Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3849
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA
INDEFERIMENTO LIMINAR
RECURSO DE AGRAVO
CITAÇÃO
FALTA DE CITAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: SJ200502100038492
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2306/04
Data: 03/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : I - O regime definido pelo artigo 234-A do Código de Processo Civil aplica-se a todas as acções e procedimentos, declarativos ou executivos, que comportem momento de apreciação liminar;
II - Proferido, consequentemente, despacho de indeferimento in limine em execução ordinária para pagamento de quantia certa, e interposto agravo do mesmo, deve o despacho de admissão do recurso, por imperativo do n.º 3 do citado artigo, ordenar a citação do executado ou executados, «tanto para os termos do recurso como para os termos da causa»;
II - Sendo, pois, citado desde logo o executado também para os termos da execução, deve a citação ser efectuada - no pressuposto da procedência do agravo - com indicação, além do mais, do prazo aludido nos artigos 811, n. 1, e 816, n. 1, posto que a lei não prevê outro momento para a realização dessa citação, apenas havendo lugar, em caso de provimento do recurso, a «notificação em 1.ª instância de que foi revogado o despacho de indeferimento», com a qual se inicia o curso do referido prazo, maxime para efeito de oposição por embargos de executado (artigo 234-A, n.º 4);
III - A omissão da citação aludida constitui a falta de citação prevista nos artigos 194, alínea a), e 195, alínea a) - consequenciando a nulidade de tudo o que se processe depois do requerimento executivo, salvando-se apenas este -, de conhecimento oficioso (artigo 202), em qualquer estado da execução (artigo 206, n. 1), a menos que deva considerar-se sanada por intervenção do executado no processo conforme o artigo 196, o que não é o caso sub iudicio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. O Banco A, sociedade aberta, com sede em Lisboa, instaurou execução hipotecária no tribunal da comarca de Torres Vedras, em 16 de Março de 2001, contra 1.º B e esposa, 2.ª C, ambos residentes em Arruda dos Vinhos, 3.º D e esposa, 4.ª E, ambos residentes em Sobral de Monte Agraço, visando o pagamento coercivo, pelas forças do lote de terreno para construção industrial hipotecado que identifica no requerimento executivo, de crédito do exequente sobre os 1.º e 2.ª executados no montante de 5.800.000$00, acrescido de juros moratórios vencidos, à taxa de 14%, a contar de 5 de Agosto de 1998 - liquidados em 2.168.500$00 a 14 de Março de 2001, tudo ascendendo, pois, ao quantitativo global líquido de 7.968.500$00 - e vincendos, à taxa de 13%, desde 15 de Março até integral pagamento.

Alega ademais o banco exequente que a dívida exequenda de 5.800 contos resulta do «desconto bancário de uma livrança» deste montante pelo qual o banco entregou o respectivo produto aos 1.º e 2.ª executados - conforme proposta de desconto por estes subscrita, junta à petição como doc. n.º 3 -, «que corresponde a uma reforma de uma outra livrança de 950.000$00».

Observe-se que a denominada «proposta» de desconto se apresenta na realidade em impresso do próprio banco exequente, subscrito pelos 1.º e 2.ª executados em 31 de Julho de 1998, pelo valor de 5.800 contos, com vencimento a 31 de Outubro do mesmo ano, dele constando, inter alia, diversas anotações internas do banco, entre as quais um carimbo do «Conselho», datado de 5 de Agosto, aposto sobre a casa «Executar», e a quantia aludida manuscrita na casa «Valor Aprovado», com referência à data de 6 de Agosto. No verso do documento foi aposto o carimbo «Recebido», datado de 3 de Agosto sempre de 1998, subscrito com rúbrica ilegível.

Por seu turno, a livrança descontada - adita o exequente - está a ser objecto de execução na 3.ª Secção da 17.ª Vara Cível de Lisboa, e ainda não foi paga apesar de vencida, protestando o exequente juntar certidão comprovativa e dar conhecimento no presente processo de qualquer pagamento que ali obtenha.

Verifica-se que a hipoteca sobre o aludido imóvel foi constituída mediante escritura pública, de 17 de Julho de 1997, «em garantia - lê-se no documento - do bom pagamento de todas as responsabilidades assumidas ou a assumir», perante o exequente, por qualquer uma das pessoas acima indicadas, assim se interpreta (1) , «até ao montante de 14.000.000$00», «proveniente de toda e qualquer operação em direito permitida bem como dos juros» detalhados na escritura.

