Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
44/06.9TBVNG.P2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: CONTRATO DE COMODATO
FRUTOS
DIREITO DE USO
DIREITO DE FRUIÇÃO
DECLARAÇÃO EXPRESSA
BOA FÉ
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE LEALDADE
DEVER DE RESPEITO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 07/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICA/ EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ CONTRATOS
Doutrina: - Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, 1982, pp. 339, 340, 342-345.
- Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pp.49, 50.
- Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. II1997, p. 747.
- Ruggiero, Instituições de Direito Civil, vol., 3, 1ª ed., 1999, Bookseller, Campinas, pp. 483, 484, 486.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC):- ARTIGOS 334.º, 1129.º, 1131.º, 1132.º, 1135.º, ALÍNEAS C), F), 1140.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12-07-1987.
Sumário :
I - O comodato é um contrato que se analisa na entrega pelo comodante ao comodatário de uma coisa móvel ou imóvel, para que se sirva dela e a restitua, podendo ser limitado pelos fins e pelo tempo (prazo certo ou incerto).
II - Usar a coisa – servir-se da coisa – não se confunde com fruição da coisa: o uso é a utilização directa da coisa para aproveitamento imediato das suas aptidões naturais tendo em vista certos fins ou para satisfação de certas necessidades; fruição é a utilização da coisa como instrumento de produção, logo, como fonte de vantagens.
III - Assim, tendo o comodatário apenas o uso da coisa, só por força de convenção expressa pode fazer seus os frutos colhidos – art. 1132.º do CC.
IV - Na ausência de convenção expressa, não pode o comodatário aproveitar os frutos (rendimentos) que a coisa produza, nem celebrar negócios jurídicos com vista à sua produção.
V - Tendo sido expressamente convencionado, entra as limitações ao uso da coisa pelo comodatário, a proibição de afixar publicidade nas portas e paredes, há violação contratual se, contrariando tal proibição, a comodatária celebra contratos cujo objecto é a afixação de publicidade nesses locais, fazendo suas as respectivas contrapartidas monetárias.
VI - Fundando-se o contrato de comodato em razões de cortesia, de favor ou gentileza, o facto de – contra a verdade por si sabida – o comodatário se arrogar, perante terceiros, proprietário do imóvel configura uma grave violação da boa fé, que não pode deixar de ter consequências nas relações entre ele e o comodante, posto que a traição ao favor é uma traição à confiança.
VII - Entre os deveres jurídicos originados pelo contrato de comodato incluem-se os de prestação e os acessórios de conduta (ou laterais), sendo que estes se concretizam em deveres de protecção como sejam o de lealdade, consideração, notificação, informação (com verdade), cuidado e consideração com a pessoa e património da outra parte, cuja eficácia se reflecte nas relações entre comodante e comodatário, mesmo que a conduta violadora tenha tido lugar nas relações com terceiros.
VIII - Nos termos do art. 1140.º do CC, o comodante pode resolver o contrato se para isso tiver justa causa, sendo que justa causa será todo o facto susceptível de determinar a inexigibilidade ética e jurídica da subsistência do contrato, e que pode derivar tanto da (i) violação das obrigações legais, como da (ii) violação de deveres laterais de protecção, fundados na confiança e na boa fé, reforçados in casu pela natureza gratuita do contrato.
IX - A violação pela Ré da proibição expressa de utilizar as portas exteriores e as paredes do espaço que lhe foi comodado para afixação de publicidade, bem como o comportamento desta perante terceiros arrogando-se proprietária do espaço, em total desconsideração pelos interesses do comodante, preenchem o conceito de justa causa para resolução do contrato.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

RELATÓRIO

Em inícios de 1995, o AA autorizou o BB a utilizar, a título precário, pelo prazo de um ano e com a possibilidade de renovação, parte do seu prédio sito na Rua ......., em Vila Nova de Gaia, mais concretamente dependências com entrada pelo n°000 da Rua ....... e espaço descoberto com entrada pelo n°000 da mesma Rua correspondente a pátio e área correspondente a um dos armazéns que se encontrava sem cobertura e em que apenas estavam erigidas as paredes de três das empenas, para a prática desportiva e cultural dos jovens do Lugar de Gaia.

Em 30-12-2005, o mesmo AA intentou no Tribunal de Gaia acção declarativa de condenação em processo ordinário contra o referido BB, pedindo a título principal que:

1. se declare válida e eficaz a resolução do contrato de comodato celebrado entre R. e A. e que tem por objecto parte do prédio descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n°00000 da freguesia de Santa Marinha, a fis. 84 v do Livro 92, sito na Rua ......., em Vila Nova de Gaia, em específico dependências  com entrada pelo n°000 da Rua ....... e espaço descoberto com entrada pelo n°000 da mesma Rua, correspondente a pátio e área correspondente a um dos armazéns que se encontrava sem cobertura e em que apenas estavam erigidas as paredes de três das empenas, tudo locais onde a Ré tem instalada a sua sede social, campo de futebol, parque recreativo, posto médico, balneários e anexos;

2. o R. seja condenado a restituir ao A., livres e desimpedidos de pessoas e coisas, as partes do prédio que ocupa identificadas na alínea anterior, no prazo máximo de 15 (quinze) dias.

