Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
816/19.4JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
COAÇÃO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
PENA PARCELAR
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONCURSO APARENTE
CONCURSO DE INFRAÇÕES
MOTIVO FÚTIL
MEDIDA DA PENA
Apenso:
Data do Acordão: 02/17/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O arguido pôs em marcha a sua intenção de matar, passando aos atos. Vários disparos foram feitos com esse intuito, mas não acertou o alvo, e depois a arma encravou. Apontou e visou o ofendido, só não consumou o homicídio porque a porta era blindada e o visado conseguiu proteger-se.

II - A tentativa é, precisamente, começo de execução não completa de um crime, por motivo alheio à vontade do agente. Trata-se, na tipicidade subjetiva, de um facto doloso (como resulta de todo o circunstancialismo volitivo externalizado) e no plano da tipicidade objetiva, no caso se verifica quer a dimensão positiva, quer a negativa: na primeira, está presente, nos factos recordados supra, a prática de atos de execução tendentes à consumação; na segunda, a falta de conclusão do resultado, a ausência de consumação.

III - O crime qualificado remete-nos para o especial tipo de culpa por si exigido. Já tentativa, por seu turno, é um tipo ilícito autónomo face ao crime consumado. Difere, obviamente, da forma consumada por não ter alcançado essa situação em ato, tendo-se quedado pela potência. Assim, a ausência, no crime tentado, do resultado típico, não ocorre por vontade do agente (não lhe podendo, assim, ser favoravelmente assacada, ou “creditada), avultando, como no crime consumado, a sua culpa.

IV - A factualidade provada revela uma impulsividade voluntarista que não cede mesmo às pressões da mãe e da outra pessoa que acompanhava o arguido, uma ideia fixa de entrar no estabelecimento, sem vacilar e custasse o que custasse, o que a partir do momento da oposição dos seguranças se consubstanciou na intenção de matar. O que está ínsito neste comportamento é a ideia de um completo desvalor da vida humana, postergada pela simples vontade de entrar numa discoteca. Denotando completa insensibilidade ao valor vida, e continuando o disparo, mesmo tendo falhado, e apesar dos rogos e tentativas de o afastar do local, por parte de sua Mãe e da outra acompanhante. Estamos perante um homicídio qualificado (na forma tentada). O qual é, evidentemente, uma forma agravada de homicídio, ou seja, um crime com especial censurabilidade. Cf. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2020, proferido no Proc.º n.º 608/19.0JABRG.S1.

V - Motivo fútil é o contrário de motivo com alguma, ainda que enviesada, motivação (não fútil), eventualmente atendível no plano de uma certa ética, normalmente ultrapassada. Por exemplo, nos casos de homicídios privilegiados, a que se refere o art. 133.º, do CP, em que, por razões éticas particularmente atendíveis, há menor culpa do agente, sendo como que o simétrico do homicídio qualificado (cf., v.g., Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, 4.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2004). Não se identifica “motivo fútil” com pura leviandade. “Motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, t. I, dir. de Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, comentário ao art. 132, n.º 2, al. d), pp. 32-33. Importa ainda atentar em que uma coisa é o motivo fútil e outra a ausência de motivo (ou motivo que não se alcança descortinar), conforme explicitado no Acórdão deste STJ, de 10.12.2008, proferido no Proc.º n.º 08P3703.

VI - Não existe nenhuma relação de consunção entre o homicídio tentado e a coação à vítima do homicídio tentado. São realidades distintas, que obtêm tratamento jurídico diferenciado, como é natural. E não existe qualquer ofensa do princípio do non bis in idem, na sua vertente da dupla punição sincrónica (a outra vertente é, como se sabe, a diacrónica). Nem o caráter tentado do crime, nem a moldura penal do mesmo, nem porventura a pena em concreto atribuída, podem como que compensar, e nesse sentido “absorver” hoc sensu crimes que possuem um recorte próprio, e uma factualidade provada autónoma. Homicídio é homicídio e coação é coação, não podendo haver uma síncrise mercê de motivos cuja dimensão não se chega a alcançar.

VII. - A condenação por crime de homicídio agravado, na forma tentada, foi-o considerando ter ele usado para esse efeito uma arma de fogo. Não foi anódino esse uso, como visto. Situação diversa é a da punição do crime por detenção de arma proibida. Deriva de o arguido estar na posse de uma arma para a qual não se encontrava devidamente licenciado. Bastaria simplesmente a detenção da arma para o cometimento dessa infração criminal. A punição do crime de detenção de arma proibida constitui, como é sabido, um crime de perigo comum, tendo associado, como bem jurídico a tutelar ou proteger, a segurança e a tranquilidade públicas. O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a segurança da sociedade perante os riscos para bens jurídicos individuais, para a vida e integridade física, da livre circulação e posse (e potencial uso) de armas sem a devida autorização. O legislador visa com esta proibição do uso indiscriminado e totalmente livre de armas de fogo evitar toda a atividade violenta no seu máximo (ou, pelo menos, num dos seus máximos) expoente técnico, particularmente apto a perturbar a convivência pacífica. Com esta incriminação se tem em vista, pois, assegurar, a prevenção de comportamentos desviantes altamente nocivos, agindo em defesa da convivência social ordeira e respeitadora do direito, assegurando assim a segurança pública. O que se pretende, e sociologicamente se prova que se alcança, com a proibição, não é o monopólio estatal da violência ou qualquer desvio ao mercado livre de armas (que está longe de ser um “direito natural”), mas sim prevenir o cometimento de crimes altamente violentos, especialmente crimes que ponham em risco sério a integridade física e mesmo a vida, como é o caso vertente. São elementos do tipo legal do crime imputado ao arguido, pois, a detenção, e uso de arma sem a observância das condições legais e ao arrepio do determinado pelas autoridades competentes. E tudo isso com consciência e intencionalidade configuradoras de dolo.

VIII - A determinação da pena, realizada em função da culpa, e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, face ao disposto nos arts. 71.º, n.º 1, e n.º 2, e 40.º, do CP, deve visar as necessidades de tutela do bem jurídico em causa, e ter em conta todas as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido. Tem-se em conta rigorosos parâmetros de proporcionalidade, como os sintetizados no Acórdão deste STJ, proferido em 31/03/2011, no Proc.º n.º 257/10.9YRCBR.S.

IX - Como é sabido, a intervenção do STJ em sede de controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, segundo a doutrina do Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1. Cf. ainda Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1, e os  Acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, novembro/dezembro 1997, pág. 214) e v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019..

X - Como tem assinalado Claus Roxin, entre outros, o que não deixa de ser recordado, entre nós por Figueiredo Dias, há também uma compreensão social de situações de diminuição da culpa, e a aceitabilidade comunitária de que possa existir uma menor exigibilidade, em certos casos, da tutela de bens jurídicos (Idem, Direito Penal, I, p. 83 e Direito Penal, vol. II, p. 230, e cf. Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, p. 188).Mas nunca poderá estar em causa cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. Como seria o caso de uma pena que consentisse a suspensão da sua execução. Não sendo este um caso de borderline (cf., v.g., G.E.M. Anscombe, Human Life, Action and Ethics, Essays by…, Imprint Academic, 2006, p. 277).

XI - Nestes termos, acordou-se na 3.ª secção do STJ em negar provimento ao recurso, confirmando na sua integralidade o Acórdão recorrido, que fixara a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

Relatório


1. AA, arguido nos presentes autos, e neles mais detidamente identificado, foi julgado em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, no âmbito do Proc. n.º 816/19...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz .., da Comarca ...., havendo sido condenado pela prática, em autoria material, de:

– Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22, 23, 73, 131 e 132, n.º 1 e n.º 2, al. e), do CP, agravado pelo art. 86, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão;

– Três crimes de coação, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22, 23, 73, e 154, n.º 1, e n.º 2, do CP, na pena de 9 (nove) meses de prisão para cada um deles;

– Um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, por referência aos arts. 2.º, n.º 1, al.p), e al. x), e 3.º, n.º 1, e n.º 2, al. l), do mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

– Operado o respetivo cúmulo jurídico, veio a ser condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformado, o arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação ... .

2. O Tribunal da Relação .... proferiu decisão sumária determinando a remessa dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça, por competente para a apreciação do recurso, dado se limitar ao reexame da matéria de direito.

3. Da respetiva Motivação de recurso, retirou o Recorrente as seguintes Conclusões:

“A. O presente recurso sobre os vícios do douto acórdão recorrido, ao nível da subsunção jurídica e dosimetria penal, não pretende colocar em causa o exercício das nobres funções nas quais se mostram investidos os Ilustres julgadores, mas tão-somente exercer direito de “manifestação de posição contrária” ou “discordância de opinião”, traduzido no direito de recorrer, consagrado na alínea i) do n.º 1 do art. 61º CPP e n.º 1 do art. 32º CRP, sendo que em súmula as questões que constituem o objecto e cerne recursórios se resumem a: I) Da subsunção jurídica (A. Da tentativa de homicídio; B. Da não qualificação do homicídio tentado; C. Dos crimes de coacção na forma tentada e tentativa impossível; D. Da relação de consumpção entre o crime de homicídio tentado e coacção tentada; e E. Da punição autónoma da detenção de arma e agravação do art. 86º n.º 3 da Lei 5/2006), e II) Da dosimetria penal: penas parcelares e única;

B. Defende-se a eliminação da incriminação dos crimes na forma tentada dado que todo e qualquer facto ilícito, para passar o crivo da natureza de ultima ratio do Direito penal, tem de se traduzir objectivamente na consumação de qualquer ofensa a um concreto bem jurídico, pelo que inexistindo violação concreta e objectiva dos bens jurídicos tutelados pelas incriminações, não fará sentido a sua convocação, sendo juridicamente errado punir pela prática de um crime que atenta contra a vida, a acção que tão-pouco viola a integridade física, pelo que deverá o arguido ser absolvido da prática do homicídio tentado;

C. Mostra-se o arguido/recorrente punido e condenado pela prática de um crime qualificado…tentado, o que se revela de difícil compatibilização pois a exigência de especial perversidade ou censurabilidade é contrabalançada pela atenuação especial da tentativa, sendo a compatibilização de duas realidades antagónicas e de sinal contrário, sem coerência dado que aquilo que de facto constitui o cerne de qualquer crime de homicídio, in casu esteve bastante longe de ter lugar, julgando-se aplicável, mutatis mutandis, o que se escreveu nos autos de processo 661/15.6PBLRS.L1.S1, em douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 29-06-2017, consultável em http://www.gde.mj.pt/jstj com sumário e fundamentação transcritos na motivação;

D. In casu não ocorreu nenhuma facada, tiro ou ferimento em qualquer vítima, não podendo estar em causa um crime de homicídio qualificado, ainda que tentado, mas tão-somente um crime de homicídio simples pois a motivação do recorrente dada por provada no ponto 21 não consubstancia motivo fútil (se nenhum bem jurídico se compara ou assemelha em termos de importância e gravidade com a vida humana, toda e qualquer violação desta tem de redundar num motivo fútil!), radicando a acção ilícita imputada ao arguido num circunstancialismo objectivo que não foi totalmente criado pelo próprio, julgando-se que unicamente estará em causa a censurabilidade já de si permitida e tida por subjacente ao crime base/simples, não havendo qualquer majoração e impondo-se a absolvição face ao crime qualificado, com a consequente condenação pelo crime simples e atenuação da pena aplicada!

E. No tocante à condenação pelos três crimes de coacção na forma tentada julga o recorrente que as meras palavras por si só, desacompanhadas da exibição da arma e disparos efectuados, não teriam nunca a virtualidade de coagir seguranças experimentados, com traquejo e formação própria e específica, sendo notório, o que se invoca nos termos e para efeitos do art. 412º CPC, que acaba por ser usual que por vezes haja excessos verbais num quadro de alcoolismo (dado por provado no ponto de facto 22!) e no mundo da diversão nocturna, seja à porta de entrada seja no próprio interior de tais casas/estabelecimentos, verificando-se in casu a chamada tentativa impossível, a qual, nos termos e para efeitos do art. 23º n.º 3 CP conduz à não punibilidade, devendo o recorrente ser absolvido de tais três crimes de coacção na forma tentada dado que se o móbil da actuação do recorrente era forçar a entrada no estabelecimento, nunca seria mediante o recurso a ameaças ou arma de fogo que o conseguiria, pelo que a tentativa é cristalinamente impossível!

F. Caso o Tribunal assim não entenda, e julgue que há razões para a punição por tais crimes de coacção tentada, pelo menos no tocante ao crime de coacção levado a cabo contra a vítima BB deverá haver consumpção face ao crime de homicídio na forma tentada, dado que o quadro subjacente à entrada em estabelecimentos de diversão nocturna, em que se mostre álcool à mistura ou o agente em estado de embriaguez, é notório que haverá todo um “processo de descarga emocional do arguido, num episódio de vida unívoco e inequivocamente revelador da unidade de sentido do comportamento ilícito global”, na senda do doutamente decidido no douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação ….., datado de 24 de Setembro de 2009, ainda que para efeitos de crime de resistência e coacção, mas que mutatis mutandis se julga aplicável;

G. Não há assim mais do que um prolongar de toda a ilicitude, sendo a mesma contínua e não autonomizável, não devendo a tónica ser colocada no preenchimento isolado dos diversos tipos legais de crime sob pena de manifesta violação dos princípios ne bis in idem e da culpa, importando considerar que a mesma actuação resolutiva poderá co-envolver a prática de diversos crimes isolados mas subsumíveis no mais gravoso e devendo o Tribunal ter em atenção o ilícito dominante (aquele que consumirá todos os demais!), mostrando-se a tentativa de homicídio já com moldura legal significativa que não poderá deixar de abarcar o crime de coacção na forma tentada (o qual verdadeiramente apenas com os disparos poderá ter expressão e relevância no exacto quadro imputado!), com a absolvição do recorrente face ao crime de coacção na forma tentada pelo qual foi condenado e face à vítima BB, em razão do consumpção operada pelo crime de homicídio tentado!

H. Verifica-se que o uso e detenção de arma acabam por ser duplamente punidos, quer autonomamente pela imputação de tal crime, quer mediante a agravação nos termos do art. 86º n.º 3 da Lei 5/2006, sendo a mesma realidade duplamente punida ao arrepio do princípio da proibição da dupla valoração (ademais sempre em prejuízo do recorrente!) pelo que ao ser o arguido condenado com a agravante do art. 86º n.º 3 da Lei 5/2006 ficará vedada a possibilidade de condenação autónoma pela prática do crime plasmado no art. 86º n.º 1 c) do mesmo diploma legal (ou então, sendo condenado por tal crime autónomo ficará vedada a agravação do n.º 3);

I. Aos olhos do recorrente mostra-se totalmente injusta e violadora do princípio da culpa a punição dupla dado que a punição deverá ter lugar com a imputação do crime autónomo e sem a agravante, que verdadeiramente deveria sim constar do Código Penal e não de legislação avulsa pois não se vê onde é que o Código Penal remete para agravantes a funcionar face aos crimes aí tipificados, pelo que inexistindo tal remissão expressa, escrita e certa, não pode ser aplicada, em nome do princípio da legalidade, devendo o recorrente ser absolvido da agravante plasmada no n.º 3 do art. 86º da Lei 5/2006 uma vez que, ademais, a imputação já é por crime de homicídio qualificado, já estando vertida uma valoração e majoração punitiva suplementar, invocando-se o teor de douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, datado de 07-01-2014, no âmbito dos autos de processo 323/11.3GBGDL.E1, consultável in http://www.dgsi.pt/jtre e com o sumário que se transcreveu na motivação;

J. No que concerne à dosimetria penal, haverá que analisar toda a actuação isolada bem como a visão de conjunto dos factos, defendendo-se a atenuação, quer das penas parcelares, quer da pena única, por as mesmas se mostrarem majoradas e para além da culpa, dado mostrarem-se todas elas muito para além do limite mínimo aplicável, o que é manifestamente excessivo e uma afronta aos princípios da proporcionalidade, adequação e proibição o excesso (veja-se o limite mínimo aplicável ao homicídio qualificado tentado, que com a agravação pelo uso de arma é 3 anos, dois meses e 12 dias, e acabou o recorrente condenado na pena de seis anos e seis meses, ou seja, mais do dobro, tendo o Tribunal a quo efectuado uma majoração superior a 100%!!!), não se podendo invocar exigências de prevenção geral pois a comunidade, via de regra, fica em maior alvoroço pela danosidade concreta e objectiva, que não pela potencial, como é o caso dos presentes autos dado que, se de facto poderia ter ocorrido uma tragédia, a verdade é que felizmente tal não aconteceu;

K. Pese embora a tipificação legal de crime de homicídio qualificado tentado (com a discordância supra, defendendo-se a convolação em crime simples!), o certo é que tão pouco se verificou a consumação de qualquer ofensa à integridade física, pois nenhum dos disparos atingiu qualquer vítima ou produziu em concreto quaisquer danos em bens jurídicos atinentes à vida ou integridade física, tendo tal facto de assumir relevância excepcional e permitir atenuação da pena mais próxima do limite mínimo (os factos têm mais em comum com a coacção que com tentativa de homicídio!) e aplicar uma pena de seis anos e meio de prisão por um crime contra a vida tentado, que em boa verdade em nada atentou sequer contra a integridade física, é um paradoxo quando o melhor dos alibis e argumentos de defesa do recorrente é a própria verdade dos factos e ausência de especial danosidade material resultante da sua acção, ela já de si potenciada e levada a cabo num contexto de embriaguez que, não obstante ter sido dado por provado sob o ponto de facto 22, não foi convocado para efeitos de determinação da pena…

L. Importa ainda ter em linha de conta o facto de, apesar de ser verdade que o arguido ostenta um registo criminal de relevo, também é certo que não detém antecedentes criminais pelos mesmos crimes pelos quais ora foi condenado, pois nunca anteriormente havia sido condenado pela prática de crimes de homicídio, fosse na forma tentada ou consumada, nem de detenção de arma proibida nem de coacção, fosse na forma consumada ou tentada, e desde 2016 que não cometia quaisquer crimes a contender com bens jurídicos pessoais, tendo abandonado o cometimento de crimes de roubo pelos quais foi condenado no passado, aspectos, que não foram devidamente problematizados nem sopesados pelo Tribunal a quo e permitem atenuar as penas fixadas;

M. Julgam-se conforme às exigências de prevenção e culpa as seguintes penas parcelares: pela prática de tal crime de homicídio qualificado na forma tentada (a manter-se tal subsunção legal!), pena não superior a 4 anos de prisão em caso de manutenção de tal agravação e qualificação do crime, sendo que, sem tal agravação e como se defende, pena não superior a 3 anos e seis meses de prisão (em caso de desqualificação e tratando-se, como se defende, unicamente de crime de homicídio simples na forma tentada, a pena que se vislumbra adequada é a de dois anos e seis meses de prisão); relativamente às penas aplicadas pelos crimes de coacção (a não se mostrar o arguido absolvido!), defendendo-se a sua atenuação para seis meses de prisão para cada um deles; no tocante ao crime de detenção de arma proibida, até pelo facto de tal circunstancialismo de uso de arma igualmente ter sido punido e valorado para efeitos de punição pelo crime de homicídio qualificado tentado, julga-se que se imporá atenuação punitiva e adequada e conforme às exigências de prevenção uma pena não superior a um ano e seis meses de prisão;

N. Por força da atenuação de tais penas parcelares e da sua majoração, a pena única resultante do concurso deverá ser fixada em medida não superior a três anos e seis meses em caso de procedência face à qualificação do crime de homicídio e sua punição a título simples, sem agravação da Lei 5/2006, quatro anos e três meses de prisão, caso haja provimento unicamente ao nível da não agravação da Lei 5/2006 ou, no limite, cinco anos de prisão em caso de improcedência do recurso relativamente à subsunção jurídica e sua manutenção;

O. Normas jurídicas violadas: maxime arts. 23º n.º 3, 30º n.º 2, 40º n.º 2, 70º, 71º n.º 1 e n.º 2 a), b) e d), 131º, 132º n.º 2 e) CP; art. 412º n.º 1 CPC; Princípios violados e erroneamente aplicados: maxime da culpa, da legalidade, da tipicidade, da igualdade, da proporcionalidade e da proibição do excesso, ne bis in idem, da proibição da dupla valoração bem como das finalidades das penas e exigências de prevenção.

