Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3155/23.2T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SESSÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: CONCORRÊNCIA DESLEAL
CONFUSÃO
CLIENTELA
IDENTIDADE
COMPETÊNCIA
PROPRIEDADE INDUSTRIAL
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
PRESSUPOSTOS
MODIFICAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FACTOS CONCLUSIVOS
ILAÇÕES
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRAORDENAÇÃO
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (PROPRIEDADE INTELECTUAL)
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - Só pode haver concorrência desleal entre agentes económicos que disputam o mesmo tipo de clientela;

II - Terá assim que haver, em maior ou menor grau, a possibilidade de desvio de clientela da vítima para o agressor, sem a qual não há uma relação de concorrência;

III - Não há concorrência entre um agente económico sediado em França que produz e comercializa o artigo de confeitaria conhecido por “macarons” e a empresa portuguesa que comercializa o doce conhecido por “ovos moles de Aveiro.”

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Pâtisserie E. Ladurée com sede em Rua 1, ... Paris, França, inscrita no Registo Comercial e Comercial FR..., intentou ação declarativa comum contra Aires & Pires, Lda.”, com sede naRua 2 n.º..., Aveiro, na qual peticionou que a ré seja condenada a:

i. alterar e abster-se de utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido nas caixas de embalagem dos seus produtos de confeitaria;

ii. alterar e abster-se de voltar a usar o tom de verde-pálido, rosa-pálido e azul-pálido usado pela autora na pintura do mobiliário de loja;

iii. alterar e abster-se de voltar a utilizar a inicial “P” num círculo nos seus balcões, em cópia do “L” num círculo dos balcões da autora, tal como consta da página principal do website da Ré;

iv. promover as alterações requeridas na presente ação em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à autora como fonte que serviu de referência na remodelação, pelo grupo “O Valor do Tempo” que detém a ré.

v. proceder às alterações necessárias nas suas lojas para cumprimento do peticionados nos pontos i., ii. iii. e iv., no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como, nos termos do artigo 829.º-A do CC, ser condenada em sanção pecuniária compulsória de 100,00 € (cem euros) por cada dia de atraso no respetivo cumprimento.

Mais requereu que fosse oficiosamente extraída certidão dos presentes autos para instauração do processo de contraordenação pela prática suprarreferida, que consubstancia contraordenação muito grave, nos termos do artigo 18.º do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, por remissão do artigo 330.º do Código da Propriedade Industrial.

Para o efeito, alegou, em síntese, que:

- se dedica à produção de confeção de pastelaria, da qual se destacam os “macarons” e que se trata de uma marca de projeção internacional, presente em muitos países e reconhecida, designadamente, pelos consumidores;

- é igualmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas que a demarcam da concorrência e que são uma alusão à decoração interna dos palácios franceses do tempo do Rei Luís XIV;

- a ré é a sociedade proprietária e gestora da denominada “Confeitaria Peixinho”, uma confeitaria antiga situada em Aveiro, conhecida pela venda de doçaria, destacando-se os seus ovos-moles e que foi objeto de uma profunda e total renovação, tendo reaberto ao público a 8-08-2018;

- a renovação do interior da loja da ré em Aveiro apresenta uma inequívoca semelhança com o padrão por si utilizado, desde a utilização das cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido, azul-pálido, à disposição das caixas, à utilização da primeira letra do nome, neste caso “P” nos balcões, a própria cor do balcão, exatamente da mesma forma e disposição encontrada nos seus balcões;

- a ré abriu uma loja no Aeroporto de Lisboa, onde se torna mais patente a cópia dos seus estabelecimentos e que é vista por milhares e milhares de turistas estrangeiros que passam por este aeroporto;

- solicitou à ré que cessasse a utilização da cor verde no mobiliário de loja, na montra e no logótipo e a alteração das cores utilizadas nas caixas, contudo, esta não atendeu ao seu pedido;

- várias notícias, websites e comentários fazem alusão à cópia de toda a estética das suas confeitarias;

- a utilização, inequivocamente propositada, dos layouts, de cores com códigos iguais às cores por si utilizadas, do conceito das caixas e da disposição interna e externa dos produtos em loja, a imitação do logótipo nos balcões, constitui conduta suscetível de criar confusão com a sua empresa, o seu estabelecimento e os seus produtos;

- apesar da sua loja de Lisboa ter sido fechada, tem intenção de voltar a ter um ou mais estabelecimentos em Portugal;

A ré deduziu contestação, excepcionando a incompetência absoluta do Tribunal, por entender que a mesma pertence ao tribunal da propriedade industrial e por impugnação, invocando, em suma, que não se verificam os pressupostos da concorrência desleal, por não haver possibilidade de os consumidores dos produtos da Autora confundirem os produtos desta com os comercializados pela Autora.

No despacho saneador julgou-se improcedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal invocada pela ré, fixou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

A Autora interpôs recurso da sentença e com sucesso, pois que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto revogou a sentença e, em sua substituição, proferiu a seguinte decisão condenatória da Ré:

I - alterar e abster-se de utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul-pálido nas caixas de embalagem dos seus produtos de confeitaria;

II. - alterar e abster-se de voltar a usar o tom de verde-pálido, rosa-pálido e azul-pálido usado pela autora na pintura do mobiliário de loja;

III. - alterar e abster-se de voltar a utilizar a inicial “P” num círculo nos seus balcões, em cópia do “L” num círculo dos balcões da autora, tal como consta da página principal do website da Ré;

IV. - promover as alterações requeridas em todo o marketing, websites, vestuário, publicidade e futuras referências à autora como fonte que serviu de referência na remodelação.

V. - proceder às alterações necessárias nas suas lojas para cumprimento do peticionados nos pontos atrás referidos, no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença;

VI. - condenar a R. apelada, nos termos do artigo 829.º-A do CC, a liquidar a quantia de 100,00 € (cem euros) por cada dia de atraso no cumprimento dos segmentos condenatórios atrás referidos sob os pontos I-V, sanção esta a operar com início no termo do 90ª dia após o trânsito em julgado da decisão.

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É a vez da Ré interpor recurso de revista, cuja alegação remata com as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão recorrido, ao acrescentar a alínea 8A) ao elenco dos factos dados como assentes nos autos, violou as regras de processo, nomeadamente dodispostonos artigos 5º, 607º, n.ºs 3 e 4) e 662º do CPC, porquanto aditou um juízo conclusivo e não um verdeiro facto.

