Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6791/18.5T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRATO DE SEGURO
APÓLICE
RISCO
INCÊNDIO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
Data do Acordão: 06/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - Está vedado ao tribunal de revista a sindicação do acórdão da Relação quanto ao modo como se julgou a impugnação da matéria de facto sempre que se imputam erros na apreciação crítica de provas produzidas e valoradas em regime de prova livre, fundada no âmbito e na esfera de intervenção e dos poderes de cognição do erro de facto proporcionados amplamente pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC – assim dispõe o art. 662.º, n.º 4, do CPC –, não estando em causa, nesse âmbito, prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa (arts. 674.º, n.º 3, 2.ª parte, 682.º, n.º 2, CPC), nem vício que afecte o uso das presunções judiciais ex vi art. 351.º do CC.
II - A interpretação do contrato de seguro, formalizado através de apólice, obedece às regras legais de interpretação dos negócios jurídicos, presentes nos arts. 236.º, n.º 1 (teoria da impressão do destinatário) e 238.º do CC.
III - As cláusulas exoneratórias ou limitativas da responsabilidade constantes de contrato de seguro, com directa projecção na obrigação de indemnização a cargo do segurador, são proibidas e nulas, de acordo com o art. 18.º, al. b) (cláusulas contratuais gerais que «excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros») e art. 12.º do DL n.º 446/85, de 25-10, se, atento o conteúdo da cláusula, não esvazia nem compromete a garantia de protecção do risco que ao contrato cabia assegurar, assim sendo quando restringe de forma racional e equilibrada assim como residual a obtenção do objectivo visado com a celebração do seguro mas sem, com isso, retirar de todo a utilidade e a finalidade com que as partes o convencionaram.
IV - É conforme com os preceitos legais do regime jurídico do contrato de seguro e de sindicação da vontade negocial integrar por via interpretativa como acto de “vandalismo” um comportamento intencional de causação de incêndio com atear de fogo a imóvel, dirigido à destruição gratuita e/ou injustificada do bem garantido no objecto contratual, perpetrado por terceiro em relação ao contrato, para efeitos de exclusão do âmbito de cobertura de um contrato de seguro de incêndio.
V - Sem prejuízo, a montante de tal exclusão, a inexistência de responsabilidade da seguradora resulta desde logo do conceito de “incêndio” abrigado pelas “condições gerais” da apólice do contrato de seguro, que demanda causas acidentais, e, portanto, interpretado de acordo com a doutrina da impressão do destinatário e conjugado com os arts. 149.º e 150.º, n.º 1, do DL n.º 72/2008, de 16-04, afasta da cobertura do seguro de incêndio os danos resultantes de sinistro originado em acto voluntário próprio e/ou de terceiro.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 6791/18.5T8PRT.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 3.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. O Município de Matosinhos intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário contra «AIG Europe Limited – Sucursal em Portugal», pedindo que fosse a Ré condenada no pagamento da quantia de € 97.754,28, acrescida de juros de mora. Alegou, em síntese, a celebração com a Ré de um contrato de seguro relativo ao seu património imobiliário, tendo-se verificado um incêndio num dos imóveis de que é proprietário, que lhe causou danos, que reparou, sendo a Ré responsável pelo pagamento do valor dessa reparação.
Citada, veio a Ré deduzir Contestação (fls. 158 e ss), concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido. Invocou ter apurado que o incêndio foi causado propositadamente, razão pela qual não está abrangido pela cobertura do contrato de seguro celebrado, integrando uma das situações em que está excluída a sua responsabilidade. Impugnou ainda o valor dos danos que foram alegados pelo Autor, afirmando existir franquia de 10% estabelecida contratualmente.
Foi realizada audiência prévia em 26/9/2018, onde foi proferido despacho saneador afirmando a validade e regularidade da instância e fixado o valor da causa em € 97.754,28. Procedeu-se à fixação do objecto do litígio, factos assentes e selecção dos temas da prova, sem que tivesse sido apresentada qualquer reclamação.
Procedeu-se à realização de audiência final em 12/12/2018, observando-se todas as formalidades legais e levada a cabo a produção de prova.

2. O Juiz 1 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto proferiu sentença em 7/1/2019 (fls. 235 dos autos), que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 87.978,84 (“valor da reparação do imóvel, deduzido da franquia contratualmente estabelecida de 10%”), acrescida de juros de mora sobre a quantia referida, à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento, absolvendo a Ré da restante parte do pedido.

3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), concluindo pela revogação da sentença proferida, com a substituição por outra que a absolva do pedido.

O TRP, no que respeita à impugnação da matéria de facto, considerou “inútil a apreciação da impugnação apresentada” quanto ao facto provado 8., que se manteve inalterado, e considerou provada a matéria da al. a) dos “factos não provados”, aditando-se um ponto 16. aos factos provados (O fogo foi intencionalmente provocado por desconhecido). Na outra questão recursiva – saber se o incêndio verificado, enquanto acto intencional, está excluído do âmbito de cobertura da apólice de seguro –, decidiu que, “verificando-se que o imóvel seguro foi danificado na sequência de um acto de vandalismo de um desconhecido que teve a intenção de provocar um fogo numa das fracções, tal ocorrência encontra-se excluída da garantia da apólice contratada pela R., não estando a mesma obrigada ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pela A.”. Dispôs, por isso, no acórdão proferido em 13/6/2019, julgar “procedente o recurso intentado pela R., revogando-se a sentença proferida e julgando-se a acção totalmente improcedente absolve-se a R. do pedido contra ela formulado pela A.”.

