Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1270/12.7TBALM-B.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
CONTRATO DE MÚTUO
QUITAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
CESSÃO
AÇÕES
CAPITAL SOCIAL
SOCIEDADE COMERCIAL
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, JULGADA EXTINTA A EXECUÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - A declaração do exequente/embargado na qual o mesmo (para além de declarar já ter recebido do executado/embargante todos os documentos necessários a tornar-se o legal proprietário das totalidades das ações e capitais sociais de determinadas sociedades) declara ainda “nada mais ter a receber ou a reclamar” do executado “seja a que título for” deve ser interpretada, na perspetiva de um normal declaratário, no sentido de considerar paga a dívida do executado para consigo (emergente de contrato de mútuo entre ambos anteriormente) que se venceria poucos meses depois.
II - E isto tendo-se em conta, atenta a demais factualidade dada como provada, a proximidade temporal do vencimento do mútuo, das negociações relativas à cessão das ações e da declaração de quitação, e o facto de não terem sido especificados na declaração quaisquer outros negócios de que resultasse para o executado qualquer outra obrigação de pagamento (o que não foi dado como provado ou sequer alegado).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



AA, por apenso à execução que lhe foi movida pelo exequente BB, deduziu oposição por embargos de executado.

Alegou para tanto e em resumo que o exequente nunca lhe emprestou qualquer quantia e que o documento por si assinado, que constitui título executivo, corresponde unicamente ao meio que o exequente encontrou de garantir que o investimento no negócio de aquisição do capital social de uma sociedade não seria um risco, concretizando o executado todos os atos de transmissão previstos, e que ambas as partes agiram com reserva mental na formalização do denominado "contrato de mútuo" o qual é nulo, e tendo o embargante cumprido todas as obrigações garantidas pelo denominado «contrato de mútuo», nada é devido ao exequente.

Terminou pedindo a procedência dos embargos e a condenação do embargado como litigante de má fé.

O exequente contestou os embargos refutando a versão do embargante e asseverando ter emprestado ao executado, em 21.12.2010, a quantia de € 50.000,00, que lhe foi entregue, sendo outorgada a escritura pública de mútuo, e não tendo o executado restituído a quantia emprestada no prazo convencionado.

Prosseguindo os autos, veio a ser proferida sentença, na qual a oposição à execução foi julgada improcedente.

Na sequência e no âmbito de apelação do executado/embargante, a Relação … (por unanimidade, mas com fundamentação essencialmente diferente), não obstante a alteração da matéria de facto a que procedeu, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.

   Inconformado, interpôs o embargante presente recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

1. Nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil (CPC), e conforme profusamente defendido pela jurisprudência, é admissível recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, se a fundamentação da decisão do Tribunal de Primeira Instância for substancialmente diferente da fundamentação adotada na fase de recurso pelo Tribunal da Relação, mesmo que ambas as decisões sejam no mesmo sentido (Vide Ac. do STJ de 30 Abr. de 2015 e Ac. do STJ de 19-02-2015 ambos acessíveis em dgsi.pt.).

2. No caso sub judice, não obstante ambas as instâncias terem decidido no mesmo sentido, cada uma delas o fez com fundamentações essencialmente diferentes, como admitido no próprio acórdão recorrido, quando a seu tempo refere: “ Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em, ainda que com diferentes fundamentos e havendo alterado a decisão sobre a matéria de facto, julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.” (sublinhados e realces nossos).

3. O Tribunal de primeira instância fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto que entendeu dar como provada e não provada, nos seguintes termos: (…)

«A convicção do Tribunal assentou na escritura pública de mútuo junta aos autos a qual se mostra corroborada com a prova testemunhal produzida.

Assim, a testemunha CC, notário, confirmou o conteúdo e a celebração da escritura pública relativa ao mútuo celebrado entre as partes.

A testemunha revelou conhecimento directo dos factos tendo as suas declarações merecido credibilidade.

As declarações da testemunha mostram-se concordantes com o teor do documento junto pelo exequente com o requerimento executivo o qual constitui o título executivo.

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para o conhecimento da causa.

Em relação aos factos não provados tal derivou da ausência de prova. Assim, sobre os factos alegados pelo embargante não foi produzida qualquer prova testemunhal. Em relação ao documento junto pelo embargante (declaração de quitação) o mesmo foi impugnado pelo embargado não tendo sido feita qualquer prova sobre a veracidade ou sobre o conteúdo e alcance do documento nos moldes alegados pelo embargante. Não resultou, pois, demonstrado o pagamento ou a conexão da dívida em causa com as relações societárias que se estabeleceram entre as partes.

De resto, o embargante não veio alegar a falsidade da escritura pública ou impugnar o seu conteúdo valendo a mesma, e enquanto documento autêntico, na sua plenitude. (…)» .

4. No domínio da motivação jurídica, o Tribunal de Primeira Instância enquadrou o caso dos autos no incumprimento do contrato de mútuo, ao abrigo do disposto nos artigo 406.º e 798.º do Código Civil, tendo considerado o embargante, ora Recorrente, como responsável pelo pagamento da dívida, acabando por concluir pela improcedência dos embargos, como segue: “No caso dos autos, atenta a factualidade considerada provada julgam-se os embargos improcedentes por não provados”.

5. O Tribunal da Relação, alterou a decisão sobre matéria de facto, tendo aditado novos factos e em suma elencado os seguintes factos como provados:

1) Em 21 de Dezembro de dois mil e dez, o exequente e o Executado, celebraram um contrato de mútuo mediante a outorga da escritura pública de mútuo junta sob o doc.1 e cujo teor se considera produzido.

2) O primeiro executado comprometeu-se a pagar ao exequente a quantia mencionada em 1.º, até ao dia 31 de Dezembro de 2011.

