Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO SEGURO DE VIDA RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO EXTINÇÃO DO CONTRATO COMUNICAÇÃO PRÉMIO DE SEGURO MORA ÓNUS DA PROVA PARTICIPAÇÃO DO SINISTRO MORTE DEVER ACESSÓRIO BOA FÉ CÔNJUGE | ||
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Data do Acordão: | 01/12/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - Não se fazendo prova de que a seguradora comunicou ao tomador do seguro a sua vontade de proceder à resolução do contrato, por falta de pagamento do prémio mensal, nem sendo alegada qualquer outra forma de extinção desse contrato, tem de se concluir que o seguro de vida estava em vigor na data do sinistro, apesar de existir atraso no pagamento daquele prémio. II - Como decorre do Princípio do Contrato, consagrado no art. 406.º do CC (aplicável ex vi do art. 4.º do RJCS), na ausência de acordo das partes, o contrato só se extingue nos casos previstos na lei. Alegando a ré (seguradora) que o contrato de seguro de vida dos cônjuges (em benefício do Banco mutuante) se encontrava extinto por resolução, cabe-lhe não só demonstrar o preenchimento dos requisitos específicos desta figura, previstos no contrato de seguro, mas também demonstrar a verificação dos pressupostos gerais estruturantes da própria figura da resolução do contrato. Para se considerar o contrato de seguro resolvido não basta que a seguradora, por sua decisão unilateral, e face à ausência do pagamento de um mês, deixe de cobrar os prémios mensais (que eram feitos por débito direto). É necessário que comunique, inequivocamente, à contraparte o seu propósito de extinguir o contrato. III - A seguradora que recusa receber informação sobre as circunstâncias em que ocorreu o sinistro, alegando que o contrato de seguro estava “anulado" [rectius, resolvido], não pode, posteriormente, invocar a omissão dessa informação para negar o cumprimento da obrigação de pagar o valor segurado, porque tal comportamento contraria o princípio da boa-fé, que deve orientar o comportamento das partes ao longo da vigência do contrato, como decorre do art. 762.º, n.º 2, do CC. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n. 908/18.7T8PDL.L1.S1 Recorrente: ZURICH – Companhia de Seguros de Vida S.A. Recorridos: AA e Outros
I. RELATÓRIO
1. AA, BB, CC e DD, residentes em ..., ..., intentaram ação declarativa comum contra Zurich-Companhia de Seguros de Vida, SA, pedindo que esta fosse condenada a pagar ao Banco Santander Totta, SA o montante ainda em dívida e respetivos juros, referentes ao empréstimo contraído pelo 1º autor e pela mulher junto daquele banco, segurado pela ré, e que a ré não pagou, apesar de ter falecido a mulher que era segurada. Para tal alegam ser herdeiros de EE, a qual, juntamente com o seu marido, o 1º Autor, contratou com a Ré segurar o contrato de empréstimo da quantia de 240.000,00€. Porém, tendo aquela falecido, a Ré não fez o pagamento das quantias mutuadas ao Santander.
2. A ré contestou, alegando que à data do óbito há muito que o contrato de seguro se encontrava resolvido por falta de pagamento de prémio, e que, de qualquer forma, o sinistro nunca fora participado.
3. Foi proferida sentença, que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
4. Os autores recorrem da sentença, impugnando alguns pontos da decisão da matéria de facto bem como a decisão da improcedência da ação. A ré contra-alegou defendendo a improcedência do recurso. 5. O Tribunal da Relação de Lisboa, depois de alterar alguns pontos da matéria de facto, julgou nos seguintes termos: “julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por esta, que condena a ré a pagar ao Banco Santander Totta, SA o montante ainda em dívida, à data da petição inicial, e respetivos juros de mora, referentes ao empréstimo contraído pelo 1º autor e pela mulher junto daquele banco (então Banif).”
6. Inconformada, a ré interpôs o presente recurso de revista em cujas alegações formulou as extensas conclusões que se transcrevem: «1. Os Recorridos intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum contra a ora Recorrente, peticionando que esta fosse condenada a pagar ao Banco Santander Totta, S.A., o montante ainda em dívida, e respetivos juros, referentes ao empréstimo contraído pelo 1º Autor e pela falecida esposa, EE, junto da referida instituição bancária. 2. Para tal, alegam ser herdeiros de EE, a qual, juntamente com o seu marido, o 1º Autor, em 16/12/2013, contrataram com a Ré um contrato de seguro ramo vida, denominado “Solução Crédito Habitação ZVida II”, titulado pela apólice ..…12, no qual o Autor figurava como tomador do seguro e pessoa segura 1, EE como Pessoa Segura 2 e o então Banco Internacional do Funchal S.A. como beneficiário Irrevogável. 3. Nos termos do referido contrato, em caso de morte de uma das pessoas seguras a Recorrente obrigava-se – e caso não se verificasse nenhuma exclusão nos termos das condições gerais do contrato – a pagar ao beneficiário irrevogável o valor ainda por liquidar no âmbito do mútuo bancário celebrado entre o Autor e o beneficiário irrevogável até ao limite do capital seguro de € 226.433,00 (duzentos e vinte e seis mil, quatrocentos e trinta e três euros). 4. A Recorrente contestou, alegando, por um lado o total desconhecimento do sinistro uma vez que o mesmo nunca foi participado pelo Recorrido e que por esse motivo nunca foi feita a apreciação ao sinistro no que respeita a eventuais exclusões e, bem assim, que o contrato de seguro, à data do sinistro já se encontrava resolvido por falta de pagamento dos prémios de seguro. 5. Depois de realizado o julgamento, o tribunal de 1.ª instância julgou a ação improcedente, por não provada: “Assim, e tendo o Autor e a sua falecida esposa deixado de pagar o prémio de seguro (obrigação também consagrada no artigo 202.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro), e tendo a segurado interpelando-os para tal, sob pena de resolução do contrato, bem como avisado o beneficiário irrevogável, teremos de concluir pela validade da resolução efetuado. Nem tem sentido a alegação do Autor que desconhecia tal resolução, uma vez que, após a comunicação remetida pela seguradora, deixou de pagar os prémios mensais do seguro, tendo estado mais de um ano sem efetuar qualquer pagamento a este título. Pelo exposto, e tendo a Ré provado ter observado todos os procedimentos legais junto do tomador de seguros, dando-lhe conta da falta de pagamento de prémio, e tendo interpelado o beneficiário irrevogável, terá a presente ação de ser julgada improcedente. Mesmo que assim não se entendesse, a presente ação sempre seria improcedente por o sinistro não ter sido participado à Ré, não lhe tendo sido entregue qualquer um dos documentos previstos na cláusula 29.º das condições gerais do contrato de seguro, a saber, certidão de nascimento da falecida, documento comprovativo do montante em dívida, certificado de óbito e relatório médico (aliás, nem na própria ação o Autor juntou tais documentos, com exceção da certidão de nascimento). Efetivamente, e conforme decorre do artigo 100º, n.1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, a verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento, acrescentando o n.2 que na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respetivas consequências. Aqui chegados, verificamos que, para além do contrato de seguro estar resolvido há mais de um ano aquando da ocorrência do sinistro, também o mesmo nunca foi comunicado à seguradora, impedindo-a de solicitar as informações que entendesse por relevantes, pelo que a presente ação está destinada ao fracasso”.
