Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
458/08.0GAVGS.C1-A.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
INTERPRETAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
TAXA DE ÁLCOOL NO SANGUE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO RECURSO
Sumário :
I - O art. 437.º do CPP reclama, para fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, a existência de dois acórdãos, tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada pois uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.

II - Os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas. A oposição deve ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito. Não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, que estão para além da decisão final, ou que esta tenha, em cada um dos acórdãos, só por pressuposto, teses diferentes. A oposição deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (cf. v. g. Ac. do STJ de 11-10-2001, Proc. n.º 2236/01, desta 5.ª Secção).

III -Importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito: isso só ocorre quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica, e elas forem interpretadas de modo diferente. Interessa pois que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas.

IV -Se as divergências se passam apenas ao nível da interpretação de elementos de prova – v. g., na informação fornecida pelo aparelho medidor do teor de álcool no sangue –, não se verifica oposição relevante de julgados.
Decisão Texto Integral:
A – RECURSO

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do nº 2 do artº 437º do C.P.P., em síntese, com base no seguinte:

1. No Pº Sumário n.° 458/08.0GAVGS, do Tribunal Judicial da Comarca de V..., AA foi acusado da prática de um crime de Condução de Veículo em Estado de Embriaguez, previsto e punido pelos art.°s 292.° n.° 1 e 69.° n.° 1, ambos do C. P., e submetido a julgamento no dia 26/08/2008. Na verdade, a 24/08/2008, fora fiscalizado por uma patrulha da BT/GNR quando conduzia o veículo automóvel ...-...-..., apresentando uma TAS de 1,97 g/l, a qual foi lida no aparelho marca Drager modelo 7110MKIII P n° série ARRA-0035 aprovado pela DGV em 06/08/1998.
O arguido confessou integralmente os factos, e também não foi nunca questionada, em julgamento, a fidelidade da leitura deste específico aparelho. No entanto, tendo em conta uma abstracta margem de erro admitida para o tipo de aparelho, considerou o Tribunal que o arguido conduzia com uma TAS corrigida de 1,82 g/l e não com a efectivamente lida TAS de 1,97 g/l, pelo que, em consonância com tal entendimento, condenou-o na pena correspondente à taxa corrigida.
O Ministério Público discordou da decisão, que entendeu estar viciada pela indevida correcção operada, (o valor da TAS de 1,82 gr/l foi fixado na matéria de facto, quando a apresentada pelo respectivo aparelho era de 1,97 gr/l), e interpôs recurso para o Tribunal da Relação, o qual, por acórdão de 11/03/2009 ratificou o entendimento da 1.ª instância, no que toca à correcção da referida margem de erro. Esta decisão não admite recurso ordinário e transitou em julgado em 27/03/2009.

2. No Pº 350/07.5GBPMS.C1 do 2º Juízo da comarca de Porto de Mós, havia-se decido do mesmo modo, deduzindo -se o valor do erro máximo admissível (de 1,28 gr./l para 1,18 gr./l).
Interposto recurso, o mesmo Tribunal da Relação de Coimbra alterou a decisão da primeira instância, o que teve lugar através do acórdão de 04/06/2008, transitado em julgado em 23/06/2008. Debruçando-se sobre a mesma questão jurídica, ou seja, a de se saber se, de forma automática, deve ou não proceder-se à correcção da TAS indicada pelo mesmo tipo de aparelho "Drager", Modelo 7110 MK111 P, no qual foi lida a TAS de 1,28 gr/l, e tendo igualmente o arguido confessado integralmente os factos, a Relação respondera, dessa vez, negativamente.
Considerou, na verdade, que se deve atender para efeitos de condenação, sem mais, à leitura fornecida pelo aparelho em questão, porquanto “A margem de erro máxima admissível (EMA) reporta-se e tem por finalidade específica, a Aprovação e as Verificações periódicas subsequentes realizadas pelo IPQ como condição prévia da sua homologação e aprovação - e não casuisticamente, depois de os aparelhos terem sido aprovados e/ou verificados por quem de direito, ser aplicadas (novamente) pelas entidades fiscalizadoras de trânsito o que, além de extravasar as suas competências, redundaria numa duplicação”. E assim, “(...) a taxa a considerar, dando-a como provada, é aquela que foi registada peto aparelho utilizado “.

3. Por isso é que, defende o Mº Pº, o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu decisões contrárias, no domínio da mesma legislação e decidindo igual questão de direito, em sede de interpretação das mesmas normas jurídicas. Concretamente, a Portaria n.° 1556/2007, de 10/12, que aprovou o novo Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, por referência à Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML R 126).
Interpretações divergentes, que conduziram a soluções opostas, relativamente à mesma questão jurídica:
No caso dos presentes autos (acórdão recorrido) procedeu-se à correcção da TAS de 1,97 g/l para 1,82 g/l, porque se considerou que a taxa de álcool a ter em conta resulta da subtracção da margem de erro máximo admissível ao valor indicado no aparelho.
Enquanto que no caso do referido Acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 04/06/2008 (acórdão fundamento), se decidiu que a taxa de alcoolémia a considerar é aquela que foi registada pelo aparelho utilizado, não procedendo, nesse caso, a qualquer correcção oficiosa da TAS de 1,28 gr/l, lida.

4. Impõe-se, por isso, que: através do presente recurso extraordinário, seja fixada jurisprudência sobre a questão de saber se, relativamente ao aparelho marca "Drager", modelo 7110MKIII P, para efeitos da margem de erro a que se referem, Portaria n.° 1556/2007, de 10/12, que aprovou o novo Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, e por referência à Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML R 126), confessando o arguido integralmente e sem reservas os factos, e não sendo em julgamento posta em causa a fiabilidade do específico e individualizado aparelho que procedeu à leitura, de forma automática e oficiosamente, poderá proceder-se à correcção da margem de erro admitida em abstracto para este tipo de aparelho.”