Consta, por outro lado, do mesmo instrumento notarial que «os documentos que representam os créditos do banco constituirão títulos referidos a esta escritura», da qual «fazem parte integrante para o efeito de execução, conjuntamente com esta escritura, se for caso disso».

Ademais, «para o efeito de execução, os documentos juntos com esta escritura e que representam os créditos do banco serão considerados como passados em conformidade com as cláusulas da escritura e, desde logo, justificativos de que as correspectivas prestações foram realizadas em cumprimento do negócio, sem necessidade dos aludidos documentos estarem revestidos de força executiva», e, ainda, que «o extracto da conta corrente bancária do ou dos garantidos será considerado documento suficiente para a prova do respectivo saldo devedor».

Conclui neste conspecto o exequente que o desconto bancário acima referido (doc. n.º 3) «deve ser considerado como documento passado em conformidade com as cláusulas da escritura e justificativo do crédito do exequente», sendo a escritura da hipoteca título executivo, nos termos da alínea b) do artigo 46 do Código de Processo Civil - e, acrescentar--se-ia com a maior pertinência, do artigo 50 do mesmo corpo de leis.

O requerimento executivo apresenta-se instruído, além dos documentos da escritura e do desconto bancário, com certidão do registo da hipoteca (doc. n.º 2, fls. 13/17).

2. Instaurada a acção executiva nos termos expostos, solicitada certidão da petição inicial e do título executivo na execução pendente na 17.ª Vara Cível, e juntos esses documentos a fls. 28/29 e 30, foi proferido, em 15 de Julho de 2003, o despacho de indeferimento liminar que se transcreve:

«Vem a presente execução para pagamento de quantia certa instaurada com base apenas numa escritura pública de constituição de hipoteca sobre um imóvel identificado no artigo 2.°, parte final do requerimento inicial de execução.
Ora, a escritura de constituição de hipoteca, por si só, não pode ser considerada titulo executivo, na medida em que não cria qualquer obrigação, nem encerra qualquer declaração de reconhecimento de dívida, apenas garantindo o cumprimento de obrigações presentes ou futuras ao respectivo credor (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Março de 1993, http://www.dgsi.pt).
Por isso que não lhe pode ser reconhecida exequibilidade, nos termos do artigo 46 n.° 1, alínea b), uma vez que, desacompanhada dos títulos constitutivos das obrigações seu objecto, apenas tem por efeito jurídico a constituição de um direito real de garantia.
Na medida em que, no requerimento inicial de execução, o exequente invoca a existência de uma livrança descontada pelos executados, essa sim instrumento criador de um direito de crédito na esfera jurídica do exequente e susceptível de ser dado à execução, essa livrança é que constitui o documento que titula a existência da obrigação exequenda e que deverá ser apresentado em conjunto com a referida escritura.
E uma vez que tal livrança já foi dada à execução, na 17.ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, como o próprio exequente afirma e resulta da certidão junta a fls. 27 e segs., ao abrigo do disposto nos artigos 234, n.° 4, alínea. e), e 234-A do Código de Processo Civil, por falta de título executivo, indefiro liminarmente o requerimento inicial de execução.
«(...)»
3. O agravo deste despacho veio a improceder na Relação de Lisboa, que confirmou a decisão recorrida, mediante acórdão, de 15 de Junho de 2004, de que a exequente agravou para este Supremo Tribunal, sintetizando a alegação nas conclusões seguintes:

3.1. «O douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Outubro de 1999, http://www.dgsi.pt, relator Faria de Sousa, defende a jurisprudência segundo a qual ‘a escritura pública que se limita a documentar a constituição duma hipoteca sem que a correlativa prestação do credor tivesse sido ainda constituída, não configura título executivo, ainda que o exequente junte àquele documento prova da abertura do crédito garantido pela referida hipoteca’;

3.2. «O douto acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Junho de 2000, ‘Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça’, Ano 2000, Tomo 2, págs. 108 a 110, relator Dionísio Correia, defende a jurisprudência segundo a qual ‘a escritura pública de hipoteca constituída para garantia do pagamento das responsabilidades do devedor, provenientes de prestações futuras do credor, constitui título executivo desde que se prove, por documento passado em conformidade com as suas cláusulas a efectivação de alguma prestação em cumprimento do negócio’;

3.3. «Nada obsta a que as partes, no uso da sua liberdade contratual, fixem as condições em que determinado documento, v. g., escritura pública, tem força executiva;

3.4. «O documento junto pelo recorrente, com referência à escritura de hipoteca dos autos, é um contrato de desconto bancário de uma letra (2) de 5.800.000$00 = € 28.930,28, acordado e assinado com os executados (alguns deles) e não foi impugnado nem questionado pelos recorridos.
O douto acórdão recorrido violou os artigos 46, n.° l, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil, e 405 do Código Civil.»