4. Mostrando que não se resignava ao decidido em 2.ª instância, o Autor interpôs recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“A) Este Tribunal de Revista deve censurar, no âmbito da sua competência, as conclusões extrapoladas sem cabimento lógico que o Tribunal "a quo" retirou do contexto factual resultante da apreciação da prova pericial, ao abrigo do entendimento jurisprudencial vertido no Acórdão do S.T.J, de 15 de Abril de 1980 (B.M.J., 296°, pag. 198).

B) De facto, o Tribunal "a quo", não se tendo socorrido da faculdade processual do art. 662° do Código de Processo Civil, não pode chegar a ilações ilógicas, negando a evidência probatória resultante do relatório pericial junto aos autos que aponta para a inexistência de prova cabal de que o incêndio teve de causa intencional por ato de terceiro desconhecido.

C) Na verdade, ao decidir em sentido contrário, o Tribunal "a quo" viola o princípio da inadmissibilidade de livre arbítrio na apreciação da prova pericial, que constitui o espírito axiológico-normativo contido na regra da prova livre no domínio pericial plasmada no art. 389° do Código Civil, desvinculando-se do juízo de bom senso que deve prevalecer neste contexto.

D) Neste contexto, o relatório pericial apresentado e o depoimento em julgamento do seu autor não podem ter a relevância essencial que o acórdão recorrido atribui, dado que o perito detém inegável interesse no desfecho do processo, por se tratar de pessoa contratada pela própria Ré para fazer uma análise de seu caso, além de que aí não existe qualquer conclusão definitiva sobre a origem do incêndio, apenas havendo suposições.

E) Por outro lado, o despacho proferido pelo Ministério Público da Comarca de Matosinhos não pode sustentar a tese do fogo posto, pois, além de a prova recolhida em sede de inquérito ser apenas indiciária, também é certo que está assente que não se vislumbra relação sequencial comprovada entre a compra de gasolina pelo suspeito, com as subsequentes ameaças de incêndio,
e o sinistro ocorrido.

F) Por último, não se pode legitimar a reincidência no erro de apreciação de direito do Tribunal "a quo" quanto à exclusão do incêndio intencional da cobertura da apólice de seguro, pois a interpretação das disposições da cobertura complementar por atos de vandalismo carece de fundamento para a exclusão de responsabilidade por parte da Ré, já que esse conceito de
vandalismo não pode coincidir com uma situação de incêndio intencional, sob pena de tal ideia servir de pretexto para desresponsabilização da seguradora sempre que existe qualquer ação humana na base do sinistro (ainda que negligente).”

A Recorrida apresentou contra-alegações, batendo-se pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso
O conteúdo das Conclusões do Recorrente define em primeira linha o objecto do conhecimento do tribunal que aprecia o recurso (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de oficioso conhecimento, desde que não decididas (art. 608º, 2, CPC). O âmbito do recurso é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida (questões suscitadas e apreciadas pelo tribunal recorrido), não podendo constituir-se decisões sobre matéria nova, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

Em consequência, importa conhecer nesta revista das seguintes questões:

— conformidade legal da alteração da matéria de facto provada, atendendo em especial aos (invocados pelo Recorrente) arts. 389º do CCiv. e 662º do CPC;

— exclusão da responsabilidade da seguradora Ré pela inclusão do evento “incêndio intencional” nas situações de não cobertura da apólice de seguro por “vandalismo”.

2. Factualidade

Com a introdução do facto provado 16. pelo acórdão recorrido, chegam a esta instância como provados os seguintes factos:

1 – O A. é proprietário de um imóvel correspondente a um bloco residencial de rés-do-chão e três andares denominado Conjunto Habitacional da …, sito na Rua ..., nos 000, 000, 000, 000, 000 e 000, em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3442, no qual se integra uma fracção habitacional sita no rés-do-chão direito nº 000, designada pela letra L, assim descrita.

2 – No âmbito das suas atribuições de gestão do património municipal, o A. celebrou com a R. um contrato de seguros para edifícios constituídos em propriedade horizontal, titulado pela apólice PA 00PR0000, nos termos que consta de fls. 22, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, incluindo o imóvel identificado em 1.

3 – No dia 31/12/2016, pelas 21.50 horas, deflagrou um fogo de grandes proporções na fracção L supra descrita que causou danos graves nesta fracção, espaços comuns, bem como em diversas outras fracções do rés-do-chão, primeiro, segundo e terceiros andares do mesmo bloco residencial.

4 – Após o evento revelou-se necessário proceder à reabilitação da fachada, da zona comum do edifício, das fracções habitacionais do 1º …, do 2º … e do 3º …, bem como da porta da entrada da habitação do rés-do-chão …, sendo ainda necessário executar a reabilitação total do rés-do-chão ….

5 – Na sequência da participação do evento à R., foi elaborado um orçamento dos trabalhos a executar, por solicitação do A., no valor total de 128.188,88 euros.

6 – A R. apresentou um outro orçamento elaborado por solicitação sua, contrapondo o valor de 74.879,27 euros para a reabilitação do imóvel.

7 – Na sequência de reunião entre representantes da empresa municipal MatosinhosHabit – MH – empresa gestora de parte do edificado do A. – e da empresa encarregue pela R. para a avaliação dos danos – Uon Consulting – a obra de reabilitação do imóvel foi adjudicada à empresa Ingo Construções e Engenharia Ldª, pelo valor de 92.221,00 euros mais IVA, valor aceite pelo A. e pela R.. como o bastante para a realização das obras necessárias para aquela reabilitação.