Foi junta certidão do acórdão recorrido e do acórdão fundamento com a nota de trânsito em julgado.
O MºPº neste S.T.J. teve vista nos autos, ao abrigo do nº 1 do artº 440º do C.P.P., e pronunciou-se no sentido do preenchimento dos pressupostos da prossecução do presente recurso por haver oposição de julgados no domínio da mesma legislação quanto à mesma questão de direito. Disse, entre o mais, que:
“3.a. Quanto à verificação da oposição relevante de julgados, haverá que ter presente, antes do mais, que o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou, recentemente, sobre a mesma questão que ora vem suscitada – cf. o Acórdão de 15-04-2009, proferido no Processo nº 3263/08-3, o Acórdão de 21-05-2009, proferido no Processo nº 378/09-5 e o Acórdão de 18-06-2009, proferido no Processo nº 118/08.1GTTVD-A.S1.
Em todos esses doutos Acórdãos se decidiu, por unanimidade, rejeitar os recursos de fixação de jurisprudência, por ausência de oposição relevante.
Conforme se concluiu nos dois primeiros acórdãos referidos:
“Estando subjacente em ambos os processos a aplicação e observância das indicações dos ofícios da DGV, constituindo no fulcro o objecto dos recursos a avaliação da bondade do recurso a tal informação administrativa, …não estamos perante a aplicação de normas jurídicas, não se colocando verdadeiramente uma questão de direito controvertida, sendo que o acórdão recorrido sobre a questão específica da valia do ofício nada disse, o que conduz a uma não oposição de julgados” – cf. fls. 11 do Acórdão de 15-04-2009, e fls. 4 do Acórdão de 21-05-2009, respectivamente.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão proferido no Processo nº 118/01.1GTTVD-A.S1, não se “vendo razões para nos afastarmos da decisão tomada nos doutos arestos que se acabaram de transcrever parcialmente [transcrição vertida no parágrafo imediatamente anterior deste parecer], concluindo também pela não oposição de julgados e pela rejeição do recurso.

3.b. Como se relembra no citado Ac. STJ, de 18-06-2009, remetendo para vários outros arestos deste Supremo Tribunal, são os seguintes os recursos substanciais da admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurispudência:
- As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito;
- As decisões em oposição sejam expressas;
- A situação de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas.
No caso em apreço, dúvidas não há quanto à identidade das situações de facto e do respectivo enquadramento jurídico, sendo também manifesto que a decisões proferidas pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento se encontram em oposição e que tal oposição é expressa e não tácita.
Restará assim averiguar, preenchidos que estão também todos os requisitos formais, se estamos ou não perante a mesma questão de direito e, na afirmativa, se relativamente à mesma foram consagradas soluções opostas.
A este propósito, haverá de ter-se presente que, conforme se decidiu no Ac. STJ, de 23-04-1986, é indispensável, para haver oposição de acórdãos, justificativa do recurso, que as disposições legais em que se basearam as decisões conflituantes, tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos – cf. BMJ 356/272.
Como se refere, no Ac. STJ, de 12-03-09, Processo 576/09-5, a propósito desta jurisprudência, que “foi depois uniformemente seguida neste Supremo Tribunal”, não se trata de apreciar a bondade da decisão proferida no acórdão recorrio. Trata-se de verificar se aí se tomou uma posição, sobre uma questão de direito, em contradição com a posição que, sobre a mesma questão de direito, se tivesse tomado no acórdão fundamento.
Tal como se desenvolve no Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 12-03-2009, Processo nº 2484/08-5, para que se verifique oposição relevante de acórdãos, não se exige que as decisões em conflito se tenham fundado na mesma norma ou segmento da mesma norma. Basta, de acordo com o disposto no artigo 437º 1 do C. P. Penal, que tenham assentado, relativamente à mesma questão de direito, em soluções opostas, no domínio da mesma legislação.
No caso do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, a questão de direito posta à consideração do tribunal foi a seguinte:
A taxa de álcool no sangue, a levar em consideração para efeitos do disposto no artigo 292º nº 1 do C. Penal, é a correspondente ao valor indicado pelo alcoolímetro ou, antes, a correspondente a tal valor deduzido o valor de erro máximo admissível a que alude o nº 6 do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria nº 748/94, de 13-08 [a que corresponde, como se refere no acórdão recorrido, o artigo 8º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria nº 1556/2007, de 10-12, que revogou a Portaria nº 748/94]?
Os dois acórdãos resolveram essa mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação [a revogação da Portaria 748/94, de 13-08, pela Portaria nº 1556/2007, de 10-12, não interfere, directa ou indirectamente, na questão de direito controvertida – nº 3 do artigo 437º do C. P. Penal], em sentido oposto, havendo, pois, salvo melhor entendimento, oposição relevante de acórdãos

3.c. Os doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, indicados em 3.a., concluem pela não oposição de julgados, por estar subjacente a todos esses processos “a aplicação e observância das indicações dos ofícios da DGV”, donde resulta que “não estamos perante a aplicação de normas jurídicas, não se colocando verdadeiramente uma questão de direito controvertida”.
O expediente da então Direcção Geral de Viação – DGV, a que se reporta esses doutos acórdãos, é aquele que foi divulgado, “para conhecimento”, pela Circular nº 101/2006, de 7-09-2006, do Conselho Superior da Magistratura.
Refira-se que expediente idêntico foi canalizado para a Procuradoria Geral da República, a qual, através do Ofício nº 11861/2007, de 20-03-2007, tomou posição, a esse propósito, junto dos respectivos magistrados, dando conta de que “as orientações e determinações dos procedimentos relativos à uniformização de procedimentos relativos à fiscalização do trânsito não podem, “contra legem”, prever quaisquer margens de tolerância ou margens de erro relativamente aos resultados obtidos através dos mecanismos legalmente previstos”.
Independentemente da interpretação que deva ser dada à documentação emanada da extinta DGV, o certo é que, no caso do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, ora em apreço, não está em causa a aplicação e observância das indicações dos ofícios da DGV, colocando-se antes, de forma manifesta, a mesma questão de direito controvertida, acima indicada, a qual foi resolvida, no domínio da mesma legislação (nº 3 do artigo 437º do C. P. Penal), em sentidos opostos.”