Não houve contra-alegação, quiçá devido à irregularidade adiante indigitada.

4. O agravante requerera em todo o caso a ampliação do agravo, nos termos dos artigos 732-A e 732-B do Código de Processo Civil, com vista à uniformização da jurisprudência dita divergente citada na alegação, o que mereceu pareceres discordantes do Ex.mo Procurador-Geral e do relator.

E Sua Excelência o Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça não entendeu necessário ou conveniente o julgamento com intervenção do plenário das Secções Cíveís, devendo o recurso consequentemente tramitar como agravo simples.

O objecto deste, considerando a respectiva alegação e suas conclusões, à luz da fundamentação da decisão em recurso, consiste, por conseguinte, na questão de saber se a escritura pública dada à execução, com o documento relativo ao desconto bancário descrito há momentos, integra a falta manifesta ou evidente de título executivo susceptível de justificar o indeferimento liminar decretado [artigo 234-A, n.º 1, e artigos 50 e 811-A, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil].
II
Termos em que, coligidos os necessários elementos de apreciação, cumpre decidir.

A questão que vem de se enunciar mereceria, observe-se em aparte, resposta negativa (3) , mas importa previamente abordar a irregularidade a que vem de se aludir, pela sua prioridade lógica relativamente àquela.

1. Proferido despacho de indeferimento liminar - acto processual hoje restrito a situações de excepção enunciadas nas alíneas a) a f) do n.º 4 do artigo 234, entre as quais, precisamente, o processo executivo [alínea e)] -, e interposto agravo do mesmo, deve o despacho de admissão do recurso, por imperativo do n.º 3 do artigo 234-A, ordenar «a citação do réu ou requerido» - bem como, por não haver razões para distinguir, do executado (4) -, «tanto para os termos do recurso como para os termos da causa».

De forma que o prazo para a contestação ou oposição - por embargos de executado no nosso caso, cujo prazo de dedução, tal como na acção declarativa, se contaria da citação (artigo 816, n.º 1) - se inicia com a notificação em 1.ª instância da revogação do despacho de indeferimento (n.º 4 do artigo 234-A).

Quer dizer, no regime legal do indeferimento liminar de que seja interposto agravo, o réu, ou, como no nosso caso, o executado, é imediatamente citado, tanto para os termos do recurso, como para os da execução.

Em primeiro lugar para os termos do recurso, é evidente, porque de contrário, faltando a citação, o agravo correria «sem a sua intervenção e presuntivamente sem o seu conhecimento», privando-o «do direito de defesa», numa palavra, do exercício contraditório de «todos os direitos que a lei lhe reconhece», e, basicamente, do direito de «sustentar que o agravo não merece provimento» (5) .

Mas também para os termos da própria execução é desde logo citado o executado, com indicação, nomeadamente, do prazo aludido nos artigos 811, n. 1, e 816, n. 1, no caso de o agravo proceder, não prevendo a lei outro momento para a realização dessa citação.

No caso, efectivamente, de provimento do agravo, há apenas lugar a «notificação em 1.ª instância de que foi revogado o despacho de indeferimento», iniciando-se com a notificação o curso do referido prazo (artigo 234-A, n. 4) (6) .

2. Na situação sub iudicio, contudo, interposto agravo do indeferimento liminar e admitido o recurso, não se procedeu conforme o n. 3 do artigo 234-A à citação dos executados, os quais, compulsados os autos, se verifica jamais terem intervindo no processo (7) .
Há, pois, a falta de citação prevista nos artigos 194, alínea a), e 195, alínea a), consequenciando a nulidade de «tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta».