E a título subsidiário que:

1- O R. seja condenado a reconhecer que o A. é dono e legítimo proprietário do prédio urbano composto de armazéns, salão, tanoaria, casa de escritório e dotado de poço de água, sito na Rua ......., da freguesia de Santa Maria, confrontando pelo nascente com a Travessa ......., pelo poente com a V...., pelo norte com a Rua da .......... e pelo sul com a Rua ......., descrito na i’ Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n° 00000 da freguesia de Santa Marinha, a fis. 84 v do Livro 92, sito na Rua ......., em Vila Nova de Gaia, de que são parte integrante as dependências com entrada pelo n° 000 da Rua ....... e espaço descoberto com entrada pelo n° 000 da mesma Rua correspondente a pátio e área correspondente a um dos armazéns que se encontrava sem cobertura e em que apenas estavam erigidas as paredes de três das empenas, tudo locais onde o R. tem instalada a sua sede social, campo de futebol, parque recreativo, posto médico, balneários e anexos;

2- O R. seja condenado a restituir ao A., livres e desimpedidos de pessoas e coisas, as partes do prédio que ocupa identificadas na alínea anterior, no prazo máximo de 15 (quinze) dias.

Alegou, em resumo, que foi estipulado, entre outras cláusulas, a proibição de afixação de publicidade nas paredes e portas exteriores do prédio, mas que, em 12-08-2005, soube que numa das paredes exteriores do prédio, tinha sido afixado um placard publicitário, vindo a apurar que tal aconteceu na sequência de um contrato outorgado pelo R. com CC Municipais, E.M., no qual se intitulava proprietário do prédio; por isso, resolveu o contrato por carta de 26-8-05, mas o R. não procedeu à entrega da parte do prédio cedido.

O Réu contestou e o Autor replicou.

A acção prosseguiu os seus termos, com despacho saneador, selecção dos factos assentes e controvertidos e audiência de julgamento, após a qual foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Todavia, em recurso interposto pelo Autor, o Tribunal da Relação do Porto alterou a decisão sobre a matéria de facto e ordenou a ampliação desta na 1ª instância.

Após julgamento da matéria de facto na parte ordenada ampliar, foi proferida sentença que julgou a acção procedente:

- declarando-se válida e eficaz a resolução do contrato de comodato celebrado entre A. e R e que tinha por objecto parte do prédio descrito na 1a Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n°00000 da freguesia de Santa Marinha, a fis. 84 v do Livro 92, sito na Rua ......., em Vila Nova de Gaia, em específico dependências com entrada pelo n°24 1 da Rua ....... e espaço descoberto com entrada pelo n°000 da mesma Rua, correspondente a pátio e área correspondente a um dos armazéns que se encontrava sem cobertura e em que apenas estavam erigidas as paredes de três das empenas, tudo locais onde a Ré tem instalada a sua sede social, campo de futebol, parque recreativo, posto médico, balneários e anexos;

- e condenando-se a Ré a restituir à A., livres e desimpedidos de pessoas e coisas, as partes do prédio que ocupa identificadas na alínea anterior, no prazo máximo de 15 (quinze) dias.

Novo recurso, desta feita pelo Réu, para o Tribunal da Relação do Porto, mas sem êxito, já que, por acórdão de 26-01-2012, a apelação foi julgada improcedente.

Continuando inconformado, recorre agora de revista para este STJ, pugnando pela revogação de tal acórdão e pela improcedência da acção,

O Autor contra-alegou em defesa da subsistência dó julgado.

Remetido o processo a este STJ, após a distribuição e despacho preliminar, foram corridos s vistos legais.

Nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.


FUNDAMENTAÇÃO

MATÉRIA DE FACTO

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:

1 - O A. é dono e legítimo proprietário do prédio urbano composto de armazéns, salão, tanoaria, casa de escritório e dotado de poço de água, sito na Rua ......., da freguesia de Santa Maria, confrontando pelo nascente com a Travessa ......., pelo poente com a V...., pelo norte com a Rua da .......... e pelo sul com a Rua ......., descrito na 1a Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n° 00000 da freguesia de Santa Marinha, a fis. 84 v do Livro 92 (MFA -A)

2 - Prédio que adquiriu por disposição testamentária de DD e que se encontra registado a favor do A. pela apresentação n°00000, de 16 de Fevereiro de 1947; (MFA - B)

3 - Há mais de 50 anos que o A., por si e/ou a seu mando, vem dispondo do referido prédio, ocupando-o, fruindo das suas utilidades, suportando os encargos com a sua utilização, tudo à vista de quem quer e pacificamente, agindo na convicção de ser seu legítimo dono; (MFA - C)