3) Datado de 09 de Agosto de 2001 e sob o título “Declaração” o exequente/embargado subscreveu o seguinte texto escrito:

“ para os devidos efeitos, os mais amplos em direitos admitidos incluindo o de servir de quitação, eu, BB, declaro que já recebi de AA, portador do NF ....., todos os documentos/títulos referentes às sociedades comerciais B....., S.A., W…, Limited e C ..., S.A., designadamente os necessários para me tornar o legal proprietário das totalidades das suas acções e dos seus capitais sociais, ademais declarando nada mais ter a receber ou a reclamar do acima referido senhor, seja a que título for”.

4) Em 15-7-2011 o Dr. DD comunicou ao exequente que o embargante que o encarregara de estabelecer as bases para a efectivação das cessões das acções detidas nas sociedades B..., SA e C..., SA e em 27-07-2011 o embargante comunicou ao exequente ter dado ordem ao Dr. DD para entregar acções de todas as empresas, bem como todos os documentos relativos às mesmas, acto que seria concretizado efectuado que fosse a quitação de dívida com o exequente ( doc. de fls. 43 e 44.v 45.v).

6. Na fundamentação de direito, o Tribunal da Relação debruçou-se sobre o valor da Declaração emitida em 09 de agosto de 2011 pelo embargado, ora Recorrido, mormente apreciou se a mesma comportaria uma renúncia abdicativa do exequente ao direito que lhe assistia à restituição do capital emprestado.

7. As diferentes instâncias, não obstante terem concluído pela mesma decisão, apreciaram-na à luz de diferentes factos e encontraram caminhos jurídicos essencialmente diferentes para sustentaram a mesma posição.

8. O Tribunal de Primeira Instância ao não ter admitido para efeitos de prova a declaração datada de 09 de agosto de 2011, nem os próprios e-mails trocados entre embargante e embargado, junto aos autos a seu tempo pelo embargante, ora Recorrente, não apreciou tais factos, nem os incluiu no seu raciocínio lógico-jurídico.

9. O argumentário da primeira instância incidiu tão e unicamente na celebração do contrato de mútuo e no seu incumprimento, tendo por essa via a sua fundamentação de direito sido através do incumprimento dos contratos e das obrigações, previstos nos artigos 406.º, 798.º e 804.º do Código Civil.

10. O Tribunal da Relação tendo alterado a decisão sobre a matéria de facto, incidiu toda a sua atenção e fundamentação na apreciação à luz dos factos aditados e dos documentos que considerou por válidos, por corretamente carreados para os autos, em especial a declaração datada de 9 de agosto de 2011, referindo que: “perante a declaração emitida pelo exequente, haverá que ponderar qual a sua abrangência recorrendo para o efeito ao disposto no artigo 236.º do CC, disposição diretamente aplicável aos negócios jurídicos e, por via do artigo 295.º do mesmo Código e nos termos por ele referidos, aos actos jurídicos”.

11. Toda a fundamentação do Tribunal da Relação assentou na interpretação do teor da declaração emitida em 9 de Agosto de 2011 pelo Embargado ao Embargante, ao abrigo do disposto no artigo 236.º do Código Civil, de modo a apurar se a referida declaração constituía designadamente remissão abdicativa, ao abrigo do disposto no artigo 863.º do Código Civil, tendo acabado por concluir que inexistia remissão abdicativa, e consequentemente mantendo a decisão da primeira instância.

12. O caso dos autos insere-se no teor do sumário do Acórdão do STJ de 5-11-2015, disponível em dgsi.pt o qual dispõe que: «I - A circunstância de ter havido dupla conforme no que respeita ao estrito segmento decisório, confirmando a Relação a sentença apelada, não inibe o acesso ao STJ quando tais decisões idênticas assentaram numa fundamentação essencialmente diferente, enquadrável no n.º 3 do art. 671.º NCPC (2013) – o que ocorre quando a decisão constante da sentença assentou em se não ter considerado provada determinada factualidade essencial, ao passo que – no acórdão proferido pela Relação – se alterou o julgamento da matéria de facto, considerando provado aquele facto essencial, baseando-se a improcedência da acção numa argumentação esgrimida no plano jurídico, por não preencherem os factos definitivamente provados a fattispecie normativa invocada pelo autor. (…).

13. Concatenadas as fundamentações da sentença da 1.ª instância e do Acórdão da Relação .., que a confirmou, e tendo presente que o conceito de "fundamentação essencialmente diferente", significa que a sentença e o acórdão recorrido tenham trilhado fundamentos diversos e heterogéneos, resulta claro enquanto a primeira instância não deu com provados um conjunto de documentos que circunstanciavam factos entendidos pelo ora Recorrente como essenciais à sua posição, o Tribunal da Relação veio considerar provada tal factualidade, mas interpretando-a juridicamente de modo diverso daquele do entendido pelo Recorrido.

14. Encontra-se preenchido o n.º 3 do artigo 671.º do CPC, pelo que deve ser admitido o presente recurso de revista.

15. O Recorrente não se conforma com o acórdão da Relação que julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, razão pela qual requer a sua apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, a fim de que sejam devida e corretamente interpretadas e aplicadas as normas substantivas civis ao caso sub judice, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 674.º CPC, e, por conseguinte, ver revogado o acórdão recorrido.

16. Entendeu o Tribunal Recorrido, mal, que aos elementos de facto dos autos não permitiram entender que a declaração emitida em 9-8-11 abrangesse também o capital em dinheiro que o embargante se obrigara a restituir até 31-12-2011, porquanto, segundo o seu entendimento, não ficaram demonstradas nos autos circunstâncias envolventes suficientes que permitam aferir que para um declaratário normal, colocado na posição do embargante, pudesse concluir que aquela declaração comportaria uma renúncia abdicativa do exequente ao direito que lhe assistia à restituição do capital emprestado, não se encontrando demonstrada a remissão, prevista no artigo 863.º do Código Civil.