Sic,

contando sempre com o douto suprimento de V/ Exas., atento o supra exposto, entende o recorrente que em obediência aos mais elementares princípios constitucionais e comandos interpretativos que presidem a um Direito penal que se queira materialmente justo e processualmente conforme, não poderá deixar de ser dado provimento ao presente recurso, maxime em razão dos vícios de que padece o douto acórdão recorrido e dos quais deve ser expurgado: I) ao nível da subsunção jurídica, com violação dos princípios ne bis in idem e proibição da dupla valoração, a justificar absolvição face à tentativa, não qualificação e punição agravante e II) majoração da dosimetria penal, justificando-se, em nome da visão global e da igualdade, a atenuação da ilicitude bem como das penas parcelares e única.

V/ Exas. decidirão de forma sábia, alcançando a costumada e almejada Justiça, (…)“.

4. A tal recurso respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, considerando que o mesmo não deveria ter provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.

A Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação ... emitiu também parecer, no qual consignou que o recurso se restringe ao reexame da matéria de direito, sendo competente para a sua apreciação este Supremo Tribunal de Justiça, conforme disposto no art. 432, n.º 1, al. c), do CPP.

5. Junto deste Supremo Tribunal de Justiça, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, sopesando o conjunto das circunstâncias, e tendo em conta os critérios estatuídos no art. 77 do CP, veio considerar que a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, aplicada ao recorrente, se revela justa e adequada, e não ultrapassa a medida da sua culpa, face ao número de crimes pelos quais foi condenado.

Concluindo, assim, que o recurso não merece provimento, e subscrevendo, no demais, a resposta apresentada pela Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância.

6. Foi cumprido o art. 417, n.º 2 do CPP, não tendo havido resposta.

Sem vistos, atenta a situação pandémica em curso, na vigência do estado de emergência.

Cumpre apreciar e decidir em Conferência.


II

O Acórdão Recorrido


1. Tal é a fundamentação de facto do Acórdão recorrido, incluindo a explicitação da formação da convicção do Tribunal com base nela:

“Após a audiência de discussão e julgamento, entende-se provado, com relevância para a decisão a proferir, o seguinte conjunto de factos:

1 – no dia 3 de Outubro de 2019, cerca das 4 horas e 20 minutos, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento de diversão nocturna “.............”, sito na Rua ..................., nesta cidade .............., acompanhado pela sua progenitora CC e pela testemunha DD, de alcunha “DD.”;

2 – aí, foi-lhe vedada a entrada pelos elementos da segurança que se encontravam a controlar a entrada e a saída de pessoas em tal espaço, nomeadamente pelos ofendidos EE, FF e BB, em virtude de o arguido se encontrar aparentemente embriagado e agressivo, sendo do conhecimento dos seguranças o seu histórico de episódios de violência na noite ............;

3 – não se conformando com a proibição, o arguido ficou ainda mais alterado e dirigiu àqueles elementos da segurança as expressões “Vão ver se eu não entro, mato-vos aos três!”, “Limpo-vos aos três, não tenho nada a perder!” e “Mato-vos!”, tentando incessantemente que lhe fosse franqueado o acesso ao referido estabelecimento;

4 – a todo o tempo, as acompanhantes do arguido tentavam dissuadir o mesmo dos seus intentos, mostrando-se aquele, todavia, decidido a entrar no mencionado espaço de diversão nocturna, fosse de que forma fosse e com o recurso a qualquer meio;

5 – as acompanhantes do arguido conseguiram então retirá-lo da zona da entrada do “........” durante cerca de quatro minutos, dali se afastando quatro ou cinco dezenas de metros;

6 – no entanto, volvido o período de tempo acabado de aludir, o arguido e as duas pessoas que o acompanhavam retornaram ao mesmo local, recomeçando o arguido a insistir com os elementos de segurança acima identificados que queria aceder ao interior daquele espaço e ali iria entrar de qualquer maneira, de novo lhe sendo dito pelos referidos elementos de segurança que não entraria, ao que o arguido, ripostando, afirmava que os mataria e não tinha nada a perder;

7 – então, as suas acompanhantes começaram a afastar o arguido à força do local, tentando levá-lo para o outro lado da rua, momento em que o arguido, estando ainda a cerca de três metros da entrada do apontado estabelecimento, retirou do bolso das calças que envergava uma pistola de alarme-salva prateada, com a inscrição “……”, transformada para disparar munições de calibre 6,35 milímetros “….”, efectuando um primeiro disparo para o ar;

8 – temendo pela sua vida, os elementos da segurança acima identificados acederam ao interior do estabelecimento, mantendo, todavia, a porta ainda aberta;

9 – o arguido continuou a ser afastado à força pelas suas acompanhantes, que conseguiram conduzi-lo até ao outro lado da rua, no passeio oposto, na direcção da Rua ......;

10 – de repente, no passeio oposto, o arguido inverteu o sentido da sua marcha e caminhou de novo em direcção à porta da ....... onde se encontravam os aludidos elementos de segurança;

11 – de seguida, eram cerca de 4 horas e 35 minutos,, encontrando-se ainda no passeio oposto ao do estabelecimento “.............”, a cerca de 10 metros da porta desse mesmo estabelecimento, e constatando estar tal porta ainda algo aberta, na qual o ofendido BB espreitava para o exterior, o arguido empunhou e apontou a mencionada pistola na direcção do dito segurança, o qual viu o cano da arma apontado na sua direcção, e efectuou um segundo disparo, dessa feita nessa mesma trajectória;

12 – no momento da disparo acabado de descrever, o ofendido BB encontrava-se à entrada da porta e, atrás de si, os outros elementos da segurança, estando também no hall ali existente, já no interior do estabelecimento, a testemunha GG (gerente da apontada …….) e outras pessoas;

13 – perante o disparo ora referido, e apercebendo-se do perigo de vida iminente, o ofendido BB, com a ajuda dos outros elementos da segurança, conseguiu fechar a porta (a qual é blindada), refugiando-se no interior …….;

14 – não conformado, e após tentar fazer novos disparos, então sem sucesso, o arguido conseguiu efectuar novo disparo, com a pistola, ainda mais próximo da porta do estabelecimento e na direcção do local onde os seguranças se encontravam, só não tendo procedido a mais disparos porque a arma encravou;

15 – após, abandonou calmamente o local, com as duas acompanhantes, na direcção da Praça .............;

16 – um dos projécteis dos disparos efectuados pelo arguido atingiu a parte superior da segunda porta do estabelecimento, no sentido este-oeste, onde se encontravam os ofendidos, e o outro atingiu a parede entre a primeira e a segunda porta;

17 – na altura dos factos, estavam diversas pessoas a entrar e a sair da ……., assim como muitos clientes e funcionários no seu interior, havendo igualmente bastante movimento na rua, tendo o arguido colocado desta forma em risco a integridade física e até mesmo a vida de várias pessoas;

18 – o arguido sabia que não era detentor de qualquer tipo de licença de uso e de porte de arma de fogo, estando igualmente ciente de que não podia deter ou utilizar a arma transformada acima referida, cujas características bem conhecia;

19 – quis forçar a entrada naquele estabelecimento mediante ameaças de morte dirigidas aos três seguranças;

20 – como não o conseguiu, visou tirar a vida ao ofendido BB e lesar o seu corpo e saúde, estando perfeitamente ciente de que o meio utilizado e a forma inesperada como agiu poderiam diminuir as possibilidades de defesa da vítima e eram aptos a provocar a morte da mesma, resultado com o qual se conformou e quis, só não o logrando alcançar por circunstâncias alheias à sua vontade;

21 – actuou o arguido movido somente pelo facto de não lhe ter sido permitida a a entrada no interior do estabelecimento acima identificado, bem sabendo que os ofendidos exerciam serviços de segurança naquele espaço e que actuavam por força dessas mesmas funções por eles desempenhadas;

22 – apesar de ter ingerido diversas bebidas alcoólicas nessa noite, agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, ciente da proibição e punição criminal das suas condutas;

23 – o arguido nasceu e cresceu em um contexto parental pautado pela instabilidade e pelos frequentes conflitos entre os progenitores, abandonando o pai do arguido o lar quando contava este último quatro anos de idade, e desvinculando-se desde então de quaisquer responsabilidades em relação ao contexto familiar;

24 – a mãe do arguido foi desenvolvendo hábitos alcoólicos, mantendo-se inactiva do ponto de vista profissional durante largos períodos temporais;

25 – o arguido foi crescendo sem referências de autoridade e supervisão parental, em um ambiente marcado pela anomia e permissividade por parte da sua progenitora;

26 – a situação do agregado familiar constituído pelo arguido e sua mãe revelou-se sempre precária e instável, sendo a respectiva sobrevivência assegurada através do auxílio social do Estado e do apoio regular da sua tia materna HH, residente em ....., a qual, aliás, teve o arguido a seu cargo durante seis meses, contava ele nove anos de idade;

27 – o arguido abandonou os estudos aos 15 anos, após concluir o 6º ano de escolaridade (em um percurso marcado pelo absentismo, reprovações e até uma expulsão aos 12 anos);

28 – no âmbito de medida de acolhimento em instituição decretada em processo de promoção e protecção, esteve internado na “.................”, em ....., entre Abril de 2011 e Junho de 2012, aí protagonizando algumas fugas;

29 – esteve depois internado, em regime fechado, no Centro Educativo ...., em .............., entre Junho e Dezembro de 2012;

30 – nunca desenvolveu qualquer actividade laboral de carácter regular, sendo a principal experiência de ocupação estruturada a prestação de trabalho a favor da comunidade (designadamente na ........., em funções ……), em 2016 e 2018, no âmbito de algumas das condenações judiciais abaixo referidas;

31 – na experiência acabada de mencionar, a atitude geral do arguido no cumprimento de tarefas e horários e no relacionamento com outras pessoas mais velhas não foi de molde ao surgimento de conflitos;

32 – à época dos factos em questão nos presentes autos, vivia com a mãe, em um ambiente de ascendente do arguido em relação a esta última;

33 – devido à sua inactividade, a mãe do arguido e este continuaram a depender economicamente de prestações sociais do Estado (percebendo o “rendimento social de inserção”), assim como do apoio regular da acima referida tia materna, que lhes assegurava o pagamento de algumas das despesas fixas correntes;

34 – o arguido já teve consumos regulares de haxixe e álcool, embora presentemente se encontre em situação de desabituação do consumo constante dessas substâncias;

35 – por perturbações emocionais e comportamentais foi encaminhado e esteve em acompanhamento ambulatório no serviço de psiquiatria e saúde mental do Centro Hospitalar........., sendo medicado com fármaco antidepressivo;

36 – evidenciou uma adesão aos acompanhamentos definidos no âmbito de alguns dos processos nos quais foi condenado, comparecendo pontualmente a entrevistas marcadas e às consultas de cariz psiquiátrico atrás mencionadas;

37 – o arguido já foi condenado no processo comum colectivo n.º 150/13........, do Juiz .. do Juízo Central Criminal da Comarca..........., por decisão de 15 de Julho de 2014, transitada em julgado em 30 de Setembro de 2014, pela perpetração, em .. de Outubro de 2013, de dois crimes de roubo qualificado e seis crimes de roubo, na pena unitária de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período temporal, com regime de prova;

38 – foi condenado no processo comum singular n.º 1602/13........, do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca..........., por decisão de 4 de Fevereiro de 2016, transitada em julgado em 7 de Março de 2016, pela prática, em 21 de Outubro de 2013, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5;

39 – foi condenado no processo sumaríssimo n.º 1014/15........, do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca ..........., por decisão de 13 de Abril de 2016, transitada em julgado em 26 do mesmo mês, pela prática, em 4 de Agosto de 2015, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 5 meses de prisão, substituída pela prestação de 150 horas de trabalho a favor da comunidade;

40 – foi condenado no processo comum singular n.º 801/14........, do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca ..........., por decisão de 27 de Junho de 2016, transitada em julgado em 12 de Setembro de 2016, pela perpetração, no ano de 2014, de um crime de roubo, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período temporal, com regime de prova;

41 – foi igualmente condenado no processo sumário n.º 1408/16........, do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca  ..........., por decisão de 25 de Outubro de 2016, transitada em julgado em 24 de Novembro de 2016, pela prática, em 14 de Outubro de 2016, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em concurso com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena unitária de 2 anos de prisão, substituída pela prestação de 480 horas horas de trabalho a favor da comunidade;

42 – no processo n.º 617/17........, do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca ..........., por decisão de 8 de Março de 2017, transitada em julgado em 7 de Abril de 2017, foi o arguido sujeito a operação de cúmulo jurídico envolvendo as penas parcelares a ele aplicadas nos processos identificados nos pontos 37, 38 e 40 (da presente matéria fáctica provada), sendo então condenado na pena única composta de 4 anos e 2 meses de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período temporal, com regime de prova, e 250 dias de multa, à taxa diária de € 5;

43 – foi condenado no processo comum singular n.º 1485/16.........., do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca .........., por decisão de 27 de Setembro de 2017, transitada em julgado em 30 de Outubro de 2017, pela perpetração, em 29 de Outubro de 2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período temporal, com regime de prova;

44  – foi igualmente condenado no processo comum singular n.º 200/16.........., do Juiz .. do Juízo Local Criminal da Comarca ..........., por decisão de 9 de Novembro de 2017, transitada em julgado em 11 de Dezembro de 2017, pela prática, em 11 de Novembro de 2016, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, em concurso com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena unitária de 2 anos de prisão, substituída pela prestação de 480 horas horas de trabalho a favor da comunidade;

45 – foi ainda condenado no processo comum colectivo n.º 1405/16........, do Juiz .. do Juiz Central Criminal da Comarca  ..........., por decisão de 12 de Dezembro de 2017, transitada em julgado em 24 de Janeiro de 2018, pela perpetração, em 13 de Outubro de 2016, de um crime de roubo, na pena de 2 anos de prisão, substituída pela prestação de 480 horas horas de trabalho a favor da comunidade;

46  – foi igualmente condenado no processo comum singular n.º 1498/16........, do Juiz .. do Juízo Central Criminal da Comarca .........., por decisão de 16 de Abril de 2018, transitada em julgado em 28 de Junho de 2018, pela prática, em 1 de Novembro de 2016, de um crime de condução sem habilitação legal, em concurso com um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena unitária de 1 ano e 10 meses de prisão, substituída pela prestação de 150 horas de trabalho a favor da comunidade;

47 – no processo identificado no ponto 45 (desta factualidade assente), por decisão de 10 de Julho de 2018, transitada em julgado em 25 de Setembro de 2018, foi o arguido sujeito a operação de cúmulo jurídico envolvendo as penas parcelares a ele aplicadas nos processos identificados nos pontos 41, 43, 44 e 45 (da presente matéria fáctica provada), sendo então condenado na pena única composta de 4 anos de prisão, suspensa na respectiva execução por igual período temporal, com regime de prova, especialmente focado na potenciação e preservação de hábitos de trabalho e ocupação sócio-profissional do arguido, na obrigação (da manutenção) do acompanhamento ambulatório do mesmo arguido no serviço de psiquiatria e saúde mental do Centro Hospitalar ............., e ainda, se necessário, na sua sujeição a tratamento tendente a controlar eventuais “recaídas” em termos de consumo de estupefacientes;

48 – e foi ainda condenado no processo comum singular n.º 75/18........., do Juiz .. do Juízo Central Criminal da Comarca ..........., por decisão de 19 de Junho de 2019, transitada em julgado em 4 de Setembro de 2019, pela perpetração, em 14 de Abril de 2018, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 2 anos de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica;

49 – aquando da sua entrada, em .. de Outubro de 2019, no Estabelecimento Prisional ....... (onde se encontra sujeito à medida de coacção de prisão preventiva), realizou testes analíticos com resultados positivos para o consumo de cocaína, tendo declinado, no entanto, acompanhamento e auxílio às suas questões aditivas;

50 – em Novembro de 2019, ingressou em um curso de cariz técnico-profissional no seio prisional, não frequentando, todavia, as aulas, vindo apenas, em Abril de 2020, a solicitar o reingresso no mesmo curso, passando a assistir às aulas;

51 – em Janeiro de 2020, foi punido com a medida disciplinar de permanência obrigatória no alojamento, pelo período de 10 dias, por posse de telefone móvel em 2 de Dezembro de 2019;

52 – recebeu visitas da mãe e da tia materna já acima identificada no meio prisional com regularidade até à suspensão de visitas no contexto de emergência de saúde pública ocasionada pela doença “Covid-19”;

53 – mantém presentemente contacto regular com as familiares acabadas de referir através de chamadas de voz e vídeo via Skype;

54 – as suas aludidas familiares manifestam disponibilidade para apoiar o arguido durante e após a reclusão;

55 – devido às ameaças proferidas, assim como os disparos pelo arguido efectuados, e que acima surgem descritos, o demandante EE sentiu-se agastado, receoso e abalado psicologicamente;

56 – igualmente por causa das ameaças proferidas, assim como dos disparos pelo arguido efectuados, e que acima surgem descritos, ainda para mais estando ele à porta, visível para o arguido, aquando do segundo disparo efectuado, o demandante BB sentiu-se agastado, receoso e abalado do ponto de vista psicológico.