8 – O A. procedeu ao pagamento da quantia de 97.754,27 euros à empresa Municipal MatosinhosHabit que, por sua vez, pagou tal quantia à empresa Ingo, no âmbito do acordo referido em 7.

9 – O fogo que deflagrou no imóvel iniciou-se junto à janela de um dos quartos, em local onde inexiste fonte de calor.

10 – O período do contrato de seguro era de 01/01/2016 a 31/12/2016, anualmente prorrogável.

11 – Nas condições particulares do seguro estabeleceu-se, cláusula 7ª, que o risco coberto era o de incêndio, acção mecânica de queda de raio e explosão, ficando ainda cobertos os danos causados no bem seguro em consequência dos meios empregues para combater o incêndio e as remoções ou destruições executados por autoridade competente ou praticados para fim de salvamento.

12 – Estabeleceu-se ainda que o contrato tinha uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, cláusula 9ª.

13 – No art. 4º das condições gerais do contrato de seguro está definido que para efeito desta cobertura os riscos cobertos tinham as seguintes definições:

1. Incêndio – garante os danos causados aos objectos seguros em consequência de incêndio, ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente do incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás referidos. Para efeitos deste risco entende-se por incêndio a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma normal fonte de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios (…).

14 – Está previsto no art. 5º das condições gerais do contrato de seguro que não fica garantido, em caso algum, mesmo que se se tenha verificado a ocorrência de qualquer risco coberto pela apólice, os prejuízos que derivem, directa ou indirectamente, de:

f) actos ou omissões dolosas do segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável.

15 – Está ainda previsto no ponto 5 que, excepto quando expressamente se garantam os riscos em causa, o contrato de seguro não cobre:

a) actos de vandalismo, maliciosos ou de sabotagem, mesmo que deles resulte dano eventualmente abrangido pela cobertura de qualquer dos riscos principais.
16 – O fogo foi intencionalmente provocado por desconhecido.

3. O direito aplicável

3.1. Dos alegados vícios na decisão sobre a matéria de facto

O Recorrente alega que a perícia junta aos autos, os depoimentos do perito autores do relatório pericial e o despacho de arquivamento do processo-crime proferido pelo Ministério Público da Comarca de Matosinhos não poderiam ser valorados como foram pelo acórdão recorrido para sustentar como provado o facto de o fogo, que consumiu o imóvel, ter sido intencionalmente posto. Por isso, deveria a Relação ter-se socorrido do art. 662º do CPC – presume-se, do seu n.º 2, als. a) e b) –, em vez de – julga-se subjacente às alegações do Recorrente – se ter ficado pela fundamentação estribada no n.º 1 desse mesmo art. 662º. E acrescentou que a valoração da prova pericial estava ferida pelo comando do art. 389º do CCiv. («A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.»).

Vejamos a fundamentação do acórdão recorrido:

“Já se nos afigura que uma correcta avaliação do relatório pericial junto aos autos a fls. 164 vs.º e ss.[,] no essencial confirmado e melhor esclarecido pelo depoimento que prestaram em audiência as testemunhas AA e BB que o elaboraram, exige que se vá mais além do que aquilo que o tribunal de 1ª instância teve como provado no ponto 9 da decisão: que o fogo que deflagrou no imóvel iniciou-se junto à janela de um dos quartos em local onde inexiste fonte de calor.

Em primeiro lugar, considera-se que se trata de um relatório sério e credível, o que se retira não só da circunstância de ter sido efectuado por técnicos habilitados, mas essencialmente pelo facto de no mesmo ser possível distinguir claramente e ser explicitado o que é que foi constado no local através da vistoria ali realizada, daquilo que representam suposições ou conclusões por ele retiradas com base nessa mesma análise e nos seus conhecimentos específicos. Em segundo lugar, é preciso não esquecer que mesmo as suposições ou conclusões que aí são retiradas resultam de um apreciação técnica ou científica dos dados analisados por quem tem especiais conhecimentos para o efeito.

O facto do tribunal não estar obrigado a aceitar tudo o que consta de uma avaliação pericial, ainda para mais quando é feita a pedido de uma das partes no processo, antes lhe competindo formar a sua própria convicção sobre os factos, não significa que não possa conferir um especial valor probatório a uma avaliação feita por quem tem conhecimentos ou competências específicas para o efeito, sobretudo se a mesma se apresenta como verosímil e não descabida à luz da normalidade e das regras da experiência.

Para a avaliação desta matéria apresenta-se também como relevante o documento junto aos autos, igualmente invocado pela Recorrente, que constitui o despacho de arquivamento do Ministério Público no âmbito do inquérito criminal que correu termos com respeito à ocorrência deste fogo, junto pela A. e cuja cópia se encontra a fls. 66 vs.º ss. que concluiu que foi ateado um fogo no interior do apartamento e que os elementos de prova indiciária recolhida não permitiram atribuir a CC a autoria do ilícito.

Se é verdade que as testemunhas ouvidas no âmbito de tal inquérito não foram arroladas como testemunhas nestes autos, também é verdade que daquele despacho proferido pelo magistrado do Ministério Público consta o resultado de cada um dos depoimentos ali prestados, em transcrição que pode ter-se como minimamente fidedigna do que foi por elas dito, designadamente que a funcionária do posto da BP próximo DD pouco tempo antes da deflagração do incêndio vendeu dois litros de gasolina a um indivíduo e que a testemunha EE, residente no prédio, ouviu uma discussão e alguém a dizer “vais ficar sem nada, vou incendiar-te a casa.”