17. Importa elencar os factos que foram dados como provados e os elementos de prova que após ter procedido à alteração da matéria de facto, tinha ao seu dispor o Tribunal da Relação, para enquadrar a vontade da declaração.

18. Assim, foram dados como provados os seguintes factos:

1 - Em 21 de Dezembro de dois mil e dez, o exequente e o Executado, celebraram um contrato de mútuo mediante a outorga da escritura pública de mútuo junta sob o doc.1 e cujo teor se considera produzido.

2 - O primeiro executado comprometeu-se a pagar ao exequente a quantia mencionada em 1.º, até ao dia 31 de Dezembro de 2011.

3 - Datado de 09 de Agosto de 2001 e sob o título “Declaração” o exequente/embargado subscreveu o seguinte texto escrito:

“para os devidos efeitos, os mais amplos em direitos admitidos incluindo o de servir de quitação, eu, BB, declaro que já recebi de AA, portador do NF ...., todos os documentos/títulos referentes às sociedades comerciais B...., S.A., W....., Limited e C...., S.A., designadamente os necessários para me tornar o legal proprietário das totalidades das suas acções e dos seus capitais sociais, ademais declarando nada mais ter a receber ou a reclamar do acima referido senhor, seja a que título for”.

4 - Em 15-7-2011 o Dr. DD comunicou ao exequente que o embargante que o encarregara de estabelecer as bases para a efectivação das cessões das acções detidas nas sociedades B...., SA e C..., SA e em 27-07-2011 o embargante comunicou ao exequente ter dado ordem ao Dr. DD para entregar acções de todas as empresas, bem como todos os documentos relativos às mesmas, acto que seria concretizado efectuado que fosse a quitação de dívida com o exequente ( doc. de fls. 43 e 44.v 45.v)

19. Como meios de prova constantes nos autos, deverá ter-se em conta para efeitos probatórios os e-mails trocados juntos aos autos, que não foram impugnados pelo recorrido, pelo que as declarações neles constantes são válidas, e por isso devem ser apreciadas e valoradas (como, aliás, veio a ser expressamente admitido pelo próprio Tribunal da Relação), a saber:

A) – E-mail com data de 15.07.2011, foi enviado por DD ao Exequente onde, para além do mais, consta o seguinte: (…)

(…) “no seguimento da sua mensagem telefónica e daquela hoje deixada junto do meu escritório pela sua secretária, gostaria de lhe transmitir que me encarregou o Dr. AA de estabelecer consigo as bases para efectivação das cessões das acções por este último detidas nas sociedades B....., SA e C....., SA.

Segundo me transmitiu o Dr. AA, as mesmas serão efectuadas para a sua pessoa, tendo apenas por contrapartida o reconhecimento por parte do Sr. Eng. BB que nada mais terá a receber, directa ou indirectamente (i.e. enquanto titular de participações sociais nas ditas sociedades ou outras) do Dr. AA, seja a que título for, aqui estando, pois, incluído o reconhecimento de dívida que o mesmo lhe fez de €50.000,00, cujo prazo de vencimento é o dia 31.12.2011.

Caso o Sr. Eng. Esteja de acordo com as premissas básicas que antecedem, informe-me disso mesmo, pois creio encontrar-me em condições de ultimar os documentos contratuais necessários, designadamente para efectivar as respectivas operações de cessão para a sua pessoa.”.

B) E-mail de 20.07.2011, com hora 09.41, remetido pelo Exequente ao Executado onde, para além do mais, consta o seguinte: (…)

“RESUMINDO O MAIS URGENTE:

Diga ao Dr DD para me dar as acções da C...., SA.

Envie um Mail ao EE (com cópia para mim) dizendo que as acções me pertencem na totalidade.” (…).

C) E-mail de 20.07.2011, com hora 12:01, remetido pelo Executado ao Exequente onde, para além do mais, consta o seguinte: (…)

“Caro Sr. Eng. BB,

Antes demais bom dia e espero que esteja bem de saúde. Devo apenas responder o seguinte ao seu email ;

- Dei ordem ao meu Advogado Dr. DD para entregar as acções de todas as empresas (o que implica claro uma comunicação ao Sr. EE a informar que o Sr. é o único titular após esta transferência de cotas) bem como todos os documentos relativos ás mesmas.

- Este acto só será concretizado no seguimento da quitação da divida com o Sr. Eng. BB.

Devo também informar o Sr. Eng. Apenas a titulo de curiosidade que informei no dia 02 de Junho 2011 que iria renunciar enquanto procurador da empresa C..... SA e que o acto oficial (tal como documento registado no ….. e que pode ser solicitado caso assim o entenda ao Sr. EE, no dia 15 do mesmo mês) assim sendo dissolveu-se a C..... Lda. no dia 09 de Junho e foi feita a minha renuncia oficial ás entidades competentes no dia 15 de Junho. Devo também informar que às autoridades Portuguesas de registo comercial tiveram de validar a competência da minha pessoa enquanto GERENTE da C.... Lda. para o acto e só depois efectuar a dissolvência. Claro que todo este processo foi acompanhado de muito perto e aconselhado juridicamente para que não houvesse ilegalidades nos processos.

Com os melhores cumprimentos” (…).

D) E-mail de 20.07.2019, com hora 14:16 remetido pelo Executado ao Exequente onde, para além do mais, consta o seguinte: (…)

“Caro Sr. Eng.,

Tal como anteriormente havia referido caso efectue a quitação da divida ser-lhe à entregue as cotas e documentos de todas as sociedades.

Relativamente ao BPI não tenho qualquer acesso mas sei que lá se encontra o valor de 10 K. Cumprimentos” (…).

