Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9651/16.OT8LSB.L1. S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
ILICITUDE
Data do Acordão: 11/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO À REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I. As partes, em 2014, celebraram entre si um contrato de compra e venda, tendo por objeto a transmissão de uma convenção que permitira à autora, atender na sua clínica os doentes do Serviço Nacional de Saúde sem limitação geográfica, tendo o respetivo preço sido fracionado em prestações mensais e sucessivas, convencionando-se ainda deduzir os encargos de um contrato de leasing respeitante à aquisição de um ecógrafo, que seria igualmente cedido à autora.
II. A Ré, em 02.07.2015, depois de ter recebido 10 das 12 prestações acordadas e antes do vencimento das duas últimas, comunicou à ARS a desistência da transferência da titularidade da convenção para a Autora, inviabilizando, assim, definitivamente, o efeito pretendido pelas partes ao terem celebrado o contrato.

III. A Autora suspendeu o pagamento das prestações ajustadas entre as partes, apenas,  depois de, em 15-07-2015, ter recebido a comunicação da ARSLVT, notificando-a da desistência do pedido por parte da Ré, indicando-lhe expressamente o motivo dessa suspensão.

IV. Assim, não havendo incumprimento do contrato por parte da autora e muito menos perda do seu interesse, conclui-se que a resolução do contrato efetuada pela ré foi ilícita pois pôs termo ao contrato sem que para tal tivesse fundamento; ficando por isso obrigada a restituir à autora o valor das prestações recebidas em cumprimento desse contrato, que ascendem ao valor de € 34.074,15, acrescido de juros de mora.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça



A Autora/ Clínica Atlântida, Lda., instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra a Ré /Centro de Diagnóstico Por Imagem Dr. Mesquita Guimarães, Lda.

A Autora peticionou a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 34.074,15 a título de restituição dos valores pagos em cumprimento do contrato celebrado entre as partes, com fundamento no incumprimento da ré, bem como da quantia de € 5.000,00 a título de indemnização pelas despesas por si suportadas com a preparação do negócio, pelas expectativas frustradas com o referido incumprimento e pelos lucros cessantes atenta a impossibilidade de prestar cuidados de saúde na área da radiologia aos seus utentes, tudo acrescido de juros de mora; e, caso assim não se entenda, a condenação da ré a restituir-lhe a aludida quantia de € 34.074,15 com base no enriquecimento sem causa.

A Ré, em sede de contestação, alegou que sendo o incumprimento do contrato imputável à Autora, nada tem de lhe restituir, mas declarou, à cautela, pretender fazer valer a compensação por alegados prejuízos que lhe terão sido causados em montante igual ao do pedido.

O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação improcedente, o Tribunal da Relação julgou na procedência da apelação interposta pela autora, condenou a ré a pagar a esta a quantia de € 37.074,15, acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

A Ré, inconformada, interpôs recurso de revista, tendo elaborado as seguintes Conclusões:

1 – Não obstante o presente recurso ter por base a apreciação jurídica da questão, não pode a mesma dissociar-se da análise crítica dos factos dados por proados.

2 - Salvo o devido respeito, não assiste razão ao Douto Tribunal da Relação recorrido ao considerar que estamos perante um contrato definitivo e não um contrato promessa, considerando que o incumprimento foi da aqui Recorrida.

3 - A situação é ainda mais complexa, pois as partes (embora na sua disponibilidade e vontade) optaram por não reduzir a escrito os elementos do negócio.

4 - Não pode deixar-se de se considerar que estaremos no âmbito de um contrato-promessa tal como configurado ou no âmbito de uma figura contratual mais complexa com a existência de uma terceira parte.

5 - Não se pode sustentar a tese do Douto acórdão recorrido de que nenhuma das partes sequer configurou a possibilidade do contrato promessa ou aplicação das normas que o regem.

6 - O tribunal a quo não está vinculado à apreciação jurídica que as partes fazem da questão.

7 - A ora, Recorrente, na contestação (patrocinada por outro M. Ilustre Advogado que não a ora subscritora) nem sequer tece alegação de Direito.

8 - A Recorrida, e pese embora configure a situação no âmbito do incumprimento contratual na sua petição inicial, a verdade é que no artigo 57º, embora sem remeter para o regime jurídico do contrato promessa (como foi aplicado pela Douta sentença) até admite “No caso concreto, não só a R. não concluiu com o negócio, como deliberadamente cancelou todo o processo efetuado até então.”