*

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.

Assim, e designadamente, não se apurou que:

- ao efectuar o segundo disparo, acima melhor identificado nos pontos 11 e 12 (da matéria assente), visasse o arguido tirar a vida dos ofendidos EE e FF ou representasse que o disparo por ele efectuado pudesse atingir estes mesmos ofendidos;

- nas deslocações a fim de prestarem as suas declarações nos presentes autos, despendeu, cada um dos demandantes EE e BB a quantia de € 51.


*

O Tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida – e não produzida –, “peneirada”, nos termos do art. 127º C.P.P., à luz das regras normais da experiência da vida [ou seja, das «(…) definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judicio, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade» – Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Curso de processo penal”, volume II, Lisboa, 1988, pág. 30].

Portanto, o ditame acabado de referir – com o seu apelo às regras da experiência e à livre convicção da entidade julgadora – revelou-se de uma clara acuidade e oportunidade na apreciação da prova produzida (e, também, não produzida), por forma a, de modo realista e convincente, edificar a estrutura sustentadora de uma ciência minimamente “resistente” a dúvidas, incertezas e aporias.

Tudo o que acaba de ser dito é enquadrável, no entanto, na ideia geral de que a verdade judicial não é (nem pode ser) uma verdade “absoluta”, no sentido de uma verdade “ontologicamente” indestrutível. A verdade judicial alicerça-se em factos alcançados – e alcançáveis – através da interpretação e depuração dos diversos elementos probatórios produzidos e analisados em audiência de julgamento (quando a mesma ocorra) ou relativamente aos quais as partes estão de acordo quanto à significação e valoração próprias. A convicção do julgador baseia-se, pois, em tal conjunto de elementos, mediante a produção do dito juízo de verosimilhança, a que as normais regras da experiência comum não poderão ser alheias. Posto isto, o que temos nós in casu?

Temos, a começar, as declarações prestadas pelo arguido, as quais, e no essencial, se traduziram em dar a entender ao Tribunal a explicação para aquilo que, nas palavras do declarante, consubstanciou um “grito de revolta”.

E “revolta” por quê ou por causa de quê?

Segundo o arguido, porque os elementos de segurança não permitiram que aquele entrasse no interior da …….. “.............”.

Assim, e fundamentalmente, referiu em audiência encontrar-se bastante embriagado quando, juntamente com a sua mãe, CC, e a amiga DD (“DD.”) se aproximaram da zona de entrada do aludido estabelecimento de diversão nocturna e ali pretenderam aceder. Cumprimentou o demandante civil EE e foi surpreendido com a inusitada atitude deste, que lhe disse ser necessário despender a quantia de € 500 para entrar. O declarante insistiu no sentido de ingressar no interior da ......., sentindo a atitude do apontado EE – ao qual, entretanto, se associaram os outros dois elementos de segurança – como uma flagrante injustiça, ainda mais reforçada pelo facto de o ameaçarem com agressões físicas. Saíram – o arguido e as suas duas acompanhantes –, dirigindo-se para a zona ....... conhecida por “E.......”, dali distante umas poucas dezenas de metros. No entanto, e continuando a sentir-se fortemente injustiçado, retornou à porta de entrada do “........” alguns minutos depois, de novo sendo ameaçado de “pancada” pelos ditos seguranças, referindo-lhe a testemunha FF para ter calma e dirigir-se para o outro lado da rua. Então, efectuou o declarante um primeiro disparo para o ar, quando se encontrava a cerca de dois ou três metros de distância, alcançou o passeio do outro lado da rua, daí desferindo dois disparos em direcção à porta do estabelecimento em causa, porta essa que já se encontrava completamente fechada. E, nas palavras do arguido, esses dois disparos só ocorreram porquanto, exprimindo a tal “revolta” interior, a porta se encontrava fechada, tendo ele a certeza de que não fariam “mal” a ninguém… Por isso, negou ter agido com intenção alguma de matar fosse quem fosse, tal como negou haver ameaçado, em algum momento anterior, os elementos de segurança do “........” com quem entabulara as “ásperas” conversações precedentes. Por fim, e com relevo na economia do seu discurso, o arguido referiu ainda algo de muito curioso, a saber, o só ter levado a arma de fogo porquanto, por aqueles dias, vinha sendo ameaçado por um tal “Jorge” e o mencionado instrumento servia, assim, para garantir a sua defesa. Todavia, revelou ainda o cuidado de frisar, em audiência, que a arma em questão era transportada, não por si, mas sim pela testemunha DD, na respectiva carteira de senhora por ela usada, acontecendo então retirar o arguido a pistola dessa carteira quando se encontrava nas proximidades da porta da ......., após os seguranças o afastarem e continuarem a ameaçar, acabando então ele por efectuar o primeiro disparo para o ar.

Bom, conquanto não haja o arguido negado parte do óbvio, tentou, ainda assim, pintar um quadro factual que choca, de modo claro, com a realidade das evidências.

Vejamos.

Desde logo, não deixa de ser notável assistirmos ao relato dos factos por parte de alguém que, nas suas próprias palavras, se encontrava bastante embriagado na ocasião, embora conservando (pelos vistos…) uma memória fresca quanto a determinados aspectos de tudo o que se passou naqueles específicos momentos…, designadamente a circunstância de, a avaliar pelas suas suas palavras, se ter “assegurado” (através de um tiro desferido para o ar…) de que a porta de entrada da ....... se encontrava totalmente fechada e, por isso mesmo, estarem reunidas as condições necessárias para continuar ele a soltar os seus “gritos de revolta” sem pôr em risco a integridade física e a vida de quem quer que fosse…

Enfim, parece ao Tribunal tão evidente o novelo de incongruências e inverosimilhanças da tese acabada de expor que a mesma como que cairia por si própria, à luz da normalidade das regras da experiência.

Mas há mais elementos a negar o sentido da globalidade do relato do arguido. Por um lado, o demandante civil BB referiu encontrar-se na zona de entrada do “........”, juntamente com os seu dois colegas EE e FF (sendo que este último, aquando da primeira abordagem do arguido, se deslocara, por uns minutos, à casa de banho, chegando entretanto). Mais esclareceu que, nessa ocasião, ele – ora declarante – estava do lado de dentro do edifício, porquanto postado na porta de saída da ......., que se encontrava aberta e se situa ao lado da porta de entrada, junto da qual, nessa ocasião, no passeio, se encontrava o demandante EE (sendo o espaço interior do hall do edifício comum a tais portas). E foi este último quem falou com o arguido, dizendo-lhe que não poderia ali entrar, ao que o mesmo arguido, mostrando-se cada vez mais alterado, gritava, ripostando, afirmando que iria ali entrar de qualquer maneira e que os matava. As suas acompanhantes conseguiram afastá-lo dali por alguns minutos, até ao momento em que, um pouco depois, voltaram, insistindo o arguido que iria entrar de qualquer maneira e nada tinha a perder. O ora declarante e os seus colegas de novo lhe afirmaram não poder entrar e dever sair daquele local, o que por momentos o arguido pareceu acatar, porquanto se afastou uns metros, levado pelas companheiras; voltou, todavia, de novo a aproximar-se, tirou uma arma do bolso das calças, puxou a respectiva culatra e efectuou um disparo para o ar, de imediato se gerando uma natural sensação de intranquilidade e temor junto do declarante e seus colegas e demais pessoas que ali se encontravam (como, por exemplo, o gerente do “.........”, GG); uma vez mais, e logo após, pareceu que o arguido se afastava de vez, o que, no entanto, não aconteceu, porquanto, já no passeio do outro lado da rua, voltou atrás, de arma em punho, direccionou-a para a zona da porta de entrada do estabelecimento, que se encontrava aberta e onde o declarante espreitava (com os seus colegas atrás de si), disparando; levado por um impulso, o demandante BB conseguiu fechar a porta, em cuja parte exterior embateu o disparo; o declarante ficou a segurar a dita porta, e um terceiro tiro efectuado pelo arguido terá (é essa a sensação que guarda do momento) embatido novamente na mesma porta.

O igualmente demandante civil EE teve uma prestação, em audiência, não muito distinta da que acabámos de expor. Começou por esclarecer ter já trabalhado em outros locais de diversão nocturna da cidade .........., conhecendo o arguido dessas mesmas ocasiões, das quais recordava um histórico violento e propenso a criar desacatos de diversa natureza. Por isso mesmo, e percebendo estar o arguido bastante “alterado” (e, possivelmente, embriagado), o declarante ora em causa disse-lhe que não poderia entrar naquela ....... (negando, todavia, haver acrescentado que a entrada seriam € 500). O arguido ameaçava-os de que os “limparia” e mataria e iria entrar de qualquer forma. Por momentos, a senhora mais velha e a rapariga mais nova que o acompanhavam conseguiram retirá-lo dali, afastando-se para a zona das “E ........”. Só que uns três ou quatro minutos depois, voltaram, trazendo o arguido uma arma de fogo no bolso das calças e afirmando que “iriam ver se entrava ou não”. De novo os ameaçou, afastando-se para o outro lado da rua com as suas acompanhantes, não sem antes, muito perto da zona da porta, efectuar um disparo para o ar; de seguida, afastou-se mais alguns metros, para o outro lado da rua, e disparou em direcção à porta de entrada, atrás da qual se encontravam, e entre outros, o demandante BB (este, à frente de todos), o ora declarante e o colega FF. E a convicção do demandante agora considerado apontou claramente no sentido de que esse segundo disparo do arguido ocorreu em um momento em que a porta em questão ainda não se encontrava totalmente fechada, tendo sido o demandante BB quem, lesto e por se encontrar à frente dos demais, conseguiu (ainda que com a ajuda do mesmo declarante e do seu colega FF) de imediato fechá-la, mesmo a tempo de que ocorresse “apenas” o embate do projéctil na parte de fora. Embate a que, tanto quanto recorda, se seguiu logo um outro, pensa que também na porta, agora já completamente fechada (e que é à prova de bala, blindada). Note-se que o declarante em questão teve a hombridade de reconhecer que, naqueles momentos tão stressantes, mais do que visualizar o início do segundo e do terceiro tiros, sentiu-os e ouviu-os bem, pois que – como já salientado há pouco –, para além de ser o demandante BB quem se encontrava então na zona mais à entrada da porta, o terceiro tiro foi desferido em um momento no qual a mesma se encontrava totalmente fechada.

Por seu turno, disse a testemunha FF (como, aliás, o demandante BB tivera ocasião de esclarecer aquando da prestação das suas declarações) que, quando chegou (ele, depoente) à zona da porta de entrada, os seus colegas “lidavam” já com o arguido, dizendo-lhe que não poderia entrar. No entanto, o facto de não haver assistido ao início daquela “conversa” não impediu o depoente de constatar, com clareza, o estado de exaltação do arguido (que repetia “limpá-los a todos” se o não deixassem entrar no “........”). As duas acompanhantes do arguido levaram-no então dali, voltando passados uns minutos, continuando o arguido a anunciar que ia entrar fosse de que maneira fosse e, se necessário, os mataria. Perante a reafirmação de que não estava autorizado a entrar, o arguido, puxado pelas ditas acompanhantes, afastou-se uns metros e efectuou um primeiro disparo para o ar e, seguidamente, mais afastado, no outro passeio, um novo disparo, dessa feita em direcção à porta de entrada, que foi então fechada a impulso, antes do mais, do demandante BB.

Os dois primeiros elementos de segurança acabados de identificar (BB e EE) falaram também da sensação de angústia por que passaram na sequência dos factos ora sujeitos a julgamento, tendo deixado – tal como, aliás, a testemunha FF – algum tempo mais tarde, as funções de segurança no “........”.

Se o Tribunal não tem uma “idílica” imagem da forma como, por vezes, o relacionamento nocturno entre as pessoas tende a ocorrer, mormente em contexto de acesso a casas de divertimento – pois que a “aspereza” de tratamento tende muitas vezes a surgir nas situações mais inusitadas –, não ficou, ainda assim, e como é evidente, com a sensação de que a tese tentada fazer passar em audiência pelo arguido é próxima da realidade.

Aliás, a propósito do aspecto acabado de referir, mostrou-se também importante, em termos testemunhais, o depoimento – sereno, coerente e circunstanciado – do já mencionado GG, gerente do estabelecimento a que nos vimos reportando (e que denotou uma inegável – e compreensível – “tarimba”, atento o seu métier, para a percepção daquilo que podem constituir os prenúncios de problemas). Assim, disse não ter estado presente na primeira abordagem do arguido à zona de entrada, embora rapidamente haja sabido que houvera então um desaguisado. Depois, no entanto, e encontrando-se no seu escritório, no interior do edifício em causa, no qual dispõe de visionamento das imagens captadas pelas câmaras de videovigilância (as quais filmam, além do mais, as proximidades e a zona da entrada do estabelecimento), ficou com a sensação de que uma pessoa que se aproximava da entrada do estabelecimento parecia transportar com ela um volume suspeito no bolso das calças. Temendo o pior, a testemunha contactou de imediato a autoridade policial e dirigiu-se até à zona do hall de entrada e ao lado da rua, imediatamente confinante com a porta de entrada (vide imagens de videovigilância de fls. 48 verso e 49 frente), muito próximo do ponto onde veio a dar-se, pouco após, o primeiro disparo para o ar, efectuado pelo arguido (cfr., a propósito, e com interesse para o agora referido, as imagens constantes de fls. 49 frente e verso, especialmente de fls. 49 verso, supra, e ainda, complementarmente, de fls. 43 verso, infra, relativo ao momento em que o arguido desferiu o tiro para o ar, parecendo o depoente GG – que se encontrava na rua, na pequena ponte de entrada para o estabelecimento – adoptar uma nítida postura física de encolhimento e surpresa com o sucedido). No mais, afirmou ter a sensação de que o segundo disparo, pouco depois efectuado pelo arguido em direcção à porta de entrada, ocorreu em um momento no qual esta ainda não se encontrava fechada, sendo-o de imediato, no frenesim sentido como necessário para evitar males maiores [designadamente o de alguma(s) das pessoas que se encontravam no hall poder(em) ser atingida(s)].

Se de algum modo poderíamos afirmar que todos estes declarantes e depoentes teriam algum interesse directo naquilo que se discute nos presentes autos, bastaria que sopesássemos, ainda mais, os seguintes elementos.

Por um lado, o depoimento da testemunha II, e não obstante a sua concisão, mostrou bem o global acerto das anteriores prestações. Com efeito, passava ele à frente da ......., proveniente do lado das “E........”, e percebeu que ali decorria uma altercação do arguido com os porteiros do apontado estabelecimento, ouvindo apenas o primeiro (arguido) a insultar os segundos (porteiros). Prosseguiu o seu caminho, não sem antes escutar uns disparos (mais de dois, com certeza), o que o levou a chamar telefonicamente de imediato a Polícia de Segurança Pública ....... Teve em audiência a correcção de dizer que, mais do que ver, ouviu os disparos, revelando-se tudo muito rápido, e podendo até haver acontecido (embora não o assevere) ter-se fechado a porta de entrada da ....... após o primeiro disparo.

Mas o que dizer do conjunto de todas as imagens de videovigilância juntas aos autos, obtidas de diversos ângulos da artéria em causa, e que constam de fls. 42 a 50 (nas quais se encontram as imagens há pouco aludidas, a propósito da testemunha GG), tal como de fls. 91 a 109 (anexas ao auto de visionamento de fls. 90)? O que dizer, por exemplo, das imagens de fls. 100 e 103, relativas ao segundo disparo efectuado pelo arguido, do outro lado da rua relativamente ao edifício do “.............”, pelas 4 horas e 35 minutos (e 45 segundos), e das quais se percebe que, nesse preciso momento, a porta de entrada da aludida ....... ainda não está fechada?

Como fica a tese do arguido em todo este conspecto, à luz das normais regras da experiência da vida?

Ainda para mais se tivermos em conta o conteúdo do relatório de exame pericial de fls. 83 a 89, referente aos pontos de onde terão sido efectuados os disparos e, sobretudo, os pontos de impacto dos projécteis desferidos (não se afigurando ao Tribunal nada estranha a sensação que se apoderou dos demandantes EE e BB de um segundo tiro – que, na verdade, foi o terceiro da totalidade – a atingir a porta de entrada da ....... e, na realidade, tal não ter acontecido, acabando por acertar bastante perto, entre a dita porta e a porta imediatamente vizinha: basta pensarmos na adrenalina e na sensação de acossamento e perigo que – justificadamente – se apoderaram dos mencionados demandantes para não deterem a exacta noção do ponto – onde, para mais, estando já a porta fechada – no qual embateu o último dos disparos realizados pelo arguido).

JJ é o elemento policial que tomou conta da ocorrência, alguns minutos após a eclosão dos factos, elaborando o inerente auto de notícia, relatando em audiência haver apanhado, no passeio, cinco munições, sendo três invólucros – relativos aos projécteis disparados – e duas munições por deflagrar (cfr. também fotografias de fls. 23).

Por seu turno, KK e LL trouxeram um apport importante em termos de explicação da dinâmica dos disparos efectuados pelo arguido, à luz dos elementos testemunhais, periciais e documentais já atrás enumerados (sendo que a testemunha LL esteve também na apreensão da arma de fogo do arguido, por este durante algum tempo escondida em um local só dele conhecido – cfr. igualmente auto de diligência de fls. 174 e 175, fotografias de fls. 176 a 180, e ainda auto de apreensão de fls. 181, relatório de exame pericial de fls. 184 a 186, auto de exame directo de fls. 187 e 188 e fotografia de fls. 189, e ainda relatório de exame pericial de fls. 548 a 559).

Pelo que, em todo este conspecto, importa ainda referir a estranheza de mais alguns aspectos das declarações do arguido, ao afirmar, por exemplo, que a arma de fogo por si detida foi transportada, toda aquela noite, na carteira de senhora da testemunha DD… Tem sentido tal alegação quando, por um lado, o próprio arguido justificou a detenção da arma pela necessidade da sua defesa (que, pelos vistos, seria compatível, em um momento de “aflição”, com a delonga da retirada da arma do interior daquela mala de senhora, ainda para mais em um possível momento no qual a dona da mala não estivesse junto ao arguido…)? E tem sentido aquela mesma afirmação do arguido quando a referida DD afirmou em audiência não ser verdade transportar ela a arma na sua bolsa, antes sendo o arguido a levá-la no bolso das respectivas calças?