20. Analisada a prova carreada nos autos, temos que em:

- 21 de Dezembro de 2010, foi celebrado entre recorrente e recorrido contrato de mútuo, pelo qual o recorrido mutuou a quantia de 50.000€ ao recorrente, a serem pagos por este até ao dia 31 de Dezembro de 2011;

- em 15 de julho de 2011, foi enviado pelo Dr. DD, na qualidade de representante do Recorrente, a propor ao recorrido a transmissão a seu favor das acções detidas pelo seu representado nas sociedades B...., SA e C...., SA, tendo como contrapartida por parte do Sr. Eng.º BB, ora Recorrido, que nada mais terá a receber, direta ou indiretamente seja a que título for, aqui estando incluindo, pois, o reconhecimento de dívida que o mesmo lhe fez, de 50.000€€, cujo prazo de vencimento é de 31.12.2011.

- em 20 de julho de 2011, surgem três diferentes e-mails: Um primeiro, pelo qual o Exequente ora Recorrido expressamente solicita ao Executado que este lhe faça a entrega das ações; e dois e-mails que configuram a resposta do Recorrente ao Recorrido, nos quais o Recorrente voltou a referir que a transmissão de ações só seria efetuada, tendo por contrapartida que a dívida que este tinha com o Exequente ora Recorrido se desse por extinta.

- em 09 de agosto de 2011 foi emitida a declaração dos autos pelo Recorrido;

21. Subsumindo a matéria dada como provada e a entendida pelo Tribunal da Relação como relevante para efeitos probatórios ao direito aplicável, verifica-se com toda a clareza que o email datado de 15 de julho de 2011, enviado pelo Dr. DD, consubstancia uma proposta de negócio, bilateral e sinalagmático, que consistia na transmissão das ações pelo Recorrente a favor do Recorrido, tendo como contrapartida a emissão de declaração de remissão de dívida dos 50.000€ por parte do Eng.º BB.

22. A referida proposta foi reiterada pelo Recorrente, por email datado de 20 de Julho de 2011, não existindo nenhum e-mail de negação ou contraproposta emitida pelo ora Recorrido, antes pelo contrário, já que no e-mail de 20 de Julho 2011 e na sequência da proposta reiterada pelo Recorrente, o Recorrido afirma “ Diga ao Dr. DD para me dar as acções da C..., SA.”

23. Existiu uma aceitação direta da proposta, por banda do Recorrido.

24. Mesmo que o teor do e-mail de 20 de Julho de 2011, enviado pelo Recorrido ao Recorrente, não seja entendido como uma aceitação expressa, o que só por dever de patrocínio se coloca, terá que ser entendido como tendo ocorrido uma aceitação tácita, pois toda a conduta das partes seguinte à troca deste e-mail foi no sentido de ser cumprido o negócio proposto pelo Recorrente e aceite pelo Recorrido (vide Ac.do STJ de 09.12.2008).

25. Na declaração, datada de 09 de agosto de 2011, de recebimento por parte do Recorrido das ações, foram utilizadas expressões iguais às referidas nas negociações constantes no e-mail de 15 de julho de 2011.

26. Confrontado o teor do e-mail enviado em 15 de Julho de 2011 pelo Dr. DD e o teor da própria declaração emitida pelo Recorrido, é inquestionável que o mesmo estava a cumprir a proposta nele constante, já que a mesma utilizou a expressão aposta no email: “tendo apenas por contrapartida o reconhecimento por parte do Sr. Eng. BB que nada mais terá a receber, direta ou indiretamente do Dr. AA, seja a que título for.

27. A emissão da declaração datada de 09 de agosto de 2011, foi emitida pelo Recorrido em contrapartida do recebimento das ações e constitui a aceitação tácita por parte do Recorrido da contrapartida proposta pelo Recorrente para a respetiva entrega das ações pretendida pelo Recorrido.

28. Concatenando as declarações efetuadas pelo Recorrido no documento de declaração, com as comunicações eletrónicas trocadas entre as partes e que a antecederam, é por de mais evidente que o sentido a retirar da declaração efetuada pelo Recorrido só pode ter sido a de abdicar da dívida dos 50.000€, dado que a mesma era a condição sine qua non proposta pelo Recorrente para a entrega das ações, e o seu teor é igual ao constante na proposta ínsita no e-mail datado de 15 de Julho de 2011 e enviado pelo Dr. DD ao Recorrido, que a seu tempo refere: “Segundo me transmitiu o Dr. AA, as mesmas serão efetuadas para a sua pessoa, tendo apenas por contrapartida o reconhecimento por parte do Sr. Eng. BB que nada mais terá a receber, directa ou indirectamente (i.e. enquanto titular de participações sociais nas ditas sociedades ou outras) do Dr. AA, seja a que título for, aqui estando, pois, incluído o reconhecimento de dívida que o mesmo lhe fez de €50.000,00, cujo prazo de vencimento é o dia 31.12.2011.”

29. Este é sentido da declaração que um qualquer declaratário, um declaratário normal, mediamente informado dela extrairia.

30. Estamos na presença, em simultâneo, de duas figuras jurídicas: a dação em pagamento por parte do recorrente e a remissão por parte do recorrido, ambas causas da extinção das obrigações, nos termos dos artigos 837.º e 863.º do Código Civil.

31. No entendimento de Vaz Serra a dação em cumprimento envolve sempre a remissão.

32. A remissão é uma das causas de extinção das obrigações, prevista no artigo 863.º do Código Civil.

33. Para ocorrer a remissão é fundamental que a declaração negocial tenha precisamente carácter remissivo, ou seja, que com ela a parte credora declare, sem margem para dúvidas, que renuncia à prestação em dívida pelo devedor, e que o devedor preste o seu consentimento.