2. Ainda que assim não se entendesse, a alínea 8A. estaria em contradição evidente com as alíneas 21. e 22. do elenco dos factos dados como assentes nos autos.

3. Nestes termos, deverá ser anulado o aditamento da alínea 8A. ao elenco de factos dados como assentes, porquanto não constitui um facto, mas sim um juízo conclusivo, e também porque está em manifesta contradição com as alíneas 21. e 22. da lista de factos assentes (art. 682º, nº3, segunda parte do CPC).

4. Adicionalmente, verifica-se ainda que o douto acórdão recorrido não atendeu devidamente aos factos, tendo efectuado uma incorrecta interpretação e aplicação das normas jurídicas que disciplinam a “concorrência desleal”, nomeadamente do disposto no artigo 311º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código da Propriedade Industrial.

5. A “Concorrência desleal” tem como pressuposto, entre outros, a existência de actos de concorrência.

6. Não presente caso não há concorrência entre a Recorrente e a Recorrida.

7. A Recorrente e a Recorrida actuam em mercados diferentes.

8. Tal como resulta da alínea 2. da matéria de facto, « A autora (ora recorrida) está presente, através dos seus pontos de venda, no Canadá, Estados Unidos da América, Irlanda, Inglaterra, França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Egito, Azerbaijão, Qatar, Mónaco, China, Omã, Kuwait, Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos».

9. Por seu lado, a Recorrida explora «a “Confeitaria Peixinho”, situada em Aveiro», tendo ainda «uma loja no aeroporto de Lisboa» (cfr. alíneas 6 e 10. da matéria de facto).

10. A Recorrida «não tem atividade em nenhum dos países referidos em 2)» (países aonde a Recorrida está presente) e só tem os estabelecimentos mencionados em 6) e 10)» (Aveiro e aeroporto de Lisboa» (cfr. alínea 20. da matéria de facto).

11. Não é possível firmar a existência de concorrência sem atender ao aspecto geográfico ou territorial em que actuam os agentes económicos em causa.

12. Não sendo pelo facto de a Recorrente e Recorrida venderem produtos que, na opinião do tribunal, são idênticos ou similares que elas são concorrentes.

13. Era necessário que estivessem presentes nos mesmos mercados, que disputassem a mesma clientela, que os consumidores tivessem a possibilidade de adquirir os produtos de uma em detrimento dos produtos da outra.

14. Ou seja, na determinação da relação de concorrência há que atender necessariamente à natureza e características dos produtos, mas também à localização territorial dos estabelecimentos.

15. Devendo considerar-se, por isso, que não há concorrência entre a Recorrente e a Recorrida.

16. Inexistindo actos de concorrência entre as partes, não é possível haver concorrência desleal.

17. Para além disso, e ainda que a Recorrente e a Recorrida fossem concorrentes, teria que considerar-se, atendendo ao elenco dos factos dados como assentes nos autos, que não há nenhum comportamento desleal da Recorrente em relação à Recorrida.

18. As características dos estabelecimentos, produtos e embalagens, apreciadas na globalidade, não revelam a existência de deslealdade da Recorrente, seja sob a forma de actos de confusão ou de aproveitamento.

19. Apreciadas, as características dos estabelecimentos e das embalagens dos produtos da Recorrente e Recorrida, o que ressaltam são as diferenças, não existindo risco de confusão ou de associação.

Contra alegou a Recorrida, com as seguintes conclusões:

1. A Recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça contra o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, alegando erro na apreciação da matéria de facto e incorreta aplicação das normas jurídicas relativas à concorrência desleal, violando o disposto no Artigo 662.º do CPC.

2. Tais Alegações não merecem acolhimento, porquanto o Acórdão recorrido se encontra devidamente fundamentado e respeita os limites legais da reapreciação da matéria de facto.

3. O Tribunal da Relação do Porto analisou de forma rigorosa e criteriosa os elementos de prova constantes dos autos, tendo feito uma correta aplicação do Direito aos factos apurados.

4. O Tribunal da Relação do Porto decidiu, e bem, aditar à matéria de facto provada o facto 8.A), nos termos do disposto no Artigo 662.º nº 1 do CPC, o que foi impugnado pela Recorrente.

5. A Recorrente, porém, não tem razão, uma vez que não se verifica qualquer

violação ao disposto no Artigo 662.º do CPC.

6. Aliás, foi a própria Recorrente quem, anteriormente, peticionou a ampliação da

matéria de facto, revelando incoerência na posição ora assumida.

7. O facto 8.A) foi, na realidade, indevidamente considerado como não provado

pelo Tribunal de 1.ª instância, pelo que a Recorrida interpôs Recurso da decisão, tendo o Tribunal da Relação do Porto procedido, corretamente, à respetiva alteração.

8. A modificação da matéria de facto encontra fundamento na prova testemunhal,

na prova documental junta aos autos e nos factos assentes, nomeadamente os factos 3), 7), 8), 11), 12), 13), 14) e 15).

9. Ao abrigo do disposto no Artigo 662.º nº 1 do CPC, a Relação tem o dever de alterar a decisão da 1.ª instância quanto à matéria de facto, sempre que os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa, como ocorreu no caso em apreço.

10. Assim, a decisão do Tribunal da Relação do Porto encontra-se devidamente

fundamentada, respeitando os requisitos legais exigidos, pelo que não há qualquer “alargamento indevido” da matéria de facto, como exposto nas presentes Contra-Alegações.

11. Ademais, nos termos dosArtigos662.º nº 4 e 682.º nº2 doCPC, não cabe Recurso

para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão da Relação sobre a matéria de facto, salvo nos casos excecionais previstos no Artigo 674.º nº 3 do CPC.

12. Não se verifica, no presente caso, qualquer “ofensa de uma disposição expressa

de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força dedeterminado meio de prova”, pelo que a decisão da matéria de facto é insuscetível de revista, nos termos do Artigo 682.º nº 2 do CPC.

13. Ou seja, o facto 8.A) não pode ser objeto de recurso de revista.

14. A este propósito, veja-se a passagem no recente Acórdão do Supremo Tribunal

de Justiça, datado de 17 de janeiro de 2023, proferido no âmbito do processo n.º

286/09.5TBSTS.P1.S1, transcrito nas presentes Contra-Alegações.