Ambas as decisões transitaram em julgado, e o acórdão fundamento transitou em julgado antes do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos submeteram-se os autos a conferencia.

B – APRECIAÇÃO

1) Quanto à decisão recorrida

A posição assumida pelo acórdão recorrido arrancou da verificação, em primeira instância, dos seguintes factos dados por provados:

“1. No dia 24 de Agosto de 2008, pelas 02h57m, AA, aqui arguido, conduziu o veículo ligeiro de passageiros e matrícula ...-...-..., na Av. ...., V..., comarca de V..., com uma taxa de álcool no sangue registada de 1,97 g/l, correspondente a uma taxa efectiva de pelo menos 1,82 g/l.
2. O arguido agiu de forma voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
3. Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vem acusado.
4. O arguido é motorista de transporte internacional.
5. Aufere um ordenado não concretamente apurado, rondando os € 1.500.
6. Paga cerca de € 170 pela aquisição de um computador e € 300 de renda de casa.
7. E proprietário de uma casa.”

A motivação da convicção do tribunal da primeira instância foi:

O Tribunal fundou a sua convicção nas declarações do arguido, que confessou integralmente os factos pelos quais vem acusado, não formulando quaisquer reservas. Mais se teve em conta o teor do talão do exame quantitativo de alcoolémia de fls.12. Foi tido em consideração o erro máximo admissível tendo em consideração o disposto na Portaria n° 748/94, de 13 de Agosto conforme Circular n° 101/2006 do Conselho Superior da Magistratura, de 7 de Setembro de 2006. (…)”

Na sequência do recurso do Mº Pº a Relação decidiu, entre o mais, que:

“No caso sub júdice a questão posta à consideração deste tribunal ad quem pelo recorrente é a seguinte:
- Se deveria ou não ter sido tido em conta a margem de erro do Alcoolímetro, de uma taxa registada de 1,97 g/l, com uma taxa efectiva de, pelo menos, 1,82 g/l, ou seja, se se deve considerar que o arguido tinha uma taxa de 1,97 ou uma taxa de 1,82 g/l, como considerou o tribunal "a quo"K.
Sobre a questão assim colocada diremos, desde já, que, a nosso ver, os tribunais ao apreciar a matéria de facto, não devem considerar que o arguido se encontrava conduzir o veículo com a taxa de álcool no sangue que corresponde exactamente ao valor indicado pelo aparelho uma vez que este, como qualquer outro instrumento de medição não tem uma fiabilidade absoluta.
Dever-se-á, como sucedeu na 1ª instância, (daí o transcrever-se, a parte da motivação da decisão, onde se expressam os motivos desta, com que estamos de acordo) reduzir o valor indicado pelos alcoolímetros, tendo em conta o erro máximo admissível do aparelho (estabelecido hoje pela Portaria n.°1556/2007 de 10 Dezembro, porquanto um tribunal criminal só pode considerar provado um facto quando se tenha convencido da sua verdade "para além de toda a dúvida razoável".
Explicitemos sinteticamente as razões deste nosso entendimento.
A quantificação da taxa de álcool no sangue é, entre nós, como regra, mesmo em análise de contraprova, feita por teste no ar expirado efectuado em analisador quantitativo, só o sendo por analise de sangue quando não for possível realizar o teste em análise quantitativa.
Daí que como se afirma no ponto 5 da Recomendação n° 126 da OIML, mesmo um aparelho aprovado e sujeito a verificação periódica, exista ou possa existir em medição individual uma certa imprecisão.
E se, em 95 % das medições, essa imprecisão não deva ultrapassar os valores referidos no ponto 5.2.2 da OIML R 126, os quais são claramente inferiores à margem de erro admissível do aparelho, nas restantes medições a imprecisão pode ser superior.
Estando a aprovação e a certificação de cada aparelho na primeira verificação e nas verificações seguintes sujeitas à não ultrapassagem da margem erro admissível fixada, consoante o caso, nos pontos 5.1.1 a 5.1.3 da OIML R 126 - quadro anexo à Portaria n.° 1556/2007 de 10 de Dezembro, o tribunal não pode estar seguro de que o condutor fiscalizado, em cada caso concreto, tenha conduzido o veículo com a exacta taxa de álcool indicada pelo aparelho.
Porém, se o aparelho se encontra aprovado, se foi sujeito à verificação periódica e a funcionar regularmente, o tribunal tem todas as razões para ter por seguro, "para além de qualquer dúvida razoável», que o examinado tinha a taxa de álcool que resulta da subtracção da margem de erro máximo admissível ao valor indicado aparelho.
Mesmo que a determinação da taxa de álcool no sangue se fizesse, como regra, através da análise sanguínea, não deixariam de se colocar questões quanto ao grau de fiabilidade do resultado da análise.
Esta questão não se colocava de forma essencialmente diferente durante o período de vigência da Portaria n.° 748/94 de 13 de Agosto, porquanto também ela seria os erros máximos admissíveis dos aparelhos (n°6) e também ela, se bem que por via de remissão, indicava esses valores. A diferença essencial residia no facto de a referência técnica ser então a da norma metrológica francesa (NF X 20-701), que foi substituída pela da indicada Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML R 126).
Embora se trate de um caso de prova vinculada, entendemos que o analisador quantitativo permite obter prova documental uma vez que o resultado consubstancia uma «notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos lei penal» - artigo 164° n.° 1, do Código de Processo Penal e arts 255° alínea b), do Código Penal — e não prova pericial porque, para este efeito, não tem lugar uma percepção ou apreciação de factos que exijam «especiais conhecimentos técnicos científicos ou artísticos» - artigo 151° do Código de Processo Penal. Por isso, também não é aplicável o disposto no artigo 163° do Código de Processo Penal.