34. A lei não exige que o consentimento do devedor seja prestado de forma escrita, estando, por isso, sujeito às regras gerais sobre as declarações negociais (cfr. os artºs 217º, 218º e 234º do CC).

35. A declaração negocial de remissão por parte do credor pode ser expressa ou tácita. (vide Ac. da Relação de Lisboa de 22.09.2009).

36. Das declarações prestadas pelas partes, nos e-mails entre ambas trocados, verificamos que foi o ora Recorrente que propôs a remissão da sua dívida no valor de 50.000€, como contrapartida da entrega das ações para o Recorrido e que o mesmo a aceitou.

37. Caso não seja entendido que a declaração emitida pelo Recorrido seja uma declaração expressa de remitir a dívida, resulta dos autos, pelos emails trocados entre as partes, uma clara manifestação tácita da sua vontade, de acordo com o entendimento constante no Ac. da Relação de Lisboa de 22.09.2009 e no acórdão do STJ de 12-03-2008.

38. Dúvidas não existem que a declaração emitida pelo Recorrido tem de ser interpretada à luz dos teores dos e-mails trocados entre Recorrente e Recorrido e/ou entre este último e o advogado do primeiro que precederam a sua emissão pelo Recorrido, afigurando-se claro que a mesma configura a aceitação da proposta de recebimento das ações em contrapartida da remissão da dívida do Recorrente para com o Recorrido (dação em pagamento), decorrente do contrato de mútuo celebrado entre as partes em 21 de Dezembro de 2011.

39. O acórdão recorrido padece de erro de interpretação e de aplicação dos artigos 236.º e 863.º do Código Civil, merecendo, por isso, ser revogado.

40. Interpretação diversa daquela deixada supra, atenta a factualidade dada como provada, configuraria ainda um manifesto abuso de direito, previsto no artigo 334.º do Código Civil.

41. Decorre da prova e das circunstâncias em que os factos ocorreram, que foi sempre intenção do Recorrente apenas entregar as ações pretendidas obter pelo Recorrido tão só e se por este fosse considerada a dívida decorrente do mútuo como extinta, prestando o Recorrido uma declaração nessa conformidade. Intenção essa que era perfeitamente conhecida do Recorrido.

42. Pois tal intenção, o Recorrente teve o ensejo de a dar a conhecer ao Recorrido, quer indiretamente através do seu advogado DD, quer diretamente (pelo e-mail enviado ao Recorrido em resposta à pretensão deste último de obter as ações), resultando na elaboração de uma proposta, que como supra vimos veio a ser aceite pelo Recorrido, se não expressamente, de forma tácita.

43. Contra esse entendimento, não se opôs o Recorrido, que efetivamente recebeu as ações e nessa medida emite a declaração dos autos, nos termos da qual declara que as recebeu e acrescentando que o Recorrente, nada mais lhe deve, seja a que título for.

44. Com base nesta declaração, gerou-se na esfera do Recorrente a legítima expectativa que o negócio tal como tinha proposto se encontrava aceite e concluído e consequentemente a dívida no valor de 50.000€ para com o Recorrido estava extinta por remissão.

45. Caso se acolha a tese do Recorrido de que o mútuo persiste, verifica-se que o mesmo ficou detentor das ações que pretendia do Recorrente a título gratuito e sem daí existir qualquer contrapartida!

46. A confirmar-se a procedência do pedido do Recorrido, assente num incumprimento do valor mutuado, quando resulta dos autos que o Recorrente deixou expresso ao Recorrido só entregaria as ações, caso ocorresse a extinção do mútuo de €50.000,00, tal constitui de modo clamoroso e gritante uma clara violação aos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, na compreensão de que lhes corresponde um comportamento honesto, leal, diligente, na medida em que não deve frustrar ou defraudar os legítimos interesses e expectativas do Recorrente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 334.º do Código Civil.

47. O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia, ele está presente, na norma do artigo 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a proteção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

48. E tal princípio da confiança também emana do art.º 237.º do CC, este último aplicável apenas aos casos duvidosos de interpretação. Com efeito, dispõe o citado artigo que “Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.

49. A situação ora sub judice não se afigura ser uma situação de interpretação duvidosa, como supra já se deixou plasmado, mas caso tal se entenda, ainda assim o efetivo equilíbrio entre as prestações encontra-se na realidade interpretar a declaração do Recorrido como uma remissão da dívida que o Recorrente para com ele tinha, uma vez que a interpretação contrária leva a que o Recorrido fique com as ações sem ter dado qualquer contrapartida ao Recorrente e este, por sua vez, tenha ficado sem as duas sociedades, mantendo-se devedor do Recorrido!

50. É que caso não proceda o entendimento que através da declaração emitida em 9 de Agosto de 2011, se operou a extinção da obrigação do pagamento da dívida no valor de 50.000€ pela remissão prevista no artigo 863.º do Código Civil, o recebimento simultâneo das ações e o recebimento do capital mutuado traduziria, repete-se, um comportamento abusivo e contrário aos princípios da boa-fé e da confiança jurídica, protegidos através da figura do abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil.

Termos em que deverá ter provimento o recurso de Revista e consequentemente ser revogado o Acórdão Recorrido, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!


Não foram apresentadas contra-alegações.


Dispensados os vistos, cumpre decidir:


   Atento o teor das conclusões recursórias, enquanto delimitadoras do objeto da revista (e decidida que se mostra, por despacho do Relator, a questão da admissibilidade da revista, colocada nas conclusões 1 a 14, por se considerar inexistir dupla conforme) são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

 - saber se a declaração emitida pelo exequente/embargado em 09.08.2011 (referida no nº 3 dos factos provados) deve ser interpretada no sentido de a mesma provar o pagamento, pelo executado/embargante, da quantia mutuada nos termos da escritura de 21.12.2010 (referida no nº 1 dos factos provados);

-  saber se existe abuso de direito.