O tribunal não está impedido de formular um juízo próprio sobre os elementos probatórios a que o Ministério Público alude e descreve no seu despacho de arquivamento, fazendo naturalmente a sua apreciação crítica, a tal não obstando a circunstância das testemunhas ali referidas não terem sido ouvidas nestes autos. O tribunal não pode simplesmente passar por cima daquela recolha de elementos probatórios enunciados fazendo de conta que os mesmos não existem.

No caso em presença nenhum dos elementos de prova mencionados representa uma prova directa do facto impugnado, já que as testemunhas ouvidas em audiência não presenciaram a sua ocorrência, não podendo afirmar que acto em concreto e praticado por quem é que esteve na origem do incêndio em questão. Os mesmos porém elucidam-nos sobre outros factos secundários, que conjugadamente e à luz da normalidade e das regras da experiência indiciam com toda a probabilidade que o fogo teve na sua origem um acto humano intencional.

As presunções são admitidas pelo art. 349.º do C.Civil enquanto meio de que o tribunal pode socorrer-se, representando ilações que a lei o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo as presunções judiciais admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal, conforme previsto no art. 351.º do C.Civil e assumem particular importância precisamente quando não existe prova directa dos factos principais, mas apenas de outros factos que os podem indiciar ou revelar a sua existência com toda a probabilidade à luz das regras da experiência.

Constata-se, conforme o tribunal também teve como provado, que o incêndio teve início junto à janela de um dos quartos, em local onde inexiste uma fonte de calor, no compartimento da casa que evidenciou uma maior destruição. Mais se pode retirar da vistoria que foi feita pelos técnicos ao andar onde o incêndio deflagrou, que o mesmo não teve lugar devido a um curto-circuito numa tomada eléctrica, na medida em que foi feita uma avaliação de toda a instalação eléctrica, com análise das tomadas e do quadro eléctrico, e aquelas não evidenciaram a existência de curto-circuito, não foi identificado qualquer aparelho eléctrico conectado às tomadas e os disjuntores das tomadas eléctricas não disparam como aconteceria se o incêndio tivesse tido lugar numa das tomadas. 

Também foi constatado que o soalho de madeira foi completamente consumido junto à janela, diminuindo os danos no soalho quanto mais afastado daquela.

Eliminando como origem do incêndio as tomadas eléctricas ou algum electrodoméstico que não existia ligado no quarto onde o mesmo deflagrou, temos de concluir que não temos qualquer elemento ali existente a que atribuir a ignição do incêndio, o que só nos pode levar à conclusão lógica que o mesmo terá tido origem num acto humano, uma vez que para a sua deflagração é necessário que exista uma fonte de energia.

Não se nos oferece assim dúvidas, em face dos elementos probatórios analisados, considerar que o incêndio teve origem num acto humano.

Questão diferente é no entanto a de saber se temos elementos que nos permitam qualificar o acto humano que esteve na origem do incêndio como intencional, tal como pretende a Recorrente, já que a alternativa de poder ter-se tratado de um acidente com intervenção humana também tem que ser ponderada.

Como elementos factuais que nos ajudem em tal questão temos os vidros da janela que foram encontrados partidos no chão, que leva a que no relatório mencionado se refira que se tratou de uma situação intencional, provavelmente efectuada a partir do exterior, envolvendo a quebra do vidro da janela. É verdade, como se refere na motivação da sentença, que este aspecto só por si, nada nos diz sobre a situação, já que os vidros partidos no chão podem ter resultado do derretimento da caixilharia da janela e dos vidros, situação que o relatório apresentado também não afasta.

Contudo, todos estes elementos mencionados e ainda conciliados com o depoimento prestado pelas testemunhas ouvidas em sede de inquérito crime, aliados à ausência de qualquer facto revelador de que possa ter-se tratado de um acto humano acidental, levam-nos a concluir que, com toda a probabilidade o fogo foi intencionalmente praticado por desconhecido, em grau que nos permite ter o mesmo como provado.

Considera-se por isso que, o teor do relatório constante dos autos elaborado na sequência de vistoria ao imóvel por técnicos que avaliaram as condições do mesmo após o incêndio com vista a determinar os termos em que o mesmo ocorreu, com os esclarecimentos por ele prestados em audiência, conjugado com o que resulta do inquérito crime desenvolvido pelo Ministério Público expresso no despacho de arquivamento proferido e cuja cópia é junta aos autos, permitem-nos dizer que o fogo foi intencionalmente provocado por desconhecido, assim se impondo a alteração deste facto não provado, nos termos pretendidos.”

Ora (no que respeita à circunscrição da revista quando aprecia e intervém na decisão da matéria de facto ainda enquanto erro de direito):

O Tribunal não se moveu nos terrenos de prova legalmente vinculada nem de prova com força legalmente vinculativa. Só nesses termos poderia o STJ, em revista e nos termos restritos do art. 674º, 3 (em conjugação com o art. 682º, 2), do CPC, apreciar o «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa». Na legitimidade de reapreciação inclui-se ainda, como se fez jurisprudência generalizada do STJ, o controlo da observância dos pressupostos do uso de presunções judiciais (arts. 349º, 351º, CCiv.), a saber, a violação de norma legal, a ilogicidade ou a fundamentação em factos não provados.