15. A invocação, pela Recorrente, de uma suposta “presunção judicial” não infirma

a admissibilidade do facto 8.A), uma vez que este é demonstrado por múltiplos meios de prova e é, portanto, um verdadeiro facto provado e não um mero juízo conclusivo infundado (cfr. Artigos 341.º, 349.º, 351.º e 392.º e ss. do CC).

16. De todo o conjunto probatório, resulta clara a intenção, da Recorrente, de copiar a imagem da Recorrida e de aproveitar a sua projeção internacional, conforme confessado pelo próprio presidente do grupo “O Valor do Tempo”.

17. A declaração pública prestada pelo próprio, antes da reabertura da loja, evidencia o propósito de assemelhar a imagem da Confeitaria Peixinho à da Ladurée, reforçando a conclusão adotada pelo Tribunal da Relação do Porto.

18. Mais se acrescenta que não existe qualquer contradição entre o facto 8.A) e os

factos 21), 21.1), 21.2) e 22).

19. Por todo o exposto, deveser rejeitada apretensãoda Recorrente noque respeita à impugnação da matéria de facto, uma vez que oAcórdão do douto Tribunal da Relação do Portorespeita plenamente os limites legais de reapreciação da prova e está conforme à jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça.

20. O Tribunal da Relação do Porto concluiu, corretamente, pela verificação de atos

de concorrência desleal praticados pela Recorrente, nos termos do disposto no Artigo 311.º do CPI.

21. A Recorrente insiste em negar a existência de concorrência desleal, porém sem

apresentar fundamentos válidos ou suscetíveis de abalar a decisão do Tribunal recorrido.

22. Conforme bem evidenciado no Acórdão recorrido, os requisitos essenciais da concorrência desleal são i) a existência de relação de concorrência, ii) a deslealdade, e iii) a culpa, sendo que todos se encontram plenamente verificados in casu.

23. A conduta da Recorrente revela-se apta a criar confusão no mercado, aproveitando-se, de forma parasitária, da imagem e prestígio da Recorrida, o que constitui um ato objetivamente desleal e contrário aos usos honestos do comércio.

24. Relativamente ao primeiro requisito, a existência de uma relação de

concorrência entre a Recorrida e a Recorrente foi devidamente comprovada nos autos, nomeadamente pelos factos 7), 18) e 19) da Sentença, que demonstram que ambas visam essencialmente o mesmo público-alvo, i.e., turistas.

25. O elevado prestígio e notoriedade da marca Ladurée – veja-se a variada

Jurisprudência citada nas presentes Contra-Alegações –, internacionalmente reconhecida e presente em países de onde provêm muitos turistas que visitam Portugal, como França, Reino Unido e Alemanha, agrava o risco de confusão e reforça a concorrência com a Recorrente.

26. A Recorrente imita de forma clara e deliberada o "trade dress" distintivo da Recorrida, com o intuito de se aproveitar indevidamente da sua reputação, prestígio e identidade visual amplamente reconhecida, conforme resulta dos factos provados e da prova testemunhal constante dos autos.

27. Ademais, o argumento da Recorrente de que não existe concorrência por inexistência de um ponto de venda atual da Recorrida em Lisboa é manifestamente infundado, pois a concorrência pode existir independentemente da presença física simultânea, designadamente quando uma marca goza de notoriedade internacional e mantém influência junto do mesmo público-alvo, mas também devido à realidade da globalização e ao crescente fluxo turístico.

28. Conforme reconhecido pela própria Comissão Europeia, a definição de mercado relevante deve ter em conta a dinâmica e evolução do mercado, não podendo ser limitada a critérios geográficos ou temporais fixos, sendo a análise da concorrência feita em termos prospetivos e funcionais.

29. Adicionalmente, ainda que se chegasse a outra conclusão, o que se rejeita e por

mera cautela de patrocínio se equaciona, foi dado como provado, no facto 17), que a Recorrida voltará a ter estabelecimentos em Portugal.

30. Para além disso, os produtos comercializados por ambas as partes – macarons e

ovos-moles em hóstias – são substituíveis e satisfazem necessidades semelhantes do consumidor, situando-se no mesmo mercado de pastelaria fina, sendo ambos produtos doces, essencialmente à base de ovos e açúcar, de pequeno formato (“mignardises”).

31. Não há produtos que concorram mais diretamente com os ovos-moles do que os macarons, e vice-versa – excetuando-se, naturalmente, outras peças da mesma natureza.

32. A similitude dos produtos, o público-alvo coincidente, a identidade visual e a estratégia comercial copiadas pela Recorrente demonstram, de forma inequívoca, a existência de uma relação de concorrência entre as partes.

33. Ao imitar o “trade dress” da Ladurée, a Confeitaria Peixinho lucra e tira partido

do investimento da Recorrida na construção da sua imagem e na captação de clientela, num ato de aproveitamento abusivo – ou “free riding” – que visa colher os frutos da reputação alheia sem suportar os custos e o esforço que sustentaram o crescimento da marca original ao longo dos anos.

34. A Recorrente beneficia, assim, ilegalmente, do esforço da atividade económica

desenvolvida pela Recorrida para atrair clientela, incorrendo, por conseguinte, em práticas desleais de concorrência.

35. O risco de confusão entre os estabelecimentos é real, como comprovado pelo facto 15) da Sentença e pelos depoimentos testemunhais, resultando tal confusão da apropriação parasitária da imagem da Recorrida pela Recorrente, vedado por Lei nos termos do Artigo 311.º do CPI.

36. Os consumidores são, portanto, induzidos em erro pela nova aparência adotada pela Recorrente, que não é mais do que uma cópia exata e fiel da identidade visual da Recorrida,

37. Pelo que não se pode invocar qualquer “princípio da liberdade de escolha” por

parte dos consumidores, contrariamente ao alegado pela Recorrente nas suas Alegações.

38. Como bem decidiu o Tribunal da Relação do Porto, está verificado o primeiro

requisito da concorrência desleal – a existência de uma relação de concorrência – com base numa disputa concreta pela mesma clientela, reforçada pela semelhança dos produtos, identidade visual e notoriedade da marca prejudicada.

39. Não assiste, então, razão à Recorrente, ao alegar a inexistência de relação

concorrencial entre as partes, razão pela qual deverá improceder tal infundada alegação.

40. Relativamente ao segundo requisito, é claro que a Confeitaria Peixinho atuou

com deslealdade em relação à Recorrida.

41. Importa-nos referir que a concorrência é aceitável e até mesmo desejável

quando é saudável, isto é, quando é baseada em princípios de ética, transparência e busca por melhoria contínua, tanto para as empresas quanto para os consumidores.