Dito o que, ficam afastados os alegados erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável na fundamentação e ainda a necessidade de utilizar o invocado art° 163° n° 2 CP Penal, restando a medida da sanção acessória e o quantum diário da multa (…)”.

2) Quanto ao acórdão fundamento

No acórdão fundamento acolheram-se os factos dados por provados em primeira instância que foram:

1. No dia 25.06.2007, pelas OlH.lOm., na ENn."8, Cruz da Légua, freguesia de Pedreiras, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ...-...-..., o que fazia após ter ingerido bebidas alcoólicas que lhe determinaram uma taxa de álcool no sangue não inferior a l,l8 gr./l.
2. Ao agir da forma descrita, o arguido sabia que tinha ingerido bebidas alcoólicas suficientes para lhe determinar uma taxa de álcool no sangue superior à legal e quis tripular o veículo automóvel descrito sob o n.°l.
(…)
7. Confessou deforma livre, integral e sem reservas. (…)”

E, nessa primeira instância, apresentou-se como fundamentação para a decisão, o que se segue:

“O Tribunal fundou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base nas declarações confessadas do arguido, que depôs ainda de forma convincente quanto à sua situação pessoal, profissional e familiar.
Quanto à taxa de álcool o tribunal valorou o talão de alcoolímetro de fls. 4, tendo no entanto sido deduzido o valor de erro máximo admissível comunicado por via do oficio n.° 14811 de 19.07.2006 da DGV. De facto é do conhecimento geral que os alcoolímetros, como qualquer aparelho de medição, não tem uma fiabilidade absoluta, não só devido ao oficio em referência mas também porque muitas vezes quando é feita a contra-prova por teste de ar expirado no mesmo aparelho as medições apresentam valores díspares, mesmo quando a contra-prova é realizada momentos após o teste inicial. Assim sendo, o princípio in dúbio pro reo leva a que não se possa dar como provada a taxa de álcool acusada no aparelho de medição, mas apenas essa taxa deduzida da taxa de erro máxima admissível do alcoolímetro.”

Pronunciando-se então sobre o objecto do recurso, interposto, também aí, pelo Ministério Público, disse-se no acórdão fundamento:

“De acordo com as respectivas conclusões, que delimitam o objecto do recurso, está em causa no presente recurso a apreciação da prova no que toca à definição da taxa de alcoolemia apresentada pelo arguido.
Como emerge da descrição da matéria de facto dada como provada e motivação que a suporta, a decisão recorrida procedeu à dedução, à taxa de alcoolemia definida pelo alcoolímetro (e identificada no auto de notícia e imputada ao arguido no despacho de acusação) da "margem de erro máxima admissível", assim a reduzindo de 1,28 gr./l. para 1,18 gr./l.
Redução que, no caso, tem consequências relevantes para efeito da qualificação jurídica dos factos - descendo do patamar tipificado como crime (taxa igual ou superior a 1,20 gr./l.) passa de crime a mera contra-ordenação.
Ao deduzir à taxa de alcoolemia medida pelo aparelho identificado no auto de notícia, devidamente homologado, aprovado e verificado, a já referida "margem de erro máxima admissível", a decisão recorrida fê-lo tendo em consideração, exclusivamente, o resultado do exame efectuado, ainda que numa determinada interpretação, veiculada pelo oficio da Direcção-Geral de Viação a que a sentença faz referência.
Estando em causa, assim, apenas a apreciação do resultado do mencionado exame, junto aos autos, em conformidade com os critérios legais aplicáveis. E não a valoração de qualquer meio de prova produzido oralmente em audiência a que o tribunal de recurso não tenha acesso imediato.
Ora os tribunais da relação conhecem de facto e de direito - cfr. art. 428° do CPP.
Postulando o art. 431° do CPP: Sem prejuízo do disposto no art. 410°, a decisão do tribunal de lª instância sobre matéria de facto pode ser alterada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412° n.°3 do CPP.
E, no caso em apreciação, está em causa apenas, como foi equacionado, a "leitura/interpretação/valoração" do resultado do exame realizado que encontra a fls.4 dos autos.
Podendo assim este tribunal proceder à reapreciação de tal elemento de prova nos termos do citado art. 43 1º, al. b).
Estabelece o art. 153° do CE. que o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado mediante utilização de aparelho aprovado para o efeito.
A matéria da fiscalização da condução sob o efeito do álcool foi objecto de regulamentação pelo Decreto Regulamentar n.° 24/98 de 3O. 10.
Diploma que distinguia entre aparelhos analisadores de medição "qualitativos" e os aparelhos "quantitativos" - os primeiros com meras funções de despistagem/triagem, após o que os condutores que seriam submetidos aos analisadores "quantitativos" ou a exame hematológico - cfr. art. 1º, n.° 1 do DL 24/98 de 30.10.
No sentido de garantir a verdade das medições efectuadas, os analisadores "quantitativos" encontram-se sujeitos a rigorosas operações de controlo metrológico, a realizar pelo Instituto Português da Qualidade (IPQ), conforme previsto no Regulamento do Controlo Metrológico, como melhor se verá infra.
O Decreto Regulamentar n.° 24/98 de 30.10 foi revogado pelo Dec. Reg. 18/2007 de 17.05, que aprovou o Novo Regulamento da Fiscalização da Condução sob o Efeito do Álcool dos analisadores quantitativos ou por análise ao sangue, não tendo procedido, todavia a alterações relevantes para os efeitos que ora interessem.
No caso dos autos não está em causa a utilização de um aparelho de medição "qualitativo". Mas sim um aparelho de medição "quantitativo" - Draguer Alcotest, modelo 711OMKIII P, com o n.° de série ARPN-0056, devidamente homologado e aprovado.
Como aparelho de medição quantitativo está sujeito às referidas operações de controlo metrológico.
A Portaria 748/94 de 14.08 aprovou o Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, o qual nos termos do seu art. 3º, definia "os erros máximos admissíveis para a Primeira Verificação (PV) e Verificação Periódica (VP) em teor de álcool expirado (TAE) e convertido em Teor de Álcool no Sangue (TAS)" em conformidade com a tabela anexa.