No mais, a ora identificada DD prestou um depoimento claramente defensivo quanto aos factos praticados pelo arguido na zona de entrada do “.......”: só se teria apercebido da exigência de € 500 por parte dos seguranças em relação ao arguido, caso quisesse este entrar, mas já não se apercebeu das ameaças por ele (arguido) verbalizadas em relação aos primeiros…; tal como só se teria apercebido de um disparo para o ar efectuado pelo arguido, não conseguindo vislumbrar outros disparos por ele desferidos de seguida [atitude em audiência que surgiu, aliás, infirmada pelo depoimento prestado pela mesma testemunha em sede de inquérito e que, nos termos do art. 356º/n.os 2-b), 3-a) e 5 C.P.P., foi lido pelo Tribunal, desse mesmo depoimento decorrendo ter ela percepcionado ainda o arguido a desferir dois tiros para a porta do estabelecimento (cfr. fls. 286 e 287)…].

No que tange à mãe do arguido, CC, praticamente decalcou o sentido das declarações prestadas em juízo pelo seu filho, denotando uma falta de autenticidade, coerência e fidedignidade absolutas, perante todos os elementos a que já atrás fizemos menção. Elementos que, como vimos, não confortam minimamente, antes pelo contrário, a tese veiculada pela dita testemunha (e pelo arguido).

Quanto a HH, tia do arguido, foi por este procurada, no dia seguinte à factualidade sub iudicio, aconselhando-o (e bem) a entregar-se nos autos, a fim de permitir um mais rápido deslindamento da matéria a apurar.

MM é amigo do arguido há cerca de seis anos e (sinceramente, não o poderemos dizer de outra forma) prestou um mau serviço à administração da justiça. Enredando-se em inúmeras contradições, tergiversações e incoerências, tentou fazer passar a ideia de que, vindo ele (depoente) do lado das “E ........” e estando no passeio imediatamente confinante ao “.........”, junto à parede de um dos prédios existentes desse mesmo lado, a várias dezenas de metros de distância da aludida ....... (ou seja, ainda mais afastado do ponto onde se situa a câmara da qual foram recolhidas as imagens de fls. 42 a 47), conseguiu ver, no momento em que o arguido efectuou os dois disparos na direcção da respectiva porta de entrada, que essa mesma porta se encontrava fechada…! Ou seja, tentou fazer crer algo que lhe era fisicamente impossível de vislumbrar...

Outro tanto nos pareceu ser (embora de modo não tão pronunciado) o depoimento de Susana Ester Silva, a qual quis passar a ideia (contra a evidência das filmagens disponíveis nos autos) de que, ao aproximar-se da zona da ....... em questão, provinda do lado oposto ao das “E........”, viu um primeiro disparo do arguido para o ar, não se tendo (nas suas próprias palavras) apercebido, ao certo, do que ali se passava, apesar de, mesmo assim, conseguir descortinar – dessa feita sem dúvidas… – de que, no segundo e no terceiro tiro que se seguiram, as portas do “..........” já se encontravam bem fechadas…

Quanto a OO e PP, tratam-se de dois amigos do arguido que disseram, e em suma, fazerem dele a melhor dos juízos.

Com interesse, no entanto, depôs QQ, oficial do Exército ao serviço …….. e que privou com o arguido durante o período temporal em que o mesmo aí prestou trabalho a favor da comunidade na sequência do imposto judicialmente, referindo, e em síntese, tratar-se de uma pessoa que globalmente efectuou tal trabalho de modo empenhado e sem criar problemas ou atritos com outrem.

A propósito dos últimos aspectos vivenciais focados teremos também de dar grande relevo ao teor do relatório social junto a fls. 589 a 591, assim como ao certificado do registo criminal de fls. 537 a 544.

Então, e em suma, da concatenação crítica de tudo aquilo a que já fizemos referência, à luz das normais regras da experiência de vida, resultou, pois, para o Tribunal a ideia de ser o mesmo idóneo à demonstração da factualidade dada como provada, restando, concomitantemente, por deslindar os factos descritos como não provados.


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2. É o seguinte o teor da fundamentação mais especificamente jurídica do Acórdão recorrido:

“A responsabilização jurídico-penal de um indivíduo carece, em tese geral, da verificação dos seguintes requisitos: a prática, por acção ou omissão, de um facto típico (correspondente a um certo tipo legal de crime), ilícito (violando ou pondo em perigo o bem jurídico protegido por esse tipo) e culposo (fundamento do juízo ético de censura dirigido ao agente, seja a título de dolo ou de negligência). Por fim, é fundamental a conexão objectiva (em termos causais) da conduta do indivíduo à produção de um certo resultado ou evento (sendo que, como se percebe, o resultado naturalístico pressuposto já não valerá, no entanto, no caso dos chamados crimes de mera actividade – sobre esta figura, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, tomo I, 2ª edição, reimpressão, Coimbra, 2011, pág. 306).

Nos presentes autos, e como acima se disse, vem o arguido acusado da prática de diversos crimes.

Vejamos, então, se a matéria factual apurada conforta ou não a totalidade da acusação em causa.


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Começa por ser assestada ao arguido a perpetração, como autor material, de três crimes tentados de homicídio qualificado, p. e p. nos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º/n.os 1 e 2-e), h) e l) C.P., a que acresce ainda a qualificação advinda do art. 86º/n.º 3 da Lei n.º 5/2006.

Se a nossa lei penal prevê vários tipos legais que punem os autores de condutas que causam a morte de outra pessoa, o art. 131º C.P. (consagrador do crime de homicídio simples) é o tipo base de todos estes crimes, que dele se distinguem em função da ilicitude e da culpa.

Assim, no domínio dos crimes de homicídio, a norma matricial rege no sentido de que «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos» (art. 131º C.P.).

O comportamento tipicamente relevante é (quase ocioso será dizê-lo) aquele que consiste em matar outra pessoa, não prescindindo o preenchimento objectivo do tipo, pois, de um certo resultado (a morte de outrem).

Por outro lado, trata-se de uma figura dolosa, exigindo o dolo «(…) el conocimiento y la voluntad de realizar las circunstancias del tipo objetivo, es decir, saber que se mata a otra persona y querer hacerlo. Basta con el dolo eventual, o sea que es suficiente con que el autor haya previsto la muerte de otra persona como una consecuencia probable de su acción y a pesar de ello haya actuado» (Prof. Francisco Muñoz Conde, “Derecho Penal, Parte Especial”, 14ª edição revista e actualizada, Valência, 2002, pág. 41).

Bastarão estas simples notas para percebermos que o homicídio (e, agora, em qualquer uma das suas múltiplas variantes) é, pois, o crime por excelência contra as pessoas, destinando-se a proteger o bem jurídico mais lidimamente intrínseco ao ser-se pessoa enquanto tal, isto é, o ter-se vida. Nas autorizadas palavras do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, estamos perante o bem jurídico correspondente à «(…) vida de outra pessoa e, por conseguinte, (…) à vida humana» (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág. 4). Os tipos legais consagradores do homicídio correspondem, assim, ao garantir dos «(...) bens fundamentais da individualidade física e moral da pessoa» (Prof. Francesco Santoro-Passarelli, “Teoria Geral do Direito Civil”, tradução portuguesa, Coimbra, 1967, pág. 30), fundados na ideia de dignidade da pessoa, que constitui um dos pressupostos do Estado de Direito Democrático e está, por isso mesmo, constitucionalmente consagrada [cfr. arts. 1º e 24º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.)].

Se a protecção da vida humana é uma das marcas indeléveis de qualquer sociedade pautada por valores de dignidade, respeito e humanidade, representa igualmente o fruto ou produto de uma longa mas sustentada sedimentação daquilo que constitui o património axiológico fundamental de uma comunidade em certo estádio da sua evolução, sendo o direito (e, maxime, o direito penal), assim, a intenção normativa que assimila esse mesmo património axiológico (Prof. António Castanheira Neves, “A revolução e o direito”, in “Digesta, Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros”, volume I, Coimbra, 1995, pág. 56).


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Mergulhando na análise concreta do caso, e perscrutando a matéria factual acima dada como assente, o que dizer?

Que nos parece haver praticado o arguido conduta idónea a tirar a vida ao demandante BB, através do disparo na direcção deste último efectuado, mas sem que, contudo, viesse a ocorrer o mais funesto dos resultados.

Com efeito, ao ver a porta da …… “.............” ainda aberta e o rosto do referido demandante a assomar à entrada da mesma, não hesitou o arguido em desferir um primeiro disparo na sua direcção. Disparo que, como sabemos, veio então a embater na estrutura da porta, entretanto fechada como (compreensível e adequada) medida de protecção levada a cabo pelo visado pela bala disparada.

Para além disso, provou-se haver actuado o arguido de forma deliberada e consciente, com o intuito de causar a morte ao aludido demandante.

Neste quadro factual, importará ter então em mente o critério geral do art. 22º C.P., relativo à figura da tentativa, percebendo nós estarmos perante actos que completam a configuração típica do crime de homicídio, isto é, preenchem um elemento objectivo constitutivo de tal tipo de crime.

Isto parecerá relativamente claro.

Crê-se, pois, que o elemento objectivo do tipo – tentado – está indiscutivelmente preenchido (consubstanciado – já acima ficou dito – no acto tendente a conseguir a morte de outrem, pese embora não venha a mesma a consumar-se por motivos alheios ao agente – in casu, como vimos, ao arguido).

Acrescendo ainda, como acabámos de notar, o elemento subjectivo do homicídio.

Construir outras teorias a propósito da matéria adquirida nos nossos autos, no contexto criado (e usado) pelo arguido, parecerá ao Tribunal, e salvaguardando sempre o devido respeito por opinião diversa, um exercício pouco consentâneo com aquilo que nos oferece a realidade das coisas e dos específicos e singulares comportamentos adoptados pelas pessoas.

O que, por outro lado, e sem prescindir, nos convoca a uma subsequente (e importantíssima) reflexão.

Não nos esqueçamos de que a acusação pública imputa ao arguido a prática de três crimes tentados de homicídio qualificado (e já veremos esta específica questão da qualificação do comportamento do arguido), no (óbvio) sentido de ter como destinatários os três elementos da segurança do estabelecimento “........”. Ora, a realidade apurada em audiência de julgamento não permite a visão “maximalista” acabada de expor, porquanto, como percebemos, a atitude tomada pelo arguido dirigiu-se e teve como destinatário (sem dúvida porquanto era este – mas era somente este – que se encontrava em frente a si) o demandante civil BB e não uma outra qualquer pessoa.

Pelo que, e além do mais, não podendo os actos de execução praticados pelo arguido (cfr. art. 22º/n.º 2 C.P.) repercutir-se sobre outrem que o ora apontado demandado cível, não existem quaisquer elementos fácticos sustentadores da referida tese “maximalista” (prática de três crimes de homicídio qualificado tentados) vertida na acusação pública.

Temos, portanto, um só crime tentado.


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Revelará sentido, no entanto, imputar ao arguido, tal como também o faz a acusação pública, a qualificação do homicídio?

Vejamos.

Dispõe o n.º 1 do art. 132º C.P. que «se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos».

Vem sendo maioritariamente defendido (e bem, segundo o Tribunal) que a norma acabada de citar consagra a combinação de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a chamada técnica dos “exemplos-padrão”, contidos no n.º 2 do aludido art. 132º C.P..

Consequentemente, a qualificação do crime de homicídio não resulta de forma automática ou inexorável da verificação de uma ou várias das circunstâncias enumeradas no art. 132º/n.º 2 C.P., sendo necessário que as mesmas revelem especial censurabilidade ou perversidade.

O crime de homicídio qualificado mais não é, assim, do que uma forma agravada do homicídio simples, encontrando-se o plus dessa mesma agravação na “especial censurabilidade ou perversidade” do agente.

Como escreveu o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrita com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos aos descritos e que integram o tipo de culpa qualificador. Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador (…) que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º/n.º 2» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 26).

Ainda a propósito da razão de ser da enunciação exemplificativa adoptada pela lei, importará salientar que «muitos dos elementos constantes das diversas alíneas do art. 132º/n.º 2, em si mesmos tomados, não contendem directamente com uma atitude mais desvaliosa do agente, mas sim com um mais acentuado desvalor da acção e da conduta, com a forma de cometimento do crime. Ainda nestes casos, porém, não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação, antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é dizer, o especial tipo de culpa do homicídio agravado. Só assim se podendo compreender e aceitar que haja hipóteses em que aqueles elementos estão presentes e, todavia, a qualificação vem em definitivo a ser negada» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 27).

A ideia da lei é, pois, a «(…) de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 29).

Importará ainda a formulação das três notas seguintes.

Em primeiro lugar, e como se referiu também no Ac. S.T.J. de 17/12/2009 (in www.dgsi.pt), o preenchimento dos “exemplos-padrão” poderá nem ser necessário para efeitos de qualificação da conduta do agente, derivando antes tal qualificação de um circunstancialismo equivalente, também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade; ao invés, pode a integração formal nos ditos “exemplos-padrão” não ser o bastante, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132º C.P. sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. Tudo valendo para dizer que a interacção entre os n.os 1 e 2 do art. 132º C.P. poderá conduzir, portanto, à exclusão do efeito prima facie indiciado pelos “exemplos-padrão”.

Depois – e é a segunda nota, intimamente ligada à primeira –, fundamental se mostra que, em uma perspectiva global do facto, surja uma agravação de censurabilidade a assestar ao agente por esse mesmo facto, por via do especial conteúdo de culpa prima facie indiciado pelos “exemplos-padrão” do n.º 2 do art. 132º C.P..

Por último, bem se perceberá que a imagem global do facto agravada possa, pois, surgir, não de um preenchimento exacto da previsão abstracta de um ou vários dos “exemplos-padrão” mas de uma situação concreta que, em um juízo de analogia, lhe(s) seja substancialmente assimilável, sem que daqui derive a violação do princípio da legalidade criminal (neste expresso sentido, vide Acs. S.T.J. de 14/10/2010 e de 31/1/2012, in www.dgsi.pt).

O que temos, então, nos autos?

De acordo com a acusação pública (adaptada ao que ora nos interessa), um crime de homicídio qualificado tentado, por causa das qualificativas ínsitas ao n.º 2-e), h) e l) do art. 132º C.P., que nos remetem para as realidades a seguir expostas.

Desde logo, um juízo de especial censurabilidade deverá abater-se sobre o arguido, dado o comportamento por si adoptado na sequência e por causa de lhe ter sido vedada a entrada em um estabelecimento de diversão nocturna… Ou seja, algo que acontece (e pode acontecer) em casas onde se exerce o direito de admissão relativamente aos respectivos clientes motivou no arguido o violento, ilícito e culposo acto dirigido a tirar a vida de um dos elementos de segurança do “.........”. Parecendo-nos, pois, irrecusável concluir, nas palavras autorizadas do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, que, in casu, «(…) o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito, (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 32 e 33; em idêntico sentido, cfr. Ac. Rel. Porto de 21/3/2018, in www.dgsi.pt).

Consequentemente, cremos caber na hipótese dos autos a qualificativa pensada na alínea e) do n.º 2 do art. 132º C.P..

Outro tanto, todavia, não nos parece poder valer para a qualificativa prevista no n.º 2-h) do art. 132º C.P., que se reporta (para o que ao nosso caso relevaria, atendendo à fisionomia e aos considerandos fáctico-jurídicos expressos na acusação pública) à utilização, pelo arguido, de um “meio particularmente perigoso” na perpetração da tentativa de homicídio em causa.

Com efeito, a categoria dos “meios particularmente perigosos” impele a meios que detenham um acréscimo de ofensividade muito superior àqueles meios já de si perigosos ou até bastante perigosos, isto é, a meios (os particularmente perigosos) que revelem um excepcional poder ou vocação e adequabilidade a uma acentuada desproporção entre a perigosidade do próprio atentado e a capacidade de correspondente defesa do visado (neste sentido, Ac. Rel. Coimbra de 28/11/2018, in www.dgsi.pt).

Conquanto não se negue a (evidente) perigosidade de uma arma de fogo como a empregada pelo arguido, parece-nos – atento também o contexto em que a mesma foi utilizada (apesar de tudo, e não o esqueçamos, a uma distância de cerca de 10 metros da porta de entrada da ......., e de um modo que permitiu ao visado fechar ainda atempadamente essa mesma porta) – que não alcançará o patamar, pensado pela norma penal em questão, dos “meios particularmente perigosos”. Sob pena de, a não ser o problema assim entendido, e como em tese ensinou o Prof. Jorge de Figueiredo Dias, «(…) se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso» (“Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 37).

Finalmente, decorrerá também da acusação pública merecer a actuação do arguido o apodo de especialmente censurável devido à circunstância de o facto criminoso ser praticado contra um elemento dos serviços de segurança do estabelecimento “.......”?

Não se pondo em causa que a qualidade da concreta vítima do nosso caso se integra em uma das categorias pensadas no n.º 2-l) do art. 132º C.P. (pois alargou a lei o catálogo de classes de pessoas a proteger, aí fazendo incluir igualmente funções de cariz não público), a verdade é que sempre importará perscrutar, em cada caso concreto, algo mais do que a morte (ou a sua tentativa) de uma das pessoas mencionadas na referida norma no exercício das respectivas funções ou por causa delas; «(…) será sempre necessário provar (…) que tais circunstâncias revelam, no caso, a especial censurabilidade ou perversidade do agente; o que só acontecerá se ao homicídio puder ligar-se uma especial baixeza da motivação ou um sentimento particularmente censurado pela ordem jurídica, ligados à particular qualidade da vítima ou à função que ela desempenha» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 41).

Pois bem, se entendemos que a essencial “mola” impulsionadora do facto perpetrado pelo arguido radicou em um motivo (obviamente) fútil, denunciador de uma especial censurabilidade daquele, cremos também que foi precisamente por aí e por causa de tal elemento – o motivo fútil – que o comportamento assumiu os contornos que assumiu, e não tanto pelo especial tipo de função desempenhada pela vítima. Isto é, estamos em crer que, acaso tivesse sido outra pessoa (imaginemos, por exemplo, o gerente GG) a “barrar” a entrada do arguido no estabelecimento, a actuação deste último não haveria de ser diferente, tudo nos levando, assim, a pensar que a especial censurabilidade do comportamento, como acima dissemos, se liga à motivação fútil do mesmo e não tanto à circunstância de a vítima integrar a categoria dos elementos de segurança privada (os quais, ainda para mais, integram um “mundo” por vezes atreito a “asperezas” de relacionamento só desconhecidas de quem nunca observou esse mesmo “mundo”…).

De tudo resultando que, e em suma, pela razão da futilidade do motivo (e só por essa), não poderemos fugir, como há pouco dissemos, a uma imagem de culpa agravada no cometimento do facto ilícito. Dito de outra maneira, a violência adoptada pelo arguido na perpetração do facto, pelos motivos que o fez, colora (rectius, qualifica) a imagem global do facto de um acréscimo de censurabilidade radicado em uma especial culpa do arguido, por ter agido da forma como agiu.