O acórdão recorrido lançou (também) mão do expediente da presunção judicial para firmar que o sinistro se deveu a acto humano e intencional. Não se vislumbra vício nesse recurso mas, seja como for, o Recorrente não se insurge específica e fundamentadamente quanto a essa parcela da motivação que baseia o acréscimo do facto provado 16. – retirada, portanto, do objecto recursivo (art. 635º, 4, CPC) e, assim, insindicável em concreto. Na verdade, ainda que o Recorrente se refira a “conclusões extrapoladas sem cabimento lógico que o Tribunal "a quo" retirou do contexto factual” e a inaceitáveis “ilações ilógicas”, tal é empreendido sempre e exclusivamente na relação com a apreciação da prova pericial (v. as Conclusões A) e B)) e sem equacionar vícios imputáveis ao uso das presunções judiciais como instrumento para o juízo probatório da Relação que se pretende ver escrutinado. O que, por si só, impede qualquer controlo, ainda que restrito, por parte do STJ como tribunal de revista, do uso de tais presunções para a alteração da matéria de facto provada.
Antes, especificamente, o Recorrente ataca o acórdão recorrido:
— por violar “o princípio da inadmissibilidade de livre arbítrio na apreciação da prova pericial, que constitui o espírito axiológico-normativo contido na regra da prova livre no domínio pericial plasmada no art. 389° do Código Civil, desvinculando-se do juízo de bom senso que deve prevalecer neste contexto”;
— por dar “relevância essencial” aos depoimentos dos peritos-testemunhas” dado que detinham “inegável interesse no desfecho do processo”;
— por não concordar que o despacho proferido pelo Ministério Público da
Comarca de Matosinhos pudesse servir para
“sustentar a tese do fogo posto, pois, além de a prova recolhida em sede de inquérito ser apenas indiciária, também é certo que está assente que não se vislumbra relação sequencial comprovada entre acompra de gasolina pelo suspeito, com as subsequentes ameaças de incêndio, e o sinistro ocorrido”.

O Recorrente imputa erros na apreciação crítica de provas produzidas e valoradas em regime de prova livre – em esp., os arts. 371º, 1, 2ª parte, 389º (especialmente invocado pelo Recorrente) e 396º, do CCiv. –, fundada no âmbito e na esfera de intervenção e dos poderes de cognição do erro de facto proporcionados amplamente pelo art. 662º, 1 («A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»), 2 e 3, do CPC. A discordância do recorrente radica, essencialmente, no modo como foi valorada e decidida a modificação da matéria de facto, convertendo a alínea a) dos “factos provados” no ponto 16. dos “factos provados”. Todavia, estando em causa prova não vinculada ou “não tabelada” nem se sustentando a ofensa de disposição legal que fixe a força probatória de meio de prova, e não incidindo tal discordância em vício que afecte as presunções judiciais ex vi art. 351º do CCiv., está vedado ao tribunal de revista a sindicação do acórdão recorrido quanto ao modo como a 2.ª instância julgou a impugnação da matéria de facto e, portanto, firmou o seu juízo probatório quanto aos factos provados e não provados na apreciação de provas não tabeladas – assim dispõe, por último, o art. 662º, 4 («Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»), do CPC[1].

Conclui-se, pelo exposto, que não é admissível a apreciação da questão concentrada nas Conclusões recursórias A) a E), tal como delimitadas, que assim improcedem.

3.2. Da responsabilidade da seguradora Ré

3.2.1. Dos factos provados surge como relevante que:

— a Autora, Município de Matosinhos, celebrou, no âmbito das suas atribuições de gestão do património municipal, um contrato de seguro para edifícios constituídos em propriedade horizontal, titulado pela apólice PA 16PR0002, que abrangia o imóvel sinistrado (facto 2.);

— o risco coberto pelo seguro, de acordo com a cláusula 7.ª das respectivas “condições particulares”, era o de “incêncio, acção mecânica de queda de raio e explosão, ficando ainda cobertos os danos causados no bem seguro em consequência dos meios empregues para combater o incêndio e as remoções ou destruições executados por autoridade competente ou praticados para fim de salvamento” (facto 11.);

— nas respectivas “condições gerais”, o artigo 4.º, no âmbito das coberturas do seguro, define “Incêncio” no ponto 1., como garantindo “os danos causados aos objectos seguros em consequência de incêndio, ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente do incêndio, ação mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás referidos. Para efeitos deste risco entende-se por incêndio a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma normal fonte de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios” (facto 13.);

— nessas mesmas “condições gerais”, o art. 5.º estabelece que “não fica garantido, em caso algum, mesmo que se se tenha verificado a ocorrência de qualquer risco coberto pela apólice, os prejuízos que derivem, directa ou indirectamente, de: (…) f) actos ou omissões dolosas do segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável; e ainda que o contrato de seguro, excepto quando expressamente se garantam os riscos em causa, não cobre: a) actos de vandalismo, maliciosos ou de sabotagem, mesmo que deles resulte dano eventualmente abrangido pela cobertura de qualquer dos riscos principais (factos 14. e 15., sublinhado nosso).

Neste quadro contratual, o acórdão recorrido concluiu:

“(…) verificando-se que o imóvel seguro foi danificado na sequência de um acto de vandalismo de um desconhecido que teve a intenção de provocar um fogo numa das fracções, tal ocorrência encontra-se excluída da garantia da apólice contratada pela R., não estando a mesma obrigada ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pela A. em razão de tal acto (…)”.

Como motivou o facto de o incêndio verificado, enquanto acto intencional, estar excluído do âmbito de cobertura da apólice de seguro?

Fundamentando assim:

“O regime jurídico do contrato seguro está agora previsto no Decreto-Lei 72/2008 de 16 de Abril designado por Lei do Contrato de Seguro, que apresenta uma primeira parte de regulamentação comum aos vários contratos de seguro, regendo depois sobre alguns tipos de contratos de seguro em especial.