6. Inconformados com a sentença proferida, os autores apresentam recurso, tendo o Tribunal da Relação dado provimento ao mesmo, decidindo pela ineficácia da resolução contratual operada pela Recorrente uma vez que a mesma não fez prova quer do envio da carta quer da sua receção por parte do Autor. 7. Motivo pelo qual o contrato estava em vigor à data do sinistro. 8. Quanto à participação do mesmo, entendeu o Tribunal que a mesma foi válida, pelo que a Recorrente está obrigada ao pagamento do sinistro. 9. Concluindo: “Julga-se procedente o recurso, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por esta que condena a Ré a pagar ao Banco Santander Totta S.A., o montante ainda em dívida à data da petição inicial e respetivos juros de mora, referentes ao empréstimo contraído pelo 1.º autor e pela mulher junto daquele banco (então Banif)”. 10. Ora, com o devido respeito, que é muito, a Recorrente não pode aceitar esta decisão porque a mesma resulta numa incorreta apreciação e aplicação aos factos, do disposto no contrato de seguro e nas suas condições gerais, do disposto no Regime Jurídico do Contrato de Seguro e, bem assim, no Código Civil. A. Do contrato de seguro e a sua resolução: 11. Conforme resulta provado, em 16.12.2013 o Recorrido e a mulher celebraram com a Recorrente um contrato de seguro Vida, denominado Solução Crédito Habitação ZVida II, titulado pela apólice …12, no qual o Autor figurava tomador do seguro e pessoa segura 1, a mulher como pessoa segura 2 e, como beneficiário irrevogável figurava o Banif – Banco Internacional do Funchal S.A, atualmente o Banco Santander Totta. 12. O contrato de seguro regula-se pelas condições gerais, especiais e particulares da apólice, não proibidas por lei, resultantes do mero consenso entre as partes, e pelo regime do contrato de seguro, com os limites nele indicados e os decorrentes da lei geral e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil. 13. Como contrapartida pela transferência do risco, o Recorrido, enquanto tomador do contrato, obrigou-se ao pagamento do prémio de seguro, resultando provado que a partir de Janeiro de 2015 não mais pagou qualquer prémio, 14. Entendendo o Tribunal a quo, e ao contrário do defendido pela Recorrente e pelo tribunal de 1.ª instância, que esse pagamento foi imputado ao recibo de Janeiro de 2015, e não ao mais antigo de Dezembro de 2014. 15. Não obstante o alegado pela Recorrente quanto à imputação do recibo, entendeu o Tribunal a quo considerar ineficaz a resolução operada pela Ré através da carta remetida ao Autor em 30.12.2014 e ficcionou que o contrato estava válido à data do sinistro. 16. Condenando a Recorrente ao pagamento “ao Banco Santander Totta o montante ainda em dívida à data da petição inicial e respetivos juros de mora, referentes ao empréstimo contraído pelo 1.º autor e pela mulher junto daquele banco (então Banif)”. 17. Pelo que, aqui chegados, importa perceber, face a esta ficção assumida pelo Tribunal a quo de que o contrato estava em vigor à data do sinistro se, por um lado, houve efetiva comunicação do sinistro por parte do Recorrido e, por outro se a Recorrente, face ao estabelecido nas condições gerais do contrato e às leis gerais de direito está obrigada a assumir o sinistro e pagar ao beneficiário irrevogável um valor que não se mostra sequer alegado e muito menos liquidado. 18. Não obstante os Recorridos tenham impugnado os documentos e alegado que não tinham recebido as cartas, a verdade é que não alegaram a falsidade de documentos nos termos previstos no art. 444.º e seguintes do CPC. 19. Pelo que não pode o Tribunal a quo tecer considerações - que certamente condicionaram todo o seu entendimento sobre o processo sub judicie – sobre autenticidade dos documentos, chegando mesmo a equacionar a possibilidade de a Recorrente os ter redigido em data posterior! 20. Não tendo os Recorridos alegando esta falsidade, a Recorrente vê-se na situação de se ver coartada no seu direito do contraditório - previsto no artigo 448.º do CPC - quanto a este novo facto que lhe é imputado, pasme-se, não pela contraparte, mas sim pelo Tribunal a quo. 21. Ora, se o Tribunal a quo entendeu que a carta nem sequer foi enviada, é evidente qual seria o seu entendimento quanto ao seu conhecimento da mesma por parte do Recorrente. 22. O que o levou a desconsiderar todas as evidências de que a carta de resolução não só foi enviada como chegou efetivamente ao conhecimento do Recorrido: foi enviada para a morada do contrato; não foi devolvida pelos correios, não foi emitido mais nenhum recibo de pagamento e o Recorrido não estranhou nem reclamou de tal facto; quando alegadamente é comunicado ao Recorrido que o contrato está resolvido por falta de pagamento o Recorrido não entrou em contacto com a Recorrente para solicitar esclarecimentos; reclamar ou alegar que não lhe tinha sido comunicada a resolução. 23. Refira-se que a impugnação do documento e a alegação de que o mesmo não foi recebido é diferente da alegação de que o documento é falso. 24. Exigindo a lei processual que nesses casos as partes, através de procedimento próprio, aleguem a falsidade do documento, e que posteriormente admite a competente resposta por parte da contra parte. 25. Não obstante, nos termos do n. 4 do artigo 662.º do CPC, o Supremo Tribunal de Justiça não possa sindicar a apreciação feita pelo Tribunal a quo à matéria de facto a verdade é que a consideração feita pelo Tribunal a quo, e que se repercute por toda a análise feita quanto à validade da resolução, viola as leis do processo pelo que é entendimento da jurisprudência que o STJ poderá intervir – vide nesse sentido Ac. do STJ de 09.07.2015 26. Acresce não se entender a alegação do Tribunal a quo de que o que aconteceu a seguir ao envio das cartas – nomeadamente a não reacção do Recorrido ao facto de não ter recebido mais avisos/recibos, de não mais lhe ter sido cobrado prémios e de nada ter feito ou dito quando lhe comunicaram que o contrato estava anulado – não permite comprovar não só o envio da carta como o seu conhecimento ao Recorrido. 27. A conduta do Recorrido - de total inércia face à mais que evidente resolução do contrato – não só demostra do conhecimento que o contrato está resolvido como cria na Recorrente a convicção de que a comunicação chegou ao seu conhecimento. 28. Face ao exposto, e estando o entendimento do Tribunal a quo inquinado pelo facto de este considerar que a carta de resolução é falsa – o que não foi alegado pelos Autores – entende a Recorrente que se justifica uma reapreciação da referida matéria por parte do STJ. 29. Na verdade resultando que a carta de resolução foi enviada para a morada indicada no contrato, que não foi devolvida pelos correios e não tendo sido enviados mais avisos/recibos de cobrança de prémios, nem cobrados prémios sem que o Recorrido tenha em algum momento contactado a Recorrente ou o seu mediador com o objectivo de solicitar informações sobre o contrato, o envio dos recibos ou comunicar a sua intenção de pagar os prémios em falta é forçoso concluir que segundo as regras de experiência, o Recorrido tomou conhecimento da resolução e conformou-se com a mesma. 30. Até porque nem um entendimento mais enviesado pode justificar que exista um tomador do seguro que tenha a convicção que se não pagar os prémios de seguro o contrato pode, ainda assim, vir reclamar o pagamento de um sinistro ocorrido durante o período do incumprimento! 31. Sendo censurável que o Tribunal a quo se tenha recusado a apreciar o que aconteceu depois do envio da carta. 32. Nos termos do 224.º do CC, e ao contrário do que defende o Tribunal a quo, a prova de que a comunicação chegou ao poder do Recorrido não se poderá cingir ao registo da carta ou do aviso de recepção, mas a comportamentos levados a cabo pelo destinatário da carta – Recorrido – que permitam concluir que a mesma chegou ao seu conhecimento 33. Assim sendo, é forçoso concluir que, face a todo o exposto supra, que a Recorrente conseguiu provar que a carta chegou ao conhecimento do Recorrido motivo pelo qual a resolução foi eficaz. 34. Tendo o Tribunal a quo feito uma incorreta interpretação e aplicação do artigo 224.º n. 1 do Código Civil – o que justifica a intervenção do STJ nos termos do disposto na alínea b) do n.1 do artigo 674.º do CPC - , desvalorizando prova feita pela Recorrente sobre o conhecimento do Recorrido da comunicação da resolução deverá este douto Tribunal manter o entendimento da 1.º instância quanto ao facto provado n.