9 - O “cancelamento do processo até ao momento” eram na verdade as obrigações decorrentes para a celebração do negócio final e contrato de transmissão definitivo, que teria de ser precedido de licenciamento e aprovação pelas autoridades públicas competentes.

10 - Resulta claro que o alegado incumprimento a que se refere é a celebração do negócio definitivo, como bem interpretou de Direito a Douta sentença do tribunal de primeira instância.

11 - Não pode colher a tese defendida pelo Douto acórdão recorrido que indica que o contrato se tornou “perfeito” do ponto de vista jurídico quando as partes acordaram a transmissão, o preço e o pagamento em prestações.

12 - A aqui Recorrente nem sequer tinha a disponibilidade de contratação e transmissão da convenção celebrada com o Serviço Nacional de Saúde, resultando claro isso do facto de que, após as partes terem alcançado acordo sobre a transmissão, preço e forma de pagamento, enviaram uma carta conjunta à Administração Regional da Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT) a expor a intenção de transmissão.

13 - Mesmo com o parecer favorável da ARSLVT, o negócio ainda não se podia sequer considerar perfeito.

14 - A Recorrida tinha ainda de proceder a todo o licenciamento das instalações e equipamentos por forma a permitir que fosse transmitida a convenção pela ARSLVT, sem o qual nunca seria aprovada a transmissão da convenção celebrada com a ARSLVT.

15 - Este é o elemento determinante para se concluir pela celebração de um contrato promessa e não por um contrato definitivo.

16 - O licenciamento de instalações e de equipamentos médicos não se trata de procedimentos acessórios posteriores administrativos, são elementos necessários, obrigatórios e essenciais para que possa ocorrer essa transmissão.

17 - Consta do website da ARSLVT os procedimentos para a efetivação dessa transmissão, podendo ser consultado em http://www.arslvt.min-saude.pt/pages/384. E é público e claramente visível dessa informação disponibilizada que, na especialidade de radiologia, essa possibilidade de transmissão está dependente de licenciamento específico.

18 - Foi por não existir ainda o licenciamento necessário que não foi celebrado o contrato final, mas sim um contrato promessa.

19 - É essa a essência do recurso ao instituto do contrato promessa: as partes por um motivo ou outro não estão ainda em condições de celebrar o contrato definitivo, mas pretendem vincular-se às obrigações de forma a garantir a celebração do negócio definitivo.

20 - A Recorrida não tinha ainda o licenciamento que lhe permitisse ver aprovado pela ASRLVT a transmissão da convenção, mas pretendia garantir a celebração do negócio definitivo.

21 - E foi nesse intuito que foi acordado um pagamento parcelado que, nos termos do disposto no artigo 441º do Código Civil, todas as quantias entregues assumem o carácter de sinal.

22- Mesmo que as partes lhe deem denominação distinta, falando em pagamento em prestações, o que foi prestado pela ora Recorrida foi o pagamento do sinal e reforço de sinal que constituiria o pagamento do preço acordado na transmissão definitiva.

23 - Não pode o Douto acórdão recorrido caracterizar como “deveres contratuais acessórios ao negócio” e “condições administrativas indispensáveis” a obtenção de licenciamento e todo o processo posterior de transmissão junto da ARSLVT, pois esta entidade não é somente uma entidade administrativa de licenciamento, é a detentora dos direitos e deveres decorrentes da convenção originalmente celebrado com a aqui Recorrente.

24 - O negócio acordado entre a Recorrente e Recorrida é quase de natureza híbrida, configurando até alguns aspectos de uma cessão de posição contratual.

25 - A ora Recorrida tem celebrada uma convenção com a ARSLVT que lhe confere um determinado número de direitos e deveres e vai transmitir essa “posição contratual” a favor da Recorrente, e é a ARSLVT, numa qualidade de “cedida” que apresenta um parecer favorável à cedência da posição contratual.

26 - E é esta entidade que fiscaliza igualmente se estão reunidas as condições (licenciamento) para que possam ser transmitidas os direitos e deveres que constam na convenção celebrada entre a ARSLVT e a Recorrida.