Ora, a nulidade da falta de citação é de conhecimento oficioso (artigo 202), podendo ser suscitada em qualquer estado do processo (artigo 206, n.º1), a menos que deva considerar-se sanada nos termos do artigo 196, o que dos autos não transparece, como se deixou entrever.

Importa, por consequência, declarar a nulidade na extensão aludida, baixando o processo à 1.ª instância com vista à prossecução da legal tramitação.
III
Nos termos expostos, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao agravo, declarando a nulidade de tudo o que se processou após a petição inicial, inclusive do acórdão sob recurso, ordenando a remessa do processo à 1.ª instância em ordem à prossecução dos trâmites legais.

Custas pelo vencido a final (artigo 446 do Código de Processo Civil).
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) Neste sentido depõe o libelado da escritura quando alude às «(...) responsabilidades assumidas ou a assumir por B e/ou C e/ou D e/ou E (...)» (frisados agora).
(2) Aliás, livrança, conforme resulta dos demais elementos articulados e documentados
(3) Permitindo-nos ainda deixar registado, para memória futura, que a escritura de hipoteca sub iudicio nos presentes autos se apresenta distinta, na tónica da exequibilidade, tanto quanto é possível inferir, daquela a que respeitou o acórdão deste Supremo Tribunal, de 29 de Março de 1993, citado no despacho de indeferimento liminar, sendo, bem pelo contrário, flagrante a sua afinidade com a escritura de hipoteca objecto do acórdão, de 15 de Junho de 2000, citado na conclusão 2.ª da alegação de recurso. A diferença reside em que neste segundo caso o documento complementar do título notarial na óptica do artigo 50.º eram extractos das contas bancárias da executada, enquanto no nosso caso se juntou, como sabemos, um documento comprovante de desconto
(4) Anote-se efectivamente, prescindindo de outras considerações, que o n.º 3 do artigo ao referir-se à citação do «réu ou requerido», está em sintonia com o n.º 2 quando este alude ao indeferimento da petição «de acção ou procedimento cautelar». Seria, porém, ousado, carecendo de justificação plausível o entendimento que pretendesse concluir, da mera utilização desse fraseado, pela exclusão da acção executiva do regime do agravo do despacho de indeferimento liminar plasmado nos dois normativos. Aliás, a inserção - ou reinserção, se se quiser, em nova roupagem - do artigo 234-A na segunda fase da reforma de 1995/96 tem uma explicação, que pode ver-se no relatório preambular do Decreto-Lei n.º 180/96, da qual não é, todavia, possível, bem pelo contrário, extrair argumento algum nesse sentido. No sentido exposto, José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 398, e também pág. 402, escrevendo, categórico, no primeiro passo que o regime definido pelo artigo 234.º-A se aplica «a todas as acções e procedimentos, declarativos ou executivos, que comportem momento de apreciação liminar»
(5) Parafraseámos José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, e Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, Coimbra Editora, Lim., Coimbra, 1945 e 1949, págs. 403 e 390, respectivamente.
(6) Na orientação exposta, lê-se, efectivamente, em Lebre de Freitas, op. cit., pág. 402, que o réu ou requerido - e o executado, já o vimos - «é citado para contra-alegar no recurso, mas também logo para os termos da causa (no pressuposto de que o recurso seja procedente), pelo que, se for revogado o despacho de indeferimento, a sua simples notificação (e não nova citação) determinará o início do prazo para a defesa»
(7) Isto muito embora tenham sido notificados de determinados actos, o que não é mesmo para efeitos do artigo 196, como se vai ver. De facto, o Ex.mo Relator do agravo na Relação conheceu deste em decisão sumária nos termos do artigo 705, negando provimento ao recurso e confirmando o despacho de indeferimento. Sintetizando, o agravante veio a requerer, ao abrigo do n. 3 do artigo 700, que sobre a matéria recaísse acórdão. E, na perspectiva da audição da «parte contrária» aludida no mesmo normativo, entendeu o Ex.mo Relator ordenar a notificação dos executados, que nada disseram, vindo uma das cartas devolvida. A partir deste momento, foram os executados notificados do acórdão aqui recorrido, que confirmou a decisão sumária (fls. 75), do despacho que admitiu o agravo em 2.ª instância (fls. 79 e segs.), da apresentação da alegação (fls. 96 e segs.) e das tomadas de posição concernentes à ampliação do agravo (fls. 109/110), sem, todavia, intervirem como quer que fosse no processo