42. Contudo, não é esse o cenário que se verifica no caso concreto.

43. Os atos de natureza parasitária praticados pela Recorrente extravasaram, há muito, os limites da razoabilidade e do bom senso, configurando uma atuação desleal, que se afasta dos padrões de concorrência leal admitidos pelo ordenamento jurídico.

44. A atuação da Recorrente constitui um claro e consciente desvio dos padrões

éticos e legais de atuação no mercado, traduzindo-se numa prática de concorrência desleal e parasitária, conforme prevista nas alíneas a) e c) do nº1 do Artigo 311.º do Código da Propriedade Industrial (CPI).

45. In casu, verifica-se uma conduta reiterada de imitação servil do “trade dress” da

marca Ladurée, que ultrapassa largamente uma eventual coincidência pontual de estilo ou linguagem gráfica, e consubstancia, antes, um verdadeiro plano de apropriação parasitária do prestígio e da reputação da Recorrida.

46. São vários os elementos copiados pela Recorrente, numa estratégia global de

mimetização, nomeadamente:

• A colocação da letra inicial da marca num círculo dourado (P e L, respetivamente), num balcão verde-pálido;

• A comercialização de doçaria à base de ovos e de açúcar, de pequeno formato, vulgo mignardises, sendo estas congéneres, substituíveis e intercambiáveis;

• Ambas serem marcas de monoproduto;

• As caixas de embalamento terem exatamente as mesmas cores que a Recorrente utiliza há mais duma centena de anos, ou seja, cor-de-rosa pálido, verde-pálido e azul-pálido;

• A exposição das várias caixas coloridas de embalamento dos produtos pordetrás

do balcão;

• A utilização das cores cor-de-rosa pálido, verde-pálido e azul-pálido na

decoração do estabelecimento, sobretudo o uso do verde-pálido no balcão;

• Os candeeiros do balcão de atendimento ao público.

47. Ou seja, verifica-se a recriação substancial da experiência visual, cromática e conceptual da Ladurée, não sendo este um caso de coincidência ocasional ou de mera inspiração.

48. Quer isto dizer que não estamos perante simples pormenores estilísticos isolados, mas sim perante uma semelhança de conjunto global e sistemática, que – como bem assinala o Tribunal da Relação do Porto – gera, de forma inevitável, risco de confusão e associação indevida por parte do público consumidor.

49. Tudo comprovado pelos factos assentes e pela prova junta aos autos.

50. A deslealdade manifesta-se quer através da criação de confusão no consumidor

(Artigo 311.ºnº1 alíneaa) do CPI), quer através da invocação e aproveitamento ilegítimo do prestígio da marca da Recorrida (alínea c) do mesmo Artigo), numa conduta que, como refere a melhor Doutrina (v. Carlos Olavo), se traduz num comportamento manifestamente contrário aos usos honestos de qualquer ramo de atividade.

51. A própria Recorrente acaba por reforçar, inadvertidamente, os fundamentos da

Recorrida, ao transcrever excertos doutrinais e jurisprudenciais que realçam a importância da visão de conjunto, da evocação subliminar, e da impressão global criada no consumidor médio, critérios esses que, aplicados ao caso, confirmam a existência de atos de concorrência desleal.

52. Acresce que a prova testemunhal e documental recolhida demonstra que efetivamente ocorreram episódios de confusão por parte dos consumidores, tendo estes associado a Recorrente à marca Ladurée, o que é revelador da eficácia e da intencionalidade da imitação levada a cabo por aquela.

53. Como bem salienta o Tribunal da Relação do Porto, a semelhança entre os estabelecimentos, embalagens e atmosfera visual é de tal ordem que a associação é inevitável, mesmo para um consumidor minimamente atento, tanto mais que a notoriedade da Recorrida funciona como fator amplificador dessa associação.

54. Também a renovação estética da Recorrente – como aliás bem consta do facto assente 8.A) – foi levada a cabo com o objetivo deliberado de copiar e aproveitar a projeção internacional da marca Ladurée, o que configura um dolo específico de aproveitamento ilegítimo da prestação alheia.

55. Em suma, ao fazer um puro decalque do “trade dress” da Recorrente, a Recorrida age de má-fé.

56. Trata-se, pois, de uma conduta orientada para a obtenção de uma vantagem desleal, que não decorre do mérito próprio da Recorrente, mas sim da exploração parasitária do investimento, do know-how e da reputação adquirida pela Recorrida ao longo de décadas.

57. Ademais, a atuação da Recorrente lesa gravemente o funcionamento regular do mercado e os princípios da concorrência leal, como salienta a Doutrina, penalizando aqueles que, como a Recorrida, atuam com criatividade, investimento próprio e esforço contínuo de diferenciação.

58. Tal atuação desvirtua o modelo concorrencial e representa uma ameaça ao equilíbrio do mercado, abrindo perigosamente a porta à normalização da cópia e da apropriação desleal como instrumentos de mercado, realidade que o ordenamento jurídico repudia expressamente.

59. Em face do exposto, encontra-se plenamente verificado o segundo requisito da

concorrência desleal, ou seja, a existência de atos de deslealdade consubstanciados na criação deconfusãoenoaproveitamentoindevido doprestígiodaRecorrida, nos termos expressamente previstos nas alíneas a) e c) do nº 1 do Artigo 311.º do CPI.

60. Deve, então, ser negado provimento ao presente Recurso, mantendo-se na íntegra a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, por ser legal, justa e conforme aos princípios fundamentais do Direito da Concorrência.

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Objecto do recurso:

- Saber se a Relação violou a lei de processo ao alterar a matéria de facto;

- Se a Recorrente incorreu em concorrência desleal.

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Fundamentação de facto.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. A autora é uma empresa fundada em França no ano de 1862, por ..., que se dedica à produção de confeção de pastelaria, designadamente, “macarons”, com a seguinte configuração:


(cf. imagem constante da notícia junto como documento n.º 8, pela autora no requerimento de 12-02-2024).

2. A autora está presente, através dos seus pontos de venda, no Canadá, Estados Unidos da América, Irlanda, Inglaterra, França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Egito, Azerbaijão, Qatar, Mónaco, China, Omã, Kuwait, Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

3. A autora é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, nomeadamente:

1. a utilização da letra “L” nos balcões;

2. a utilização do cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido,

3. a exposição de várias caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão;

tendo a seguinte configuração:



(Cf. imagens da petição inicial – artigo 8.º).