27 - Poderia até colocar-se a possibilidade de as partes terem pretendido celebrar um negócio sob condição, seguindo o regime jurídico previsto nos artigos 270ª e seguintes.

28 - A condição é uma cláusula acessória típica, um elemento acidental do negócio jurídico, pela qual a eficácia de um negócio (o conjunto dos efeitos que ele pretende desencadear) fica dependente de um acontecimento futuro e incerto, pelo que só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir (condição resolutiva).

29 - A razão de ser da estipulação condicional resulta da incerteza do declarante de alcançar os fins a que se propõe com o negócio, porquanto, embora seja provável que venham a ser alcançados, não está afastada a dúvida sobre a sua futura verificação, uma vez que, na sua perspetiva, a finalidade a que se dirige o negócio depende de circunstâncias futuras que ele não domina e se lhe afiguram de verificação incerta.

30 - As partes obrigaram-se à celebração do negócio definitivo, pretendiam fazê-lo sem qualquer condição, somente não estavam ainda em condições de o formalizar, pois estavam dependentes de uma entidade terceira (ARSLVT); as partes pretenderam obrigar-se a todos os elementos do negócio, com vista a garantir o seu cumprimento futuro, quando estivessem em condições de o formalizar.

31 - Na maioria das vezes, o contrato definitivo mais não é que uma reprodução de todos os termos já acordados e estipulados no contrato-promessa.

32 - Com todo o devido respeito, não pode o Douto acórdão recorrido fazer-se valer da inexistência de referência nos temas de prova à existência do contrato promessa ou contrato definitivo, pois na verdade a mesma resultou de toda a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente das declarações de parte dos representantes legais de ambas as partes.

33 - Mesmo que os contraentes não apelidem ou denominem determinado acordo ou contrato nos contratos típicos previstos pela nossa lei substantiva, desde que resulte dos factos que as cláusulas acordadas ou vontade das partes se subsume a determinada figura jurídica (no caso, o contrato promessa), pode e deve o Juiz aplicar o regime jurídico aplicável ao diferendo.

34 - E mal andou assim o Douto acórdão recorrido ao determinar que o incumprimento ocorreu por parte da aqui Recorrente.

35 - Ficou patente e resulta dos factos dados por provados que a Recorrida estava obrigada a obter licenciamento do local e dos equipamentos e nunca o fez, por sua culpa exclusiva, pelo que inexistindo este licenciamento a celebração efetiva da transmissão da convenção nunca poderia ser celebrada e aprovada pela ARSLVT.

36 - A existir incumprimento o mesmo ocorreu por parte da Recorrida e por sua culpa exclusiva, por factos que somente lhe são imputáveis.

37 - Contrariamente ao que é referido no Douto acórdão referido, resulta dos factos dados por provados e da prova produzida que existiu perda do interesse por parte da Recorrida, bem como foi recebida por esta a interpelação admonitória por parte da aqui Recorrente.

38 - Contrariamente ao decidido no Douto acórdão recorrido, não estamos perante um contrato definitivo, mas sim perante um contrato promessa de compra e venda, sendo de aplicar o regime previsto nos artigos 410º e seguintes do Código Civil.

39 - Tendo existido incumprimento da parte da ora Recorrida, e interpelação admonitória para o cumprimento, sem que tal tenha ocorrido, tinha a Recorrente direito a resolver o contrato promessa, como fez e accionar o regime do sinal previsto, fazendo suas as quantias prestadas.

40 - A Recorrente tem direito ao accionamento do regime do sinal previsto no artigo 442º do Código Civil, ou seja, pode fazer seu o valor do sinal entregue (artigo 442º, nº 2, primeira parte, do Código Civil), no montante de €34.074,15, não havendo lugar ao pagamento de qualquer outra indemnização (artigo 442º, nº 4 do Código Civil).

41 - Mal andou o Douto acórdão ao não aplicar as normas que regem o contrato promessa e o regime do acionamento do sinal, previsto nos artigos 410º e seguintes e 440º e seguintes, todos do Código Civil.

42 - Ao não aplicar estas normas jurídicas ao caso concreto, padece o Douto acórdão do erro de aplicação da norma jurídica e erro na determinação na norma jurídica aplicável.

43 - Aplicando-se o regime jurídico do contrato promessa, tal como aqui se configura, sempre a decisão deverá ser diferente, revogando-se o acórdão recorrido, e absolvendo-se a Recorrente do pedido.