º 8 e bem assim sobre a validade e eficácia da resolução do contrato, mostrando-se válida a resolução operada pela Recorrente deverá a decisão do Tribunal a quo ser revogada por V.ª Exas mantendo-se a decisão proferida em 1.ª instância. B) Do direito. II – Da manutenção do contrato de seguro e os seus efeitos: a) Do n.2 da cláusula 18.º das Condições Gerais do Contrato. 35. O contrato de seguro em discussão nos autos regula-se pelas condições gerais, especiais e particulares da apólice, não proibidas por lei, resultantes do mero consenso entre as partes e pelo regime do contrato de seguro, com os limites nele indicados e os decorrentes da lei geral, e, subsidiariamente, pelas disposições da lei comercial e da lei civil. 36. Pelo que tendo o Tribunal a quo dada como assente que o contrato de seguro estava em vigor à data do sinistro e que nessa data havia prémios de seguro por liquidar impõe-se apreciar à luz das condições gerais da apólice e do RGCS se pode exigir-se da Recorrente o pagamento do sinistro. 37. No nosso entendimento não! 38. Dispõe o n.2 da cláusula 18.ª das Condições Gerais do Contrato de Seguro o seguinte: “A falta de pagamento do prémio, na data de vencimento do respetivo recibo, impossibilitará o pagamento de qualquer sinistro respeitante às coberturas do presente contrato entre o vencimento e a data de liquidação do recibo do prémio”. 39. Da leitura do referida clausula resulta que qualquer sinistro que tenha ocorrido numa data em que se mostrasse por pagar algum prémio tal incumprimento impedia o pagamento do sinistro. 40. Ora, o tribunal faz tábua rasa do disposto no contrato outorgado entre as partes e condena a recorrente no pagamento de um sinistro ocorrido em 16/10/2016 quando não eram pagos os recibos desde Janeiro de 2015! 41. Ou seja, na data do sinistro havia vários recibos por liquidar e que até hoje assim permanecem. 42. O Tribunal a quo, com a decisão proferida, condena a Recorrente a pagar o sinistro, desconsiderando por completo que tal decisão contraria o contrato estabelecido entre as partes, quase que se substituído às partes e fazendo sua a vontade a predominar. 43. Ora, resultando provado que desde Janeiro de 2015 que os prémios não são pagos, que o sinistro ocorreu em 19/10/2016 é forçoso concluir que nos termos do disposto no n. 2 da cláusula 18.º do contrato o sinistro não poderá ser pago. 44. Assim, o Tribunal a quo, ao condenar a Zurich no pagamento do sinistro, ignorando que os Recorridos se encontravam em incumprimento contratual, está a violar o disposto no n.2 da cláusula 18.º das Condições Gerais, pelo que deve o acórdão ser anulado e substituído por um que determine a absolvição do pedido da Recorrente,
B) Das formalidades contratualmente e legalmente exigidas para o pagamento do capital seguro. 45. Não obstante a Recorrente discordar do entendimento do Tribunal a quo de que a resolução não operou os seus efeitos e que o contrato estava em vigor à data do sinistro, a verdade é que o facto de o contrato estar ativo não significa desde logo que o sinistro deva ser aceite e pago. 46. Devendo antes de mais ser analisado pela Recorrente se estão reunidos os pressupostos contratuais e legalmente exigidos para que o sinistro seja pago, nomeadamente, se a morte não resulta de um dos riscos excluídos ou de doença pré-existente não declarada no questionário médico. 47. Motivo pelo qual resulta das Condições Gerais do contrato, nomeadamente da cláusula 29.º que após a comunicação do sinistro os beneficiários do contrato devem remeter à Recorrente alguns documentos obrigatórios com vista a apurar se o sinistro é aceite ou recusado. 48. Sendo este um direito que assiste à Ré nos termos da cláusula 29.º das Condições Gerais do Contrato e do artigo 100.º do RJCS. 49. Direito este que de forma ilegal e ilegítima lhe foi coartado, quer pelos recorridos ao não enviarem a documentação exigida na cláusula 29.º das Condições Gerais, quer pelo Tribunal a quo ao condenar a Recorrente no pagamento do sinistro sem qualquer prova de que o sinistro era para aceitar. 50. Comportamento este que viola o disposto nas condições gerais do contrato e do RJCS bem como leva a um evidente desequilíbrio entre as partes, 51. Desequilíbrio este evidente no facto de o Tribunal a quo com esta decisão condenar a Recorrente no pagamento de um sinistro cujo prémio não era pago há mais de 1 ano e cujo risco pode eventualmente estar excluído! 52. Sendo de recusar a culpa ou a responsabilidade da Recorrente na justificação da conduta dos Recorridos em não entregarem os documentos e bem assim, de prestar ao Recorrido uma informação que, na sua convicção era verdadeira, ou seja que o contrato estava resolvido, 53. O tribunal a quo decide como se a Recorrente de forma dolosa tenha prestado ao Recorrente uma informação que sabia ser falsa e dessa forma obstar à comunicação do sinistro e análise do mesmo. 54. A Recorrente limita-se a esclarecer, ainda que de forma informal, que o contrato está resolvido por falta de pagamento de prémios, sendo certo que em momento nenhum a Recorrente impede ou recusa a entrada de uma participação formal do sinistro acompanhado dos competentes documentos. 55. O que aconteceu é que, em data não provada, o Recorrido terá perguntado ao mediador que procedimentos devia adotar para participar o óbito da mulher, tendo o mesmo informado que o contrato estava já resolvido por falta de pagamento de prémios, informação esta – da falta de pagamentos que era sobejamente conhecida por parte do Recorrido. 56. Nada impedindo o Recorrido de ainda assim reiterar o pedido de informações sobre os procedimentos ou ler o contrato e enviá-las para a Recorrente. 57. Sendo certo que só o não fez porque não quis! 58. Face ao exposto é de recusar a imputação da responsabilidade à recorrente pela não entrega dos documentos exigidos no artigo 29º n. 2 das Condições Gerais do contrato, sendo mais uma vez manifesto que o Tribunal a quo tem dois pesos e duas mediada quando se trata de analisar a conduta da Recorrente e do Recorrido. 59. Conforme o referido supra a comunicação ter-se-á traduzido numa mera informação verbal feita pelo Recorrido ao mediador do óbito mulher do Recorrido e relativamente à qual não resulta provada sequer a data em que tal ocorreu! 60. A questão que se coloca é se esta mera informação – sem qualquer documento de suporte – é suficiente ou bastante para que a Recorrente seja, sem mais, obrigada ao pagamento do sinistro. No nosso entendimento não, tendo mais uma vez andado mal o Tribunal a quo. Da clausula 29.º das Condições Gerais do contrato com o título “Formalidades para Liquidação das Importâncias Seguras” resulta que o pagamento do prémio é precedido do envio de todos os documentos necessários para o efeito, definindo-se ainda os documentos que são imprescindíveis para a análise da Recorrente nomeadamente, mas também da identificação das causas e circunstâncias em que a morte ocorreu, sendo este também o princípio do artigo 100.º e 102 do RGCS. Ora no caso em discussão nos presentes autos nada disto aconteceu, desconhecendo a Recorrente, assim como desconhece o tribunal a quo, as causas, antecedentes e circunstâncias em que a morte da pessoa segura ocorreu. 61. Ou seja, o Tribunal a quo, de forma injustificada, faz tábua rasa do que resulta das condições gerais e do RJCS, e determina, sem mais, que o sinistro foi validamente comunicado e que a obrigação da Recorrente é de pagar um sinistro – embora sem saber o valor em questão - referente a uma apólice que não tem os prémios pagos há mais de 1 ano e meio! 62. Sem se preocupar sequer em perceber se efetivamente estavam reunidos os pressupostos para que o sinistro seja pago, como se a morte da pessoa segura levasse de imediato ao pagamento do capital seguro. 63. Só se poderia admitir o raciocínio do Tribunal a quo se tivesse resultado provado que a D. BB não morreu de nenhuma das causas excluídas nos termos do artigo 13.º das Condições Gerais ou que não padecia de alguma doença não declarada no questionário médico, tendo prestado falsas declarações nos termos do artigo 8.º também das Condições Gerais. 64. E, bem assim, se estivesse junto aos autos um documento que comprovasse o montante em dívida do contrato de mútuo. 65. A solução algo simplista e displicente dada ao caso sub judicie pelo Tribunal a quo não só viola o disposto nas Condições Gerais – cláusulas 29ª e 13ª como na lei – artigos 100.º e 102.º do RJCS - pelo que deverá ser sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer. 66. Requerendo-se a V.ª Exa. a revogação do acórdão no que resposta à obrigação do pagamento do sinistro.