(cf. imagens constantes do documento n.º 1 da petição inicial)

4. A decoração interna aludida em 3) é uma alusão à decoração interna dos palácios franceses do tempo do Rei Luís XIV.

5. As caixas de embalamento utilizadas pela autora para os “macarons” têm a seguinte configuração:


6. A ré é a sociedade que explora a “Confeitaria Peixinho”, situada em Aveiro e fundada em 1856, que se dedica exclusivamente ao fabrico e comercialização de doçaria regional aveirense, nomeadamente, ovos-moles, com a seguinte aparência:


(Cf. documento n.º 10 da contestação).

7. 7. Em 22 de fevereiro de 2018, a Confeitaria Peixinho passou a integrar o grupo “O Valor do Tempo”, que explora estabelecimentos de produtos alimentares, em vários centros com importância turística em Portugal, a maioria dos quais dirigidos, sobretudo, aos turistas estrangeiros.

8. Após o aludido em 7), a Confeitaria Peixinho procedeu a uma renovação do seu espaço, tendo reaberto ao público a 8 de agosto de 2018 e passado a utilizar:

1. as cores cor-de-rosa pálido, o verde-pálido, azul-pálido na decoração do estabelecimento e nas caixas de embalamento;

2. a disposição das caixas por detrás do balcão;

3. a primeira letra do nome, neste caso, “P” nos balcões;

4. a cor verde-pálido no balcão;

com a seguinte aparência:


(Cf. imagem da petição inicial – artigo 14.º)


(cf. imagem constante do documento n.º 1 da petição inicial).

8-A) A renovação mencionada em 8) foi efectuada com o intuito de copiar e aproveitar a projecção internacional da Autora. (aditado pela Relação).

9. As caixas da ré têm a seguinte configuração:



(Cf. imagens da petição inicial – artigo 14.º)




(Cf. documentos n.ºs 5 a 7 e 10 da contestação).

10. A Confeitaria Peixinho abriu uma loja no Aeroporto de Lisboa, com a seguinte configuração:



(Cf. imagens da petição inicial – artigo 14.º).

11. No dia 23 de agosto de 2018, o jornal “Público” publicou uma notícia, com o título «A centenária Peixinho tornou-se très chic», com o seguinte teor:

«Já era afamada por causa da sua longevidade e qualidade dos seus ovos-moles e outros doces. Agora, fez um restyle e está a espalhar charme com o seu ar parisiense.

Aos 162 anos de vida, a Confeitaria Peixinho rejuvenesceu. Aquela que se apresenta como sendo a mais antiga casa de ovos-moles de Aveiro – será a que tem mais anos a confeccionar e vender este doce – vive, agora, numa aura de glamour, transpondo os seus clientes e visitantes para o ambiente das mais requintadas confeitarias parisienses. Muito ao estilo da Ladurée, só que em vez de macarons servem-se ovos-moles. (…) Mantendo a localização de sempre, no número ...da Rua 2 (junto aos paços do concelho), a Peixinho ganhou uma nova vida, que se evidencia a todos quantos passam à sua porta.

(…)

A família de AA foi responsável pelos últimos 45 anos de história da confeitaria criada em 1856 por BB – daí o nome da casa – e continua a ser presença assídua naquele espaço. “A D. CCacabou de me dar uma aula de como apreciar um ‘ovo-mole’, o que o distingue”, repara DD, ainda antes de AA se gabar que foi graças à dedicação e engenho da sua esposa que nasceram receitas como as dos ninhos, das delícias e das cornucópias. “No fundo, o que nós fizemos foi aproveitar todo este saber, esta paixão, pegar neste produto e reposicioná-lo”, nota DD.

(…)

Uma montra sem igual

O charme que é anunciado a partir do exterior confirma-se dentro de portas. A decoração aposta em tons suaves – com predominância do verde-água e do rosa – e em alguns elementos mais requintados, como é o caso do enorme candeeiro de tecto. Atrás do balcão, há um armário que se estende até ao piso superior e no qual estão agora impecavelmente arrumadas as caixas de ovos-moles – em cada divisória, uma cor. E esqueça aquela imagem das típicas caixas de ovos-moles (de papel branco). Na “nova” Peixinho o doce conventual aveirense é comercializado em caixas elegantes – de tom rosa, verde-água ou azul-claro –, e aparece embrulhado num “papel” comestível (hóstia, como aquela que é usada para dar a forma de peixes, barricas ou conchas, ao doce de gema). Estampado na caixa vem também um excerto da obra Os Maias, de Eça de Queirós, com a alusão a esse “dôce muito célebre” e “chic”. É verdade que Eça era suspeito – viveu parte da sua infância em Aveiro –, mas a classificação até cai bem ao doce nascido, por volta de 1500, no Convento de Jesus.

Na montra que está colocada em cima do balcão, exibem-se as grandes estrelas da casa e outras tantas mais – além das já referenciadas, na Peixinho também se vendem bombons de ovos-moles, pão-de-ló e suspiros de ovos-moles. E para quem quiser degustar estas delícias ali mesmo, há agora duas áreas com mesas – na anterior confeitaria não havia espaço para serviço de mesas –, uma no primeiro piso e outra no segundo piso.

Duas novas áreas que funcionam, de alguma forma, como uma espécie de museu. Ao longo das paredes estão expostos textos e documentos que abordam a história da casa e do próprio doce conventual. Também ali está retratado o Monumento aos Ovos-Moles de Aveiro (escultura da autoria de EE), entre outras curiosidades alusivas ao doce aveirense – incluindo a própria receita dos ovos-moles de Aveiro.

AA está feliz com a transformação que fizeram no seu antigo negócio. “Como podia não estar? Ainda para mais, conseguiram fazer algo que eu sempre quis e não consegui: criar uma área de salão de chá”, avalia. Muito “ao estilo das confeitarias de Paris, é verdade, com um toque Arte Nova, que está tão presente em Aveiro”, realça, por seu turno, DD. Se Eça de Queirós tiver razão, então, na Peixinho os ovos-moles são servidos e confeccionados de uma forma très chic.»

12. No dia 3 de julho de 2018, o “Diário de Notícias” publicou uma entrevista a FF, presidente do grupo referido em 7), intitulada “O homem que mudou a Baixa”, na qual se lê:

“(…)

A cidade será, pela mão dele, uma "montra" do que Portugal tem de único - o próximo projeto é o de trazer os ovos-moles de Aveiro para o Chiado, numa loja que abre neste verão. "Queremos fazer com eles o que a Ladurée fez com os macarons", anuncia.”