4 - Em inícios de 1995 o A. autorizou a Ré a utilizar parte do prédio sobredito em 1 supra, concretamente, dependências com entrada pelo n° 000 da Rua ....... e espaço descoberto com entrada pelo n° 000 da mesma Rua correspondente a pátio e área correspondente a um dos armazéns que se encontrava sem cobertura e em que apenas estavam erigidas as paredes de três das empenas; (MFA - D)

5 - Utilização que foi concedida para a finalidade da prática desportiva e cultural dos jovens do Lugar de Gaia, a título precário, pelo prazo de um ano e com a possibilidade de renovação; (MFA - E)

6 - Com a obrigação de restituição (sem direito a qualquer indemnização por despesas efectuadas na parte cedida, fossem de conservação ou de beneficiação) findo esse prazo ou o das suas renovações ou em caso de venda do prédio ou de necessidade do prédio pelo A., ou ainda caso se verificasse desvio dos fins e propósitos para que foi concedido, nomeadamente ofensas à moral pública ou religiosa; (MFA - F)

7 - E impondo à Ré várias obrigações, nomeadamente obrigação de permitir o acesso e presença no local ao Pároco de Santa Marinha, facultar o uso do espaço cedido para actividades e fins da Paróquia ou dos fiéis do Lugar de Gaia, proibição do uso do espaço para competição com outro grupos, proibição de fazer publicidade, quer nas portas exteriores, quer nas paredes dos espaços cedidos; (MFA - G)

8 - A autorização de utilização foi transmitida à Ré através do zelador do A., Sr. EE, que reside noutra parte do prédio referido; que cuidou de fazer consignar os termos dessa autorização precária e temporária de parte do prédio dito em 1 supra em declaração que denominou de “Circular Informativa”, impressa em papel da Confraria do Santíssimo Sacramento e Bom Jesus de Gaia, confraria essa que, ao tempo e com autorização do A., utilizava parte do prédio referido (diversa daquela cuja utilização foi cedida à Ré) e de que o dito zelador era então Juiz; (Resp. quesitos 1º e 2º)

9 - A “Circular Informativa”, datada de 18/02/1995 e que continha as regras e obrigações da cedência de utilização de parte do prédio do A. à Ré, foi assinada, em 14/04/1995, pelos que eram então os membros da Direcção da Ré, FF, GG e HH, aceitando em nome da Ré os termos e condições dessa permissão de utilização do prédio; (Quesito 3º)

10 - Em 12 de Agosto de 2005, o A. tomou conhecimento de que, numa das paredes exteriores do prédio referido, tinha sido afixado um placard publicitário com cerca de 60 metros de comprimento por 6 de largura com os seguintes dizeres: “TENHA UM BOM JANTAR COM MUITO BOM GOSTO”. Parede essa que correspondia à empena norte do armazém cuja utilização fora cedida à Ré, isto é, aquela que confronta com a actualmente denominada Rua da .......... (empena essa que é paralela e sobranceira ao Rio Douro); (Quesito 4º)

11 - Esse placard publicitário foi afixado na sequência de contrato outorgado entre a Ré (representada pelo seu Presidente da Direcção, Sr. II) e a CC - , EM.; (Quesito 5º)

12 - Em face do comportamento do R. e face ao facto de se intitular proprietário do prédio, a autora enviou ao réu, e este recebeu, a carta de fls. 30, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (Quesito 6º - acórdão do TRP)

13 - Desde o início de 1995, a Ré tem perseguido os seus fins de cultura, recreio do lugar de Gaia, nomeadamente proporcionando a prática desportiva a jovens e a assistência a idosos nomeadamente através da existência de um posto de enfermagem; (Quesito 7º)

14 - Ao longo dos tempos, fruto das sucessivas eleições, a ré tem alterado os seus membros da Direcção, sendo que nesta data não são os mesmos que em 1995 assinaram os termos da circular informativa; (Quesito 8º)

15 - Os actuais membros da Direcção foram contactados no ano de 2005 pela CC — Equipamentos Municipais E.M. para a possibilidade de instalação de um painel publicitário numa das fachadas do edifício que a Ré ocupa, recebendo como contrapartida €5.000,00; (Quesitos 9º e 10º)

16 - Tal montante revestia-se de primordial importância para fazer face às necessidades financeiras da Ré, razão pela qual efectivamente aceitaram e outorgaram o contrato; (Quesitos 11º e 12º)

17 - O painel publicitário foi efectivamente colocado, mas a ré não chegou a receber tal montante; (Quesitos 13º e 14º)

18 - A ré não pediu o consentimento da autora para publicar o placard publicitário no prédio aqui em causa; (Quesito 19º)

19 - A Autora veio a proceder à assinatura de idêntico contrato com a CCa recebendo idênticas contrapartidas. (Quesito 20º)

(DA AMPLIAÇÃO)