A Autora/Recorrida, em sede de contra-alegações, pugnou pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.


Fundamentação


Face às conclusões do recurso interposto que delimitam o objeto do recurso, as questões suscitadas são as seguintes:

 Qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes;

 Direito à resolução do referido acordo por parte da Ré/Recorrente.

Fundamentos de facto

Foram considerados provados os seguintes factos:

1.A Autora é uma sociedade por quotas, cujo objeto consiste em consultas médicas de todas as especialidades, serviços de enfermagem, exames de diagnóstico, imagiologia, raio X, análises, ecografias, e outros exames similares, e representação de materiais médicos e cirúrgicos.

2. No ano de 2014, em data anterior a Setembro, entre a Autora e a ora Ré, foi celebrado um acordo verbal cujo objeto consistiu na aquisição por parte da Autora e consequente transferência de titularidade para a mesma de uma Convenção detida pela Ré com o Serviço Nacional de Saúde na área da Radiologia, que permitia que todos os seus beneficiários, sem limitação geográfica, aí pudessem ser atendidos.

3. O preço acordado foi de € 45.000 a que seria abatido o montante das rendas e encargos que estivessem em dívida num contrato de leasing respeitante à aquisição de um ecógrafo pela Ré que seria, igualmente, cedido para a Autora.

4. Em Setembro de 2014, ficou definido que o valor do ecógrafo a abater ao preço da Convenção ascendia a € 5.191,69.

5. Em conjunto, por carta datada de 30 de junho de 2014, pela Autora e pela Ré, foi solicitado parecer prévio à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (“ARSLVT”) para a transferência da titularidade da Convenção da Ré, bem como para a mudança do local da convenção, para a Autora.

6. Em 23 de Setembro de 2014 a Autora recebeu por parte da ARSLVT - ofício DPC/Convenções 16043/DPC/2014 com data de 12 de Setembro de 2014 – a informar a emissão de parecer favorável para que a mudança de instalações e de titularidade da convenção, no âmbito da Radiologia, detida pela Ré, fosse efetuada.

7. Como a Autora não detinha um consultório de radiologia licenciado para o efeito teria que apresentar um conjunto de requisitos formais e materiais para que pudesse ser licenciada e, assim, ser aprovada a transmissão da Convenção.

8. Neste seguimento, a Autora adaptou o espaço, sito na Urbanização …, lote .. – Bloco .., …. e para o efeito praticou atos de construção civil e adquiriu diversos equipamentos.

9. E diligenciou no sentido de apresentar a documentação necessária a fim de preencher os requisitos necessários para a mencionada transferência de titularidade e localização da Convenção em causa.

10. Previsivelmente, a Autora deveria iniciar a sua atividade no início de 2015, porém não conseguiu licenciar as suas instalações, pelo menos, até final do ano de 2016, razão pela qual, até ter o licenciamento aprovado, não poderia explorar a Convenção.

As partes acordaram que o preço da Convenção seria liquidado em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas.

11. As prestações deveriam ter o seu início com a comunicação da emissão de parecer favorável por parte da ARSLVT e as demais na mesma data dos meses subsequentes.

12. A primeira prestação foi paga pela Autora em 31 de Outubro de 2014 e a 10ª prestação em 22 de Junho de 2015, no valor de € 3.334,00 cada uma, tendo efectuado um pagamento de € 734,15 em 13 de Julho de 2015.

13. Por e-mail de 23 de Junho de 2015 remetido pela Autora à Ré[1], datado de 23 de Junho de 2015, pode ler-se “Quando lhe enviei o e-mail no dia 15 de junho tinha enviado para o Banco uma transferência de €3.334 que pelos vistos não saiu da conta. […] Essa prestação que deveria ter sido a 10ª foi então hoje efetuada conforme anexo. Fica então liquidada a quantia de €33.340. Para o valor acordado de €40.000 fica em falta €6.660. Deduzindo o valor do Banco Popular de €5.191,69 o valor em dívida nesta data são €1.468,31.”.

14. Por e-mail de 24 de Junho de 2015, a Ré responde à Autora: “…Tem até sexta-feira 26 do corrente mês para pagar tudo o que falta para os €45.000. Se não o fizer acabou-se. Está fora de questão continuar a aturar esta vontade contumaz de enganar. Será comunicado à ARS a anulação da cedência.”