Resultando assim, claramente, que a referida Portaria teve em vista a regulamentação do controlo metrológico dos alcoolímetros e que os erros máximos admissíveis definidos por aquela Portaria se referem às verificações a que se refere tal Diploma: "Primeira Verificação (PV)"e "Verificação Periódica (VP)".
A Portaria 784/94 de 03.10 foi revogada pela Portaria 1556/2007 de 10.12 (art. 2º) que procedeu à "aprovação do Novo Regulamento a que deve obedecer o controlo metrológico dos alcoolímetros" - cfr. respectiva exposição de motivos.
Estabelecendo o artigo 1º do Regulamento - tal como sucedia com o anterior - que o mesmo: "aplica-se a alcoolímetros quantitativos ou analisadores quantitativos".
Por outro lado o artigo 5º do mesmo Regulamento (quer o primitivo quer o novo) estabelece que: "O controlo metrológico dos alcoolímetros é da competência do Instituto Português da Qualidade. LP. - IPQ e compreende as seguintes operações: a) Aprovação do modelo; b) Primeira verificação; c) Verificação periódica; d) Verificação extraordinária".
O artigo 8º do mesmo Regulamento sob a epígrafe "Erros Máximos Admissíveis" estabelece que "Os erros máximos admissíveis (EMA), variáveis em função do teor de álcool no ar expirado (TAE) são os constantes do quadro anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante'.
Por sua vez o quadro anexo á referida Portaria define os valores dos erros máximos admissíveis (EMA) em função da "Aprovação do modelo/primeira verificação" e da "Verificação periódica/verificação extraordinária".
Do regime a que se fez referência, idêntico quer no primitivo quer no Novo Regulamento parece assim resultar claro:
- por uma lado, que os falados erros máximos admissíveis (EMA) foram definidos para efeito da Aprovação e da Verificação Periódica dos alcoolímetros; e por outro que
- a Aprovação e a Verificação a que se referem os diplomas competem ao IPQ (e só a este Instituto) no âmbito do controlo metrológico a que se fez referência.
Controlo que constitui, aliás, condição prévia da homologação dos aparelhos e da sua manutenção ao serviço e aprovação pela DGV, como previsto primeiro no Dec. Reg. n.° 24-/98 DE 30.10 e depois pelo Dec. Reg. 18/2007 de 17.05 que o revogou e substituiu.
Por outro lado a razão de ser de tais margens de erro radica na necessidade de conversão da Taxa de Álcool Expirado (TAE) em Taxa de Álcool no Sangue (TAS).
E, atenta a complexidade técnico-científica de tais equipamentos, apenas Instituições devidamente equipadas e credenciadas (no caso português o IPQ) estão em condições de verificar as ditas margens de erro admissíveis.
O que não sucede, manifestamente, nem com os agentes fiscalizadores do Trânsito nem com os Tribunais, que neste aspecto estão vinculados ao juízo científico subjacente.
O próprio legislador qualifica este meio de prova de "exame de pesquisa de álcool" - cfr. art. 153° do CE.
Na verdade, estando em causa aparelhos de grande complexidade e precisão técnica considera-se que a medição da taxa de alcoolemia constituir prova pericial (lato sensu) préconstituída, por irrepetível em julgamento - cfr. Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, ed. Tirant lo Blanch, p. 1134
Sendo claro, repete-se, que as margens de erro definidas pela Portaria e respectivo Regulamento que as TAE são verificadas nos controlos prévios para a Aprovação e Verificações subsequentes, pelo Instituto Português da Qualidade, dos modelos surgidos no mercado que se pretendam ver homologados e aprovados para o efeito, nas verificações a realizar no âmbito do controlo metrológico a que procede, que constituem a finalidade do Regulamento aprovado pela Portaria.
E não - consequentemente - casuisticamente, em todas e cada uma das múltiplas medições que o aparelho venha a realizar, depois de efectuado o controlo metrológico pelo IPQ e da sua aprovação de que o referido controlo constitui conditio sine qua non.
Assim, qualquer outra (nova) aplicação das margens de erro definidas pelo Regulamento aprovado pela Portaria para a "Aprovação" do aparelho, além efectuada por quem não tem competência legal, nem técnica, para o efeito, constituirá uma duplicação, aplicando segunda vez a "dedução" do EMA já antes verificados pelo IPQ a quem o Regulamento se dirige.
Aliás se as referidas tabelas de erro máximo admissível se destinassem a ser aplicadas casuisticamente, a aprovação de cada modelo e aparelho, por parte do IPQ constituía uma pura inutilidade - os EMA seriam aplicadas pelas entidades fiscalizadoras do trânsito, caso a caso.
Do mesmo modo que constituiria pura inutilidade o sistema de contraprova previsto na lei (art. 153°, n.°3 do C. da Estrada).
Sabendo-se, empiricamente, dos casos concretos em que foi requerida contraprova com base em análise sanguínea, a regra é que esta acusa uma taxa superior àquela que resulta da conversão da TAE em TAS - apesar de a colheita ser feita sempre algum tempo depois daquela.
No sentido propugnado apontam as Conclusões do 2º Encontro Nacional da Sociedade Portuguesa de Metrologia - 17.11.2006 - sobre o Controlo Metrológico de Alcoolímetros no Instituto Português da Qualidade, da autoria de M. Céu Ferreira/António Cruz, de que se transcreve o seguinte excerto, com sublinhados do relator:
"Ou seja, um alcoolímetro de modelo aprovado e com verificação válida, utilizado nas condições normais, fornece indicações válidas e fiáveis para os fins legais (...) Os EMA (erros máximos admissíveis) não são uma «margem de erro» nem devem ser interpretados como tal. O valor da indicação do instrumento é em cada situação, o mais correcto. O eventual erro de indicação, nesse momento, nessa operação, com o operador que a tiver efectuado (...) está com toda a probabilidade contido nos limites de EMA. Por essa razão os autores defendem a ideia de que a instrução de processos pelas entidades competentes deveria observar os estritos limites definidos na lei, para as respectivas penalidades. Os condutores autuados deveriam, se assim o entenderem, recorrer às faculdades que a lei lhes faculta".
No mesmo sentido, v.: indicação da Procuradoria-Geral da República, de 20/03/2007, divulgada no Distrito Judicial de Coimbra pelo Ofício-Circular n° 10/07 da PGD Coimbra, citada no douto parecer; Ac A. R. L. de 18/10/2007, Processo n.° 7895/07; Ac. TRC de 21/11/2007, Processo n.° 116/07.2PAPBL.C1; Ac. TRC de 30.01.2008, Processo 91/07.SPANZR.C1 da Comarca da N..., disponível cm www.trc/pt.: Ac. de 23.04.2008, no recurso 64/07.6GBMGR.C1; Ac. RP de 03.10.2007, CJ, tomo IV/2007, p. 151.
Conclui-se assim que:
- A margem de erro máximo admissível (EMA) reporta-se e tem por finalidade específica, a Aprovação e as Verificações periódicas subsequentes realizadas pelo IPQ como condição prévia da sua homologação e aprovação - e não casuisticamente, depois de os aparelhos terem sido aprovados e/ou verificados por quem de direito, ser aplicadas (novamente) pelas entidades fiscalizadoras do trânsito o que, além de extravasar as suas competências, redundaria numa duplicação;
- O examinado, não concordando com a taxa definida pelo aparelho tem meios para reagir, requerendo a contraprova nos termos previstos na lei.
- Pelo que, no caso, a taxa a considerar, dando-a como provada, é aquela que foi registada pelo aparelho utilizado e não aquela que foi definida na decisão recorrida.
- Tratando-se, como é o caso, de erro de valoração da prova que emerge do texto da decisão, estando em causa a apreciação de meio de prova pré-constituído, incorporado nos autos e que foi objecto de discussão/apreciação quer pela sentença recorrida quer no presente recurso, pode/deve ser alterada a matéria de facto provada, em conformidade.
A alteração da matéria de facto operada obriga à reapreciação da qualificação jurídica em conformidade com a nova perspectiva fáctica emergente (…)”.