12. No website “Week-ends à 2 Travel Tips”, foi publicada uma notícia com o título “Uma viagem a Aveiro”, que na secção destinada à Confeitaria Peixinho refere: “Fundada em 1856, esta pastelaria com um falso ar de Ladurée (…)”

13. No website “..., um cliente intitulado GG, comentou o seguinte:

Cliente há mais de 3 décadas, ficámos desagradavelmente surpreendidos com os preços praticados desde que a loja foi renovada: o preço dos Ovos Moles praticamente duplicou (36 euros o quilo só de gema de ovo e açúcar!!!). É certo que estamos a pagar a nova decoração, o pessoal extra para a sala de chá e as bonitas caixas ao estilo Ladurée, mas continua a ser um preço proibitivo para Aveiro. Uma nova armadilha para turistas, o que é uma pena!”.

14. No website da “...” foi publicada uma notícia com o título “Aveiro: A Veneza portuguesa”, que na secção “Onde desanuviar e merendar” diz que:

No mapa que tem na secção ''lojas gourmet'' deixo-lhe as duas melhores confeitarias para os comer. Uma é a tradicional no Rossio, no canal central e a outra é a incrivelmente parisiense O Peixinho. Sem dúvida evoca a Ladurée em todo o seu esplendor (…)”

15. A autora abriu em 2018 uma loja na Avenida 3, que foi fechada, não dispondo, atualmente, de qualquer estabelecimento em Portugal e que tinha a seguinte configuração:


(Cf. imagem da notícia junta como documento n.º 7 pela autora no requerimento de 12-02-2024).

16. A autora tem intenção de voltar a ter um ou mais estabelecimentos em Portugal.

17. Parte da clientela da autora são turistas, designadamente, oriundos dos países onde tem estabelecimentos.

18. No aeroporto de Lisboa, onde se encontra o estabelecimento da ré referido em 10), passam, todos os dias, milhares de turistas, incluindo oriundos dos países onde a autora tem estabelecimentos.

19. A ré não tem atividade em nenhum dos países referidos em 2) e só tem os estabelecimentos mencionados em 6) e 10).

20. A renovação aludida em 8) procurou conciliar a tradição da Confeitaria Peixinho e a história da cidade de Aveiro:

1. através da decoração do espaço com inspiração na Arte Nova, nomeadamente, no uso de cores e tonalidade idênticas às presentes na arquitetura e elementos decorativos de edifícios Arte Nova existentes da cidade de Aveiro; e

2. com a exibição à entrada da loja, de um raro exemplar da primeira edição de “Os Maias”, de Eça de Queiroz, que expõe o seguinte excerto que celebra os Ovos Moles de Aveiro, «São seis barrilinhos de ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem chic».

21. Aveiro foi uma das principais cidades portuguesas onde houve uma disseminação da Arte Nova.

22. Os estabelecimentos da ré referidos em 6) e 10) estão identificados com a denominação “CONFEITARIA PEIXINHO®”,

23. Por causa do balcão de atendimento do estabelecimento da ré mencionado em 8), se localizar num corredor estreito, apenas foi colocado o “P” de “Peixinho” nas almofadas do balcão, porquanto a denominação completa do estabelecimento – CONFEITARIA PEIXINHO - não seria facilmente visível e lida pelos consumidores devido à falta de largura do espaço.

24. Além do aludido em 5), a autora faz edições especiais das suas caixas, com a seguinte aparência:


(cf. documento 11 da contestação).

25. A letra “P” usada pela ré é gráfica e foneticamente distinta da letra “L”.

26. Os ovos-moles de Aveiro são um doce tradicional português, com formas de conchas, búzios ou peixes e compostos por uma hóstia recheada com doce de ovos.

27. Os “macarons” são um doce típico francês, composto por duas conchas redondas reunidas, recheadas no meio com compota ou ganache de chocolate.

28. A ré não comercializa “macarons”.

E considerou não provado:

Com a renovação aludida em 8) e a utilização das caixas referidas em 9), a ré tivesse criado confusão em diversas pessoas e entidades.

O direito.

A Recorrente imputa ao acórdão a violação do disposto nos arts. 5º, 607º, nºs 3 e 4, e 662 do CPC, por ter aditado um facto – o enunciado sob o nº 8A - que é um juízo conclusivo e não verdadeiro facto, além de estar em contradição com os factos constantes dos nºs 21 e 22.

O facto em causa – “A renovação mencionada em 8) foi efectuada com o intuito de copiar e aproveitar a projecção internacional da Autora” – havia sido dado como não provado na sentença, mas a Relação, dando provimento nesta parte à impugnação da decisão de facto julgou o mesmo provado.

Vejamos.

Nos termos do nº3 do art. 607º do CPC, na elaboração da sentença, deve o juiz (…) discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”

Não contém o actual Código de Processo Civil um preceito que reproduza a regra do nº 4 do art. 646º do anterior CPC, que considerava “não escritas as resposta do tribunal colectivo sobre questões de direito.”

Daqui não se segue que seja admissível a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação estritamente jurídica superar os aspectos que dependem da decisão da matéria de facto.

O STJ vem reiteradamente decidindo que a decisão de facto não pode conter, por sua própria natureza, juízos de natureza conclusiva ou valorativa.

No acórdão de 03.07.2025, P. 2053/21, desta secção, decidiu-se que “o resultado da prova não pode conter conceitos de direito, e não pode sobretudo, dar-se como provado – como se de prova se tratasse - a solução de direito de que depende o desfecho do caso”.

No caso, o teor do ponto 8-A não integra uma conclusão de direito, sendo antes uma ilação que a Relação extraiu dos demais factos apurados e da prova produzida.

Ora constitui jurisprudência pacífica que “as ilações extraídas pelas instâncias, no domínio das presunções judiciais baseadas na factualidade dada como provada nos termos previstos nos art. 349º e 351º do CCivil, são da sua exclusiva competência, estando, como tal, vedadas à sindicância do STJ, salvo quando se mostrem desprovidas de qualquer base factual ou sejam eivadas de ilogicidade manifesta” (cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 21.03.2023, P. 1327/19 e de 17.10.2019, P. 1703/16).

No caso não se verifica nenhuma daquelas situações excepcionais pelo que está vedado ao Supremo sindicar a ilação tirada pela Relação, a qual em nada contraria os factos enunciados em 21 e 22.