15. Em resposta, a Autora responde: “… bem sabe que o valor acordado para a transação foram €40.000 … muito me surpreende que agora tenha aumentado ou se tenha esquecido do valor acordado, e pretenda sob ameaças, com a ARS, que a Clínica Atlântida lhe deva pagar mais €5.000.”.

16. Por e-mail remetido pela Ré à Autora, datado de 28 de Junho de 2015, pode ler-se: “… Nos e-mails que lhe enviei sempre sublinhei que estava a fazer confusão. O valor era de €45.000. […] A convenção só não está a render há muito tempo porque o Sr. (por motivos que desconheço e com os quais não tenho nada a ver) não fez andar o processo. Todo este texto foi escrito porque não quero, mais uma vez, provocar nenhuma ruptura sem tudo ter feito para a evitar. Mas reitero o afirmado no meu último e-mail. Ou paga tudo o que deve (€40.205,25€33.340=€6.865,25), ou seja, €6.885,25 ou como lhe disse acabou-se. Tem até ao dia 30 deste mês para o dinheiro estar na conta.”.

17. Por carta datada de 2 de Julho de 2015, a Ré comunicou à ARS a desistência da transferência da titularidade da Convenção para a Autora.

18. Em 18 de Julho de 2015, a Autora responde à Ré por e-mail “…mesmo que não concordemos iremos pagar-lhe os €6.131,10 que exige e refere no mail anterior até ao final do mês”.

19. A Autora recebeu em 15 de Julho de 2015 uma carta enviada pela ARSLVT – ofício 11387/DPC/2015, datado de 10 de Julho de 2015, a notificá-la da desistência do pedido de transferência da Convenção por parte da Ré.

20. Em face da notificação que antecede a Autora comunicou à Ré que suspendeu a última transferência para pagamento do preço, solicitando a devolução do dinheiro pago.

21. A partir da comunicação à tutela da intenção de transferência da Convenção, a Ré deixou de poder rentabilizá-la a seu favor.

       Fundamentos de direito


 Qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes

As instâncias qualificaram de modo diverso o acordo celebrado entre as partes. O tribunal de 1.ª instância entendeu que se estava perante um contrato-promessa de compra e venda, incumprido definitivamente pela Autora e que, por força do regime do sinal previsto no artigo 442.º do CC, assistia à Ré o direito a fazer suas as quantias entregues, julgando totalmente improcedente a ação.

O tribunal da Relação entendeu que se estava perante um contrato de compra e venda e que não tendo a Ré obedecido às exigências constantes dos artigos 432.º, n.º 1, e 808.º, n.º 1, do CC, procedeu à sua resolução unilateral e ilícita, devendo, como tal, restituir à Autora as quantias recebidas, razão pela qual na procedência da apelação, condenou a Ré a pagar à autora a quantia de € 37.074,15[2], acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.

A Recorrente alega, em síntese, que o tribunal não está vinculado à apreciação jurídica feita pelas partes nem à denominação que os contraentes conferem a determinado acordo. Daí que, resultando dos factos apurados que a vontade das partes se subsume à figura jurídica do contrato-promessa, deve ser esse o regime jurídico a aplicar.

Vejamos então

Se é verdade que o tribunal não está vinculado à denominação que as partes tenham atribuído a determinado acordo, não é menos certo que a qualificação jurídica de um acordo tem de estar configurada na factualidade dada como provada. Com efeito, ressalvadas as exceções expressamente previstas na lei – o STJ limita-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelas instâncias, como decorre do disposto no artigo 682.º, n.º 1 do CPC.

Desde já se adianta que, como bem se refere no acórdão recorrido, a qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes, no sentido de se estar perante um contrato-promessa de compra a venda, não tem apoio na matéria de facto dada como provado.

Designa-se por contrato-promessa a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato (artigo 410.º, n.º 1, do CC). Ao contrato a cuja futura realização as partes, ou apenas uma delas, ficam adstritas, dá-se o nome de contrato prometido. Tal convenção cria, assim, a obrigação de contratar ou, mais concretamente, a obrigação de emitir uma declaração de vontade correspondente ao contrato prometido e, portanto, uma prestação de facto positivo, à qual corresponde, para a contraparte, um direito que se traduz numa verdadeira pretensão.