C) Do pagamento dos prémios em dívida: 67. Ainda que o Supremo Tribunal de Justiça entenda que o Tribunal a quo esteve bem na análise que fez do contrato à luz das condições Gerais, do RGCS e do CC e decida manter a decisão de que o contrato estava válido à data do sinistro sempre se dirá o mesmo terá que ser completado no sentido de impor aos Recorridos os efeitos do desse contrato, ou seja do pagamento dos prémios em falta. 68. O tribunal a quo entendeu que o contrato de seguro estava válido tendo condenado a Recorrente ao pagamento do capital seguro junto do beneficiário irrevogável. 69. Devendo nesse sentido permanecer intactos os direitos e deveres que dele advém para as partes – assunção do risco por parte da seguradora e pagamento dos prémios por parte das pessoas seguras. 70. No entanto, de forma inexplicável nada consta da sentença relativamente à obrigação dos recorridos pagaram o valor dos prémios vencidos desde Janeiro de 2015 e Outubro de 2016. 71. Ora, acatar a decisão do tribunal a quo – ou seja os Recorridos receberem o benefício do seguro sem a contrapartida do pagamento da quantia correspondente ao período em que ele vigorou, seria desrespeitar esta correspondência. 72. Não obstante a definição legal do contrato de seguro e de inegavelmente ser um contrato sinalagmático, a verdade é que o Tribunal, com a decisão proferida, atropela totalmente as características do contrato de seguro o que resulta num evidente desequilíbrio entre as partes. 73. Consubstanciando este desequilíbrio no facto de o Tribunal a quo ficcionar que o contrato estava ativo na data do sinistro e tendo condenado a recorrente ao pagamento do sinistro e de forma inusitada e inexplicável se mostra relapso quanto à condenação dos Recorridos ao pagamento dos prémios vencidos desde Janeiro de 2015 a Outubro de 2016, data do sinistro e período durante o qual não foram pagos os prémios; 74. Permitindo aos Recorridos o melhor de dois mundos: não pagam os prémios, mas ainda assim beneficiam da proteção do contrato! 75. Pelo que, caso o Supremo Tribunal de Justiça entenda manter a decisão do Tribunal a quo de considerar o contrato como estando activo na data do sinistro então deverá a sentença ser retificada, por forma a que da mesma conste a condenação dos Recorridos no pagamento dos prémios comprovadamente não pagos no período compreendido entre Janeiro de 2015 – data de pagamento do último prémio - e 16/10/2016 – data do sinistro.
Do abuso de direito 76. E aqui chegados, verificadas as condutas de ambas as partes, é manifesto que tendo os Recorridos reclamado o pagamento de um sinistro, ao abrigo de um contrato que sabiam que não pagavam o respetivo prémio há mais de um ano e, não tendo em nenhum momento demonstrado intenção em regularizar a situação tal conduta/ comportamento evidencia um manifesto abuso de direito; 77. Conduta esta que o Tribunal a quo não só não condenou como premiou com o pagamento, sem mais, de um sinistro ocorrido alegadamente no âmbito de um contrato de seguro que tinha prémios por pagar! 78. O artigo 334.º do Código Civil, primeira fonte do instituto do Abuso de Direito, prescreve que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. 79. A doutrina, perante a indeterminação desta norma, desenvolveu uma determinada tipologia de atitudes abusivas e lesivas da boa-fé que promovem alguma concretização do instituto, entre as quais se aponta as categorias do tu quoque. 80. Ora, no caso em apreço, no acórdão recorrida chega-se a uma solução em que não obstante os Recorridos terem violado o disposto no contrato relativamente ao (não) pagamento dos prémios permite-se ainda assim que venham agora exigir da Recorrente o cumprimento desse contrato, através do pagamento do sinistro 81. É importante salientar que a relação do contrato seguro, não é uma relação unilateral, em que apenas a Companhia de Seguros, neste caso a Recorrente, tenha obrigações para com os clientes. 82. Os próprios clientes têm que poder ser responsabilizados quanto incumpram as suas obrigações perante a Seguradora – nomeadamente, obrigação de pagar o prémio e entregar os documentos que o contrato reporta como essenciais para analisar o sinistro. 83. No caso, o Recorrido deixou de pagar os prémios desde Janeiro de 2015, comunica informalmente o óbito da mulher – em data que não ficou sequer provada -; não faz chegar à companhia nenhum dos documentos exigidos no n.2 da cláusula 29.º do contrato de seguro, mas ainda assim vem exigir da Zurich o cumprimento do contrato que ao longo dos anos tem vindo a ser repetidamente incumprido pelos próprios! 84. Admitir a tese dos Autores seria conceder o benefício ao infrator, pois quem incumpriu o contrato foram os Recorridos motivo pelo qual não podem dele socorrer-se para retirar um benefício sob pena de se permitir, como o Tribunal a quo permitiu, o abuso de direito na formulação de tu quoque. 85. Assim, o exercício do direito pretendido pelo Autor, na presente ação, sendo claramente abusivo, não pode ser admitido, pelo que também por esta vida deverá o acórdão ser revogado e a Recorrente absolvida do pedido. Termos em que, nos melhores de Direito, deve ser admitido o presente recurso, dando-se provimento ao mesmo, anulando- se o Acórdão proferido pela Relação de Lisboa, substituindo-se por um que determine a absolvição do pedido da Recorrente, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!»
7. Os recorridos contra-alegaram, formulando as seguintes conclusões: «A) Nos termos do art. 3º do CPC cabe às partes pedir e ao Tribunal decidir; B) Se a R. achava que tinha direito a mais prestações mensais, subsidiariamente, fazia esse pedido em Reconvenção e o Tribunal decidiria; C) Se achava que queria ver mais documentos, solicitava-os no próprio Processo; D) O douto Recurso diz que se baseia na lei substantiva, 674º n. 1 al. a) do CPC, para depois se limitar a questões processuais e a factos, nomeadamente, se a sua carta de resolução é falsa ou verdadeira, quando sabe perfeitamente que isso não foi posto em causa pela Relação, mas sim a sua expedição, pois não há qualquer facto aditado a dizer que essa carta é falsa, nem isso é aqui discutível, nos termos do art. 662º n. 4; E) As doutas alegações contêm factos ostensivamente falsos, pois a A. alegou o valor de 232.125,00€ em dívida logo no seu n.º 3 da PI e foi dada por provada a data de falecimento logo no facto 1 assente pelo Tribunal de 1ª Instância; F) É abuso de direito a R. nada pedir em Reconvenção e agora vir acusar os AA. de não quererem pagar os meses em que a R. não as cobrou, o que continuam sem pedir; G) É abuso de direito a R. nada pedir de documentação (nem agora o pede!) e agora vir pedir absolvição porque os AA. não deram informação que a R. afinal gostava de ter pedido. H) Com os factos ostensivamente falsos supra referidos com que a R. agora litiga no presente Recurso, litiga com notória má-fé, tal como ao deduzir pretensão cuja falta de fundamento conhece perfeitamente: tenta disfarçar de matéria de direito os factos que, ao arrepio da lei processual, quer ver o Supremo Tribunal a alterar, tal como quer aproveitar-se da sua inércia a nada pedir em Reconvenção e a nada requerer para instrução do Processo, para agora chumbar o pedido dos AA. I) Nos termos dos artigos 542º e 543º do CPC, deve ser condenada na quantia que este Venerando Tribunal entender por equitativa, face aos trabalhos escusados e à protelação do trânsito em julgado, sem que os herdeiros possam resolver a sua vida. J) Quanto ao Acórdão citado deste STJ de 10/12/2019 é uma situação tão diferente (em que se faz prova de que o cônjuge soube da resolução e nada fez) que só vem demonstrar que a R., além de não ter qualquer razão, nada encontrou que lhe pudesse dar alento jurisprudencial. Nestes termos, e nos melhores de direito que este Venerando Tribunal doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado improcedente, condenando-se a R. como litigante de má-fé e mantendo-se a douta decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.»
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS: 1. Admissibilidade e objeto do recurso Verificando-se os requisitos gerais de admissibilidade do recurso, e tendo a recorrida ficado vencida na apelação, encontram-se preenchidos os pressupostos da revista, nos termos do art.671º, n.1 do CPC. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, para além das questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 608º, n.2, 635º, n.4, e 639º do CPC. Todavia, apenas são atendíveis as questões que foram conhecidas pelo acórdão recorrido, sendo irrelevantes considerações sobre matérias que não integraram (nem tinham de integrar) o objeto daquela decisão. Assim, são as seguintes as questões a considerar: - se pode haver revista sobre a alteração da matéria de facto operada pela Relação; - se foi feita correta aplicação do direito ao considerar que o contrato de seguro de vida não se encontrava resolvido; - se o sinistro foi comunicado à seguradora e se estavam reunidas as formalidades contratualmente e legalmente exigidas para o pagamento do capital seguro. - se o tribunal deve condenar os autores no pagamento de quaisquer prémios de seguro, na hipótese de se entender que o contrato não estava resolvido; - se os autores atuaram com abuso de direito.