Em suma, afirmaremos, nos termos dos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º/n.os 1 e 2-e) C.P., a qualificação do homicídio tentado cometido pelo arguido.

É também imputada ao mesmo arguido a prática de três crimes tentados de coacção, p. e p. nos arts. 22º, 23º, 73º e 154º/n.os 1 e 2, todos C.P..

É usual dizer-se que o crime de coacção consagra a protecção penal da liberdade de decisão e de acção das pessoas.

De um ponto de vista objectivo, o preenchimento típico consiste em, através do uso da violência ou da ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento activo ou omissivo, isto é, a praticar ou a omitir determinada acção, ou ainda a suportar uma actividade (cfr. Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, págs. 352 a 354).

Integra o tipo legal de coacção, no que respeita à violência, não só a comum vis phisica, como também a violência psíquica ou moral; quanto à ameaça grave, temos que a sua adequação e gravidade deverá ser aferida segundo um critério «(...) objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades do ameaçado”)» (Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 348).

No mais, de novo lidamos com um crime doloso (relevante em qualquer das modalidades do dolo – art. 14º C.P.).

Pois bem, ao querer o arguido forçar a sua entrada na …… “.............” mediante as ameaças dirigidas aos três elementos de segurança acima identificados, são evidentes duas realidades.

Em primeiro lugar, a de que pretendeu constranger os ditos elementos de segurança a uma acção – permitir-lhe a entrada no interior do estabelecimento – com a ameaça de um mal (evidentemente) importante (“mato-vos!”).

Em segundo lugar, a de que o resultado pretendido pelo arguido não se consumou, pois, tratando-se de um delito de resultado (ao contrário do que sucede, por exemplo, com o crime de ameaça, p. e p. no art. 153º C.P., que é um crime de mera acção), importaria que houvesse in casu não só a adequação da ameaça dirigida aos visados mas também a adopção, por estes últimos, do comportamento conforme à imposição do coactor, isto é, a possibilitação da entrada deste no interior do estabelecimento (Prof. Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e tomo I citados, pág. 358).

Assim, estando nós perante um tipo legal destinado à protecção de um bem jurídico eminentemente pessoal – em relação ao qual, pois, os crimes praticados serão tantos quanto as vítimas dos factos perpetrados – e, por outro lado, não tendo as condutas coactivas logrado o efeito pretendido, parece claro que as três coacções deverão ser analisadas e punidas nos quadros legais da tentativa (arts. 22º e 23º C.P.).


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Finalmente, imputa-se ainda ao arguido a perpetração, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida.

Não está em questão que a detenção de uma arma poderá bastar, do ponto de vista do preenchimento objectivo do tipo, para a prática do ilícito criminal assestado ao arguido pela acusação pública, sendo também certo, como se sabe, que a incriminação em causa consagra um sem número de possibilidades de condutas aí subsumíveis.

Estamos perante um crime de perigo abstracto, em que «(...) o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição (...)», havendo como que «(...) uma presunção inilidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico (...)» (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime” e tomo I citados, pág. 309). Assim se compreendendo que a simples detenção da arma proibida (tal como, aliás, diversas outras formas de contacto com a arma, enumeradas na lei de forma dúctil) surja(m) já como conduta(s) tipicamente relevante(s) do art. 86º da Lei n.º 5/2006, por encerrar(em) em si toda a potencialidade lesiva de bens jurídicos ligados à segurança colectiva, posta em causa por uma desregulada e incontrolada detenção de objectos tão (evidentemente) perigosos e destrutivos.

Depois, no tocante ao elemento subjectivo, deparamos com um crime imputável apenas a título de dolo (cfr. a directiva geral do art. 13º C.P.).

Ora, o arguido detinha consigo, exclusivamente para efeitos de agressão (e dizer-se, como o faz o próprio arguido, em um contexto como o dos autos, que se tratava de uma “arma de defesa” perante os seus supostos “perseguidores”, bom, vale o que vale…), a arma de fogo já acima diversas vezes referida, com perfeito conhecimento da natureza e das características (evidentemente agressivas) de tal instrumento, e, bem assim, que esta sua detenção e uso lhe estavam vedados, dado não ser ele titular de qualquer licença que o habilitasse a tal detenção, faz-nos cair na previsão legal contida nos arts. 2º/n.º 1-p) e x), 3º/n.os 1 e 2-l) e 86º/n.º 1-c) da Lei n.º 5/2006.

Em suma, e perante o conjunto de factos dados como assentes, comprovado está o cometimento do crime de detenção de arma proibida de arma por que vem o arguido igualmente acusado.


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Tudo valerá para dizer que deparamos, no caso dos presentes autos, com uma situação de concurso de infracções, ou seja, dos crimes acabados de analisar (concurso real ou efectivo – art. 30º/n.º 1 C.P.).

Efectivamente, a circunstância de o arguido haver utilizado uma arma de fogo transformada para cometer o homicídio qualificado tentado não nos faz, na análise de sentido global dos factos, pensar em uma situação de concurso de normas, mas sim, como acabámos de expor, em uma situação de concurso de crimes.

Como se expressou o Ac. Rel Porto de 30/10/2013, «uma coisa é o agente que congemina matar outra pessoa e adquire (ou, por qualquer forma, obtém) uma arma proibida para concretizar a ideação homicida, esgotando-se a sua actuação criminosa na consumação do homicídio. Outra coisa, bem diferente, é o agente que detém e está na posse de arma proibida sem, previamente, ter formulado qualquer propósito homicida e que, em determinadas circunstâncias, a utiliza para matar outra pessoa, continuando a deter e a ser portador da arma usada como instrumento do homicídio cometido. Em ambos os casos, o agente, ao obter a arma e passar a detê-la sem autorização ou fora das condições legais, preenche os elementos da previsão incriminadora do art. 86º/n.º 1 da Lei n.º 5/2006. No entanto, na primeira situação, pode falar-se num comportamento global em que se verifica “entre os sentidos de ilícito coexistentes” uma conexão objectiva e subjectiva tal que o sentido de ilícito da acção de matar outra pessoa surge como absolutamente dominante ou principal em relação ao sentido de ilícito da detenção de arma proibida e por isso será desajustado falar em concurso efectivo de crimes. Não assim na segunda situação, em que não se verifica a tal conexão de sentidos de ilícito que origina uma preponderância ou dependência de um em relação ao outro» (aresto disponível em www.dgsi.pt).

No caso dos autos, como se percebe (e isso decorre, aliás, das próprias declarações do próprio em audiência), a detenção da arma proibida acontecia, por parte do arguido, independentemente de vir a ocorrer a prática do crime de homicídio qualificado tentado por meio dessa mesma arma, justificando-se, pois, uma diferente estruturação em termos de juízos de ilicitude a assestar ao arguido.

A plêiade de distintos bens jurídicos postergados pelos comportamentos agora em causa é, segundo nos parece, indiscutível.

Logo, entre os crimes de homicídio qualificado tentado, coacção tentada e detenção de arma proibida intercederá, pois, e como começámos por dizer, uma relação de concurso efectivo, nos termos do art. 30º/n.º 1 C.P..


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Se o crime de homicídio qualificado na forma tentada é punível apenas com pena de prisão, já quanto aos crimes coacção tentada e detenção de arma proibida importará ponderar a questão da escolha da pena (dado que os mesmos são, em abstracto, puníveis com pena de prisão ou de multa).

Dirá o Tribunal que o caso concreto reclama a opção pela pena de prisão.

Com efeito, crê-se que a pena de multa não permitiria a consecução dos objectivos plasmados no art. 40º/n.º 1 C.P. («a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade»). Isto é, a pena de multa não realizaria de forma adequada e bastantes as finalidades da punição (art. 70º C.P.).

Realmente, «(...) só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas (...)»; daí que «(...) determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta (...)» (Dr. Adelino Robalo Cordeiro, “Escolha e medida da pena”, in “Jornadas de Direito Criminal”, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, pág. 239).

O episódio dos autos enquadra-se em um todo contextual de óbvia (e desregulada, podemos dizê-lo) gravidade objectiva, denunciando da parte do arguido, e além do mais, uma atitude de ostensiva, persistente e insensível violência desrespeitadora de valores básicos do dever-ser jurídico-penal.

Crê-se, pois, não ser a pena de multa meio bastante e adequado a promover, pelo menos nesta fase, a efectiva reintegração social do arguido.


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Em sede de medida concreta das penas a aplicar, tomar-se-á em consideração o critério geral previsto no art. 71º/n.os 1 e 2 C.P., que apela à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes.

Desde logo, no tocante ao crime de homicídio qualificado tentado, deparamos com uma moldura penal abstracta a oscilar entre 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão como limite mínimo e 16 anos e 8 meses de prisão como limite máximo. E isto, porquanto a punição pelo crime de detenção de arma proibida não invalida o funcionamento da agravante do n.º 3 do art. 86º da Lei n.º 5/2006, mesmo que o agente se encontre autorizado a deter e ser portador da arma e esta se encontre nas condições legais ou prescrições da autoridade competente. É que a agravação em questão vai buscar a sua razão de ser ao plus de ilicitude do comportamento levado a cabo, em um contexto de proliferação de utilização criminosa de armas (assim, cfr. Ac. S.T.J. de 31/3/2011, em www.dgsi.pt).

Só não se verificará a dita agravação «(…) se o uso ou porte de arma for elemento constitutivo do tipo legal de crime que é objecto da cognição do Tribunal, ou (…) se os mesmos uso ou porte de arma derem lugar a uma agravação mais elevada. É mais que sabido que o homicídio é um crime de execução livre, a acção de matar outra pessoa não tem que ser executada com utilização de uma arma, sendo mesmo indiferente para a tipicidade o meio empregue. Restaria, então, a segunda hipótese, mas que, no caso concreto, também não se verifica, pois que, como se assinalou, o uso (…)» da arma pelo arguido «(…) não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art. 132º C.P.»; «(…) temos, pois, como medida legal da pena do crime de homicídio consumadoa moldura penal agravada de 16 anos a 25 anos de prisão. A tentativa é punível com a pena correspondente ao crime consumado, especialmente atenuada (art. 23º/n.º 2 C.P.), o que é dizer que, neste caso (em que o limite inferior da moldura penal do crime consumado é superior a 3 anos de prisão), o limite mínimo é reduzido a um quinto e o limite máximo é reduzido de um terço [art. 73º/n.º 1-a) e b) C.P.]. Cálculos efectuados, temos uma moldura penal para a tentativa de homicídio qualificado com a agravação do n.º 3 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, em que o limite mínimo é de 3 anos, 2 meses e 12 dias e o limite máximo é de 16 anos e 8 meses de prisão» (Ac. Rel. Porto de 30/10/2013 citado).

Por seu turno, os crimes de coacção tentada são puníveis, cada um deles, entre o mínimo de 1 mês de prisão e o máximo de 2 anos de prisão [arts. 23º/n.os 1 e 2, 41º/n.º 1, 73º/n.º 1-) e b) e 153º/n.os 1 e 2 C.P].

Finalmente, ao crime de detenção de arma proibida cabe a moldura penal abstracta balizada entre 1 ano de prisão e 5 anos de prisão [art. 86º/n.º 1-c) da Lei n.º 5/2006].

Sabemos que na aplicação de penas a defesa da ordem jurídico-penal é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro das molduras penais abstractas, entre um mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e um máximo consentido pela culpa do agente. Entre esses limites, satisfazem-se as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (cfr., a este propósito, Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, págs. 227 e ss.).

A culpa do agente surge como fundamento e, sobretudo, como limite máximo da sanção a não ultrapassar em caso algum (n.º 2 do art. 40º C.P.), e as exigências preventivas gerais de integração (isto é, que se prendem com as expectativas comunitárias na validade e vigência das normas violadas) e especiais de ressocialização darão, em última análise, a solução do problema [sendo que, como defende o Prof. Claus Roxin (in “Culpabilidad y prevención en derecho penal”, tradução espanhola, Reus, 1978, pág. 103), a pena adequada à culpa do agente deve satisfazer as exigências preventivas especiais já que, no seu grau mínimo, cobrirá sempre as necessidades de prevenção geral de integração, limiar mínimo este que nunca poderá ser desrespeitado]. O que nos leva a admitir a possibilidade de uma sanção inferior à que seria dada apenas pela culpa (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” citado, págs. 257 e ss., 298 e 299).

Ora, o bem jurídico protegido e tutelado pelo tipo de homicídio é, óbvia e indiscutivelmente, o mais valioso para a manutenção da pessoa humana enquanto tal, já que se trata da própria vida. Valor tão mais eminente quanto mais ameaçado parece em tempos particularmente tempestuosos como aqueles que experimentamos nos inícios deste século XXI.

Depois, não adiantará obnubilar o problema que constitui, para a segurança geral das populações, com toda a carga deletéria daí advinda, a generalizada e ilegal disseminação de armas (maxime, das de fogo), problema ao qual nenhum Estado parece estar imune.

Para a escolha e determinação da medida concreta das penas há que tomar em consideração todas as circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, deponham a favor ou contra o arguido (art. 71º/n.º 2 C.P.).

Há, assim, que ponderar no caso sub iudicio:

- o grau de ilicitude (que apela ao número e sentido de violação dos interesses ofendidos, aspecto em que importará realçar a elevada carga ilícita do comportamento homicida empreendido pelo arguido, próprio de um perigoso instinto momentaneamente “à solta” e que não admite qualquer tipo de contrariedade), o modo e o contexto de execução (não só a “violência” verbal mas, sobretudo, os disparos efectuados em uma zona e um momento de natural circulação de pessoas que pudessem entrar ou sair da ....... e, para além disso, deambular nas zonas pedestres – maxime, nos dois passeios – ali existentes), e as consequências dos factos praticados (felizmente, apenas no domínio psicológico e anímico) para os visados;

- o dolo do arguido (que se revela directo, pois provado ficou ter actuado ele de modo consciente, determinado e lúcido);

- a sua personalidade (que, parecendo claramente imatura e algo irresponsável, se revela – não havendo como o dizer de outra forma – prepotente e também propensa a estados e percursos de excessiva violência e, mais do que isso, a momentos de brutalidade acobertada pela “escolta” e “protecção” de armas);

- o seu específico modus vivendi, quase sempre pautado pela evidente incapacidade de séria, duradoura e consistentemente (sem, portanto, a “sombra” da imposição judicial da prestação de horas de trabalho a favor da comunidade), o tornar apegado a interesses de cariz escolar ou técnico-profissional e a satisfatórios e perceptíveis hábitos de trabalho;

- o neste momento insustentável percurso delitual já trilhado, com várias condenações pelo cometimento de crimes de diverso jaez, desde uma multiplicidade de roubos a ofensas à integridade física simples, resistência e coacção sobre funcionário, condução sem habilitação legal, condução perigosa de veículo rodoviário e tráfico de estupefacientes de menor gravidade;

- a circunstância (também ela absolutamente insustentável e a mostrar um determinado modo de encarar o dever-ser jurídico-penal por parte do arguido…) de os factos ora sub iudicio ocorrerem em pleno período de duas suspensões de execução de penas de prisão e no decurso de uma pena de prisão em regime de permanência na habitação (!!!!!!).

Tomando em consideração todos os aspectos mencionados, entende o Tribunal correcta a aplicação das seguintes penas:

- uma pena de 6 anos e 6 meses de prisão relativamente ao crime de homicídio qualificado tentado;

- uma pena de 9 meses de prisão quanto a cada um dos crimes de coacção na forma tentada;

- uma pena de 2 anos de prisão no tocante ao crime de detenção de arma proibida;

- em cúmulo jurídico, nos termos do art. 77º/n.os 1 e 2 C.P., considerando-se, em conjunto, os factos e a (preocupante) personalidade revelada pelo arguido, entende-se adequada a fixação da pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.


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Decorre do art. 109º C.P. (na redacção introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30/5) deverem ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos; depois, se a lei não fixar destino especial aos objectos perdidos, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio.

Dada a prática, mediante a arma de fogo apreendida nos autos, dos graves crimes aqui verberados, e as suas características inatas, susceptíveis de fazerem perigar a integridade física e a vida das pessoas, é evidente a necessidade (legal) de declarar tal arma perdida a favor do Estado (como, aliás, o requereu o Ministério Público na parte final da acusação pública por si deduzida).”


III

Fundamentação


1. O presente recurso pode ser recebido por este Supremo Tribunal de Justiça. Havendo legitimidade e tempestividade do feito, e ocorrendo neste Tribunal a competência que lhe é diferida pelos art. 432, n.º 1, al. c), como promovido, em tempo, pelo Ministério Público e despachado favoravelmente pelo Tribunal da Relação competente. Não se prefiguram quaisquer motivos para o rejeitar, nomeadamente qualquer causa extintiva do procedimento.

2. É consensual na comunidade jurídica o entendimento de que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).

3. Ao longo das suas Conclusões, o Recorrente delimitou questões de direito, que se podem reconduzir aos seguintes pontos, constituindo, pois, o presente thema decidendum (embora, como será evidente, alguns se imbriquem nos outros e se ganhe por uma consideração não apenas pontual, mas também integrada):

Pretensão da eliminação da incriminação da tentativa.

Alegada incompatibilidade entre a especial perversidade e censurabilidade do crime de homicídio qualificado e a especial atenuação da pena que a tentativa convoca.

Relação entre Homicídio e motivo fútil.

Do Crime de coação. Concurso de crime de coação e homicídio.

Eventual dupla punição decorrente do uso da arma.

Questionação da medida da pena.

Todas as questões serão consideradas seguidamente (o que não significa que todas sejam aceites como passíveis de recurso), mas não, eventualmente, todos os argumentos, ou manifestações, ou pressupostos teóricos, etc., porquanto, como é pacífica doutrina e reiterada jurisprudência, “não se verifica omissão de pronúncia quando o tribunal não aprecia todos os argumentos invocados pela parte em apoio das pretensões que vem a conhecer, mas tão-só quando o juiz, em violação do poder-dever inerente à função que exerce, deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelos intervenientes processuais ou emitidos no decurso do processo.”, conforme Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2006, proferido no Proc.º n.º 06P2555 (Relator: Conselheiro Santos Cabral).

4. Da Tentativa e do Bem Jurídico Penal

A intenção de matar concretiza-se, aqui, apenas na tentativa de tirar a vida – porque motivo alheio à vontade do agente viria a quebrar a cadeia causal, que levaria certamente ao desfecho da consumação. Tal intenção é anunciada pelo próprio recorrente, com as seguintes palavras: “Vão ver se eu não entro, mato-vos aos três!”, “Limpo-vos aos três, não tenho nada a perder!” e “Mato-vos!” (ponto 3). Mas não foram só palavras. O arguido pôs em marcha a sua intenção, passando aos atos. Vários disparos foram feitos com esse intuito (pontos 11 a 14). Simplesmente, “for events are much at the mercy of chance, and chance also coincide to produce unexpected results” (G.E.M. Anscombe, Human Life, Action and Ethics, Essays by…, Imprint Academic, 2006, p. 227), não acertou o alvo, e depois a arma encravou (contudo, como se diz no ponto 16, “um dos projécteis dos disparos efectuados pelo arguido atingiu a parte superior da segunda porta do estabelecimento, no sentido este-oeste, onde se encontravam os ofendidos, e o outro atingiu a parede entre a primeira e a segunda porta”).