No âmbito dos seguros de danos vem especificamente previsto o seguro de incêndio, a que são destinados os arts. 149.º a 151.º do diploma referido, sendo o art. 149.º que nos dá a noção de seguro de incêndio, ao estabelecer: “O seguro de incêndio tem por objecto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio no bem identificado no contrato.

Já o art. 150.º deste diploma[,] reportando-se à cobertura do risco, prevê no seu n.º 1 que a cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por acção do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.

No âmbito da regulação comum e com respeito do conteúdo do contrato de seguro, dispõe o art. 45.º n.º 1 do mesmo diploma, no sentido de que as condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado, aí se referindo: “As condições especiais ou particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos nos termos das condições gerais ou especiais a que se aplicam, tendo em conta a classificação de riscos por ramos de seguros e operações legalmente estabelecidas.”

Com a limitação prevista nesta norma, a determinação do conteúdo do contrato de seguro depende em larga medida do acordo das partes, vigorando o princípio geral da liberdade contratual, expressamente contemplada no art. 11.º daquele diploma. Ao abrigo do princípio geral da liberdade contratual, o contrato de seguro rege-se em primeiro lugar pelas condições da apólice contratada e subsidiariamente pelas normas legais regulamentadoras de tal espécie contratual.

Surgindo dúvidas de interpretação do sentido das cláusulas acordadas, há que recorrer às regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos previstas nos art.º 236.º ss. do C.Civil, não podendo deixar de se considerar as especificidades que ocorrem na celebração dos contratos de seguro, sendo que para tal regime interpretativo geral remetem também os arts. 10.º e 11.º do Decreto Lei 466/85 de 25 de Outubro, a considerar na medida em que muitas das cláusulas que integram o contrato de seguro são cláusulas contratuais gerais sujeitas ao estabelecido neste diploma.

Tal como nos diz o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/2013 (…): “A interpretação, como é consensual, remete para a fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes do contrato, tarefa sujeita a regras particulares e critérios de exegese, dirigidos ao juiz e às partes contraentes.”

Diz-nos o art. 236.º n.º 1 do C.Civil, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder, razoavelmente, contar com ela. Acrescenta o n.º 2 que sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. De acordo com o disposto no art. 238.º n.º 1 do C.Civil, norma que se reporta aos negócios formais, não pode, nos negócios formais, valer a declaração com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência verbal no texto do mesmo. Vd. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/03/2012 (…).

O contrato de seguro é um negócio jurídico formal, uma vez que a sua validade está dependente da sua redução a escrito, corporizada na apólice de seguro. Sendo um negócio formal, há-de reger-se, em primeira linha, pelas condições que constam do próprio documento escrito que o formaliza.

No contrato de seguro em presença é o art. 4º das condições gerais que contempla a noção de incêndio para efeitos de cobertura dos riscos da apólice, estabelecendo no seu n.º 1 “Incêndio – garante os danos causados aos objectos seguros em consequência de incêndio, ou meios empregues para o combater, calor, fumo ou vapor resultantes imediatamente do incêndio, acção mecânica de queda de raio, explosão e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão de qualquer dos factos atrás referidos. Para efeitos deste risco entende-se por incêndio a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma normal fonte de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios.”

Nesta cláusula prevê-se que o risco de incêndio coberto pelo contrato se reporta ao sinistro causado por acidente “combustão acidental”, ideia que é reforçada no art. 5.º das condições gerais do contrato de seguro que na sua al. f) vem excluir da garantia os prejuízos que derivem, directa ou indirectamente, de “actos ou omissões dolosas do segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável.” Esta previsão vai também em parte ao encontro do princípio estabelecido no art. 46.º da Lei do Seguro que, referindo-se a actos dolosos dá ao segurador a possibilidade de não efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado por tomador do seguro ou do segurado, prevendo expressamente no seu n.º 2 que o beneficiário que tenha causado dolosamente o dano não tem direito à prestação.

Desta forma o legislador veio afastar a responsabilidade da seguradora pela reparação dos danos quando o incêndio é provocado por uma actuação dolosa do tomador do seguro ou do beneficiário.

Já o incêndio que tenha sido causado por um comportamento negligente do segurado ou de pessoa por ele responsável, não desobriga a seguradora, nos termos expressamente previstos no art.º 149.º n.º 1 da Lei do Seguro, optando o legislador por consagrar especificamente esta protecção nos seguros de incêndio, na ponderação de que em muitos casos a ocorrência de um incêndio tem a sua origem em comportamentos descuidados ou imprudentes, não se tornando por isso excessivo manter a responsabilidade da seguradora nesses casos.

A dúvida pode colocar-se quando está em causa um comportamento doloso ou intencional, não do tomador do seguro nem do beneficiário da apólice, mas antes de terceiro, como aconteceu na situação dos autos, em face dos factos que resultaram apurados.

Os factos provados demonstram que o sinistro do incêndio em questão não resultou de uma qualquer causa acidental, mas antes de um acto intencionalmente provocado por desconhecido, não se tratando porém de um acto doloso do tomador e beneficiário do seguro, nem tão pouco de pessoa por quem ele fosse responsável.

Esta questão tem vindo a ser discutida quer na doutrina, quer na jurisprudência, já no âmbito da regulamentação do contrato de seguro anteriormente estabelecida no Código Comercial, tendo-se defendido uma orientação no sentido de que só não se encontra a coberto da garantia do seguro os casos em que o incêndio é dolosamente causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável, não ficando a seguradora desobrigada nos casos em que tal resulte de acto doloso de terceiro.