A distinção entre o contrato-promessa e o contrato prometido nem sempre é fácil, podendo, na prática, suscitar dificuldades pelo que a presente qualificação esteja, essencialmente, dependente do apuramento da vontade dos contraentes, revelada pelas declarações que integram o acordo firmado, as quais devem ser interpretadas à luz das regras ínsitas nos artigos  236.º e ss. do CC. 

No caso, contrariamente ao sustentado pela Recorrente, da factualidade apurada, à luz das referidas regras de interpretação, não resulta a conclusão de que as partes pretenderam celebrar um contrato-promessa, mas antes que celebraram um contrato definitivo pois acordaram entre si todos os termos do negócio:

 O objeto – que consiste na aquisição pela Autora de uma convenção detida pela Ré com o Serviço Nacional de Saúde, doravante SNS, na área da Radiologia, e na consequente transferência da titularidade dessa convenção.

 O preço - € 45.000,00 deduzido do valor das rendas e encargos de um contrato de leasing respeitante à aquisição de um ecógrafo, que seria igualmente cedido à autora, valor esse que fixaram logo em € 5.191,69.

O modo de pagamento - que fracionaram em prestações, iguais, mensais e sucessivas, definindo igualmente o seu número e o respetivo vencimento – cf. factos provados sob os pontos 2., 3., 4., 11. e 12.

Com efeito, da factualidade apurada não resulta que as partes se tenham obrigado a celebrar no futuro um qualquer  contrato, para que houvesse contrato-promessa seria necessário que do acordo celebrado entre elas tivesse resultado a obrigação futura de contratar (artigo 410.º, n.º 1, do CC).

Conforme tem afirmado o STJ, em situações similares, o contrato-promessa distingue-se do contrato definitivo por nele as partes se obrigarem a celebrar futuramente o contrato prometido, enquanto no contrato definitivo, com a sua outorga, se extingue a vontade negocial, ficando a composição dos interesses definida em termos contratuais, sem necessidade de as partes terem de voltar a acordar em nova convenção para dirimir aquela composição de interesses[3]; e ainda no mesmo sentido: Não pode ser qualificado como contrato-promessa aquele que consta de documento escrito e cujas cláusulas não fazem qualquer referência à obrigação de futura celebração de um contrato, apontando apenas no sentido da imediata vinculação das partes aos efeitos jurídicos próprios de certo contrato (artigos 410, n.º 1 e 238, n.º 1, do CC).[4]

Deste modo, não merece censura o acórdão recorrido quando afirma que o acordo ajustado entre as partes se tornou imediatamente vinculativo e perfeito no exato momento em que as partes acordaram entre si, no âmbito da liberdade contratual, a transmissão  da convenção referida, estipulando o preço global devido e fracionando o respetivo pagamento em prestações mensais certas e com vencimento determinado.

No caso, a possibilidade de uma entidade privada prestar cuidados de saúde em articulação com o SNS aos beneficiários deste encontrava-se prevista na Lei de Bases da Saúde (aprovada pela Lei n.º48/90, de 24-08)[5] e estava expressamente regulamentada pelo DL n.º 97/98, de 18-04[6]. Neste último diploma, definia-se convenção como sendo um contrato de adesão celebrado entre o Ministério da Saúde, através da Direcção-Geral da Saúde, ou as administrações regionais de saúde e as pessoas privadas, singulares ou coletivas, que tenham por objeto a prestação de cuidados de saúde, em articulação com o Serviço Nacional de Saúde, integrando-se na rede nacional de prestação de cuidados de saúde (artigo 3.º, al. a), do DL n.º 97/98, de 18-04).

Ora, foi a posição que a Ré ocupava nesse contrato – que lhe permitia prestar serviços de saúde, na área da Radiologia, aos utentes do SNS, sem limitação geográfica, mediante contrapartida pecuniária que, por sua vez, o SNS lhe entregava –  que a Ré  se obrigou transmitir à Autora, sendo que tal possibilidade se encontrava prevista, à data, no ponto 2., al. a), do Despacho n.º 13380/2012, de 04-10, publicado no DR, II Série, de 12-10-2012[7], estando dependente de autorização da Administração Regional de Saúde.  Ora, como resulta da factualidade apurada, as partes solicitaram à ARS parecer prévio para celebração do negócio da transferência da titularidade da referida convenção da Ré para a Autora e ainda para mudança das instalações nos quais os serviços passariam a ser prestados e obtiveram parecer favorável, tendo inclusive acordado que o pagamento das prestações em que fracionaram o preço global do negócio se iniciaria com a comunicação da emissão desse parecer favorável - factos 5 e 12.