Nos pontos 11, 12, 13 e 14 da matéria provada está esclarecida abundantemente a tentativa: apontou e visou o ofendido, só não consumou porque a porta era blindada:

“11 – de seguida, eram cerca de 4 horas e 35 minutos, encontrando-se ainda no passeio oposto ao do estabelecimento “.......”, a cerca de 10 metros da porta desse mesmo estabelecimento, e constatando estar tal porta ainda algo aberta, na qual o ofendido BB espreitava para o exterior, o arguido empunhou e apontou a mencionada pistola na direcção do dito segurança, o qual viu o cano da arma apontado na sua direcção, e efectuou um segundo disparo, dessa feita nessa mesma trajectória;

12 – no momento da disparo acabado de descrever, o ofendido BB encontrava-se à entrada da porta e, atrás de si, os outros elementos da segurança, estando também no hall ali existente, já no interior do estabelecimento, a testemunha GG (gerente da apontada .......) e outras pessoas;

13 – perante o disparo ora referido, e apercebendo-se do perigo de vida iminente, o ofendido BB, com a ajuda dos outros elementos da segurança, conseguiu fechar a porta (a qual é blindada), refugiando-se no interior da .......;

14 – não conformado, e após tentar fazer novos disparos, então sem sucesso, o arguido conseguiu efectuar novo disparo, com a pistola, ainda mais próximo da porta do estabelecimento e na direcção do local onde os seguranças se encontravam, só não tendo procedido a mais disparos porque a arma encravou; (sublinhados nossos).

A tentativa é, precisamente, começo de execução não completa de um crime, por motivo alheio à vontade do agente. Trata-se, na tipicidade subjetiva, de um facto doloso (como resulta de todo o circunstancialismo volitivo externalizado) e no plano da tipicidade objetiva, no caso se verifica quer a dimensão positiva, quer a negativa: na primeira, está presente, nos factos recordados supra, a prática de atos de execução tendentes à consumação; na segunda, a falta de conclusão do resultado, a ausência de consumação (que, essa ninguém contestará).

Não se afigura que a tese do Recorrente visando “eliminação da incriminação dos crimes na forma tentada” possa encontra nem um fumus de factualidade em seu favor.

O Requerente parece apresentar ideias inovadoras, de iure constituindo, sobre a questão da tentativa, pelo menos no caso de homicídio. É certo que o nosso sistema gravita em torno de alguns elementos fundamentais (ou paradigmas), sendo um deles o do bem jurídico. Não será caso para dissecar o sentido e alcance deste Grundbegriff ou superconceito, sobre o qual já têm corrido rios de tinta (cf., P. Ferreira da Cunha, A Constituição do Crime, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 44 ss.; Id., Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020 e bibliografia para que remete). Como se diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc.º n.º 89/18.6JELSB.L1.S1, de 01/04/2020:

“É importante uma conexão do Direito Penal com o elemento “bem jurídico”, como é óbvio, o qual é, com o legislador penal e a dignidade penal, um dos elementos da tríade legitimadora-metodológica hodierna da disciplina (cf. Paulo Ferreira da Cunha, A Constituição do Crime, Cojmbra, Coimbra editora, 1988, máx. p. 41 ss. e Idem, Ultima Ratio. Uma (Re)Visão Filosófico-Constitucional da Ciência do Direito Penal, editado no volume Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais. Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 141-183). Mas, antes de mais, não se trata de um “aleluia” jurídico, de um sortilégio capaz de aplacar todas as dúvidas e resolver todos os problemas. Encontra-se, aliás, a categoria em processo de revisão e crítica (cf., por todos, para referir apenas doutrina nacional, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral, 3.ª ed., tomo I, p. 153 ss.; Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, Coimbra, Almedina, 2019, p. 54 ss.; M. Miguez Garcia, O Direito Penal Passo a Passo, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 13 ss.; Paulo Ferreira da Cunha, Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, máx. pp. 85 ss., 235 ss.). Mas, obviamente, para aperfeiçoar e atualizar o paradigma, não recusá-lo”.

Mas, sinteticamente ainda se dirá (pois de mais não se carece, ante a evidência do argumento, numa espécie de res ipsa loquitur, hoc sensu) que, precisamente, o alto apreço que se nutre por esta dimensão na ordem jurídica implica que, em algumas situações, como é o caso, haja punição da tentativa. Jamais o contrário.

Precisamente porque a tentativa, ainda que não tendo alcançado consequência danosa, já em si se encontra apta a ferir os valores de conformação com o direito, de fidelidade ao direito, de acatamento das leis, e, com a potencialidade de violação concreta do bem jurídico, afinal já o ataca. Muito frequentemente, o resultado desvalioso de uma concreta lesão de um bem jurídico é uma questão de acaso, é uma questão fortuita (como a mítica flecha de Nemrod foi colhida por um pássaro antes de atingir o alvo). Quando a intencionalidade, o desígnio, os atos aptos a produzir o resultado, aí estão, o ter ou não atingido os intentos é, realmente, uma questão de perícia ou de sorte, no contexto geral da ação. Tal não equivale, de forma alguma, à punição de meras cogitações. Trata-se de atos exteriormente observáveis e provados.

A solução de não punibilidade da tentativa seria um retrocesso civilizacional. Atente-se só no veredito doutrinal, a contrario, de uma autoridade já clássica como Robert V. Hippel, Lehrbuch des Strafrechts, Berlin, Springer, 1932, máx. p. 151, que enaltece a punibilidade da tentativa como um traço do direito progressivo. Aliás, a sensibilidade à tentativa (embora a mera consumação fortuita já repugnasse aos Romanos, mas ficcionassem a consumação como homicídio, na falta desse instrumentum de e enquadramento) é antiga, sendo contemporânea, precisamente, dos alvores da Modernidade, nos finais da Idade Média, no período do chamado renascimento medieval, pelos séculos XIV e XV (cf., com múltiplas referências, entre nós, J. de Faria Costa, Tentativa e dolo eventual (ou da relevância da negação em Direito Penal), reimp., Separata, Coimbra, 1995).

No plano jurisprudência, atente-se, por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 262/01, de 30 de maio, relatado pela Conselheira Fernanda Palma. Aí cabalmente se justifica a antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que não chegaram a lograr alcançar uma lesão atual e efetiva de um bem jurídico, designadamente quando o comportamento empreendido, já de si denotando uma inconformidade com o direito, revela uma especial perigosidade (alarme, mesmo, diríamos) para bens jurídicos vitais à própria manutenção sociedade. É essa defesa da sociedade e a própria lesão do bem “respeito pelo direito” que estão em causa.

Também no recurso apresentado então se alegava, nomeadamente: “Então há que estabelecer a fronteira entre crime consumado e crime não consumado, sendo certo, para nós, que o tipo objectivo do crime só fica preenchido quando o agente tiver disponibilidade sobre a droga. (…)

Para o recorrente, ter o aviso postal para o levantamento, ainda não lhe permite ter a disponibilidade sobre o produto estupefaciente, porque ainda não pode exercer qualquer acto sobre esse produto.

O crime só ficaria consumado se o agente levantasse, quer pessoalmente, quer por interposta pessoa a encomenda dos C.T.T.”.

Da douta fundamentação do referido aresto se respigará apenas o seguinte passo, por suficientemente esclarecedor:

“O Direito Penal visa a protecção de bens jurídicos fundamentais, prevendo e punindo os comportamentos que de uma forma mais intensa ou, se se preferir, mais grave afectem esses mesmos bens jurídicos. Trata-se do princípio da necessidade e do mínimo de intervenção, que resulta do artigo 18º, n.º 2, da Constituição.

            A intervenção penal não tem, porém, de acontecer apenas nas situações em que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é efectivamente lesado pela conduta proibida. Em várias situações o legislador procede a uma antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que ainda não lesaram efectivamente esse bem jurídico. Tal acontece, quando o comportamento em questão apresenta uma especial perigosidade para bens jurídicos essenciais à subsistência da própria sociedade, sendo, por essa via, legitimada aquela antecipação.

(…)

Aliás, mesmo em situações onde se verifica uma particular perigosidade das condutas anteriores à consumação material do crime, "o que justifica a ilicitude (sem dúvida, também típica) é ainda a típica conexão com a actividade lesiva do bem jurídico, prosseguida pela ‘preparação’ do crime" (cf., Maria Fernanda Palma, A justificação por legítima defesa como problema de delimitação de direitos, vol. I, 1990, p. 324, referindo-se à punibilidade de actos preparatórios).”

A questão em apreço prendia-se com tráfico de substâncias estupefacientes. Certamente se concordará, em geral, que o bem jurídico “vida”, a potencialmente ser ferido por uma ação violenta, não será menos importante que os diversos bens (e inclusivamente o mesmo bem “vida”) potencialmente atacáveis pelo tráfico.

Finalmente, e brevitatis causa, atente-se a profusa e profunda resenha da problemática do tipo, seja em Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal…, 3.ª ed., Lx., Univ. Católica Portuguesa, 2015, comentário ao art. 22, p. 183 ss., seja em M. Miguez Garcia / J. M. Castela Rio, Código Penal. Parte geral e especial, com notas e comentários, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018, p. 196 ss.. Afigurando-se que, por qualquer das grandes teorias explicativas e fundamentadoras da punibilidade da tentativa, sempre a tentativa de homicídio, por maioria de razão (a fortiori) ao menos, se não mesmo pela natureza das coisas (natura rerum), de que não cumpre aqui discutir, entraria no número das situações a requerer punibilidade. 

5. Do Homicídio qualificado e da tentativa

Sobre a tentativa, no plano fático concreto, recorde-se o já referido, e sobre o homicídio qualificado também o aduzido no n.º 6, infra.

Embora pudesse, prima facie, cogitar-se que poderia quiçá haver alguma antinomia entre o homicídio ser qualificado e, face a estarmos perante tentativa, a pena ser atenuada, a verdade é que o sistema jurídico, que é complexo e com múltiplas possibilidades de combinação (e com regras, que se não podem subverter), perfeitamente fica em harmonia com a coexistência de ambas as situações no mesmo caso. Tal resulta de duas ordens de taxonomias enquadradores, que se não excluem, mas completam.

Não se concebe, encarando a questão na sua globalidade, qualquer incompatibilidade entre a especial censurabilidade (com a consequente agravação ligada à culpa do crime qualificado), e a atenuação especial ligada à tentativa (por ausência de resultado danoso). São questões diversas, e uma e outra funcionam no seu nível e âmbito respetivos.

O crime qualificado remete-nos para o especial tipo de culpa que o crime qualificado exige. Ora a tentativa, por seu turno, é um tipo ilícito autónomo face ao crime consumado. Difere, obviamente, da forma consumada por não ter alcançado essa situação em ato, tendo-se quedado pela potência, para usar uma terminologia do Estagirita (Metafísica, IX).

Assim, a ausência, no crime tentado, do resultado típico, não ocorre por vontade do agente (não lhe podendo, assim, ser favoravelmente assacada, ou “creditada” – coisa diferente seria a “desistência”, mas essa é outra questão), avultando, como no crime consumado, a sua culpa.

Há, evidentemente, logicamente, dentro do espírito do sistema se fosse necessário invocá-lo, toda e completa compatibilidade entre uma especial censurabilidade de uma conduta criminosa, com a decorrente agravação de crime qualificado (por mor da culpa) e, de outra banda, uma atenuação especial decorrente da tentativa (por inexistência superveniente de resultado danoso). No primeiro caso, estamos a analisar elementos subjetivos, no segundo, elementos objetivos, que aqui não se devem mesclar, mas sobrepor, em camadas de apreciação sedimentares.

6. Do Homicídio qualificado e da “Futilidade”

A factualidade referida nos factos provados de 1 a 22 revela uma impulsividade voluntarista que não cede mesmo às pressões da mãe e da outra pessoa que acompanhava o arguido, uma ideia fixa de entrar no estabelecimento, sem vacilar e custasse o que custasse, o que, a partir do momento da oposição dos seguranças, se consubstanciou na intenção de matar. Muito especificamente, revela motivo fútil esta passagem, do ponto 21: “actuou o arguido movido somente pelo facto de não lhe ter sido permitida  a entrada no interior do estabelecimento acima identificado, bem sabendo que os ofendidos exerciam serviços de segurança naquele espaço e que actuavam por força dessas mesmas funções por eles desempenhadas” (sublinhado nosso). O que está ínsito neste comportamento é a ideia de um completo desvalor da vida humana, postergado pela simples vontade de entrar numa ........

Denotando completa insensibilidade ao valor vida, e continuando o disparo (v.g. ponto 14), mesmo tendo falhado, e apesar dos rogos e tentativas de o afastar do local, por parte de sua Mãe e da outra acompanhante (pontos 7 e 9).

Importará, desde já, precisar que estamos, efetivamente, perante um homicídio qualificado (na forma tentada). O qual é, evidentemente, uma forma agravada de homicídio, ou seja, um crime com especial censurabilidade. Como afirma o recente Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2020 (aliás documentadíssimo no plano jurisprudencial e doutrinal, e para que se remete, brevitatis causa), proferido no Proc.º n.º 608/19.0JABRG.S1 (Conselheiro Manuel Augusto de Matos).:

“Revisitando considerações expendidas nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 13-04-2016 e de 22-11-2017, proferido, respectivamente, nos processos n.º 61/15.8PFLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, e n.º 980/15.1PRPRT.P1.S1 – 3.ª Secção, ambos relatados pelo agora relator[2], o crime de homicídio qualificado, previsto no artigo 132.º do Código Penal, constitui uma forma agravada de homicídio. A qualificação decorre da verificação de um tipo de culpa agravado, definido pela orientação de um critério generalizador enunciado no n.º 1 da disposição, moldado pelos vários exemplos-padrão constantes das diversas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º.

«O critério generalizador, lê-se no acórdão desse Supremo Tribunal de 21-01-2009, proferido no processo n.º 08P4030 (Relator: Cons. Henriques Gaspar), está traduzido na cláusula geral com a utilização de conceitos indeterminados - a especial censurabilidade ou perversidade do agente; as circunstâncias relativas ao modo de execução do facto ou ao agente são susceptíveis de indiciar a especial censurabilidade ou perversidade e, assim, por esta mediação de referência, preencher e reduzir a indeterminação dos conceitos da cláusula geral.”

Afirma o arguido que “(…) a motivação do recorrente dada por provada no ponto 21 não consubstancia motivo fútil (se nenhum bem jurídico se compara ou assemelha em termos de importância e gravidade com a vida humana, toda e qualquer violação desta tem de redundar num motivo fútil!), radicando a acção ilícita imputada ao arguido num circunstancialismo objectivo que não foi totalmente criado pelo próprio (…)”. E, como é sabido, a determinação de um móbil “motivo fútil” é deveras importante para a qualificação.

Também neste ponto há uma profunda divergência hermenêutica sobre o sentido a dar a “motivo fútil”. Reconhece-se (até onde as nossas luzes possam chegar) que o Recorrente terá, decerto, alguma razão na consideração, que se diria filosófica e em termos absolutos, do sentido que dá a “motivo fútil”. Com efeito, perante a maravilha, o resplandecer ontológico da Vida (celebrado por pensadores, teólogos, poetas, e uma plêiade de autores dos mais diversos horizontes), na verdade qualquer atentado contra ela, para mais do tipo homicida, é um escândalo tão grande, que, nessa perspetiva não jurídica, realmente “qualquer violação desta tem de redundar num motivo fútil!”. E plenamente se justifica a ênfase do ponto de exclamação.

Contudo, ocorre relembrar um passo de um dos mais celebrados autores estoicos, Séneca, em que precisamente se fala de motivos vãos. E a similitude (mutatis mutandis, como é óbvio) com a vontade ou o ânimo que presidiu à ação do arguido afigura-se tão impressiva (ao menos para cotejo), que não pode deixar de citar-se (na tradução de Lúcia Sá Rebello e Ellen Vranas):

“Em vista disso, não devemos trabalhar para coisas inúteis (nem por motivos inúteis, isto é, não devemos desejar o que não podemos conseguir, ou, se o conseguimos, que não compreendamos muito tarde e com vergonha a inutilidade dos nossos desejos, ou seja, que o trabalho não seja indigno nem desagradável e sem efeito ou que o efeito do trabalho seja indigno. Quase sempre a tristeza advém a partir disso, seja por causa do fracasso, seja pelo resultado vergonhoso.

É preciso diminuir as idas e vindas, às quais se entregam grande parte dos homens

que perambulam por casas, teatros e mercados (…) Deles, não sem razão, alguém diria que são de uma inércia inquieta. (…) Depois, em casa, quando voltam exauridos por nada, juram não saber por que saíram, onde foram, para, no dia seguinte, errarem pelos mesmos descaminhos.

Assim, todo trabalho tem um objetivo, tem algo em vista. Não é uma atividade válida que move os inquietos, mas, como os loucos, são as falsas imagens das coisas que os movem, pois nem esses se movem sem alguma esperança. Por isso os prende a aparência de alguma coisa cuja inutilidade a mente decrépita não apreende.(…)”.

Sublinhe-se apenas que onde se diz trabalho, será labor (como os juristas normalmente sabem, “trabalho” tem outra origem, derivando do instrumento de tortura tripalium) será qualquer atividade; e onde se fala em “inútil” a expressão original é muito sugestiva: supervacuo, supervacuis (Proximum ab his erit, ne aut in supervacuis aut ex supervacuo laboremus, id est, ne quae aut non possumus consequi concupiscamus, aut adepti vanitatem cupiditatium nostrarum sero post multum pudorem intellegamus – grifo nosso). Dir-se-ia, antes que “trabalho inútil” (esse que, segundo assevera Fidelino de Figueiredo, já antigas leis inglesas puniam, mas que ainda é trabalho), atividade no vácuo, vacuidade de ação, ou, se preferirmos, futilidade.

E quanto à alegação de não desejo do resultado, também refere o autor, que também foi advogado, como se sabe, exaltando a necessária e diligente previdência (embora, no caso, não se trate de eventos fortuitos, de simples mala fortuna):

“É por isso que dizemos que nada acontece contra a vontade para o sábio. Não o

eximimos dos azares da vida e, sim, dos erros. Assim, se as coisas não acontecem

como ele quis, ao menos não fugiram de sua previsão.