Há, ainda, que saber se a ré atua como litigante de má-fé, como suscitado pelos recorridos nas contra-alegações.
2. Fundamentos de facto: A segunda instância alterou a matéria de facto, eliminando os pontos n. 8 e 11, e dando nova redação aos pontos n.5, 6 e 10. Pela primeira instância haviam sido considerados provados os seguintes factos: «1. O 1º Autor é viúvo de EE, a qual faleceu a 19/10/2016, e os restantes Autores são filhos de ambos. 2. A 16/12/2013, o Autor AA e BB celebraram com a Ré um contrato de seguro de vida, denominado “Solução Crédito Habitação ZVida II”, titulado pela apólice ….12, no qual figurava como beneficiário irrevogável o BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A. (atualmente o Banco Santander Totta, S.A.). 3. O contrato de seguro previa, em caso de morte, a liquidação da importância segura de 226.433,00€ e a antecipação do pagamento em caso de invalidez absoluta e definitiva. 4. O valor do prémio, a pagar antecipada e mensalmente, por débito direto, foi fixado na quantia de 90,76€. 5. O 1º Autor e a falecida esposa não liquidaram o a Ré emitiu o recibo n. ...73, correspondente ao período de 01/12/2014 a 31/12/2014, com o valor inscrito de 100,816. [alterado pela 2ª instância, nos termos infra transcritos] 6. No entanto, procederam ao pagamento do recibo referente a janeiro de 2015. [alterado pela 2ª instância, nos termos infra transcritos] 7. A partir de 30/01/2015 não mais foi enviado qualquer recibo ao Autor, cobrado qualquer prémio ou enviada qualquer comunicação por parte da Ré. 8. Face ao não pagamento do recibo, a Ré, em 30/12/2014, enviou uma carta ao Autor, enquanto Tomador do seguro, na qual informou que o recibo …..73, no valor de € 100,81 não se mostrava pago, tendo-lhe sido concedido um prazo adicional, até 29/01/2015, para pagamento do recibo, constando de tal comunicação o seguinte: o não pagamento dos recibos até à data acima indicada tem como consequências a anulação da sua apólice, de acordo com o estipulado nas respetivas Condições Gerais, cessando as respetivas garantias. [eliminado pela 2ª instância] 9. A partir de 30/01/2015 não mais foi enviado qualquer recibo ao Autor, cobrado qualquer prémio, ou enviada qualquer comunicação por parte da Ré. 10. O 1º Autor nunca comunicou à Ré o falecimento de EE, 2ª pessoa segura. [alterado pela 2ª instância, nos termos infra transcritos] 11. A 18/02/2015 a Ré comunicou ao beneficiário irrevogável - BANIF - Banco Internacional do Funchal, S.A., a existência de um recibo vencido e não pago, informando ainda que, na qualidade de beneficiário irrevogável poderia substituir-se ao tomador de Seguro, pagar o recibo em falta e, dessa forma, evitar a resolução do contrato, não tendo existido resposta. [eliminado pela 2ª instância] 12. Consta da cláusula 18°, n.1 das condições gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Falta de pagamento dos prémios”, o seguinte: “Se o pagamento do prémio não for efetuado na data de vencimento do respetivo recibo, a Zurich, após comunicação ao Tomador de Seguro, procederá à resolução do contrato, cessando os efeitos do mesmo, a partir da data de vencimento do primeiro recibo em falta.” 13. Consta da cláusula 19°, n.3 das condições gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Beneficiários”, o seguinte: “A Zurich comunicará por escrito ao beneficiário aceitante qualquer situação de incumprimento contratual por parte do Tomador de Seguro, nomeadamente, a falta de pagamento de prémios devidos. Nestas circunstâncias, poderá o beneficiário aceitante substituir-se ao Tomador do Seguro para efeito de pagamento de prémios e manutenção do contrato em vigor não lhe assistindo, no entanto, quaisquer outros direitos contratuais que não os consignados nas Condições Gerais, Especiais e Particulares do Contrato.” 14. Consta da cláusula 19°, n.4 das condições gerais do contrato de seguro o seguinte: “Nos termos do número anterior, se no prazo de quinze dias a partir da data em que for comunicado por escrito ao beneficiário aceitante a situação de incumprimento contratual, a Zurich não receber qualquer resposta por escrito manifestando o interesse daquele na manutenção do contrato este considerar-se-á resolvido nos termos destas Condições Gerais.” 15. Consta da cláusula 29° das condições gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Formalidades para Liquidação das Importâncias Seguras”, o seguinte: “A liquidação das importâncias seguras, sempre que a ela haja direito, será feita aos beneficiários das respetivas garantias, após o envio de todos os documentos necessários para o efeito. São considerados imprescindíveis à análise e pagamento de qualquer importância segura ao abrigo do presente contrato, os seguintes documentos: a) Em qualquer circunstância: i) Certidão de Nascimento ou Bilhete de Identidade da Pessoa Segura; ii) Documento emitido pelo beneficiário comprovativo do montante em dívida no momento do sinistro; b) Em caso de morte da Pessoa Segura: i) Certificado de óbito da Pessoa Segura; ii) Relatório médico no qual especifique a causa, antecedentes e circunstâncias em que a morte ocorreu (....)»
Os pontos 5, 6 e 10 passaram a ter a seguinte redação: «5. Em 09/01/2015 estavam pendentes dois recibos referentes às mensalidades do seguro, ambos no valor de 100,81€: um com o nº.....73, correspondente ao período de 01/12/2014 a 31/12/2014, e outro com o nº.....89, correspondente ao período de 01/01/2015 a 31/01/2015. 6. Através da referida conta do 1º autor, foi pago à ré, em 09/01/2015, o valor de 100,81€. 10. O 1.º autor, cerca de 1 mês depois do falecimento da mulher, foi ter com o mediador de seguros através do qual tinha celebrado o contrato e deu-lhe conhecimento do falecimento, com o fim de saber o que havia de fazer a seguir, e este mediador informou esse falecimento por e-mail ao comercial da seguradora nos ..., empregado da ré, que lhe respondeu que o seguro estava anulado pelo que não havia nada a fazer, o que o mediador transmitiu ao 1.º autor e o 1.º autor nada mais fez até intentar esta ação.» *
3. O direito aplicável: A ré pede revista sobre o modo como o acórdão recorrido aplicou as regras processuais, ao reapreciar a matéria de facto, e sobre o modo como aplicou o direito substantivo. Vejamos se lhe assiste razão.
3.1. Quanto à questão de saber se a Revista pode sindicar o modo como o Tribunal da Relação reapreciou a matéria de facto: Entende a recorrente que o STJ deve apreciar a reavaliação da matéria de facto realizada pelo acórdão recorrido, por nessa matéria ter existido violação da lei processual. O acórdão recorrido eliminou os pontos n.8 e n.11 da factualidade que a 1ª instância havia dado como provada; e deu novo conteúdo aos pontos n.5, n.6 e n.10 dessa factualidade. O Tribunal da Relação alterou o julgamento da matéria de facto com base na reapreciação da prova testemunhal e de prova documental (não tabelada). Eliminou os pontos n.8 e n.11, essencialmente, por não existir qualquer registo ou aviso de receção que pudesse demonstrar o envio das cartas a que se referiam esses pontos. Justificou-se a convicção do tribunal, quanto à ausência de prova do recebimento pelo 1º autor da alegada carta (destinada à interpelação para pagamento e consequente resolução do contrato), junta a fls.40 dos autos, nos seguintes termos: «(…) quando se quer provar o envio de uma carta, faz-se pelo menos o registo dela; quando se quer provar a receção de uma carta, pede-se ainda o aviso de receção ou requer-se uma notificação avulsa. Ninguém, em questões minimamente importantes, espera fazer prova do envio de cartas apenas com o depoimento de […] empregados seus que dizem tê-las enviado (o que, como se viu, nem sequer é o caso)». E acrescentou-se: «(…) A simples exibição de uma fotocópia de uma carta, que pode ser feita em qualquer altura, ou o depoimento de um empregado de uma empresa (…) no sentido de ter escrito e enviado essa carta, facto que pode ser determinante para a sorte de uma ação, não têm valor probatório suficiente para convencer desse envio.» E diz-se ainda quanto ao alegado envio da carta (de fls. 41) ao Banco (beneficiário do seguro): «Tudo isto é válido, por maioria de razão, para o alegado envio da carta do ponto 11 para o Banif, não interessando saber se haverá alguma justificação para o facto de o Banif não ter respondido, pois que primeiro importaria provar que a carta tinha sido emitida, enviada e recebida pelo Banif». Deve notar-se, a este propósito, que, contrariamente ao afirmado pela ré nas suas alegações, o tribunal recorrido não afirma que as cópias das cartas juntas aos autos fossem falsas. Como facilmente se pode constatar, a argumentação desse tribunal respeita apenas à questão de saber se existe prova do envio e recebimento das cartas em causa.