3) Quanto à invocada oposição

O artº 437º do C.P.P. reclama, para fundamento do recurso extraordinário de revisão, a existência de dois acórdãos, tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada pois uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.
Os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas. A oposição deve ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito. Não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, que estão para além da decisão final, ou que esta tenha, em cada um dos acórdãos, só por pressuposto, teses diferentes. A oposição deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (cf. v.g. Ac. do S.T.J. de 11/10/2001, Pº 2236/01 desta 5ª Secção).
Mas importa ainda que se esteja perante a mesma questão de direito. E isso só ocorrerá quando se recorra às mesmas normas, reclamadas para aplicar a uma certa situação fáctica, e elas forem interpretadas de modo diferente. Interessa pois que a situação fáctica se apresente com contornos equivalentes, para o que releva no desencadeamento da aplicação das mesmas normas.
Citando A. REIS, dizem-nos SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES:
“Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (in “Recursos em Processo Penal”, pag. 183).
A seu turno, o Ac. deste S.T.J. de 23/4/1986 (B.M.J. 356-272) defendeu que “É indispensável para haver oposição de acórdãos, justificativa de recurso, que as disposições legais em que se basearam as decisões conflituantes, tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos”. Esta jurisprudência foi depois uniformemente seguida neste Supremo Tribunal (cf. ob. cit. a menção dos acórdãos pertinentes, a pag. 183, nota 189).

É evidente que se não trata aqui de apreciar a bondade da decisão proferida no acórdão recorrido. Trata-se de verificar se aí se tomou uma posição, sobre uma questão de direito, em contradição com a posição que, sobre a mesma questão de direito, se tivesse tomado no acórdão fundamento.
Ora isso, a nosso ver, não teve lugar.