É a seguinte a factualidade dada como provada e como não provada pelas instâncias (com as alterações introduzidas pela Relação):

Factos provados:

1 - Em 21 de Dezembro de dois mil e dez, o exequente e o Executado, celebraram um contrato de mútuo mediante a outorga da escritura pública de mútuo junta sob o doc. 1 e cujo teor se considera reproduzido.

2 - O primeiro executado comprometeu-se a pagar ao exequente a quantia mencionada em 1.° até ao dia 31 de Dezembro de 2011.

3 - Datado de 9 de Agosto de 2011 e sob o título "Declaração" o exequente/embargado subscreveu o seguinte texto escrito:

«Para os devidos efeitos, os mais amplos em direito admitidos incluindo os de servir de quitação, eu, BB, declaro que já recebi de AA, portador do NIF ...., todos os documentos/ títulos referentes às sociedades comerciais B...., S.A., W....., Limited e C...., S.A., designadamente os necessários para me tornar o legal proprietário das totalidades das suas ações e dos seus capitais sociais, ademais declarando nada mais ter a receber ou a reclamar do acima referido senhor, seja a que título for» - (aditado pela Relação, sendo tal factualidade retirada dos factos dados como não provados).

4 - Em 15-7-2011 o Dr. DD comunicou ao exequente que o embargante o encarregara de estabelecer as bases para efectivação das cessões das acções por este detidas nas sociedades B...., SA e C..., SA e em 20-7-2011 o embargante comunicou ao exequente ter dado ordem ao Dr. DD para entregar acções de todas as empresas, bem como todos os documentos relativos às mesmas, acto que seria concretizado efectuada que fosse a quitação da dívida com o exequente (doe. de fls. 43 e 44.v-45.v) - (aditado pela Relação, sendo tal factualidade retirada dos factos dados como não provados).

       Factos não provados:

- O Executado, entre os anos 2009 e 2010 foi sócio juntamente com a sua mulher (com participações iguais de 50%) e gerente da sociedade comercial sob a denominação de C.... LDA, Lda., a qual se dedicava à intermediação (brokerage) junto do mercado de câmbio online, o comummente denominado FOREX.

- Como se sabe, O FOREX, também conhecido como Foreign Exchange ou FX, é o maior mercado de trading de moeda do mundo, com uma negociação estimada de 4 triliões de dólares, sendo as moedas negociadas 24 sobre 24 horas, 5 dias por semana.

- Algures durante o ano de 2010, em data que o Executado não consegue precisar, Executado e Exequente acordam na entrada deste último no capital social da sobredita sociedade, mediante a aquisição de 50% do capital social, no sentido de ver crescer tal sociedade para o mercado internacional, mediante a implementação de novas metodologias e ferramentas informáticas de trading forex.

- O Exequente tinha interesse em participar na sobredita sociedade, avaliando a mesma em €100.000,00 (cem mil euros) mas exigiu que a sua entrada ocorresse de forma indirecta, isto é, através de uma sociedade estrangeira veículo que viesse a adquirir a sobredita sociedade portuguesa, retirando desta a mulher do Executado, detentora dos restantes 50% do capital social.

- A ideia seria, pois, constituir uma nova sociedade (estrangeira) que viesse adquirir os 100% do capital social da C...., Lda., passando o capital social da sociedade estrangeira a ser detido em partes iguais, pelo Exequente e Executado.

- O Exequente propôs-se para iniciar todo esse processo e para fornecer à sociedade portuguesa tesouraria para fazer face a despesas correntes com funcionários (3), renda com as instalações e plataformas de trading, o correspondente ao valor acordado a pagar pela aquisição de 50% do capital social da sociedade portuguesa, isto é, o valor de 650.000 euros, na conta da sociedade, à época com conta aberta no Banco Espírito Santo, S.A., por forma a fazer fase a todos os desenvolvimentos então anteriormente desenhados.

- Como garantia, e uma vez que numa primeira fase a conta bancária da sociedade portuguesa era gerida pelo Executado, o Exequente, por forma a assegurar que o investimento na compra dos 50% do respectivo capital social ao Executado não seria um risco, exige do Executado a celebração de um contrato de mútuo destinado apenas a servir ao Exequente como uma garantia de que o Executado haveria de concretizar todos os actos de transmissão necessários para que a sociedade portuguesa passasse a ser detida em 100% pela sociedade estrangeira a constituir e cujo capital desta última seria detido pelo Exequente e Executado em partes iguais.

- De ressalvar que o Exequente apenas disponibilizou para a conta da sociedade portuguesa, um valor não superior a €17.000,00, tendo assegurado ao Executado que a quantia remanescente entraria na conta bancária a abrir em nome da sociedade estrangeira a constituir, o que, na verdade, nunca veio a acontecer.

- Nunca, jamais, o Executado recebeu do Exequente o valor de €50.000,00 em dinheiro ou sequer por transferência bancária, a título pessoal (ou qualquer outro valor, aliás), como vem referido na escritura pública de mútuo.

- Em data que o Executado não consegue apurar, mas seguramente antes de Julho de 2010, a sociedade estrangeira veio a ser constituída no …., sob a designação de C...., S.A., ficando o Exequente e o Executado titulares dos respectivos títulos ao portador das acções da sobredita sociedade, em partes iguais e ficando o Executado com o cargo correspondente a administrador único.

- Em 23.07.2010, a recém constituída C...., S.A., veio adquirir as duas quotas correspondentes à totalidade do capital social da sociedade portuguesa C...., Lda., nunca tendo o Executado e a sua mulher recebido qualquer valor pelas respectivas cessões de quotas.