O que se prevê é que há sempre algo por vir que poderia criar obstáculos para a

realização de nossos propósitos. Certamente o pesar causado por uma decepção é bem menor quando o sucesso não foi previsto com antecipação e plena segurança.

XIV

Devemos também ter flexibilidade e não nos entregarmos obstinadamente às nossas decisões de maneira que possamos transitar para aquilo que o acaso traz.” (Sêneca, Da Tranquilidade da Alma… trad., Porto Alegre, L&PM, 2009, XII-XIV, pp. 72-75).

Portanto, se do ponto de vista filosófico (ou meramente opinativo – o limite entre doxa e filosofia depende de infindáveis opinião e razões), será eventualmente defensável que, sendo, no caso, todos os motivos para um homicídio fúteis, por absurdo e no limite não poderia haver nenhum motivo fútil, por indistinção, por ausência de differentia specifica, já no plano jurídico tal é liminarmente impensável e indefensável. Porque, simplesmente (não será necessário ir mais longe), ao acolher na ordem jurídica a categoria do “motivo fútil” o legislador pretendeu precisamente diferenciar. E onde o legislador introduz uma distinção, ele quer mesmo fazê-lo (embora o brocardo a contrario seja o mais conhecido, certo é que ubi lex distinguit debemus distinguere – mas a mesma lição se extrai do mais comum, como é óbvio). Sendo que vale a magna regra hermenêutica da pressuposição de que andou bem, não apenas o legislador de pequenas coisas, como o legislador penal. Conforme estipula o art. 9.º, n.º 3: “3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.

 O legislador não consagrou o “motivo fútil” numa nebulosa de culpabilidade que lhe liofilizasse o sentido útil, quiçá pela comunhão numa geral reprovação, um pouco como naquela expressão atribuída a Richelieu, segundo a qual “não poderia haver inocentes onde quer que houvesse culpados”. Não é essa a filosofia penal do Estado de direito democrático. Há inocentes, e há vítimas, e há culpados. Uns mais, outros menos… Não colhe, portanto, a ideia de que se tenderá ou estará a operar a confusão do homicídio tout court com o homicídio qualificado (é uma prevenção para que, em geral, faz apelo o Prof. Doutor Figueiredo Dias, mas não é o caso dos autos). Recordando, mutatis mutandis, D’Anterroches, não é o direito, mas os factos e quem os produz, que têm a primeira palavra, é o agente dos crimes que dá o primeiro passo (como o dariam os assassinos, segundo o paradoxo de Karr, se não cometessem crimes). O direito vem só de seguida, depois da factualidade, e enquadrando-a.

Importa precisar que a futilidade aqui presente não se identifica com “gratuitidade” ou atitude displicente ou “blasée”, de quem, por exemplo, cometeria crime por desenfado (como se disse, por exemplo, de um crime em Itália praticado sem motivo, ou apenas para provar – e aí já nem seria tão fútil nesta errónea ordem de ideias – a possibilidade do “crime perfeito”). Motivo fútil é o contrário de motivo com alguma, ainda que enviesada, motivação (não fútil), eventualmente atendível no plano de uma certa ética, normalmente ultrapassada (por exemplo, um crime em que se invoca a honra, ou a autotutela, em que haja uma motivação do agente estribada numa sua específica interpretação do Bem e do Mal, ainda que não partilhada socialmente na comunidade em que se insere – por exemplo, duelo por motivo de honra, etc.). Estamos já a entrar no âmbito não dos homicídios qualificados (art. 132 do CP), mas dos homicídios privilegiados, a que se refere o art. 133 do CP, em que, por razões éticas particularmente atendíveis, há menor culpa do agente. É como que o simétrico do caso do homicídio qualificado (cf., v.g., Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, 4.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2004; e uma síntese em Conceição Ferreira da Cunha, Os Crimes contra as Pessoas, Porto, Universidade Católica Editora, 2017, p. 94 ss.).

Não se identifica “motivo fútil” com pura leviandade. Nesse sentido, decerto, o motivo fútil perder-se-ia numa certa evanescência, podendo perguntar-se se realmente consubstanciaria alguma vera motivação, ou apenas esse planar pela vida a que alude o citado Séneca.

Também o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias se insurge contra uma interpretação deste teor. Segundo o seu ponto de vista, a que aderimos, assim como, v.g., o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2010, proferido no Proc.º n.º 11/04.7GCABT.C1.S1 (Relator: Conselheiro Pires da Graça), “motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, t. I, dir. de Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, comentário ao art. 132, n.º 2, al. d), pp. 32-33.

Importa ainda atentar em que uma coisa é o motivo fútil e outra a ausência de motivo (ou motivo que não se alcança descortinar), conforme explicitado no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2008, proferido no Proc.º n.º 08P3703  (relatado pelo Conselheiro Pires da Graça):

“VII- A inexistência de motivo não equivale a motivo fútil, uma vez que só há motivo (ainda que fútil) se existir. De outra forma, todo o homicídio envolveria sempre motivo fútil, desde que inexistisse motivo.»

Já a presença do vocábulo “torpe”, junto da palavra “fútil”, não pode deixar de ser um elemento de modulação da interpretação deste, dado que é, no caso, o seu cotexto (Yehoshua Bar-Hillel, Aspects of Language, Jerusalem, The Magnes Press, Hebrew Univ. and Amsterdam, North-Holland, 1970; Stephan Goltzber, 100 principes juridiques, 2.ª tir., Paris, PUF, 2020, p. 92, contraria uma leitura meramente literal, indicando uma leitura “que se dê conta do contexto, ou mais precisamente do cotexto discursivo (…) o conjunto (…) que precede e que segue (…) por oposição ao contexto situacional, que cobre o pano de fundo histórico, político e social”) e com uma considerável irradiação semântica, ou, no caso, se preferirmos, especificamente uma “contaminação” de sentido (como quando o Dictionnaire des idées reçues, de Flaubert, diz, no verbete Diderot: “Toujours suivi de d’Alembert”). Será decerto difícil, no caso, considerar um motivo fútil que não se transforme em, de algum modo, com algo de “torpe”…

Houve uma opção valorativa do legislador ao redigir o art. 132, n.º 2. al. e) como o fez. Sem prejuízo, como é óbvio, de uma coisa ser a torpitude e outra a futilidade. Naturalmente a primeira mais repugnante ainda que a segunda. E as alegações neste ponto do Recorrente sugerem-nos que, em casos de homicídio, a futilidade contém em si elementos que acabam por ser uma forma de ignomínia. Contudo, já se explicou o que aqui haveria a referir. Estamos perante não um sentido comum ou sequer filosófico da palavra “fútil”, mas sobre uma dessas “palavras técnicas” cuja necessidade de consideração como tais já Miguel Reale considerava essencial à compreensão jurídica (Lições Preliminares de Direito, 25.ª ed., 22.ª tiragem, São Paulo, Saraiva, 2001, p, 7 ss.), o que obviamente já vem desde o próprio momento matinal do ius redigere in artem, e tem noutro estoico, o também advogado Cícero, um eloquente arauto. O qual mesmo em artes e filosofia perfilha a tecnicidade dos termos (De Finibus Bonorum et Malorum, II).

Importa sublinhar ainda, e com ênfase, que dos três crimes de homicídio tentado qualificados pelas circunstâncias indicadas nas als. e), h) e l) do art.132 do CP, que eram imputados ao Arguido, o Tribunal a quo decidiu (e corretamente) que os factos consubstanciavam apenas um único crime de homicídio tentado e que este era qualificado apenas pelo motivo fútil que tinha determinado o Arguido – al. e) – afastando assim as restantes qualificativas.

Recorde-se que a acusação pública imputava ao arguido a prática de três crimes tentados de homicídio qualificado, tendo como destinatários os três elementos da segurança do estabelecimento “......”. O Tribunal a quo considerou, e bem, que “a realidade apurada em audiência de julgamento não permite a visão ‘maximalista’ acabada de expor, porquanto, como percebemos, a atitude tomada pelo arguido dirigiu-se e teve como destinatário (sem dúvida porquanto era este – mas era somente este – que se encontrava em frente a si) o demandante civil BB e não uma outra qualquer pessoa.

Pelo que, e além do mais, não podendo os actos de execução praticados pelo arguido (cfr. art. 22º/n.º 2 C.P.) repercutir-se sobre outrem que o ora apontado demandado cível, não existem quaisquer elementos fácticos sustentadores da referida tese “maximalista” (prática de três crimes de homicídio qualificado tentados) vertida na acusação pública.

Temos, portanto, um só crime tentado.”

7. Do Homicídio tentado em relação com os crimes de coação: consunção?

Não existe nenhuma relação de consunção entre o homicídio tentado e a coação à vítima do homicídio tentado. São realidades distintas, que obtêm tratamento jurídico diferenciado, como é natural. E não existe qualquer ofensa do princípio do non bis in idem, na sua vertente da dupla punição sincrónica (a outra vertente é, como se sabe, a diacrónica).

Crê o Requerente que, “pelo menos no tocante ao crime de coacção levado a cabo contra a vítima BB deverá haver consumpção face ao crime de homicídio na forma tentada, dado que o quadro subjacente à entrada em estabelecimentos de diversão nocturna, em que se mostre álcool à mistura ou o agente em estado de embriaguez, é notório que haverá todo um “processo de descarga emocional do arguido, num episódio de vida unívoco e inequivocamente revelador da unidade de sentido do comportamento ilícito global”. E invoca, mutatis mutandis, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 24 de setembro de 2009.

Considera que “a tentativa de homicídio já com moldura legal significativa que não poderá deixar de abarcar o crime de coacção na forma tentada (o qual verdadeiramente apenas com os disparos poderá ter expressão e relevância no exacto quadro imputado!), com a absolvição do recorrente face ao crime de coacção na forma tentada pelo qual foi condenado e face à vítima BB, em razão do consumpção operada pelo crime de homicídio tentado!”

Para além de se considerar que o aresto invocado não parece ter pertinência no caso em apreço (e daí se compreenda que o Recorrente tenha invocado o mutatis mutandis), não se pode sequer conhecer da questão, pelos motivos aduzidos.

Mas importa, antes de mais e em bom rigor, deixar claro que nem o caráter tentado do crime, nem a moldura penal do mesmo, nem porventura a pena em concreto atribuída podem como que compensar, e nesse sentido “absorver” hoc sensu crimes que possuem um recorte próprio, e uma factualidade provada autónoma. Homicídio é homicídio e coação é coação, não podendo haver uma síncrise mercê de motivos cuja dimensão não se chega a alcançar. Aliás, note-se (lateralmente), em abono do rigor da sentença recorrida, que há três crimes de coação e um único de homicídio.

8. Da Coação

Os crimes de coação em causa estão excluídos do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, por não se integrarem na previsão do art. 432, n.º 1, al. c).

9. Da eventual dupla punição decorrente do uso da arma

O arguido considera que o uso da arma teria sido na sentença recorrida duplamente considerado, e consequentemente estaria a ser condenado duas vezes pelo mesmo facto.

Foi punido pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado nos termos do art. 86, n.º 3, da Lei nº 5/2006, por ter sido praticado com arma de fogo e, mais que isso punido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo art. 86, nº 1, al. c) da citada Lei n.º 5/2006.

Ora também aqui são questões diversas, que acarretam diverso tratamento.

A condenação por crime de homicídio agravado, na forma tentada, foi-o considerando ter ele usado para esse efeito uma arma de fogo.

 Não foi anódino esse uso: com ela disparou três tiros, um para o ar, e os outros dois dirigidos ao ofendido BB, tendo um deles atingido a porta da ......., por detrás da qual aquele se escondeu, e outro atingido a parede junto à mesma. Acresce que só não terá havido mais disparos porque a arma encravou (cf. os factos provados sob os n.ºs 11 a 14 e 16).

A agravação do crime de homicídio deriva do uso da arma de fogo, com disparos dirigidos ao ofendido BB, “com o intuito de o atingir na sua integridade física, ou de lhe causar a morte, aplicando-se aqui o art. 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, que prevê a agravação com a utilização da arma de fogo para a execução do crime” – conforme sintetiza a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.

Situação diversa é a da punição do crime por detenção de arma proibida. Deriva de o arguido estar na posse de uma arma para a qual não se encontrava devidamente licenciado. Bastaria simplesmente a detenção da arma para o cometimento dessa infração criminal. A punição do crime de detenção de arma proibida  constitui, como é sabido, um crime de perigo comum, tendo associado, como bem jurídico a tutelar ou proteger, a segurança e a tranquilidade públicas.

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a segurança da sociedade perante os riscos para bens jurídicos individuais, para a vida e integridade física, da livre circulação e posse (e potencial uso) de armas sem a devida autorização. O legislador visa com esta proibição do uso indiscriminado e totalmente livre de armas de fogo evitar toda a atividade violenta no seu máximo (ou, pelo menos, num dos seus máximos) expoente técnico, particularmente apto a perturbar a convivência pacífica. Com esta incriminação se tem em vista, pois, assegurar, a prevenção de comportamentos desviantes altamente nocivos, agindo em defesa da convivência social  ordeira e respeitadora do direito, assegurando assim a segurança pública. O que se pretende, e sociologicamente se prova que se alcança, com a proibição não é o monopólio estatal da violência ou qualquer desvio ao mercado livre de armas (que está longe de ser um “direito natural”), mas sim prevenir o cometimento de crimes altamente violentos, especialmente crimes que ponham em risco sério a integridade física e mesmo a vida, como é o caso vertente.

São elementos do tipo legal do crime imputado ao arguido, pois, a detenção, e uso de arma sem a observância das condições legais e ao arrepio do determinado pelas autoridades competentes. E tudo isso com consciência e intencionalidade configuradoras de dolo.

Voltando à conclusão do Ministério Público, neste Supremo Tribunal, sobre esta matéria:

“Desta forma, temos a agravação do crime de homicídio, por força do uso da arma de fogo, e temos a punição pela detenção de arma de fogo proibida, por via da indocumentação, e por via da falta de habilitação do recorrente para a deter.”

Recorde-se, ainda, brevitatis causa, o ponto I do Sumário do recente Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 / 11/ 2020, proferido no Proc.º n.º 1302/19.8JABRG.S1 (Relator: Conselheiro Gabriel Catarino):

“I - A agravação da punição cominada no preceito incriminador pela detenção da arma não se destina a sancionar a detenção da arma mas a agravar o desvalor da acção pelo meio utilizado, a arma proibida. Não ocorre, no caso, uma dupla valoração – entre a incriminação pelo crime de detenção de arma proibida e a circunstância de o crime de homicídio sofrer uma agravação na sua moldura legal – dado que a agravação cominada na norma repercute uma censura do sistema penal pela utilização de um meio fatalmente letal e com uma aptidão lesiva de capacidade e inserção superior a qualquer outro meio apto a lesionar o corpo de um ser humano.”

Seja como for, o crime de detenção de arma proibida está excluído do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, por não se enquadrar na previsão do art. 432, n.º 1, al. c).

Nada mais há a acrescentar, neste ponto, dada a clareza da situação.

10. Da Medida das Penas

O Recorrente que, desde logo em termos curiais, explicitando estar a exercer o seu direito de “manifestação de posição contrária” ou “discordância de opinião”, traduzido no direito de recorrer, o que plenamente lhe cabe, e em nada fere, pelo contrário ajuda, ao ofício de julgar, efetivamente discorda da decisão condenatória, quer no tocante às penas parcelares, quer ao cúmulo.

Como foi assinalado supra, conclui uma argumentação neste ponto, em que enfatiza uma alegada falta de proporcionalidade das penas, dizendo que:

“Por força da atenuação de tais penas parcelares e da sua majoração, a pena única resultante do concurso deverá ser fixada em medida não superior a três anos e seis meses em caso de procedência face à qualificação do crime de homicídio e sua punição a título simples, sem agravação da Lei 5/2006, quatro anos e três meses de prisão, caso haja provimento unicamente ao nível da não agravação da Lei 5/2006 ou, no limite, cinco anos de prisão em caso de improcedência do recurso relativamente à subsunção jurídica e sua manutenção”. Tal é o que pretende, neste apartado.

A fundamentação constante do Acórdão recorrido é adequada e demonstrativa da devida ponderação dos diversos fatores em presença.

Quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, recorde-se o que diz a douta sentença recorrida:

“De tudo resultando que, e em suma, pela razão da futilidade do motivo (e só por essa), não poderemos fugir, como há pouco dissemos, a uma imagem de culpa agravada no cometimento do facto ilícito. Dito de outra maneira, a violência adoptada pelo arguido na perpetração do facto, pelos motivos que o fez, colora (rectius, qualifica) a imagem global do facto de um acréscimo de censurabilidade radicado em uma especial culpa do arguido, por ter agido da forma como agiu.

Em suma, afirmaremos, nos termos dos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º/n.os 1 e 2-e) C.P., a qualificação do homicídio tentado cometido pelo arguido.”

Como tivemos ocasião de explicitar supra, dadas a futilidade do motivo, a violência adotada, com uso de arma de fogo, que só não terá ido mais longe porque a arma terá encravado, a imagem global do facto com que se fica é a de uma vontade caprichosa que não aceita obstáculos e os pretende resolver a tiro. Não se vislumbra como não acompanhar as razões do Acórdão recorrido, e como se possa atenuar ou braquear a conduta.

O recorrente questiona a pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nº 1 e nº 2, al. e), do Cod. Penal, agravado pelo art. 86º, nº 3, da Lei n.º 5/2006, a qual foi de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. Considera-a majorada, indo muito para além do limite mínimo aplicável, por não se ter verificado a consumação de qualquer ofensa à integridade física, nem nenhum dos disparos ter atingido qualquer vítima, ou produzido em concreto quaisquer danos em bens jurídicos atinentes à vida ou integridade física, entendendo que tal facto terá de assumir relevância excecional, e permitir a atenuação da pena, próximo do seu limite mínimo.

No caso, a moldura penal abstrata do crime de homicídio qualificado tentado, oscila entre 3 (três) anos, 2 (dois) meses e 12 (doze) dias de prisão como limite mínimo e 16 (dezasseis) anos e 8 (oito) meses de prisão como limite máximo, encontrando-se a pena atribuída é certo que acima do limite mínimo, mas consideravelmente abaixo de metade do limite máximo (que seria 8 anos e 4 meses). Sendo que os elementos a ter em conta, como se viu, e verá, para a sua determinação não se encontram ao nível dos mínimos abstratamente consideráveis, aproximando-se, plausivelmente, mais dos médios.

A determinação da pena, realizada em função da culpa, e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, face ao disposto nos arts. 71, n.º 1, e n.º 2, e 40 do CP, deve visar as necessidades de tutela do bem jurídico em causa, e ter em conta todas as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido.