Com efeito, tal pedido de parecer prévio e a necessidade da Autora cumprir determinados requisitos administrativos relacionados com o licenciamento das instalações onde prestaria os serviços de saúde aos utentes do SNS, não transformam o contrato celebrado entre as partes num contrato-promessa pois a necessidade de obtenção do citado parecer, tal como a necessidade da Autora licenciar o seu consultório ou clínica para a prática da Radiologia – área na qual a convenção estava autorizada a operar – não alteram as obrigações a que as partes ficaram adstritas por força do acordo celebrado,  pois mesmo que a ARS viesse, a posteriori, a opor-se à cedência da transmissão em causa, os outorgantes manter-se-iam válida e eficazmente vinculados, nos precisos termos em que contrataram, subsistindo entre si os efeitos obrigacionais decorrentes do acordo firmado. Na verdade, a exigência do pagamento das prestações por parte da Ré constitui a demonstração clara que a transferência se havia efetivamente operado e que a  fase do pagamento parcial do preço convencionado se completava com a totalidade da contrapartida negociada.

Improcede assim a pretendida qualificação jurídica no sentido de estar em causa um contrato-promessa.

 

Direito à resolução do acordo celebrado por parte da Ré

Assente que está que as partes celebraram um contrato de compra e venda, será luz do regime legal e convencional desse contrato que se aferirá se as obrigações dele decorrentes foram incumpridas pela Autora e se, consequentemente, assistia à Ré o direito de resolver o negócio.

Como já referiu, do contrato celebrado resultou para a Autora a obrigação de entregar à Ré o preço ajustado entre as partes – de € 45.000,00, deduzido do valor das rendas e encargos do contrato de leasing de um ecógrafo, que as partes definiram, logo em Setembro de 2014, como sendo de € 5.191,69 –, dividido em 12 prestações mensais, iguais e sucessivas, tendo o seu início com a comunicação da emissão de parecer favorável por parte da ARSLVT - cf. factos provados sob os pontos 3., 4., 6., 11. e 12.

Resulta, assim, da factualidade provada – considerando o preço de € 39.808,31 (€ 45.000,00 - € 5.191,69) – que a Autora teria de entregar à Ré, em cumprimento do acordado, 12 prestações de € 3.317,36, cada uma, prestações essas que se venceriam de Setembro de 2014 até Agosto de 2015.

Em 22 de Junho de 2015, a Autora procedeu ao pagamento da 10.ª prestação no valor de € 3.334,00 (e, portanto, em valor até superior ao que seria devido em face dos termos do acordo celebrado), estando, portanto, paga, até essa data, a quantia total de € 33.340,00, quando, em conformidade com o ajustado entre as partes, deveria ter pago € 33.173,60 (10 prestações x € 3.317,36).

Por outro lado, a Autora poderia pagar o remanescente em falta para perfazer a totalidade do preço em mais duas prestações, que se venceriam, respetivamente, em Julho e em Agosto de 2015. Em consequência, inexistindo, em 24 de Junho de 2015, atraso ou mora por parte da Autora quanto ao remanescente do preço, inexistia fundamento legal para que a Ré, a propósito da divergência verificada entre as partes quanto ao montante total do preço devido, exigisse à Autora, como fez por e-mail de 24-06-2015 - facto n.º15, o pagamento, até 26-06-2015, de “tudo o que falta para os € 45.000,00”.

Independentemente da citada divergência, a Ré teria de ter esperado que as prestações se vencessem e apenas, nessa altura, caso verificasse que o montante estava aquém do acordado, por a Autora ter persistido em pagar um valor inferior, é que a  poderia ter interpelado para pagar o montante devido, em prazo razoável que lhe fixasse, de modo a converter a sua mora em incumprimento definitivo.  A mora apenas se converte em incumprimento definitivo através da chamada interpelação admonitória ou pela perda do interesse do credor, objetivamente apreciada, sendo, pois, pacífico que apenas o incumprimento definitivo legitima a resolução válida e eficaz do contrato como resulta dos artigos 432.º, e 808.º do CC[8].