Neste sentido pronunciou-se Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104, pág. 239: “Quando a lei obriga o segurador a indemnizar os danos devidos a caso fortuito ou de força maior, o que quer é excluir a responsabilidade do segurador pelos danos devidos a culpa do segurado ou de pessoa por quem esta responda; portanto, se o sinistro foi causado por terceiro, subsiste a responsabilidade do segurador, visto que em tal caso, os danos não resultam de acto do segurado, nem de pessoa por quem ele responda. (…) Parece até concluir-se desta disposição que só o incêndio criminoso produzido por facto do segurado ou de pessoa por que seja civilmente responsável exclui a obrigação do segurador.

No mesmo sentido e a título de exemplo, vd. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 02/03/2009 e de 25/06/2013 no proc. 7505/11.6TBVNG. P1 (…)[,] referindo-se neste último: “E, da conjugação de tais normas com o disposto no art. 439º do Código Comercial, que põe a cargo do segurador todas as perdas e danos que sofra o objeto segurado devidos a caso fortuito ou de força maior de que tiver assumido os riscos, têm a doutrina e a jurisprudência retirado que a seguradora deve indemnizar os sinistros causados pelos terceiros pelos quais o segurado não é civilmente responsável, porque relativamente ao segurado, tal sinistro constituiu um facto fortuito, imprevisto ou inevitável.

Contudo, no que respeita ao contrato em presença, não podemos ter em conta apenas a noção de incêndio que consta do próprio contrato, e um entendimento que pode considerar-se mais amplo sobre a noção de ocorrência acidental, temos ainda de levar em consideração o teor da cláusula 5.ª das condições gerais da apólice que vem expressamente excluir determinadas situações do âmbito da garantia contratada, prevendo no seu n.º 5 que o contrato de seguro não cobre actos de vandalismo, maliciosos ou de sabotagem, mesmo que deles resulte dano eventualmente abrangido pela cobertura de qualquer dos riscos principais, a menos que as partes expressamente o convencionem.

Tendo em conta que estamos perante um contrato de seguro cujo conteúdo está sujeito à livre vontade das partes no que respeita à determinação do seu conteúdo, designadamente dos riscos seguros, recorrendo ao sentido que àquela cláusula pode ser dado por um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário, como refere o art. 236.º n.º 1 do C.Civil e socorrendo-nos das regras de interpretação e integração dos negócios jurídicos que constam dos art.º 236.º a 238.º do C.Civil, no sentido de melhor avaliar os danos que a cláusula de exclusão acordada retira do âmbito do contrato celebrado entre as partes e corporizado no documento junto aos autos, não podemos deixar de concluir que as partes afastaram a cobertura dos actos de vandalismo como o que representa o atear intencional de um fogo, cujo risco podiam ter optado expressamente por segurar, antes se limitando no contrato em causa a segurar os danos resultantes de um incêndio acidental ou negligente.

Socorrendo-nos do que um declaratário normal pode apreender e entender do conteúdo daquela cláusula de exclusão e do seu sentido, não podemos deixar de considerar que a mesma integra um comportamento intencional de atear fogo a um imóvel de habitação por tal configurar um acto de vandalismo, identificado no seu sentido comum enquanto comportamento intencional dirigido à destruição gratuita ou não justificada de um bem.

No sentido de qualificar como acto de vandalismo um comportamento de terceiro exterior ao contrato de atear fogo intencionalmente a um bem sem justificação, para efeitos de exclusão do âmbito de cobertura de um contrato de seguro de incêndio, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/06/2013 já citado, bem como o mais recente de 13/06/2018 no proc. 952/16.9T8PVZ-A.P1 (…)”.