Quanto à possibilidade de a revista ter por objeto o julgamento da matéria de facto, regem as seguintes normas: Estabelece o art. 682º, n.2 que: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterado, salvo o caso excecional previsto no n.3 do artigo 674º”. Dispõe o art. 674º, n.3: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
No caso concreto, os factos alterados e eliminados pela segunda instância não estavam dependentes de qualquer particular espécie de prova. Efetivamente, a matéria alterada respeita, essencialmente, aos comportamentos dos sujeitos intervenientes no contrato de seguro, pois trata-se de saber se existiram, ou não, determinadas comunicações e se foram ou não efetuados determinados pagamentos e em que datas. Trata-se, portanto, de matéria que, pela sua natureza não está sujeita a um particular meio de prova, podendo, por isso, ser demonstrada através de qualquer meio legalmente admitido. Nestes termos, não pode o STJ sindicar o modo como a factualidade foi reapreciada pelo acórdão recorrido. Há, portanto, que considerar tal matéria como definitivamente assente e, a partir daí, aplicar o direito pertinente.
* Quanto à aplicação do direito substantivo: 3.2. Há que apurar se a decisão recorrida fez correta aplicação do direito ao considerar que o contrato de seguro de vida não se encontrava resolvido à data do sinistro. No acórdão recorrido entendeu-se que: «Eliminados os factos sob 8 e 11, cai por terra a conclusão da resolução do contrato, porque nem sequer houve a comunicação de resolução prevista nas cláusulas contratuais citadas (18/1, 19/3 e 19/4). A benefício da discussão, suponha-se, no entanto, que se tinha provado que a ré tinha enviado tais cartas (nesse caso, de qualquer modo, a resolução – não a anulação como lhe chama a ré - só teria ocorrido 15 dias depois do envio da carta do ponto 11, ou seja, já em Março de 2015 e não em 30/01/2015). Para a resolução ser eficaz tinham que estar verificados os pressupostos respectivos. A resolução pressuponha que estivesse em dívida na data do prazo adicional concedido pela carta do ponto 8 – até 29/01/2015 – a prestação/prémio de Dez2014. No dia 09/01/2015, antes desse prazo, o 1.º autor pagou o valor de uma prestação em dívida». E acrescenta-se: «A ré e a sentença recorrida dizem que o prémio que foi pago foi o de Janeiro de 2015, que também já estava vencido, ficando por pagar o prémio de Dez2014. Com a eliminação do ponto 6 dos factos provados, deixou de se poder dizer que fosse aquele o prémio pago. Foi pago um dos dois, mas não se sabe qual. Não estando provado que o prémio pago tenha sido o de Janeiro de 2015, não está verificado um dos pressupostos da resolução: a falta de pagamento do prémio de Dez2014. Mas a ré pode tentar continuar a dizer que a forma de pagamento dos prémios, por débito directo, conforme constante das cláusulas gerais do contrato e da autorização expressa do autor/tomador do seguro, lhe permite a imputação do pagamento dos 100,81€ na prestação de Janeiro de 2015, embora estivesse em dívida também a prestação de Dez2014. E a ré invoca a existência de um acordo nesse sentido do autor. Mas o autor, ao aderir ao contrato com a cláusula do débito directo e ao aceitar o débito directo, não acordou em qualquer cláusula que derrogue as regras supletivas do art. 784/1 do CC. Não há nenhuma cláusula das CG que tome posição nesse sentido. Pelo que, não havendo factos que permitam dizer que ele designou a dívida de Janeiro de 2015 como aquela que devia ser paga, vigoram as regras supletivas daquele artigo: estando ambas as prestações em dívida, não oferecendo qualquer delas menor garantia para a seguradora, e não sendo nenhuma delas mais onerosa para o devedor, a regra supletiva imediatamente a seguir, e por isso aplicável, é aquela que diz que entre várias dívidas igualmente onerosas, se faz na que primeiro se tenha vencido. Assim, o pagamento deve considerar-se feito no prémio de Dez2014»
Apreciando: O quadro normativo onde se procurará a solução do caso concreto é integrado tanto pelo contrato que os outorgantes subscreveram, como pelas pertinentes normas do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), constante do DL n.72/2008, e ainda pelas normas da lei civil (ex vi do art.4º do RJCS). O conteúdo do contrato de seguro é modelado, em primeira linha, pelo princípio da liberdade contratual, como decorre do art.11º do RJCS, sendo limitado pelas normas imperativas, inscritas neste diploma (desde logo, indicadas nos artigos 12º e 13º) ou na lei civil, e complementado pelas normas legais de caráter supletivo. Dispõe o n.2 da cláusula 18.ª das Condições Gerais do Contrato de Seguro o seguinte: “A falta de pagamento do prémio, na data de vencimento do respetivo recibo, impossibilitará o pagamento de qualquer sinistro respeitante às coberturas do presente contrato entre o vencimento e a data de liquidação do recibo do prémio”. Esta cláusula tem de ser complementada com outras disposições contratuais, nomeadamente o disposto nos números 3 e 4 da cláusula19ª; e tem de ser interpretada à luz do RJCS e das regras gerais sobre incumprimento e extinção dos contratos. Deu-se como provado que: A partir de 30.01.2015 não mais foi enviado qualquer recibo ao Autor, cobrado qualquer prémio ou enviada qualquer comunicação por parte da Ré (pontos n.7 e n.9 da factualidade). E encontra-se também provado (ponto n.4) que o valor do prémio era pago, de forma antecipada e mensalmente, por débito direto. Por outro lado (da nova redação dada aos pontos n.5 e n.6 da factualidade) resulta provado que, em 09.01.2015, através da conta bancária, o 1º autor pagou um dos dois recibos que se encontravam em mora (respeitantes aos meses de dezembro de 2014 e janeiro de 2015, respetivamente). A questão de saber qual desses recibos se deve ter como pago decorrerá (na falta de disposição específica) das regras gerais sobre a imputação do cumprimento, concretamente do disposto no art.784º, n.1 do CC, que o acórdão recorrido aplicou corretamente, concluindo que a imputação do pagamento devia corresponder ao débito de dezembro de 2014. Todavia, esta questão da imputação do pagamento, realizado em 09.01.2015, acaba por não assumir qualquer relevo normativo autónomo na apreciação dos requisitos da resolução do contrato, porquanto o acórdão recorrido já havia concluído que a ré credora não tinha comunicado aos autores o seu propósito de resolver o contrato, como lhe era imposto pela Cláusula 19º, n.3 e n.4 das Condições Gerais, que se harmoniza com as regras gerais sobre as consequências do incumprimento, nomeadamente os artigos 801º, n.2 e 808º do CC. Tendo presente que o acórdão recorrido eliminou os pontos n.8 e n.11 dos factos que a primeira instância tinha dado como provados, não se pode concluir que a ré tenha enviado aos autores uma carta concedendo-lhes um prazo adicional para o pagamento das quantias em falta e a comunicar-lhes a resolução do contrato em caso de não pagamento; ou ainda que tenha comunicado a situação de incumprimento ao Banco beneficiário do seguro. Tratando-se, como supra referido, de matéria definitivamente assente (que este tribunal não pode alterar), não se poderá concluir que, face à mora no pagamento, a ré tivesse procedido à interpelação admonitória dos responsáveis pelo pagamento do seguro. Consequentemente, não se poderá concluir que se encontrassem preenchidos os requisitos que sustentariam o exercício do direito potestativo de resolução do contrato por incumprimento definitivo da contraparte. Face à factualidade assente (que não é extensa), o caso em apreço não pode deixar de apresentar alguma dificuldade quanto ao sentido decisório que definitivamente lhe deve ser dado. As circunstâncias do caso parecem revelar que, a partir de