Acompanhamos as doutas considerações do Parecer da Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta:

“- São elevadas as necessidades de prevenção geral, mesmo estando-se perante a prática de um crime de homicídio agravado, ainda que na forma tentada, uma vez que há que repor a confiança dos cidadãos na validade das normas jurídicas violadas, estando em causa uma norma que pune o crime de homicídio, sendo que a vida constitui um bem jurídico fundamental do nosso ordenamento jurídico, para além do alarme social gerado pelos crimes desta natureza;

- O grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente AA considera-se elevado, dada a firmeza revelada, e a forma como foram perpetrados os actos de execução do crime de homicídio, na forma tentada, tendo actuado em plena via pública (os disparos foram efectuados numa zona e num momento de natural circulação de pessoas que podiam entrar ou sair da ....... e deambular nos dois passeios existentes), sem que tenha havido qualquer atitude provocatória, designadamente por parte do ofendido BB, referindo-se a tentativa da sua progenitora para o afastar do local, circunstância que não o demoveu da sua actuação, bem sabendo que tinha criado uma situação de potencial perigo para a vida daquele, sendo que a sua morte não ocorreu por motivos totalmente alheios à sua vontade;

- O dolo é intenso, tendo o crime praticado pelo recorrente AA sido cometido na modalidade de dolo directo, sendo que a sua culpa aponta para um ponto médio/alto, dentro da moldura penal respetiva, sendo efectivas as necessidades de prevenção especial, traduzidas numa vontade muito determinada de obrigar os seguranças a deixarem-no entrar na ......., e ao aperceber-se que não conseguia o que pretendia por força das ameaças verbais várias e graves ameaças à vida e integridade física daqueles, efectuou três disparos, um primeiro para o ar, e os outros dois na direcção da porta, por detrás da qual os mesmos se refugiaram.

- O recorrente AA mostrou uma personalidade prepotente e propensa a estados e a percursos de violência, tendo o seu modo de vida se pautado pela prática de crimes de diversa natureza, com várias condenações pela prática de uma multiplicidade de roubos, de ofensas à integridade física simples, de resistência e coacção sobre funcionário, de condução sem habilitação legal, de condução perigosa de veículo rodoviário, e de tráfico de estupefacientes de menor gravidade;

- Os factos foram praticados no decurso do período de duas suspensões de execução de penas de prisão, e no decurso de uma pena de prisão, em regime de permanência na habitação.”

Sublinhem-se alguns aspetos da personalidade do arguido: vida pautada por crimes de várias natureza, tais como roubos, ofensas à integridade física simples, resistência e coação sobre funcionário, condução sem habilitação legal, condução perigosa de veículo rodoviário, e tráfico de estupefacientes de menor gravidade (a não especialização nos tipos de crimes dos presentes autos tem apenas uma relevância residual), crimes agora praticados no decurso do cumprimento de pena, em regime de permanência na habitação.

Alto grau de ilicitude, bem jurídico do maior valor, dolo intenso, correspondendo a vultuosas necessidades de prevenção geral, alarme social gerado pelos crimes desta natureza, que causam normalmente alarme e que considerações laxistas contribuiriam para considerável alarme social e perecimento na confiança no direito e nas instâncias votadas à sua defesa e aplicação. E não apenas este sentimento de insegurança ocorre nas sociedades  “pela danosidade concreta e objectiva, que não pela potencial, como é o caso dos presentes autos dado que, se de facto poderia ter ocorrido uma tragédia, a verdade é que felizmente tal não aconteceu”, como afirma o Recorrente. Nestas matérias, a suscetibilidade e a possibilidade de surgimento de um clima de medo é muito alta (e agravada com a iteratividade dos crimes e o seu anúncio, por vezes muito difundido). Se o simples rumor pode ser um elemento de instabilidade, mais ainda o é a prática de atos que, como vemos pela argumentação do réu, se presume que apenas pela boa Sorte, pela Fortuna, acabariam por se não concretizar – “felizmente tal não ocorreu”, diz, mas, também diz “poderia ter ocorrido uma tragédia”. É a esta tragédia possível e a novas possíveis tragédias que se reporta o imaginário social que necessita, dentro dos limites do razoável, da culpa e dos demais critérios, e no respeito pelos direito e garantias do arguido (que não é um objeto ou pretexto mas um verdadeiro sujeito de direito e de direitos), de resposta por parte da ordem jurídica. Uma resposta de reposição do direito e, com ele, da confiança, por uma justa, proporcional (adequada, necessária e útil, equilibrada), ou seja, legal e equitativa, e obviamente de forma alguma excessiva.

Tem-se presente que o arguido considera que as medidas parcelares das penas teriam ido, todas elas, muito para além do limite mínimo aplicável, e daí retira que teriam sido violados os princípios da proporcionalidade, adequação e proibição do excesso. Não se pode razoavelmente extrair um post hoc ergo propter hoc neste caso. O princípio da proporcionalidade (de grande importância, desde o livro V da Ética a Nicómaco de Aristóteles e o seu Comentário por Tomás de Aquino, – cf. ainda, numa clave clássica, Michel Villey, Philosophie du droit. I. Définitions et fins du droit, 3.ª ed., Paris, Dalloz, 1982, p. 73 ss.. –, até à doutrina mais moderna, como a de Vicki C. Jackson, Constitutional Law in an Age of Proportionality, “The Yale Law Journal”, Vol. 124, n.º 8, junho de 2015, sobretudo enfatizando, no que especialmente interessa para o nosso caso, que “punishments reflect the relative severity of the offense”; v. ainda, por todos, Nicholas Emiliou, The Principle of Proportionality in European Law, Londres, Kluwer, 1996; Xavier Philipp, Le contrôle de la proportionnalité dans les jurisprudences constitutionnelle et administrative françaises, Marselha, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 1990; Carolina Pereira Saéz, Una Contribución al estudio del empleo del Principio de Proporcionalidade en la jurisprudência reciente del Tribunal Constitucional Español, Separata do “Anuario da Facultade de Dereito da Universidade da Coruña”, 8, p. 1044 ss.; Willis Santiago Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 4.ª ed., revista e ampliada, São Paulo, RCS Editora, 2005, p. 83, e Idem — Notas em torno ao Princípio da Proporcionalidade, in Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da Constituição de 1976, ed. de Jorge Miranda, Coimbra, Coimbra Editora, 1996.Vitalino Canas, Princípio da Proporcionalidade, in “Dicionário Jurídico da Administração Pública”, Separata do VI Volume, Lisboa, 1994; Jorge Miranda  / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 162; J. J. Gomes Canotilho,  Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2.ª reimp., Coimbra, Almedina, 2003, p. 266 ss.; Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 178 ss..) tem sido utilizado nos últimos anos como um topos argumentativo de grande importância em muitos casos, mas, noutros, em algumas latitudes, de contornos por vezes evanescentes. Contudo, em matéria jurídica, e especificamente penal, com articulação constitucional, ele deve ser rigoroso, com parâmetros como os sintetizados no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 31/03/2011, no Proc.º n.º 257/10.9YRCBR.S (Relator: Conselheiro Santos Cabral) em que nomeadamente se afirma, no respetivo sumário:

“VI - O princípio da proporcionalidade tem inscrito uma função de controlo que emerge sempre que a protecção de interesses públicos possa entrar em conflito com os direitos fundamentais e liberdades públicas dos cidadãos, o que no âmbito penal ocorre com frequência. Nele se integram uma serie de postulados que são uma evidente derivação do respeito do bem liberdade e da assunção de um critério democrático de conformação do direito que apresentam a matriz de outros princípios como o de exclusiva protecção de bens jurídicos ou de mínima intervenção.

VII - Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição Anotada, pág. 392 e ss.) sob o prisma do princípio da proporcionalidade importa distinguir os requisitos da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Estas três exigências são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática.

VIII - O respeito pelo princípio da idoneidade exige que as limitações dos direitos fundamentais antecipadas pela lei estejam adaptadas aos fins legítimos a que se dirigem e que as mesmas sejam adequadas à prossecução das finalidades em função da sua adequação quantitativa e qualitativa e de seu espaço de aplicação subjectivo. Significa o exposto que o juízo sobre a idoneidade não se esgota na comprovação da aptidão abstracta de uma medida determinada para conseguir determinado objectivo, nem na adequação objectiva da mesma, tendo em consideração as circunstâncias concretas, mas também requer o respeito pelo princípio da idoneidade a forma concreta e ajustada como é aplicada a medida para que não se persiga uma finalidade diferente da antecipada pela lei.

IX - Pela aplicação do princípio da necessidade a entidade vocacionada para aplicar a medida conformada pelo mesmo princípio deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objectivo pretendido que aquela é menos prejudicial para os direitos dos cidadãos.

X -Por último, o uso do princípio da proporcionalidade em sentido estrito implica que se verifique se o sacrifício dos direitos individuais sujeitos à sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objectivo que se pretende atingir.”

Não se ignora que possa ser feito, especialmente em alguns contextos que especialmente o requeiram, um uso mais vivo do princípio: “em nosso ordenamento constitucional não deve a proporcionalidade permanecer encoberta. Em se tratando de princípio vivo, elástico, prestante, protege ele o cidadão contra os excessos do Estado e serve de escudo à defesa dos direitos e liberdades constitucionais. De tal sorte que urge, quanto antes, extraí-lo da doutrina, da reflexão, dos próprios fundamentos da Constituição, em ordem a introduzi-lo, com todo o vigor, no uso jurisprudencial” (Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 18.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 434). Mas cumpre que se possa convocar tal princípio com pertinência.

Se, como foi dito, para o crime de homicídio, na forma tentada, não se pode afirmar que a gravidade (latissimo sensu) do mesmo, configurada por todos os elementos pertinentes a ter em consideração, de modo algum permite, com proporcionalidade, balizar a ação delituosa em nível meramente próximo dos parâmetros mínimos, atento o quadro legal dos demais crimes, também não é lícito, a fortiori, fazê-lo.

 11. Conclusão

Quando a sentença aprecia uma pluralidade de crimes (ainda que possam eventualmente ser apenas dois) e lhes aplica penas parcelares, depois são englobadas ou cumuladas numa pena única, não se deverá proceder a uma duplicação ponderadora: a escolha das penas parcelares, concorde com os critérios legais determinados pelos arts. 70 a 72 do CP, já dá elementos significativos para a visão global imprescindível à fixação da pena única (agora nos termos do art. 77, n.º 1) e, portanto, há elementos do considerado anteriormente que nesta sede não necessitam de reponderação, nem sequer nova invocação.

Como é sabido, a intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).

Assim, como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.

No caso dos concretos crimes em presença não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque aos bens jurídicos violados, cuja violação é geradora de escândalo, alarme e intranquilidade – reveladores da consciência jurídica geral da comunidade.

Atente-se neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1:

 “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os  Acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214).

Importará ainda salientar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada (não cabendo julgar ad libitum) e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). Ora é precisamente o que ocorre no caso, em que a malha hermenêutica utilizada se revelou consistente com os seus pressupostos, que foram proficientemente explicitados, com recurso a um conjunto de tópicos, nomeadamente de direito, de grande relevância e pertinência.

Como é sabido, a pena única deva determinar-se, como o foi, fundamentalmente pela ponderação de fatores do critério que consta do art. 77 n.º 1, in fine, do Código Penal:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Considerando, assim, as evidentes necessidades de prevenção no caso em concreto, o respetivo grau de culpa e de ilicitude, que são elevados, todo o comportamento de desculpabilização e minimização da sua conduta (como a ideia da detenção de arma por alusão a supostos “perseguidores”, ou a invocação de que a atitude ameaçadora assumida, com palavras disso eloquentes, não seria de molde a causar receio nos visados), todos os antecedentes criminais e até a sua situação no momento da prática dos factos (indiciadores de que se não conseguiu ainda conformar com a obediência ao direito e a convivência cordata em sociedade, controlando os seus impulsos volitivos), entende-se que a pena única não excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e é adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, revelando-se, pois, justa. Na verdade, como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (e vária jurisprudência com ele é concorde), há um critério holístico na escolha da medida da pena única. Assim,

“(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 291).         

Sem prejuízo de tudo quanto ficou exarado sobre a gravidade dos factos, e todos os demais fatores já considerados, e sem conceder em nenhuma das asserções, uma interrogação poderia ainda fazer-se, em apreço pela dúvida metódica: será que se poderia ainda atender a alguns fatores que quiçá pudessem eventualmente revelar-se atenuantes, sem prejuízo da justeza do iter judicativo, e da qualidade técnica da douta decisão recorrida? Poderia acaso chegar-se à consideração da pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, aplicada ao recorrente, como passível de ser ligeiramente diminuída, mantendo as finalidades legalmente desejadas? Não se trataria, pois, de desculpar os factos, mas de melhor os entender (não se aplicando, porém, o tout comprendre, c’est tout pardonner, de Guyau). Vejamos.

Não se encontra na matéria de facto expressa referência a arrependimento e intenção de conformação futura com as expetativas de comportamento normalmente conformado que a sociedade espera dos cidadãos. E não é relevante uma síntese do recurso: “O arguido errou, não devia ter actuado da forma que o fez, revelou capacidade crítica perante o Tribunal a quo e outro caminho lhe não resta se não o de cumprir a pena que lhe venha a ser fixada, tendo em vista a sua ressocialização.”. Porquanto o alegado pelo Arguido apenas em sede de recurso não constitui matéria fáctica que possa sustentar um juízo que conclua pela necessidade de atenuação da pena. Não foi matéria de facto provada no momento processual próprio.

Consta ainda da matéria de facto que se encontra em fase de afastamento de adições, e que foi seguindo programas nesse sentido, além de que está em tratamento hospitalar ambulatório contra a depressão. Cf. pontos 34 a 36 dos factos provados. Contudo, numa primeira fase, em reclusão, teria recusado o acompanhamento médico (ponto 49).

O arguido, mesmo no momento dos sucessos, estava acompanhado por sua Mãe (e mais uma outra pessoa), a qual tentou afastá-lo do local dos crimes, o que revela que certamente continuará a contar com apoio familiar, sempre de vital importância num desejável processo de ressocialização. O que também é corroborado pelas visitas, na prisão, desta e da Tia, regulares, e só suspensas por motivo da pandemia em curso. Agora, mantém o contacto por meio de chamadas de voz e vídeo via Skype. Cf. pontos 52 e 53 dos factos provados. A envolvente familiar e de amizades é, sem dúvida, importante como retaguarda e apoio, mas note-se que no momento da prática dos crimes, as instâncias da Mãe e da outra pessoa que o acompanhava não se revelaram suficientes para o demover dos seus intentos.

Apesar de inicialmente ter faltado às aulas de um curso de cariz técnico-profissional no seio prisional, em abril de 2020, veio mais tarde a solicitar o reingresso no mesmo curso, passando a assistir às aulas. Cf. ponto 50 dos factos provados. Tal poderia ser uma esperança, um aspeto positivo. Porém, em contrapartida, por exemplo, teve uma sanção já durante o tempo de reclusão por posse de telefone móvel.

E note-se, em desfavor (numa ponderação holística), que o Recorrente tem já muitas condenações anteriores.

Poderia ainda acalentar-se a esperança de que um sinal de confiança no recorrente o incentivasse a definitivamente abandonar as práticas delituais? Obviamente, uma confiança de modo algum ilimitada, nem que pusesse em causa todo o quadro já devidamente traçado e ponderado, mas ainda assim uma esperança. Mas – indaga-se – até que ponto esse sinal não seria, pelo contrário, contraproducente, interpretado pelo Recorrente e pela Sociedade não como incentivo, mas como claudicação? E assim, aumentando o alarme social, por um lado, e, por outro, não cumprindo a sua função face ao arguido?

Como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” (sendo importante o diálogo que com estas ideias encetam os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lx., Rei dos Livros, p. 192).

O alarme social é notório com o tipo de atos como os do arguido.

Como tem assinalado Claus Roxin, entre outros, o que não deixa de ser recordado, entre nós por Figueiredo Dias, há também uma compreensão social de situações de diminuição da culpa, e a aceitabilidade comunitária de que possa existir uma menor exigibilidade, em certos casos, da tutela de bens jurídicos (Idem, Direito Penal, I, p. 83 e Direito Penal, vol. II, p. 230, e ainda Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, cit., p. 188).

Mas nunca poderá estar em causa cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. Como seria o caso de uma pena que consentisse a suspensão da sua execução.

Estaremos, porém, num desses casos de borderline, os quais, por vezes, colocam mesmo situações muito menos claras e mais agudas (situações que não estarão entre “murder” e “manslaughter”, mas até entre o homicídio e a inocência, conforme assevera G.E.M. Anscombe, Human Life, Action and Ethics, Essays by…, Imprint Academic, 2006, p. 277)?

 Sem perder a bússola da Justiça, depois de verberados os crimes, poderia aqui recordar-se Camilo Castelo Branco (que conheceu o cárcere) quando, nas Vinte Horas de Liteira (p. 52) nos recordou “todo o crime tem uma face comovente que exora perdão para o delito repugnante. Não há crime absolutamente imperdoável (…)”?

Não é questão de perdão, mas é enfoque de análise de pesos e medidas. Se o laxismo é um exagero, excesso simétrico seria o rigorismo, perigo para que, entre outros, chama a atenção Lipovetski, O Império do Efêmero, trad. de Maria Lucia Machado, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 299, aludido à “ideologia law and order” e ao recuo das ideias de reinserção e até à defesa de outras inovações, que são recuos, de iure constituendo. O perigo de excessivo rigor parece-nos, no caso, de absolutamente descartar.

Não se crê que haja nos autos elementos suficientemente convincentes para afastar a decisão o Acórdão recorrido (não procederia decidir uma diminuição da pena), o qual se revela, tudo ponderado, justo e proporcional, e não ultrapassando a medida da culpa, face à gravidade e ao número de crimes pelos quais foi condenado, nem pondo em causa as exigências de prevenção.

Tendo presente a moldura penal deste homicídio, que é de 3 anos, 2 meses e 12 dias de prisão, como limite mínimo, e 16 anos e 8 meses de prisão, como limite máximo, ponderado tudo quanto havia a ponderar, a pena concreta de 6 anos e 6 meses revela-se justa e adequada.

Os factos que se elencaram são frustes para fundar um juízo alternativo de maior adequação aos fins das penas. Aliás, sendo a moldura deste cúmulo de 6 anos e 6 meses, como limite mínimo, e 10 anos e 9 meses, como limite máximo, a pena única atribuída encontra-se plenamente consonante com uma abordagem equilibrada.


IV

Dispositivo


Nestes termos, acorda-se na 3.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça em não dar provimento o recurso, confirmando na sua integralidade o Acórdão recorrido. 

Custas pelo recorrente. Fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de fevereiro de 2021

(Atesto o voto de conformidade do Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4.º do CPP)

Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)