20 - O Réu voltou a intitular-se proprietário do prédio em informações prestadas a elementos policiais que se deslocaram ao local a pedido do Autor (Quesito 6ºA)

21 - Em 16 de Agosto de 2005 o Autor intimou a So....Ce.....de Cer.... a retirar a publicidade em causa no prazo de 48 horas (Quesito 21º)

22 - O Autor foi contactado pela CCa que deu conta de que esta situação decorrera do Réu se auto-intitular legítimo proprietário e possuidor do referido prédio, deu conta do compromisso assumido perante a So....Ce.....de Cer.... e do destino do produto desse compromisso financeiro e deu a subentender dos interesses prejuízos e direitos indemnizatórios em que incorreria caso o placard fosse retirado (Quesitos 22º, 23º, 24º e 25º)

23 - Foi por estas razões que o Autor acedeu na permanência da publicidade e outorgou o protocolo (Quesitos 26º e 27º).


DIREITO

Antes de mais, e sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões propostas pelo recorrente, síntese das razões da sua discordância, importa recordar – e registar – as conclusões propostas pelo recorrente no final da sua alegação.

São as seguintes:
I          - Resulta da matéria dada como provada que a Ré permitiu a colocação de publicidade no prédio propriedade da Autora;
II         - Como já havia sido defendido pela primeira sentença proferida por este Tribunal, entendemos que tal violação contratual não se reveste de uma importância tal que, por si, possa por ser motivo de resolução contratual;
III       - A Ré limitou-se a permitir a colocação de um cartaz publicitário recebendo como contrapartida € 5.000,00, que se destinavam a financiara actividade da Ré de fomento do desporto e cultura dos mais jovens e apoio aos idosos no Lugar de Gaia;
IV       - O montante destinava-se a apoiar estas actividades altamente meritórias que colectividades como a Ré;
V         - E não mais do que isso, não tinha outro destino que não esse, e não se vê nem se compreende como a Autora e em ultima análise a Diocese do Porto não tenham percebido isso mesmo;
VI       - A permissão dada peia Ré de colocar publicidade na fachada do prédio não constitui uma violação grave e censurável, como aliás o Acórdão acaba por concordar;
VII      - A Ré viu na celebração do referido contrato uma oportunidade de obter uma receita excepcional para o desenvolvimento da sua actividade altruísta;
VIII    - Nota-se que posição bem mais sensata foi tida pelo Meritíssimo Juiz que em primeira análise julgou a presente acção e que de facto assim entendeu não existir um comportamento da Ré de tal forma grave pudesse por em causa o próprio contrato;
IX       - A permissão de colocação de publicidade não era assim de tal forma grave, já que a própria Autora veio a celebrar idêntico contrato com a CC;
X         - E recebeu idêntica contrapartida ou seja € 5.000,00;
XI       - O problema não era pois a colocação da publicidade, mas sim a contrapartida que a Ré iria receber;
XII      - Que a Ré nunca reclamou, nem reclama para si;
XII - O contrato que o BB havia celebrado, e que em bom rigor nem se cumpriu, já que o montante não veio a ser recebido, foi exactamente aquele que a Autora veio a celebrar;
XIV    - E não corresponde à verdade que Autora, que só celebrou o contrato porque a CC já se havia comprometido com a entidade publicitante, e que a quebra desse contrato traria para a CC elevados prejuízos financeiros;
XV      - É que a Autora não só celebrou esse contrato, como posteriormente procedeu a sucessivas renovações;
XVI    - A Autora podia apenas ter celebrado o primeiro contrato para evitar que a CC suportasse os prejuízos do incumprimento com a entidade publicitante, e posteriormente não permitir a sua renovação;
XVII   - Mas não procedeu assim,
XVIII - A Autora não viu aí qualquer impedimento já que o veio a renovar sucessivamente o contrato inicial;
XIX    - Até ao ano de 2009 a Autora manteve em vigor o protocolo, tendo procedido a três renovações;
XX      - Assim, podemos concluir que o protocolo celebrado entre a CC e a Ré não tem uma gravidade tal que tenha constituído motivo para resolução contratual;
XXI    - A Autora pretende resolver um contrato com base num acto que a Ré praticou e que só a tem beneficiado;
XXII   - Autora assinou idêntico contrato e renovou-o pelo menos até ao ano de 2009, recebendo as contrapartidas financeiras inerentes;
XXÍIÍ - A determinado passo o Acórdão recorrido considera mesmo : " Se se tratasse desse simples facto, isto é de uma mera autorização para a colocação de publicidade numa das paredes do imóvel cedido, não parece realmente que, no circunstancialismo descrito, o mesmo pudesse assumir gravidade suficiente para por em causa a continuação do contrato";
XXIV - O próprio Acórdão acaba por desvalorizar o facto de a Ré ter assinado o contrato com a CC, referindo que em bom rigor não se chegou a efectivar, como de facto não chegou;
XXV   - Ou seja, o comportamento da Ré não é e tal forma grave que possa constituir motivo suficiente para a Autora promovera resolução contratual;