Quanto à equivalência das situações fácticas, subjacentes aos dois acórdãos, não oferece ela qualquer dúvida.
Quanto à disparidade das soluções que a final se perfilharam, do mesmo modo.
A questão, porém, é a de saber se tal disparidade decorre, ou não, de se ter manifestado explicitamente, uma diferente interpretação da[s] mesma[s] norma[s].
Recorde-se que, na perspectiva do recorrente Ministério Público, tudo passa pela interpretação diferente de normas da Portaria aplicável (nº 1556/2007 de 10/12), ou do Regulamento que da mesma é parte integrante e, pela voz do seu ilustre representante neste S.T.J., a questão que importa dilucidar é a de se saber, se
A taxa de álcool no sangue, a levar em consideração para efeitos do disposto no artigo 292º nº 1 do C. Penal, é a correspondente ao valor indicado pelo alcoolímetro ou, antes, a correspondente a tal valor deduzido o valor de erro máximo admissível a que alude o nº 6 do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria nº 748/94, de 13-08 [a que corresponde, como se refere no acórdão recorrido, o artigo 8º do Regulamento do Controlo Metrológico dos Alcoolímetros, aprovado pela Portaria nº 1556/2007, de 10-12, que revogou a Portaria nº 748/94]”
O problema é que a resposta divergente, que foi dada a esta questão, não resulta da interpretação, também divergente, que se tenha feito de qualquer norma da dita Portaria. Tudo se passa, muito simplesmente, ao nível da apreciação de um elemento de prova, consistente, no caso, na informação fornecida pelo aparelho medidor do teor de álcool no sangue.

No caso em apreço, fundamentam-se as posições que se revelaram opostas com recurso a dispositivos diferentes, e também se não tornou explícito, que se tivesse encarado diferentemente, a razão de ser ou as finalidades das Portarias 748/94 de 13 de Agosto, ou 1556/2007 de 10 de Dezembro. As quais se equivalem quanto à questão que nos ocupa, apesar de ser de aplicar a primeira, aquando dos factos subjacentes ao acórdão fundamento, e a segunda, na altura da ocorrência dos factos do acórdão recorrido.
Está em causa uma questão de apuramento de factos, e, portanto, de apreciação de prova.
Os dados fornecidos pela Portaria[s] foram levados em conta, em cada um dos dois acórdãos, com efeitos diferentes para o apuramento dos factos. Melhor, desses dados é feita uma utilização diversa, pelo julgador, quando chamado a pronunciar-se concretamente sobre a taxa de alcoolémia do condutor a ser julgado, e portanto a decidir de facto.
Confrontado com a necessidade de apuramento, do facto “teor de álcool no sangue”, um tribunal deu por provado certo teor, socorrendo-se do elemento de prova, que foi a “notação técnica”, sem mais. Outro tribunal apurou o dito “teor de álcool no sangue”, a partir, na mesma, da informação do aparelho em questão. Mas porque sabia da informação fornecida pela Portaria, a respeito das margens de erro, não se sentiu autorizado a avançar logo para dar por provado o facto “teor de álcool”, na exacta medida que constava da “notação técnica”. Apreciou esta prova de modo diferente, porque lhe deu um valor apenas relativo e não absoluto. Relativo, no sentido de que a informação foi de considerar o ponto de que se partiu, mas, avaliada essa informação criticamente, só foi possível, de seguro, dizer que o teor de álcool tinha uma medida nunca inferior à leitura do aparelho, depois de deduzida a margem de erro máximo admissível.
A “notação técnica ” fornecida pelo aparelho marca Drager modelo 7110MKIII P n° série ARRA-0035 aprovado pela DGV em 06/08/1998, e usado em ambos os casos., é simplesmente valorada de modo diverso, sem que isso decorra, necessariamente, da diferente interpretação de qualquer norma, de qualquer das Portarias.
A Portaria 748/94, de 13 de Agosto, propôs-se estabelecer um Regulamento do Controle Metrológico dos Alcoolímetros. Ou seja, fiscalizar a fiabilidade da informação fornecida pelos aparelhos em questão. Essa fiscalização passava, para além da selecção do tipo de aparelhos, pela aprovação do concreto aparelho a ser usado, por uma primeira verificação, pela verificação periódica (anual) ou pela verificação extraordinária requerida. No Regulamento prevêem-se “erros máximos admissíveis” (EMA) por referência à norma NF X 20-701 – norma metrológica francesa que então se adoptava.
A Portaria 1556/2007, de 10 de Dezembro, impôs-se por necessidades de actualização, mas teve o mesmo objectivo, e previu as mesmas operações de controle, embora estabelecesse uma regulamentação mais detalhada. Passou ainda a ter por referência a Recomendação da Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML R 126).
Quanto aos EMA, de acordo com o artº 8º do Regulamento, “variáveis em função do teor de álcool no ar expirado - TAE, são o constante do quadro que figura no quadro anexo ao presente diploma e que dele faz parte integrante” (sic).
O quadro anexo prevê um TAE até 0,4, de 0,4 a 2, e de mais de 2 miligramas por litro de ar expirado. Para cada um destes teores é prevista uma margem de erro admissível, a qual, é tanto maior, quanto maior for a quantidade de álcool por litro de ar expirado. Porém, distingue-se sempre entre os EMA previstos para o controle de aprovação do modelo, ou primeira verificação, e para as verificações periódicas ou verificações extraordinárias. O que claramente inculca a ideia de que o objectivo de todo o Regulamento é fiscalizar as condições de funcionamento dos aparelhos, no fundo saber se podem ser utilizados, sem a veleidade de fornecer indicações ao julgador sobre a reconstituição dos factos, que com o seu auxílio possa vir a ser feita, em juízo. E por isso é que entendemos que esse modo de reconstituir os factos, que os julgadores efectuem de modo diferente, não resulta de interpretações díspares de certa norma da Portaria (qual?).