Sucede, porém, que, tal como demonstra a materialidade assente, a Ré optou  por um caminho que não lhe era permitido; depois de ter recebido 10 das 12 prestações acordadas e antes do vencimento das duas últimas, logo em 02-07-2015, comunicou à ARS a desistência da transferência da titularidade da convenção para a Autora, inviabilizando, assim, definitivamente, o efeito pretendido pelas partes ao terem celebrado o contrato (cf. pontos 14. a 20.).

A Autora, apenas, suspendeu o pagamento das prestações ajustadas entre as partes depois de, em 15-07-2015, ter recebido a comunicação da ARSLVT, notificando-a da desistência do pedido por parte da Ré, facto este que comunicou a esta, indicando-lhe expressamente o motivo dessa suspensão.

Deste modo, pelas razões expostas, não havendo incumprimento do contrato por parte da Autora e muito menos perda do seu interesse (tanto mais que, mesmo depois das exigências da ré, carecidas de fundamento, a autora ainda lhe entregou por conta do preço o valor de € 734,15 – cf. facto provado sob o ponto 13.), concluímos que foi ilícita a resolução do contrato efetuada pela  Ré.

Assim, tendo sido a Ré que, com a descrita conduta, pôs termo ao contrato, sem que para tal tivesse fundamento, está a mesma obrigada a restituir à Autora o valor das prestações recebidas em cumprimento desse contrato (que ascendem ao valor total de € 34.074,15, acrescido de juros de mora), que, por culpa sua, ficou irremediavelmente comprometido - artigos 432.º, 801.º, 808.º, todos do CC.

Deste modo, improcedem os fundamentos invocados pela Recorrente pelo que o recurso de revista tem de improceder.


Decisão

Face ao exposto, acorda -se  em negar provimento ao recurso de revista e em consequência, confirma-se o acórdão recorrido, ainda que com a retificação do valor em que a Ré foi condenada a restituir à Autora de € 37.074,15 para € 34.074,15,  em face do manifesto lapso de escrita de que se deu conta.

Lisboa, 26 de novembro de 2020.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo art.º3 do Decreto-Lei n.º 20/2020 de 01 de maio), consigna-se que Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos, Maria dos Prazeres Beleza e Olindo Geraldes, votaram em conformidade, sendo assinado apenas pela relatora,

Maria Paula Sá Fernandes

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[1] E não “remetido pela Ré à Autora” como, por manifesto lapso, constava originalmente deste ponto.
[2] O valor de € 37.074,15 resulta de manifesto lapso, dado que resulta claramente da fundamentação ínsita no acórdão e bem assim dos factos provados que as quantias entregues pela autora à ré, que a Relação condenou a restituir, ascendem a € 34.074,15. É certo que nenhuma das partes pediu a rectificação, porém, tratando-se de evidente lapso de escrita, afigura-se que deve ser corrigido.
[3] Cf. Acórdão de 23-04-2013, Revista n.º 431/09.0TBVIS.C1.S1 - 6.ª Secção.
[4] Cf. Acórdão de 29-06-1999 (Revista n.º 456/99 - 1.ª Secção.
[5] Vigente à data do acordo em causa nos autos, entretanto, revogada pela Lei n.º 95/2019, de 04-09.
[6] Posteriormente revogado pelo DL n.º 139/2013, de 09-10.
[7] Tal despacho veio, posteriormente, a ser revogado pelo Despacho n.º 4424/2017, de 11-05, que veio simplificar as exigências para aceitação de alterações aos termos das convenções.
[8] Vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 26-03-2015, Revista n.º 125/05.6TBVFL - 7.ªsecçãohttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1da6dd3a0f04110f80257e140058f371?OpenDocument; de 03-05-2016, Revista n.º 5499/09.7TVLSB.L3.S1 - 6.ª Secção  e de 13-09-2016, Revista n.º 20/14.8TBPSR.E1.S1 -6.ª Secção, ambos com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel2016.pdf; de 22-05-2018, Revista n.º 1318/14.0TBABF.E1.S1 -1.ª Secção, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf; e de 10-12-2019, Revista n.º 4599/17.4T8AVR.P1.S1 - 1.ª Secção, com sumário disponível em
https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/04/civel_sumarios_2019.pdf.