janeiro de 2015, as partes teriam perceções distintas sobre a situação jurídica do contrato de seguro. O art.406º do CC estabelece o princípio do contrato, do qual emerge a regra segundo a qual os contratos se extinguem por acordo das partes ou nos casos admitidos por lei. Não constando dos autos que as partes tenham procedido à revogação do contrato por mútuo acordo, a sua eventual extinção só poderia decorrer de outro tipo de causa, nomeadamente, de declaração de vontade de alguma das partes nas hipóteses legalmente previstas. Na versão da ré, o contrato de seguro encontrava-se extinto porque tinha sido, por si, resolvido, em janeiro de 2015, face à falta de pagamento de prémios mensalmente devidos. Porém, como supra referido, a ré não conseguiu fazer prova de que tivesse transmitido aos autores a sua declaração de vontade exteriorizadora do direito potestativo destinado a operar a resolução do contrato. Deste modo, não há, sequer, que apurar se os concretos pressupostos constitutivos do direito de resolução se encontrariam preenchidos. Deve, portanto, concluir-se que, face à factualidade provada, o acórdão recorrido não fez errada aplicação do direito quando considerou que o contrato de seguro se encontrava em vigor, por não ter sido eficazmente resolvido, e entendeu que a ré se encontrava obrigada a pagar o valor segurado, em consequência da verificação do sinistro. Afirma a ré que a decisão recorrida a condenou a pagar ao beneficiário irrevogável [o Banco] um valor que não teria sido alegado nem liquidado. Não lhe assiste completa razão, pois, na petição inicial, os autores pediram que a ré fosse condenada a pagar o valor do mútuo e inerentes juros que, a essa data, se encontrasse em dívida. Não pode, assim, afirmar-se que o montante pretendido não tivesse sido alegado. Porém tal não obstava à condenação no pagamento do valor segurado, pois tal concretização pode ser definida através de liquidação de sentença como infra se referirá.
3.3. Quanto à questão de saber se o sinistro foi comunicado à seguradora e se estavam reunidas as formalidades contratualmente e legalmente exigidas para o pagamento do capital seguro: Afirma a ré que o sinistro nunca lhe foi comunicado e que os autores nunca procederam à entrega dos elementos exigidos na cláusula n.29º das condições gerais do contrato de seguro. A segunda instância deu como provado o seguinte: «O 1.º autor, cerca de 1 mês depois do falecimento da mulher, foi ter com o mediador de seguros através do qual tinha celebrado o contrato e deu-lhe conhecimento do falecimento, com o fim de saber o que havia de fazer a seguir, e este mediador informou esse falecimento por e-mail ao comercial da seguradora nos ..., empregado da ré, que lhe respondeu que o seguro estava anulado pelo que não havia nada a fazer, o que o mediador transmitiu ao 1.º autor e o 1.º autor nada mais fez até intentar esta ação»
Suscitam-se neste ponto dois problemas distintos. Um é o de saber se houve participação do sinistro à ré; o outro é o de saber se (no momento dessa participação ou em momento posterior) houve transmissão da informação adicional sobre a pessoa falecida e as circunstâncias do sinistro, cumprindo o disposto na cláusula n.29º das condições gerais do contrato de seguro. Afirma-se no acórdão recorrido: «Quanto à comunicação não há dúvida de que ela foi feita. O facto de ser uma comunicação informal não a torna numa não comunicação. E o art. 100/1 do RJCS não impõe qualquer formalidade. Nem as cláusulas contratuais a impõem. A clª 29/1 diz que a liquidação das importâncias seguras será feita após o envio de todos os documentos, mas não fala sequer na participação/ comunicação do sinistro. Não é verdade, pois, o que a ré diz sobre o assunto: “a comunicação do óbito faz-se pela apresentação dos comprovativos de tal óbito e da causa do óbito, nos termos da cl.ª 29 […]”. Mas a ré diz que ela não foi feita a si, a um seu representante. Ela foi feita ao mediador e este, por sua vez, comunicou ao seu “comercial”, empregado da ré, mais precisamente “o comercial da seguradora nos ...” (como consta do facto provados sob 10). Os autores qualificam o mediador e o comercial como representantes da ré. Não há nos factos provados referência a qualquer procuração ou qualquer outro documento que atribua poderes representativos formais àqueles mediador e empregado da ré. Nem há outros factos que permitam concluir pela existência de uma relação de representação orgânica entre o “comercial” (empregado da ré) e a ré, já que ele não é seu administrador ou gerente. Mas a verdade é que ele é um empregado comercial da ré, mais precisamente o comercial da seguradora nos ..., a quem o mediador quando o 1.º autor o informa da morte da segunda pessoa segura, logo informa disso, por e-mail, e que responde à informação dizendo-lhe que o contrato está anulado, que nada há a fazer. Resulta daqui, naturalmente, que este empregado tem poderes fácticos para a prática do acto jurídico do recebimento da notícia do falecimento de pessoas seguras, pois que senão não era a ele que lhe era dada a notícia por uma pessoa ligada à seguradora (o mediador através do qual o 1.º autor e mulher tinham celebrado o contrato de seguro com a ré), nem ele respondia a essa notícia, ou então diria que nada tinha a ver com isso. Estamos, pois, perante a situação do art. 115/3 do Código do Trabalho (…) Pelo que, sempre se pode dizer que o comercial da ré nos ... era pelo menos um representante da ré para efeitos de receber a comunicação do sinistro, pelo que se pode dizer que a comunicação foi feita e o foi à ré. (…) O 1.º autor fez o que seria normal fazer: foi ter com o mediador para saber, em concreto, o que tinha de fazer. Não dizendo o contrato como é que a participação devia ser feita - a extensa cl.ª 29 do contrato de adesão fala das formalidades da liquidação, não da participação –, e não o fazendo também, de forma concretizada, o art. 100/2 do RJCS, nada de censurável ou de anormal tem o facto de ele não saber o que fazer para activar o seguro. Ora, a seguradora – através dos meios da sua organização – em vez de lhe responder a isso, limitou-se a dizer-lhe que o seguro estava anulado pelo que nada havia a fazer. Perante esta resposta da seguradora (da sua empresa/organização, dos auxiliares que usa para o cumprimento das obrigações decorrentes de uma relação obrigacional complexa), é ela que coloca o 1.º autor em condições de não poder completar a participação do sinistro com outras informações que a seguradora entendesse que ele tinha de prestar. É, pois, à esfera de risco da seguradora que é de imputar o não cumprimento da obrigação nos termos que ela entende que devia ser cumprida. No mesmo sentido, veja-se a regra de que “o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não […] pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação” (art. 813º do CC), tendo ainda por base as regras da boa-fé no cumprimento das obrigações e no exercício dos direitos (art. 762/2 do CC). Assim, a ré não pode opor aos autores a falta de outros elementos que ela entende ser necessário serem juntos à participação do sinistro que foi feita como já demonstrado.» Como bem se entendeu no acórdão recorrido, dúvidas não existem de que a participação do sinistro foi feita; e foi feita a quem representava a ré. Quanto à exigência de prova documental sobre o sinistro, encontra-se provado nos presentes autos a identidade da pessoa falecida e a data do seu falecimento.
Quanto à exigência de informação sobre as circunstâncias em que ocorreu o sinistro, e à importância dessa informação para a determinação da obrigação de pagar o montante do capital segurado em falta, importa ter presentes as disposições que estabelecem tal obrigação e compreender o seu alcance teleológico.