- A sociedade C...., SA abriu conta bancária em Portugal, junto do banco BPI e era movimentada com autorização apenas do Executado, o qual era o seu Administrador Único porém, o Exequente assegurava um controlo permanente da movimentação da sobredita conta, através do sistema online de HOME BANKING.

- Tal conta bancária tinha por especial objectivo recepcionar os fundos provenientes dos Traders e pagar os proveitos resultantes da actividade.

- Em inícios de 2011, o Exequente convenceu o Executado da necessidade de se constituírem duas novas sociedades comerciais no estrangeiro, uma primeira destinada a deter cem por cento da segunda e esta última a ser constituída com o objectivo de servir como plataforma de negociação online a disponibilizar aos respectivos clientes investidores.

- Assim, é constituída a sociedade B…., S. A., sediada no …. (B…) e a sociedade W…, Limited, sediada na …… (W…..), cujos capitais sociais são representados por títulos ao portador e onde o Exequente e o Executado detinham cada um 50% dos respectivos capitais sociais.

- Assim, a sociedade B…. (detida em partes iguais pelo Exequente e
Executado), teria por objectivo, mais tarde, deter a totalidade dos títulos da empresa W… .

- De ressalvar que todo o processo da criação daquelas sobreditas empresas, à semelhança do que se passou com a C...., S.A, foi desenvolvido pelo Exequente, visto uma das suas principais actividades ser, precisamente, a constituição de sociedades offshore para outras actividades e negócios.

- Estas sociedades foram constituídas com capitais provenientes, quer dos resultados positivos da actividade de trading da C...., S.A., quer do valor remanescente da quantia de €50.000,00 já supra referida.

- O Exequente teve sempre a total responsabilidade na sociedade B….. e W……, tendo desde sempre imposto como condição primordial ser o mesmo Administrador Único dessas mesmas sociedades, o que aconteceu.

- Uma vez constituídas todas as sociedades comerciais que o Exequente entendeu por bem constituir, a C.... LDA, Lda (empresa originária do Executado e da sua mulher) foi dissolvida por decisão da sua sócia única, de 16.06.2011, a C...., S.A.

- Entre finais do ano de 2010 e inícios do ano de 2011, começaram a haver alguns desentendimentos entre o Exequente e o Executado, na condução das estratégias de negócio, como seja, expandir o negócio de trading para a gestão de fundos e até na criação de um banco, objectivos esses para que o Executado (e muito menos o Exequente) não tinha o necessário know-how.

- Devido a tais desentendimentos, o Executado propõe terminar com o Exequente o negócio/sociedades constituídas, abdicando de um projecto que seria, na óptica do mesmo, bastante promissor e com grande potencial de crescimento.

- O Exequente sempre rejeitou (e de forma até bastante intimidatória e agressiva) o afastamento proposto pelo Executado, alegando que este seria uma peça fundamental em toda a estrutura.

- Porém, as diferentes ideias que ambos tinham para o desenvolvimento e prossecução dos negócios societários, colidiam em absoluto e o entendimento entre Exequente e Executado era impossível de dar qualquer fruto no futuro.

- Em face da rejeição do Exequente, o Executado, enquanto Administrador Único da C...., S.A., decide colocar ao corrente de todos os clientes da sobredita sociedade a sua pretensão de renunciar ao cargo de administrador único, e de molde a garantir toda a transparência, comunicou que iria proceder ao encerramento de todas as contas de trading e devolver os respectivos fundos para as contas de todos os clientes titulares das mesmas.

- O Exequente opôs-se a tal situação, dando a conhecer ao Executado que gostaria de poder dar continuidade ao projecto, mesmo que sozinho, pedindo o apoio do Executado para garantir uma passagem suave.

- O Executado concorda em dar todo o apoio, contanto que fossem encerradas todas as contas de trading e que as sociedades só voltariam à actividade quando as mesmas sociedades já fossem da total titularidade do Exequente.

- O Executado enceta todas as diligências no sentido de todas as contas e fundos serem devolvidos aos clientes, à excepção de uma só conta pertença de um amigo do Exequente - um tal de senhor FF, pois este último, em diversas reuniões, demonstrou a intensão de dar continuidade à sua conta nas sociedades, ainda que detidas totalmente pelo Exequente.

- O sobredito FF detinha uma conta de trading com cerca de 17.000,00 euros que, segundo o mesmo, seriam fundos de empréstimo do Exequente para aquele negociar na plataforma de trading e que os resultados positivos seriam distribuídos entre ambos.

- Assim, após a renúncia do Executado ao cargo de administrador da C...., S.A., a sobredita quantia permaneceu depositada na conta da sociedade no banco BPI, para que o Exequente, após tomada de posição das sociedades, tivesse controlo da mesma e efectuasse o que entendesse com a mesma, em consonância com o acordo que viesse a estabelecer com o respectivo cliente (o tal FF).

- O Exequente (depois de muita insistência junto do Executado para que continuasse nas sociedades) aceita, então, o afastamento das sociedades por parte do Executado e solicita que lhe sejam entregues todos os títulos físicos correspondentes aos 50% que este detinha na C...., S.A. e demais sociedades e para que fosse então formalizada a passagem dos mesmos para a titularidade do Exequente.

- O Exequente impôs ao Executado que este lhe fizesse chegar toda a documentação relativa aos títulos das sociedades em causa, no seu escritório, sito ao Campo Pequeno, contra a assinatura de um documento de quitação solicitado pelo Executado.

- Tal como combinado, o Executado, acompanhado da sua mulher GG, veio deixar os sobreditos títulos e demais documentação relativa às sociedades comerciais à guarda da secretária do Exequente, a Sra. HH, a qual os informa que o Exequente não se encontrava no escritório e que posteriormente lhes iria fazer chegar o documento que havia sido acordado entregar.

- A verdade, porém, é que tal documento tardou a aparecer.