No acórdão recorrido, confirmando a decisão da primeira instância, (e bem assim na sentença de Porto de Mós que foi modificada pelo acórdão fundamento), acolhe-se a informação fornecida pela[s] Portaria[s], tecem-se considerações acerca da margem de erro que as medições feitas pelo aparelho apresentam, nos termos daquela[s], mas para daí se tirarem consequências que transcendem completamente o âmbito das Portarias, e que só têm a ver com critérios de apreciação da prova: “(…)o tribunal não pode estar seguro de que o condutor fiscalizado, em cada caso concreto, tenha conduzido o veículo com a exacta taxa de álcool indicada pelo aparelho.
Porém, se o aparelho se encontra aprovado, se foi sujeito à verificação periódica e a funcionar regularmente, o tribunal tem todas as razões para ter por seguro, "para além de qualquer dúvida razoável», que o examinado tinha a taxa de álcool que resulta da subtracção da margem de erro máximo admissível ao valor indicado aparelho.”
O acórdão recorrido pronuncia-se depois sobre o tipo de prova que poderá constituir a informação fornecida pelo aparelho em ambos os casos utilizado:
Embora se trate de um caso de prova vinculada, entendemos que o analisador quantitativo permite obter prova documental uma vez que o resultado consubstancia uma «notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos lei penal» - artigo 164° n.° 1, do Código de Processo Penal e arts 255° alínea b), do Código Penal — e não prova pericial porque, para este efeito, não tem lugar uma percepção ou apreciação de factos que exijam «especiais conhecimentos técnicos científicos ou artísticos» - artigo 151° do Código de Processo Penal. Por isso, também não é aplicável o disposto no artigo 163° do Código de Processo Penal”.
Significativamente, na decisão de primeira instância que veio a dar origem ao acórdão fundamento, que a alterou, revela-se bem que o que está em causa, em toda esta questão, é mesmo a apreciação da prova, e por isso se apela ao princípio “in dubio pro reo” :
“Assim sendo, o princípio in dubio pro reo leva a que não se possa dar como provada a taxa de álcool acusada no aparelho de medição, mas apenas essa taxa deduzida da taxa de erro máxima admissível do alcoolímetro.”

No acórdão fundamento também se coloca a questão a decidir no âmbito da apreciação da prova.
Aí se passa em revista o sistema normativo ao serviço da detecção de álcool no ar expirado, para concluir, como se viu,
“ - por uma lado, que os falados erros máximos admissíveis (EMA) foram definidos para efeito da Aprovação e da Verificação Periódica dos alcoolímetros; e por outro que
- a Aprovação e a Verificação a que se referem os diplomas competem ao IPQ (e só a este Instituto) no âmbito do controlo metrológico a que se fez referência.”
Escusado será dizer que no acórdão recorrido nada há que possa contrariar estas asserções, facilmente consensuais.
Seguidamente, o acórdão fundamento alude à complexidade técnico-científica dos equipamentos em causa, o que de facto ninguém contesta, à falta de condições para verificação das EMA por parte das autoridades fiscalizadoras do trânsito ou dos tribunais, o que também ninguém contesta, para passar à classificação da medição da taxa de alcoolémia como “prova pericial (lato sensu)”, numa designação atribuída a um autor espanhol, mas cujo exacto sentido nos escapa. Mas, mesmo que se considerasse “prova pericial” a notação técnica fornecida, haveria que abordar essa informação, apenas, como um elemento necessário ao juízo técnico-científico especializado, relevante para efeitos de julgamento, a complementar, noutra parte, com a consideração das EMA.
Insiste a seguir no facto de as EMA serem verificadas pelo Instituto Português de Qualidade e não “casuisticamente, em todas e cada uma das múltiplas medições que o aparelho venha a realizar”, insurgindo-se contra o que apelida de “qualquer outra (nova) aplicação das margens de erro definidas pelo Regulamento aprovado pela Portaria para a "Aprovação" do aparelho”.
Como é mais que evidente, em lado algum do acórdão recorrido se contesta que as EMA devem ser verificadas pelo Instituto Português de Qualidade e não “casuisticamente, em todas e cada uma das múltiplas medições que o aparelho venha a realizar”. Ninguém “verifica” margens de erro depois de uma medição concreta de teor de álcool, feita a um condutor. Podem ou não ser tomadas em consideração, o que é completamente diferente.
Muito menos o acórdão recorrido pretende que possa haver “duas aplicações de margem de erro”, o que aliás só poderia ser configurado se a notação técnica já incluísse uma dedução de EMA.
Como já se disse, e não vamos insistir, uma coisa é apurar tecnicamente a margem de erro de um aparelho para que possa ser usado pelas autoridades, e outra, muito diferente, é dar por provado certo facto em julgamento, concretamente o TAE apresentado por certa pessoa, em certa ocasião.
O acórdão recorrido achou que na reconstituição dos factos se devia ter em conta um concreto EMA, (evidentemente apurado, verificado, controlado, só pelo Instituto Português de Qualidade), enquanto que o acórdão fundamento achou que não devia ter-se isso em conta.
Maneiras diferentes de apreciar a prova, uma eventualmente mais correcta que outra, mas nada mais.

Tudo para dizer que se não verifica, no caso, oposição de julgados, quanto à mesma questão de direito.

C – DELIBERAÇÃO

Pelo exposto se decide em conferência, neste S.T.J., não existir oposição de julgados entre o decidido no acórdão proferido no Pº 458/08.0 GAVGS.C1, a 11/3/2009 (acórdão recorrido), e no Pº 350/07.5GBPMS.C1 a 4/6/2008, (acórdão fundamento), ambos do Tribunal da Relação de Coimbra, nos termos do nº 1 do artº 437º do C.P.P..
Termos em que se rejeita o presente recurso de acordo com o artº 441º nº 1 do C.P.P..

Lisboa, 10 de Setembro de 2009

Souto Moura (Relator)
Soares Ramos