XXVI - E se não é relevante a assinatura do contrato, também não serão as declarações prestadas a elementos policiais, que não tem nem a dimensão nem o significado que se lhes pretende atribuir,
XXVII - Por um lado revelam o desconhecimento sobre o real proprietário do imóvel;
XXVIII          - Que nem tão pouco na dita Circular Informativa consta qualquer referência ao AA;
XXIX - Tal documento está impresso em papel da Confraria AA, e refere que o imóvel é da casa Episcopal do Porto;
XXX   - Afirmação que também não é correcta;
XXXI - E que se saiba não resulta dessa incorreção qualquer consequência jurídica, mas tão somente um desconhecimento sobre o verdadeiro e legitimo proprietário do imóvel;
XXXII            - Dessas declarações não resultam quaisquer efeitos de transmissão ou aquisição de propriedade;
XXXIII          - Que aliás a Ré nunca reclamou para si, seja a que titulo for;
XXXIV          - A acta da Direção n° 31 de 16.09.2002, limita-se a relatar que o assunto foi discutido e foi decidido saber se o prédio estava registado a favor de alguém, para a qual foi pedida a colaboração de um associado;
XXXV            - De 2002 a 2005 nenhum acto foi praticado pela Ré a reivindicar a propriedade do imóvel;
XXXVI          - A própria informação do associado veio a revelar-se enganadora já que apenas transmitiu que não existia qualquer registo do imóvel na Câmara, Conservatória ou Finanças;
XXXVII         - A Circular Informativa (contrato de comodato} é outorgada por EE, na qualidade de Juiz da Confraria do Santíssimo Sacramento e Bom Jesus de Gaia, que também nada tem a ver com o proprietário do imóvel;
XXXVIII - Em parte alguma desse documento se faz referência ao legítimo proprietário do imóvel;
XXXIX- Razão pela qual a Ré desconhecia;
XL - E só vem a tomar conhecimento com a carta que recebeu datada de 26 de Agosto de 2005, doe. 7 da petição inicial, onde pela primeira vez aparece a designação do proprietário;
XLI - Era pois desconhecido para a Ré a identificação do proprietário do imóvel, nem lhe era exigido que os soubesse;
XLII - Daí as declarações do representante da Ré ao afirmar que não existe qualquer registo a favor da Diocese, como de facto não existe, mas também desse facto não resulta qualquer consequência jurídica;
XLIII - Parece correcto o entendimento do Acórdão no que respeita à assinatura do contrato, e entende-se que por coerência de raciocínio o mesmo deveria resultar das declarações do representante da Ré, pois as mesmas mais não revelam do que desconhecimento sobre o proprietário do imóvel;
XLIV - Propriedade que a Ré nunca discutiu nem discute;
XLV - Assim, o facto de a Ré ter assinado contrato coma CC e ter declarado que era proprietária do imóvel não constituem justa causa para a resolução contratual;
XLVI - O douto Acórdão violou pois o disposto no art. 1140° do Código Civil;
XLVI1 - A autora pretende resolver o contrato de comodato com base num acto que a Ré praticou e que só a tem beneficiado;
XLVllI - Esta atitude da Autora de pretender a resolução do contrato com base no protocolo que a Ré assinou coma CC, protocolo que a própria Autora veio a outorgar posteriormente e do qual vem retirando benefícios económicos, configura uma situação de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium;
XLIX - Como aliás muito bem entendeu o Tribunal que proferiu inicialmente sentença;
L - Isto porquanto: "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito." - art.° 334° do Código Civil;
LI - A ré por seu lado nunca reclamou nem reclama qualquer contrapartida financeira;
LII - E por isso não se entende o Acórdão recorrido, quando afirma que não se pode censurar o facto de o Autor pretender receber a contrapartida financeira estipulada pela colocação da publicidade;
LIII - Reclama sim é peio facto de a Autora ter celebrado o contrato e recebida idêntica contrapartida, e pretender a resolução do contrato de comodato;
LIV - Ou seja exerce abusivamente um direito que lhe é legítimo;
LV - Legitimo porque enquanto proprietário tem toda a legitimidade para celebrar o contrato e receber a contrapartida, mas abusiva, porque se serve de contrato idêntico que a Ré celebrou para promovera resolução contratual;
LVI - Com o mesmo contrato pretende um efeito e outro absolutamente oposto, conf. Acórdão RL, 17-07-1986; CJ 1986, 4o, 134;
LVII - Com a procedência da acção a Autora retira um duplo benefício, outorga o contrato, recebe a contrapartida financeira, e faz cessar o contrato de comodato com a Ré por idêntico contrato que a Ré celebrou;
LVIII - Beneficia pela oposição à sua celebração, mas beneficia igualmente pela sua manutenção;
LIX - É uma situação manifestamente injusta, e tem plena aplicação a figura do Abuso de Direito;
LX - A sentença violou pois o disposto no art.° 334° do Código Civil;

Conclui, pedindo a substituição do acórdão recorrido por outro que absolkva a Ré do pedido de resolução do contrato de comodato.