Improcede, pois, este primeiro fundamento do recurso.

///

Se a Ré incorreu em concorrência desleal com a Autora.

Com relevo para questão decidenda provou-se:

A Autora é uma empresa fundada em França em 1862, que se dedica à confeção de pastelaria, designadamente, “macarons” e é internacionalmente conhecida pela disposição interna dos seus produtos e pelo layout dos seus estabelecimentos, em conjunto com a utilização de cores específicas, cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e azul-pálido, e pela exposição de caixas de embalamento dos produtos por detrás do balcão.

A Confeitaria Peixinho, em 2018, renovou o seu espaço passando a utilizar as cores rosa-pálido, verde-pálido e azul pálido.

O acórdão recorrido considerou que a Ré incorreu em concorrência desleal pois:

“Constata-se pelos elementos colhidos que existe a adoptação pela R. no seu comércio, conformação do seu «estabelecimento», cores escolhidas, incluindo para a cartonagem, apresentação do «logo» (…) uma associação patente à A. e no que aos citados aspectos se refere, circunstância que leva necessariamente à ocorrência por parte do consumidor de confusão quanto à associação entre os «estabelecimentos» concorrentes.

Note-se que «o risco de confusão pode ser entendido em sentido restrito, quando o consumidor médio não distingue as actividades de uma e de outra empresa, ou em sentido amplo, quando o consumir médio, distinguindo as actividades das empresas em causam as associa indevidamente» 1.

Com a apelante diremos: «A semelhança visual e conceptual entre os espaços comerciais da Recorrente e da Recorrida é evidente, desde a escolha das cores, à disposição das caixas, até ao uso estilizado de letras nos balcões.»

Não fazendo « (…) sentido a pretensa existência de outras cores, porquanto mesmo que possam existir pontualmente “outras cores” nos estabelecimentos – não sendo isso que está aqui em causa –, a verdade é que as cores visivelmente predominantes são o cor-de-rosa pálido, o verde-pálido e o azul-pálido, conforme se constata nas imagens constantes dos factos provados»

Assim não bastasse, com os elementos coligidos pelo tribunal a quo, e na nossa perspectiva bastaria, resulta ainda assente por decisão nossa o que consta do facto 8.A: «A renovação mencionada em 8) foi efetuada com o intuito de copiar e aproveitar a projeção internacional da autora.»

Temos, pois, por observado o requisito em causa2, podendo também deste facto ora citado (8.A), na relação como o demais assentes e no confronto com o comportamento exigido a um «homem médio», ao «concorrente médio» (art.º487.º n.º2 do CC), retirar a exigida culpa, último dos requisitos atrás elencado.

Conclui-se, pois, estarmos perante actos de concorrência desleal, assim se impondo a revogação da sentença e, em sua substituição proferindo outra que condene a R. nos termos pedidos, inclusivamente quanto à sanção pecuniária compulsória (art.º 829.º-A do CC) e vista a natureza infungível da obrigação3 que se imporá à R.”

Diferentemente sustenta a Recorrente que não há concorrência desleal, uma vez que: i) Autora e Ré actuam em mercados diferentes; ii) as características dos estabelecimentos, produtos e embalagens, apreciadas na globalidade, não revelam a existência de deslealdade da Recorrente, seja sob a forma de actos de confusão ou de aproveitamento.

Importa saber se o comportamento da Ré consubstancia concorrência desleal concretamente se preenche as situações previstas no art. 311º, nº1, alíneas a) e c) do Código de Propriedade Industrial, que sob a epígrafe Concorrência desleal, estabelece o seguinte:

1. Constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, nomeadamente:

a) Os actos susceptíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;

(…).

c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheia;

Decorre da norma citada que a concorrência desleal pressupõe; a) um acto de concorrência; b) a inconformidade desse acto com as normas e usos honestos; c) no seio de qualquer ramo de actividade económica.

E o que deve entender-se por concorrência?

Decidiu o acórdão do STJ de 26.09.2013, P, 6742/1999:

I - Acto de concorrência é o acto susceptível de, no desenvolvimento de uma dada actividade económica, prejudicar um outro agente económico, prejuízo que se consubstancia num desvio de clientela;

I – O acto de concorrência assenta em duas ideias fundamentais: a criação e expansão de uma clientela própria e a idoneidade para reduzir ou mesmo suprimira a clientela alheia, real ou possível.

Pedro Sousa e Silva, in Direito Industrial, 2ªedição, p. 441, pronuncia-se no mesmo sentido:

“O acto de concorrência pode ser definido, genericamente, como um acto susceptível de conferir posições vantajosas no mercado, face à clientela. A obtenção de clientela é sempre a sua finalidade, imediata ou mediata.

(…)

Tanto são actos de concorrência comportamentos lícitos (v.g. campanhas publicitárias), como actuações ilícitas (v.g.. denegrimento de concorrentes). O que importa, para a qualificação de uma conduta como acto de concorrência, é que dela resulte, ou possa resultar, um reforço da posição do agente no mercado que possibilite um desvio de clientela a seu favor.

E acrescenta:

“A concepção dominante (de concorrência) entre nós é a que considera concorrentes as empresas que em concreto disputam a mesma clientela. A meu ver, tal apenas sucederá quando exista alguma afinidade de produtos ou actividades. Tem de existir, no mínimo, alguma possibilidade de uso substitutivo dos produtos ou de semelhança entre as actividades, sob pena de não existir competição económica, por não haver clientela comum a disputar.”

E ainda:

“Assim o infractor e a vítima da concorrência desleal – mesmo que exerçam actividades parcialmente diversas – devem ter alguma clientela comum, ainda que potencial que possa adquirir-lhes produtos ou serviços idênticos. Por outras palavras, ambos terão que se encontrar no mesmo mercado relevante, definido em termos geográficos e merceológicos. Desde logo, os empresários em causa terão de estar situados a uma distância que permita, tendo em conta os custos de distribuição, que um ofereça produtos ou serviços aos clientes do outro (um padeiro de Faro não parece poder disputar a clientela de um padeiro de Valença.”

Tem assim que haver, num grau maior ou menor, possibilidade de desvio de clientela, da vítima para o agressor, devido à afinidade e produtos transaccionados por cada um deles, Se não existir essa afinidade, pode haver responsabilidade civil pela lesão, mas não haverá concorrência desleal.”