Consta da cláusula 29ª das condições gerais do contrato de seguro, sob a epígrafe “Formalidades para Liquidação das Importâncias Seguras”, o seguinte: «A liquidação das importâncias seguras, sempre que a ela haja direito, será feita aos beneficiários das respetivas garantias, após o envio de todos os documentos necessários para o efeito. São considerados imprescindíveis à análise e pagamento de qualquer importância segura ao abrigo do presente contrato, os seguintes documentos: a) Em qualquer circunstância: i) Certidão de Nascimento ou Bilhete de Identidade da Pessoa Segura; ii) Documento emitido pelo beneficiário comprovativo do montante em dívida no momento do sinistro; b) Em caso de morte da Pessoa Segura: i) Certificado de óbito da Pessoa Segura; ii) Relatório médico no qual especifique a causa, antecedentes e circunstâncias em que a morte ocorreu (....)»
Dispõe o artigo 100.º do RJCS (Participação do sinistro): 1 - A verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento. 2 - Na participação devem ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências. E estabelece o artigo 102.º (Realização da prestação do segurador): 1 - O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. 2 - Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro.
Não se pode concluir destas normas que a informação complementar sobre as circunstâncias do sinistro, que os autores se encontravam obrigados a entregar, seja elemento constitutivo do respetivo direito ao pagamento da quantia segurada (devida ao Banco mutuante), porquanto se trata de regras que visam, essencialmente, disciplinar a fase da liquidação e da determinação do montante a pagar. Elemento constitutivo do direito dos autores é a existência do sinistro, ou seja, a morte de um dos cônjuges mutuários. Não é a prova de que a morte ocorreu em determinadas circunstâncias, e não noutras. Assim, provada a morte de um dos cônjuges, tem a Seguradora a faculdade de se eximir ao pagamento, demonstrando que essa morte ocorreu em circunstâncias que, nos termos do contrato, excluíam essa obrigação. A obrigação de entregar o relatório médico, exigida na cláusula 29º, alínea b) das condições gerais do contrato de seguro, serve este interesse da Seguradora. Como resulta dos autos (ponto n.10 da factualidade provada), quando o 1º autor perguntou ao representante da ré o que devia fazer na sequência da morte da mulher, este respondeu-lhe que não havia nada a fazer porque o seguro estava anulado. Assim, embora não tenha existido entrega da informação respeitante às circunstâncias em que se verificou a morte do cônjuge do 1º autor, concluiu-se, porém, que tal não decorreu de culpa do autor, mas sim de recusa do representante da ré em receber qualquer informação adicional, o que também configura, de certo modo, a violação de um dever lateral de cooperação do representante da ré para com o 1º autor; dever este que sempre decorreria do princípio da boa-fé, que deve orientar o comportamento das partes ao longo da vigência do contrato, como decorre do art.762º, n.2 do CC. Aliás, o posterior comportamento da ré, imputando aquela omissão aos autores, não deixa, até, de revelar alguma contradição com essa atitude de desinteresse em receber tal informação. Cabendo à ré demonstrar que se verificava alguma circunstância que permitia excluir a sua obrigação de pagamento, e não tendo sido feita prova nesse sentido, deve concluir-se que se verificam os requisitos constitutivos da obrigação de pagamento da quantia segurada, já que a ocorrência do sinistro se encontra demonstrada e o contrato de seguro estava em vigor. Quanto à determinação do montante a pagar, o acórdão recorrido condenou a ré a “pagar ao Banco Santander Totta, SA, o montante ainda em dívida à data da petição inicial, e respectivos juros de mora, referentes ao empréstimo contraído pelo 1º autor e pela mulher junto daquele banco (então Banif).” Todavia, da factualidade provada não consta qual era o montante segurado efetivamente em dívida. Assim, esse montante terá de ser apurado em liquidação de sentença, nos termos do art.609º, n.2 do CPC.
3.4. Quanto a saber se o tribunal deve condenar os autores-recorridos no pagamento de quaisquer prémios de seguro, na hipótese de se entender que o contrato não estava resolvido: Entende a recorrente que, na hipótese de se confirmar que o contrato de seguro não estava resolvido, os autores deviam ser condenados a pagar os prémios do seguro, desde o início de 2015 e até à data do sinistro, pois não procedendo assim estaria a beneficiar os recorridos, que teriam a vantagem do pagamento do sinistro sem terem de pagar as quotas em atraso. Ora, esta é uma questão nova que não pode ser aqui conhecida, porque não foi discutida nas instâncias, desde logo, porque a ré-recorrente não suscitou essa questão em reconvenção. Diferentemente do percecionado pela ré, o acórdão recorrido não isentou os autores do pagamento desses prémios. Simplesmente, não se pronunciou sobre tal matéria, porque ela não foi alegada nem pela ré nem pelos autores. Naturalmente que, em termos gerais, enquanto um contrato estiver em vigor, cada uma das partes está obrigada ao cumprimento das suas obrigações (com as vicissitudes próprias do decurso do tempo). Todavia, como acabado de referir, não pode este tribunal, aqui e agora, pronunciar-se concretamente sobre tal matéria.
3.5. Quanto a saber se os autores atuaram com abuso de direito: Alega, ainda, a ré que os autores agiriam com abuso de direito, nos termos do art.334º do CC. Todavia, dos autos não resultam indícios inequívocos de que, ao reclamarem o pagamento do sinistro quando existem prémios do seguro por pagar, os autores excedam, nomeadamente, os limites impostos pela boa-fé. Efetivamente, não se pode dar como assente que os autores tivessem pretendido a extinção do contrato ou que, claramente, se tivessem conformado com a sua resolução e que, posteriormente, viessem invocar a sua vigência para poderem reclamar o pagamento do sinistro. Mesmo admitindo que existia para os autores uma situação de dúvida sobre o estado do contrato, que não procuraram esclarecer, não resulta dos autos informação inequívoca para se concluir que o seu comportamento era de tal modo censurável que o exercício do direito devia ser paralisado pela figura do abuso de direito.
3.6. Quanto à questão de saber se a ré atua como litigante de má-fé: Os recorridos, nas suas contra-alegações, afirmam que a recorrente, com a presente revista, litiga de má-fé, devendo, por isso, ser responsabilizada nos termos dos artigos 542º e 543º do CPC. Não tendo a questão da litigância de má-fé sido objeto do acórdão recorrido, a única hipótese que poderia ser considerada no presente recurso seria a prevista na última parte da alínea d) do art.542º, n.2, ou seja, a de a ré pretender “protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”. Facilmente se concluiu que as alegações da ré não espelham um uso manifestamente reprovável da faculdade recursiva, que revelasse uma conduta dolosa ou gravemente negligente. A ré limita-se a desfiar argumentos que, na sua opinião, seriam suscetíveis de conduzir a uma solução diversa daquela que o acórdão recorrido acolheu. Argumentos esses que, no essencial, haviam sido considerados na decisão da primeira instância. Conclui-se, portanto, que ao interpor o presente recurso, a ré não litiga de má-fé.
* Em resumo, embora a especificidade do caso não permita afirmar uma absoluta ausência de dúvida, não se demonstram, porém, argumentos decisivos que conduzam à revogação do acórdão recorrido. Não se acompanha a fundamentação dessa decisão apenas na parte em que condenou a ré a pagar a quantia peticionada pelos réus e respetivos juros de mora, sem concretamente especificar que tal quantia não poderá ser superior ao valor efetivamente segurado à data do sinistro, ou seja, o valor mutuado que ainda estava por pagar à data do sinistro (pressupondo-se, naturalmente, que o contrato de mútuo havia sido regularmente cumprido até aí). Assim, dado não constar da factualidade assente qual a quantia efetivamente em débito, a ré só pode ser condenada a pagar a quantia concretamente segurada em função do sinistro, que poderá ser apurada em liquidação de sentença, os termos do art.609º, n.2 do CPC. DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista confirmando-se o acórdão recorrido, embora com fundamentação parcialmente divergente, condenando-se a ré a pagar ao Banco Santander o montante segurado em função do sinistro, em débito à data da petição inicial e respetivos juros de mora, referentes ao empréstimo contraído pelo 1º autor e pela falecida mulher, no valor que se apurar em liquidação de sentença.
Custas: pela recorrente.
Lisboa,12.01.2021
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
António Barateiro Martins: Com voto de conformidade, nos termos do art. 15º-A do DL n.10-A/2020, de 13.03, (aditado pelo DL n. 20/2020, de 01.05).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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