Apreciação:

         Das 60 (sessenta) conclusões do recorrente emerge como objecto do recurso de revista a questão da justa causa de resolução do contrato de comodato que as instâncias, após a ampliação da matéria de facto ordenada pela Relação, entenderam existir e a Ré, recorrente, teima em considerar inexistente.

         Não se discute a qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes como comodato de coisa imóvel, o uso e as limitações convencionadas; apenas a qualificação dos factos apurados como justa causa de resolução.

         Flui da noção legal do art. 1129º CC que o comodato é um contrato que se analisa na entrega pelo comodante ao comodatário de uma coisa, móvel ou imóvel, “para que se sirva dela” e a restitua.

Para que se sirva dela” quer dizer para que a use; o comodato é um “empréstimo para uso” para determinado fim ou durante certo tempo.

Incidindo desde logo sobre um determinado objecto (espaço em caso de coisa imóvel coincidente, segundo as convenções das partes, total ou parcialmente com a área deste) – pode ser, portanto, limitado pelos fins (uso determinado) e pelo tempo.

Pelos fins, porque, como decorre do art. 1131º CC, estes podem resultar do contrato ou das respectivo circunstancialismo e, se tal não acontecer, o comodatário pode aplicar a coisa a quaisquer fins lícitos dentro da função normal das coisas de igual natureza; na verdade, o comodatário deve limitar o uso da coisa ao estipulado no contrato ou à sua natureza.

Refere, a propósito Ruggiero:

O uso, para o qual a coisa é dada, ou já ficou expressamente determinado ou deverá determinar-se com base na sua natureza e normal destino económico. Pode assim, consistir em todas as utilidades de que é susceptível ou só em alguma, conforme a vontade do comodante” (cfr. Instituições de Direito Civil, vol., 3, 1ª ed., 1999, Bookseller, Campinas, p. 484). Pelo tempo porque a duração do uso é, por sua própria natureza, temporário (prazo certo ou incerto).

Mas usar a coisa, servir-se da coisa, não se confunde com a fruição da coisa.

O uso é a utilização directa da coisa para aproveitamento imediato das suas aptidões naturais tendo em vista certos fins ou para satisfação de certas necessidades enquanto a fruição é a utilização da coisa como instrumento de produção (de frutos, proventos, etc), logo, como fonte de vantagens.

Com entendeu este STJ em acórdão de 12-07-1987 (Rel. Cons. Joaquim Figueiredo),

o direito de fruição refere-se ao poder de colher os frutos, naturais ou civis, das coisas” e “o direito de uso relaciona-se especialmente com o aproveitamento das suas utilidades

Ora, só por força de convenção expressa, o comodatário pode fazer seus os frutos colhidos (art. 1132º CC).

“Como regra, o comodatário apenas pode servir-se da coisa (art. 1129º), não lhe pertencendo os frutos por ela produzidos nem sequer cabendo no contrato as chamadas pertenças ou coisas acessórias, nos termos do art. 210º nº2” (cfr. Pires de Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol II1997, p. 747).

Se não lhe pertencem os frutos (a menos que tal seja expressamente convencionado…) o comodatário não pode apropriar-se deles nem colocar a coisa em condições de os produzir; a rentabilidade (aptidão para produzir rendimentos) pode ser efectiva ou potencial e se, naquela hipótese, o comodatário não pode apoderar-se dos rendimentos, nesta está-lhe vedado a prática de actos (jurídicos ou materiais) conducentes à concretização da rentabilidade potencial.

Assim, nem pode aproveitar os frutos (rendimentos) que a coisa produza nem celebrar negócios jurídicos com vista à sua produção, v.g., contratos de locação.

Ora, no caso em apreço, as partes convencionaram, entre outras, que o uso do espaço comodado não incluía a possibilidade de fazer publicidade nas portas exteriores e nas paredes dos espaços cedidos (cfr. MFA – G).

E mais: a comodatária ficou expressam4nte proibida de fazer tal publicidade.

Por elementar maioria de razão, deve entender-se que tal proibição envolvia a de celebrar contratos com vista à afixação de publicidade nessas partes do espaço.

Mais uma vez nas palavras de Ruggiero:

“Deve o comodatário servir-se da coisa só para o uso que se convencionou ou, na falta de convenção, para aquele que é determinado pela sua natureza (…). Se falta a esta obrigação, não só pode ser privado extemporaneamente da mesma coisa…” (cfr. ob cit., p. 486).

O que tudo beneficia de expressa previsão legal, porquanto, entre as obrigações do comodatário, se inclui a de não aplicar a coisa a fim diverso daquele a que se destina nem proporcionar a terceiros o uso da coisa, excepto se o comodante o autorizar (art. 1135º -c) e f) CC).