Neste sentido, Oliveira Ascensão, Concorrência desleal, 2002, pag. 119, esclarecendo que haverá um acto de concorrência se o acto tiver idoneidade de atribuir uma posição relativa vantajosa, em termos de clientela.

Ainda no mesmo sentido, Nuno Sousa e Silva, em anotação ao art. 311º do CPI, coordenação de Luís Couto Gonçalves, Almedina 2021: “O que está em jogo na relação de concorrência é a disputa da mesma clientela. (…) Só há uma relação de concorrência entre agentes económicos que dirigem as suas prestações ao mesmo universo de potenciais clientes.”

Seguiu este entendimento o acórdão do STJ de 05.06.2018, P. 143/16.9YHLSB.L1.S1:

1. Para que determinada actuação consubstancie um acto de concorrência desleal importa apurar se existe afinidade ou identidade de produtos ou de actividades, ou, pelo menos, se as actividades se inserem no mesmo sector de mercado.

2. Exige-se ainda que o acto de concorrência colida com normas e usos honestos de determinado ramo de actividade económica.

Revertendo ao caso dos autos.

Provou-se é certo que a renovação operada pela Ré no seu estabelecimento foi feita com a intenção de copiar e aproveitar a projecção internacional da Autora.

Ora uma intenção não consubstancia um acto de concorrência se da matéria de facto nada resulta que revele que da renovação resultou uma situação vantajosa para a Ré obtida à custa de perda de clientela da Autora.

É que também se provou que a renovação procurou conciliar a tradição da Confeitaria Peixinho e a história da cidade de Aveiro, através da decoração do espaço com inspiração na Arte Nova, nomeadamente, no uso de cores e tonalidade idênticas às presentes na arquitetura e elementos decorativos de edifícios Arte Nova existentes da cidade de Aveiro; e com a exibição à entrada da loja, de um raro exemplar da primeira edição de “Os Maias”, de Eça de Queiroz, que expõe o seguinte excerto que celebra os Ovos Moles de Aveiro, «São seis barrilinhos de ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá fora. Só o de Aveiro é que tem chic». (nºs 20 a 22)

Tendo presente os factos apurados, pode acusar-se a Ré de concorrência desleal?

Já vimos que na concorrência está em disputa o mesmo tipo de clientela e a possibilidade de desvio de clientela, da vítima para o agressor.

Ora não nos parece que esse risco exista.

Os produtos em causa – macarons e ovos-moles – não são confundíveis, seja pela forma como são apresentados ao consumidor seja pela sua composição. (factos 26 e 27).

Que não há possibilidade de confusão entre eles facilmente se retira do teor dos pontos 5 e 6 supra da matéria de facto.

É também diferente a composição de cada um: os macarons apresentam-se como pequeno biscoito, redondo e crocante, feito de farinha de amêndoas, com base em claras, açúcar e recheado, granuloso e mole, de forma arredondada com diâmetro aproximado de 5 cm em média; os ovos moles são obtidos a partir da junção de gemas cruas de ovos em calda de açúcar, normalmente envolvidos em hóstia.

É dizer que o consumidor que procura adquirir macarons não corre o risco de ser induzido em erro e adquirir ovos moles, pese embora o aspecto das lojas da Ré remeter/lembrar a decoração e apresentação das lojas da Autora. Não disputam o mesmo tipo de clientela.

A isto acresce que os ovos moles são associados a uma cidade portuguesa, Aveiro, onde se localiza um dos dois estabelecimentos da Ré, enquanto a autora está presente, através dos seus pontos de venda, no Canadá, Estados Unidos da América, Irlanda, Inglaterra, França, Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Egito, Azerbaijão, Qatar, Mónaco, China, Omã, Kuwait, Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Se o acto de concorrência desleal é, antes de mais, como refere Carlos Olavo, Propriedade Industrial, I, 2º edição, p. 259, um acto de concorrência, ou seja um acto destinado à obtenção ou desenvolvimento de uma clientela própria em prejuízo de uma clientela alheia, efectiva ou potencial, não podemos deixar de concluir pela não verificação no caso de concorrência desleal, seja pela impossibilidade de confusão entre macarons e ovos moles, seja pelo facto de as empresas que os comercializam actuarem em mercados diferentes.

Não provado que Autora e Ré disputam o mesmo cliente e que ocorre a possibilidade de desvio de clientela da primeira para a segunda, não pode concluir-se pela verificação de uma situação de concorrência e, por conseguinte, de concorrência desleal.

Merece a nossa inteira concordância o entendimento da 1ª instância:

“No caso em análise, como se referiu, existem similitudes sobretudo ao nível das cores utilizadas; todavia estas não são adequadas a criar confusão ou a confundir os consumidores.

Efetivamente, atendendo à identificação dos estabelecimentos da ré, ao produto distinto vendido por esta - os ovos-moles, produto típico e tradicional da cidade de Aveiro, e, por conseguinte, português, - bem como à localização dos seus estabelecimentos, não se afigura plausível, como já se mencionou, que os turistas e consumidores que estejam em Portugal, ainda que reconheçam similitudes nos espaços da ré, como resulta das várias notícias, artigos e comentários que se plasmaram nos factos provados n.ºs 11 a 15, sejam levados a adquirir um produto da ré pensando que se trata de um produto da autora.

Aliás, como resulta do já citado acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 6-05-2003, “Os consumidores não têm por hábito presumir a origem dos produtos com base na respectiva cor ou na da sua embalagem, na ausência de todo e qualquer elemento gráfico ou textual, uma vez que uma cor por si só, nos usos comerciais actuais, não é, em princípio, utilizada como meio de identificação. A propriedade inerente de distinguir os produtos de uma determinada empresa não existe normalmente numa cor em si mesma.”

Assim, não se verifica que exista por parte da ré qualquer atuação contrária às normas e usos honestos do comércio, em específico, da área da pastelaria tradicional, onde a autora e a ré atuam.

Em conformidade e face a tudo o exposto, não se encontrando preenchidos os requisitos necessários para se verificar uma situação de concorrência desleal, não pode a ré ser condenada a proceder a nenhuma das alterações peticionadas pela autora, nem a pagar uma sanção pecuniária compulsória, devendo a ação improceder integralmente.”

Termos em que procedem as conclusões da Recorrente.

Decisão.

Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância.

Custas pela Autora/recorrida.

Lisboa, 27 de Novembro de 2025

José Maria Ferreira Lopes (Relator)

António Barateiro Martins

Rui Machado e Moura