, se não estivéssemos no âmbito das relações imediatas, como é o caso dos autos.

É verdade, tal como se diz no acórdão recorrido que “Nesse caso, entende a nossa jurisprudência - constituindo, aliás, orientação consolidada que, o momento decisivo para se determinar a validade da livrança é o do seu vencimento e o prazo prescricional corre desde o dia do vencimento aposto pelo exequente/beneficiário - (neste sentido de que o início de contagem do prazo de prescrição afere-se em função da data de vencimento inscrita na livrança e não com base no vencimento da obrigação causal entre muitos outros, os acórdãos de 12/11/2002(proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005(proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1)”. Mas isto é assim, pressupondo que a obrigação causal não está prescrita também, sendo esta prescrição invocável, por estarem a exequente e os executados, no âmbito das relações imediatas. E este pormenor faz toda a diferença na apreciação jurídica da questão.

E faz toda a diferença porque, como é Doutrina pacífica1 e Jurisprudência consolidada2, encontrando-nos no âmbito das relações imediatas, como resulta do disposto no art.º 17.º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL) é lícito ao signatário cambiário invocar as excepções peremptórias inerentes à relação causal, impeditivas, modificativas ou extintivas do direito exercido, para afastar a exigência decorrente da obrigação cartular, por tudo se passar como se a relação cambiária deixasse de possuir as propriedades da literalidade e da abstracção.

Como se refere no acórdão deste STJ de 14-09-20213 “(…) a relação cartular é independente da causa que lhe dá origem, da que constitui o motivo da subscrição cambiária, da relação fundamental, que pode assumir diversas figuras jurídicas. A obrigação cambiária é abstrata, não se prende nem depende da causa que motivou a emissão do título. Por isso, em regra, as pessoas accionadas por essa via não podem opor ao portador da letra/livrança as excepções fundadas nas relações pessoais com o sacador ou portador anteriores (arts. 17º e 77º da LU). Tal não sucede nas relações imediatas,4 em que entre os dois signatários não se interpõe qualquer outro ou em que os sujeitos da relação cambiária são concomitantemente os sujeitos da relação causal. Neste caso, em que não há interesses de terceiros de boa fé a defender, os princípios da literalidade, abstração e autonomia que caracterizam os títulos cambiários deixam de funcionar, podendo fundar-se a defesa nas excepções emergentes da relação causal.”

Assim sendo, no domínio das relações imediatas, prescrita a obrigação que resulta da relação causal, extingue-se por consequência a obrigação cartular.

*

Contudo, a Recorrida argumenta que a obrigação causal não se encontra prescrita pois o prazo aplicável é o prazo geral de vinte anos previsto no art.º 309.º do Código Civil5 e não o prazo de cinco anos previsto no art.º 310.º alínea e).

Alega, para tanto que “em caso de incumprimento, a consequência imediata é a perda do benefício do pagamento em prestações e não o início da contagem da prescrição de curto prazo. Uma vez verificado esse incumprimento injustificado é desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros”.

É certo que nos casos “em que o reembolso da dívida foi objecto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que compreendem uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontrar-se-á sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco anos, previsto na alínea e) do artigo 310º, do Código Civil. Se, em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em dívida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos (…)".

Com efeito “O vencimento imediato das prestações restantes, significa que o plano de pagamento escalonado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações: desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros. Desfeita a ligação anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e a dívida de juros ao mesmo prazo prescricional: os juros que se forem vencendo prescreverão no prazo de cinco anos, e o capital, (…) encontrar-se-á sujeito ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos.6

Contudo, isto seria assim, caso tivesse sido accionado o previsto no art.º 781.º que estipula que “se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas.” Porém, tal não sucedeu no caso em apreço.

Como resulta da factualidade apurada7, a Exequente enviou, em 20-06-2022, uma carta registada, dirigida ao mutuário e subscritor da livrança, destinada a comunicar o vencimento de todas as prestações em dívida. Sucede que tal carta não foi recebida pelo mutuário pois que este já tinha falecido em ... de ... de 2016. Mais está provado que “Previamente ao falecimento de CC, a Caixa Geral de Depósitos, S.A. não lhe comunicou a existência de prestações em mora, nem o vencimento antecipado da totalidade das prestações.”8

Assim sendo, nunca ficou sem efeito o plano de pagamento acordado, nem os valores em dívida voltaram a assumir em pleno a sua natureza originária de capital e juros.

Aqui chegados, temos de concluir que procedem inteiramente as conclusões dos Recorrentes, pelo que deve ser concedida a revista.

IV - DECISÃO

Face ao exposto, acordamos nesta 7.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a revista, revogando o acórdão da Relação e repristinando a decisão da 1.ª instância.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 3 de outubro de 2024

Maria de Deus Correia (relatora)

Nuno Pinto Oliveira

José Ferreira Lopes

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1. Vide por todos, FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial, Vol.III. pp 67-68.

2. Vide a título exemplificativo os mais recentes acórdãos do STJ de 20-09-2023, Processo 2160/20 (Jorge Leal); 14-09-2021, Processo 2449/18, (Ferreira Lopes); de 28-09-2017, Processo 779/14.2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

3. Já identificado na nota anterior

4. Sublinhado nosso.

5. Serão deste diploma legal os artigos que vierem a ser citados sem indicação de proveniência.

6. Tal como se refere no acórdão do TRC, de 26-04-2016, citado pela Recorrida.

7. Vide factos n.ºs 8 a 12 dos factos provados.

8. Vide ponto 13.º dos factos provados.