Esta fundamentação merece, em parte, aprovação, tanto na análise do DL 72/2008, de 16 de Abril (regime jurídico do contrato de seguro: RJCS) – em particular, os arts. 149º («O seguro de incêndio tem por objecto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio no bem identificado no contrato.»), 150º (em esp., o seu n.º 1: «A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por ação do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.») e 151º –, seja na aplicação dos critérios legais de interpretação (arts. 236º, 1, 238º, CCiv.), para aferir do conceito de “vandalismo” e nele integrar, para efeitos de exclusão da responsabilidade, um incêndio intencionalmente ateado por terceiro visando a destruição do bem garantido pelo seguro.
Na verdade, procurando decifrar o sentido das coberturas excluídas, não merece censura que se considere, atendendo aos elementos atendíveis pertinentes para um seguro com este objecto, que um declaratário normal, entendido em abstracto como uma pessoa medianamente diligente, razoável, esclarecida e experiente, colocado na posição do declaratário real segurado, não pudesse contar, em face dos riscos concretos que pretendia acautelar e ao prémio disposto a pagar, que os riscos decorrentes de incêndio e cobertos não incluíssem os factos causados por actos de “vandalismo” e, nestes, se incluíssem os comportamentos intencionais de terceiros tendo em vista a destruição do bem garantido. Desde logo, na medida em que (e sempre em que) concorre a vontade humana para tais actos, estando deles alheios factores de inevitabilidade ou de externalidade ou de imprevisibilidade.
Por outro lado, as definições para a cláusula de exclusão não revelam qualquer ambiguidade, configurando-se o sentido interpretativo numa linha de correspondência verbal com o texto da apólice/forma do seguro – nos termos exigidos pelo art. 238º, 1, do CCiv. (em conjugação com o art. 32º, 1 e 2, do RJCS).
Por fim, acrescente-se que tal interpretação, tratando-se de operação relativa a formulação inscrita em cláusula geral do contrato de seguro, submetida ao regime do DL 446/85, de 25 de Outubro (regime dos contratos de adesão)[2], não briga com tal disciplina. Em particular, poderia estar em discussão o confronto com a proibição absoluta do art. 18º, 1, b) (e sua consequência: art. 12º, nulidade), relativamente às cláusulas contratuais gerais que «excluam ou limitem, de modo directo ou indirecto, a responsabilidade por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros».
Referindo-se o preceito às estipulações, que sendo exoneratórias e limitativas da responsabilidade, têm directa projecção na obrigação de indemnização, há, contudo, que, na “delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais nas apólices dos contratos de seguro”, “destrinçar as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do citado artigo 18.º, das que visam a delimitação do objecto de contrato, porquanto estas configuram-se plenamente válidas. Nessa distinção importa antes de mais atender ao objecto do seguro e aos riscos cobertos na apólice. E, assim, apenas serão tidas como absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize (ou esvazie) o objecto do contrato” – como exemplarmente referiu o Ac. do STJ de 24/1/2018[3]. Por outras palavras, são censuradas as cláusulas que excluam a cobertura do seguro se o conteúdo for contrário à natureza da obrigação legal do seguro (v. art. 1º do RJCS), sob pena de incumprimento do dever de cobrir os riscos abrangidos pelo contrato uma vez frustrados o interesse do segurado e a teleologia do contrato de seguro[4].
Ora, na situação sub judice, é de entender que a referida cláusula exoneratória, interpretada como fez o acórdão recorrido, introduz uma limitação de responsabilidade, é verdade, mas essa não esvazia nem compromete a garantia de protecção do risco que ao contrato cabia assegurar, uma vez que restringe de forma racional e equilibrada assim como residual a obtenção do objectivo visado com a celebração do seguro mas sem, com isso, retirar de todo a utilidade e a finalidade com que as partes o convencionaram. Assim, não se encontra razão para lhe ser aplicado o art. 18º, b), nem sequer, já agora, o art. 15º-16º (relativos à boa fé negocial), do DL 446/85.

3.2.2. Não obstante e sem prejuízo, cremos que, a montante da exclusão, poderemos chegar à mesma (e antecipada) conclusão de inexistência de responsabilidade da seguradora pela análise prodrómica do conceito de “incêndio” abrigado pelo artigo 4.º das “condições gerais”, no âmbito das coberturas do seguro: “combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma normal fonte de fogo, ainda que nesta possa ter origem e que se pode propagar pelos seus próprios meios” (v. novamente facto 13.).

Nesta parte, afastamo-nos do acórdão recorrido, que sufragou a “orientação no sentido de que só não se encontra a coberto da garantia do seguro os casos em que o incêndio é dolosamente causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável, não ficando a seguradora desobrigada nos casos em que tal resulte de acto doloso de terceiro”. De facto, ao invés, sendo o sinistro causado por actuação dolosa de terceiro (facto 16.), conclui-se desde logo que o incêndio não se gerou em causas acidentais, o que nos afasta expressamente do conceito de incêndio abrangido pela garantia decorrente do contrato de seguro, independentente da exclusão a jusante da integração de tal actuação dolosa no conceito de “vandalismo”.

Como acentuou recentemente o Ac. do STJ de 5/5/2020[5], “face ao carácter ‘acidental’ atribuído ao risco seguro, isto é, como ocorrência causada por uma circunstância imprevista”, tal natureza “afasta totalmente a possibilidade de se aventar que esse risco pudesse, e possa, ocorrer por um facto voluntário, quer próprio quer de terceiro estranho ao contrato”. Ora, conjugadamente, convocando por um lado os arts. 149º e 150º, 1, do RJCS e, por outro, aplicando a doutrina exegética da impressão do destinatário à noção contratual de “incêncio”, é de sustentar que o tipo contratual de seguro de incêndio não cobre o risco decorrente dos sinistros com origem dolosa, que se encontram excluídos logo por esta via do âmbito da cobertura tipicamente prevista para o seguro de incêndio.


Logo, em ambos as perspectivas analisadas, não pode deixar de se concluir que os danos causados pelo incêndio intencional e imputável a terceiro, cujo comportamento é alheio à pessoa do tomador do seguro e/ou do seu beneficiário, não estavam cobertos pelo contrato de seguro a que se refere a apólice PA 16PR0002.
Improcede, pois, a Conclusão F) avançada pela Recorrente.


III. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
*
Custas pela Recorrente.


STJ/Lisboa, 16 de Junho de 2020

Ricardo Costa – Relator

Maria da Assunção Raimundo

Ana Paula Boularot


SUMÁRIO (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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[1] V., por todos, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 662º, págs. 286 e ss, 312 sub art. 674º, págs. 406 e ss, sub art. 682º, págs. 431-432, 433-434, com jurisprudência de suporte; FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 594-595.

[2] Na medida em que integra cláusulas contratuais gerais elaboradas prévia e unilateralmente (sem negociação individual) pelos seguradores e que os tomadores dos seguros se limitam a aderir ou rejeitar em bloco a esse conjunto de cláusulas padronizadas, aplica-se-lhe o regime do DL 446/85 (v. art. 3º do RJCS).
[3] Processo n.º 534/15.2T8VCT.G1.S1, Rel. GRAÇA AMARAL, sublinhado nosso.
[4] V. Ac. do STJ de 27/2/2020, processo n.º 125/13.2TVPRT.P1.S2, Rel. RICARDO COSTA, inédito.

[5] Processo n.º 7222/15.8T8VIS.C1.S1, Rel. ANA PAULA BOULAROT, inédito.