Por conseguinte, tendo sido expressamente convencionado, entre as limitações ao uso da coisa pelo comodatário, a proibição de afixar publicidade nas portas e nas paredes, há violação contratual se, contrariando tal proibição, a comodatária celebra contratos cujo objecto é a afixação de publicidade nesses locais, fazendo suas as respectivas contrapartidas monetárias.

Continuemos:

Mas não foi esta a única infracção contratual cometida pela Ré, recorrente.

Nesse contrato (de locação), ela, mera comodatária, arrogou-se a qualidade de proprietária do prédio, fazendo constar essa (pretensa) qualidade do documento que titulou tal contrato.

E, para além disso, voltou a intitular-se proprietário do prédio em informações prestadas a elementos policiais que se deslocaram ao local a pedido do Autor (Quesito 6ºA).

O contrato de comodato é um contrato gratuito que se funda em razões de cortesia, de favor ou gentileza do comodante para com o comodatário.

A concessão – escreve Ruggiero – é essencialmente gratuita, sendo feita para prestar a outrem um serviço e, assim, em regra, no interesse exclusivo de quem recebe”; daí que o comodato seja um daqueles contratos em que, nas relações normais da vida, menos se pensa que implique regras jurídicas, aparentando estar fora do campo do direito e ser dominado pelos costumes e pelos deveres de amizade (cfr ob cit, p.483).

Inexistindo contrapartida do comodatário correspectiva da vantagem de que beneficia, o comodato constitui, pois, aparentemente, um favor prestado pelo comodante ao comodatário.

É por isso que o facto de, contra a verdade por si sabida, o comodatário se arrogar, perante terceiros, proprietário do imóvel cujo uso lhe foi cedido configura grave violação da boa-fé que não pode deixar de ter consequências nas relações entre ele e o comodante, encaradas estas, não na perspectiva abstracta e tradicional de relação entre pessoas oneradas com deveres de prestação principal e os correlativos direitos de exigir tais prestações, tributários do conceito romano de “obligatio”, mas como conjunto concreto de direitos e deveres múltiplos e complexos que nasceram do mesmo facto jurídico, perspectivado este na sua unidade e funcionalidade.

Por outras palavras, encarando o comodato como uma relação obrigacional complexa que se concretiza

 “num conjunto ou num sistema de direitos subjectivos propriamente ditos e de deveres jurídicos, de direitos potestativos e de estados de sujeição, de excepções, de ónus e de expectativas jurídicas” (cfr. Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, p.49).

Com efeito, entre os deveres jurídicos originados pelo contrato, incluem-se os de prestação e os acessórios de conduta (laterais), correspondendo estes últimos a uma complementação do conteúdo obrigacional do contrato fundado no princípio da boa-fé e subdividindo-se estes em deveres de promoção do fim do contrato e em deveres de protecção.

Os deveres de promoção do fim do contrato têm por finalidade alterar a actual situação jurídica dos bens – atribuindo ao credor as vantagens e impondo ao devedor as desvantagens decorrentes do cumprimento -; os deveres de protecção têm por finalidade conservar a actual situação jurídica dos bens de ambos os sujeitos da relação obrigacional, tutelando-os contra ingerências externas lesivas na sua pessoa, na sua propriedade ou no seu património” (cfr. Pinto Oliveira, ob cit.-, p. 50, sublinhado nosso).

Concretizando-se, por sua vez, este segundo grupo de deveres de protecção em deveres de lealdade, deveres de consideração, deveres de notificação e de informação (com verdade), deveres de cuidado e consideração com a pessoa e património da outra parte, cuja eficácia se reflecte nas relações entre comodante e comodatário mesmo no caso de a conduta violadora haver tido lugar nas relações com terceiros.

Estes deveres laterais caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção da pessoa e dos bens da contraparte contra os riscos de danos concomitantes.

Escreveu, a propósito destes deveres laerais de protecção, o saudoso Prof Mota Pinto:

Servem, ao menos as suas mais típicas manifestações, o interesse na conservação ‘dos bens patrimoniais ou pessoais que podem ser afectados em conexão com o contrato (…), independentemente do interesse no cumprimento. Trata-se de deveres de adopção de determinados comportamentos, impostos pela boa fé em vista do fim do contrato (arts. 239.° e 762º), dada a relação de confiança que o contrato fundamenta, comportamentos variáveis com as circunstâncias concretas da situação. Na formulação de Larenz, identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contratantes honrados e leais” (cfr. Cessão da Posição Contratual, 1982, p.339-340).

E mais adiante:

Não tendem a realizar a prestação principal, mas a tutelar outros interesses da contraparte, coenvolvidos no interesse contratual, não implicando a sua violação o inadimple1llento ou a mora no cumprimento do dever de prestação, mas importando uma violação contratual positiva. Têm todos eles a missão de garantir a plena consecução dos interesses cuja satisfação constitui o fim do contrato, podendo incidir sobre uma acção ou um comportamento positivo (declaração, informação, cooperação com a contraparte, protecção desta, etc.) ou sobre uma omissão (abstenção de actos que importem consequências danosas para o objecto da prestação ou para a esfera jurídica pessoal ou patrimonial da contraparte ou, mais · genericamente, que envolvam qualquer perigo para a realização do fim contratual). 

A sua matriz é, como já afirmámos, a cláusula geral da boa fé (arts. 239° e 762º), ou seja, a regra de valoração da conduta das partes como honesta, correcta, leal; …” (cfr. ob cit, p. 342-345).

Por conseguinte, volvendo ao caso sub judice, se o comodatário, nas relações com terceiros, se assume como dono da coisa cujo uso lhe foi cedido sem qualquer contrapartida, infringe estes deveres de consideração e de cuidado com os interesses da contraparte e frustra a confiança que está na base desse contrato gratuito e que, por isso, deve a sua manutenção à subsistência dessa confiança; a traição ao favor é uma traição à confiança

Como facilmente se compreenderá, estes deveres laterais fundados na boa fé serão tanto mais intenso quanto:

a) a relação de confiança envolvida,

b) a colaboração exigida entre as partes e

c)  a duração da relação contratual.

E a violação dos deveres laterais impostos pela boa-fé contratual pode determinar a resolução do contrato se integrar justa causa.

Resta agora indagar as consequências, no caso em apreço, desta violação de deveres laterais de protecção.

Prescreve o art. 1140º CC que o comodante pode resolver o contrato se para isso tiver justa causa.

A justa causa será, assim, todo o facto susceptível de determinar a inexigibilidade ética e jurídica da subsistência do contrato; tal facto tanto pode consistir numa violação das obrigações legais do comodatário como numa violação de deveres laterais de protecção fundada na confiança e na boa-fé, estes naturalmente reforçados pela natureza gratuita do contrato.

No caso que nos ocupa, o Réu recorrente violou directamente a proibição contratual expressa de utilizar as portas exteriores e as paredes do espaço que lhe foi comodado para afixação de publicidade e, nas relações com terceiros, arrogava-se a qualidade de proprietário desse espaço, em total desconsideração pelos interesses do comodante.

Tal como as instâncias, também nós entendemos que, com tais factos, se mostra preenchido o conceito de justa causa para a resolução do contrato de comodato.

Objecta o recorrente com a falta de gravidade daquela violação, justificando-a com a necessidade de gerar fundos para prosseguir a realização dos seus fins, falta de gravidade essa que, aliás, teria sido reconhecida pelo Autor que teria celebrado um contrato de afixação de publicidade no mesmo local, pelo que a resolução do comodato configuraria abuso do direito.

Não lhe assiste, porém, razão.

Uso e fruição são realidades jurídicas diferentes: o Autor cedeu o uso, não a fruição…

Quer uma, quer outra integram o conteúdo do direito de propriedade e, cedendo o uso, o Autor conservou deste as faculdades incluídas na fruição (que, obviamente, não estivessem prejudicadas, designadamente no que concerne à dimensão espacial, pelas do uso…).

Aliás, as partes tiveram o cuidado de expressamente prever e proibir a utilização das paredes e portas exteriores para afixação de publicidade; tal proibição justifica-se por, por um lado, o Autor pretender “controlar” o conteúdo das mensagens publicitárias e, por outro, por não pretender proporcionar uma fonte de rendimentos - cuja aplicação na prossecução dos fins do recorrente não se questiona ser nobre - sem qualquer contrapartida.

O abuso do direito pressupõe um exercício excessivo do direito, por exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito, ou seja, visando vantagens injustificadas à luz dos princípios estruturantes da ordem jurídica (art. 334.º CC).

Por outras palavras, o abuso do direito surge, quando o seu titular o exerce sem nenhuma vantagem para si e com o propósito de causar prejuízo à contraparte.

A vantagem não tem que ser necessariamente patrimonial; pode ser também de natureza não patrimonial (e é, normalmente, desta natureza sobretudo nos contratos gratuitos – como é o  comodato) – relacionada com o reconhecimento do seu direito e da sua posição jurídica, comprometidos pelas infracções cometidas pela parte contrária.

Não é isso que ocorre no caso em apreço: num contrato que para ele era gratuito, baseado na confiança que o recorrido nele depositou, o recorrente violou, para além de obrigações legais (art. 1135º-f) CC) e contratuais (proibição de afixação de publicidade) também deveres laterais de respeito e consideração pelo recorrido (ao arrogar-se, perante terceiros, proprietário do local).

Logo, improcedem as conclusões da revista.


ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.


Lisboa, 05 de Julho de 2012

Fernando Bento (Relator)
João Trindade
Tavares de Paiva