- Na mesma altura, o Executado começa a receber variadíssimos contactos por parte do sobredito FF, que o informa que o Exequente não disponibiliza acessos à sua conta de trading e que isto poderá trazer bastantes prejuízos devido às posições abertas que detinha no mercado.

- O Executado transmitiu ao sobredito FF que estaria disposto a ajudar no que fosse necessário para resolver as suas dificuldades, contanto que o mesmo fizesse tudo quanto lhe fosse possível para obter do Exequente o documento de quitação que o mesmo haveria prometido assinar aquando da entrega dos títulos das sociedades.

- Em data que o Executado não consegue determinar, mas algures em meados ou finais de Agosto de 2011, o Exequente entrega finalmente ao Executado, através do sobredito FF, o documento de quitação que este tão insistentemente lhe tinha peticionado.

- O Exequente nunca emprestou qualquer verba ao Executado.

- O valor de 50.000 euros que o Exequente deveria ter investido na sociedade C..., Lda. (na verdade não ultrapassou os 17.000 euros) constituía a contrapartida pela aquisição de 50% do capital social desta.

- O documento que o Exequente fez o Executado assinar (e que constitui título executivo nos presentes autos) não consubstanciou qualquer empréstimo ou transferência efectiva de valor mas, unicamente, o meio que o Exequente encontrou de garantir que lhe seria entregue pelo Executado a prometida quota de 50% na sociedade.

- O Executado cumpriu com todas as obrigações garantidas pelo denominado "contrato de mútuo", tornando até o Exequente o único detentor das sociedades.


   Quanto à questão de se saber se a declaração emitida pelo exequente/embargado em 09.08.2011 (referida no nº 3 dos factos provados) deve ser interpretada no sentido de a mesma provar o pagamento, pelo executado/embargante, da quantia mutuada nos termos da escritura de 21.12.2010 (referida no nº 1 dos factos provados):

  Conforme se alcança da respetiva sentença, a 1ª instância, para além dos factos supra enunciados sob os nºs 1 e 2, deu ainda como provado que “o executado não procedeu, até ao momento, ao pagamento de qualquer quantia”, sendo que os factos nºs  4 e 5, conforme supra se refere, foram aditados pela Relação (e, consequentemente, por esta retirados dos factos que haviam sido dados como não provados).

   E foi com fundamento naquele facto dado como provado sobre o não pagamento (que veio a ser eliminado pela Relação) que a 1ª instância fundamentou a improcedência dos embargos.


 A Relação, por sua vez (seguindo um caminho essencialmente diferente – e daí a inexistência da dupla conforme a que alude o nº 3 do artigo 672º do CPC) após alterar a factualidade dada como provada e como não provada nos temos supra indicados, centrou a sua fundamentação na factualidade que deu como provada e, no essencial,  na análise da declaração de 09.08.2011 (referida no nº 3 dos factos provados), para concluir que a mesma não podia ser interpretada no sentido de provar o pagamento da quantia mutuada nos termos dos nºs 1 e 2 dos factos provados.           

Isto nos seguintes termos (com os salientados a negrito da nossa lavra):    

“(…)

Como o ónus da prova do cumprimento, facto extintivo do direito de credor, incide sobre o devedor (n° 2 do art. 342 do CC), o devedor tem o direito de exigir do credor que lhe faculte um documento que lhe facilite a prova de que a prestação foi realizada - a quitação a que alude o art. 787 do CC.

A quitação é um documento em que o credor declara ter recebido a prestação que lhe é devida, constituindo uma simples declaração de ciência (e não de vontade) certificativa do facto de que a prestação foi cumprida pelo devedor e recebida pelo credor. A quitação não exprime, enquanto tal, a vontade de o credor libertar o devedor, sendo essa libertação um efeito legal do cumprimento (Ver citado «Comentário ao Código Civil», vol. II, pag. 1079, Mota Pinto, «Teoria Geral do Direito Civil», Coimbra Editora, 1976, pags. 419-420).

Perante a declaração emitida pelo exequente, haverá que ponderar qual a sua abrangência recorrendo para o efeito ao disposto no art. 236 do CC, disposição aplicável directamente aos negócios jurídicos e, por via do art. 295 do mesmo Código e nos termos por ele referidos, aos actos jurídicos.

IV - 6 - Acolhe o CC no seu art. 236 o tipo de sentido decisivo para a interpretação nos termos da doutrina objectivista da impressão do destinatário: a declaração deve valer com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição do real declaratário, lhe atribuiria - considera-se o real declaratário nas condições concretas em que se encontra e tomam-se em conta os elementos que ele conheceu efectivamente, mais os que uma pessoa razoável, quer dizer, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz teria conhecido e figura-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável (7). Todavia, este pendor objectivista cede quando o declaratário conhece a vontade real do declarante.

No caso dos autos, não se encontrando demonstrada qual a vontade real do exequente, releva para a interpretação da declaração em causa, o critério do destinatário médio, colocado na posição do declaratário normal.

No âmbito dos elementos de informação ou circunstâncias que, apesar de meios auxiliares de interpretação, se podem revelar decisivos encontra-se o contexto em que a declaração surge, os antecedentes próximos da declaração e o contexto externo em que a mesma é emitida.

Do circunstancialismo de facto invocado pelo embargante na sua petição de embargos pouco restou apurado. Desde logo não logrou o embargante provar que o acordo formalizado através da escritura pública que constitui o título executivo correspondia a uma garantia prestada por esse meio enviesado - quando o fundamento primário da defesa do embargante residia na reserva mental comum a ambas as partes na formalização daquele contrato que, assim, seria nulo.

Por outro lado, segundo o embargante, as obrigações que se procuravam garantir através do acordo materializado na escritura pública foram por si cumpridas, declarando o embargado (através da declaração a que nos reportamos) que nada lhe deve. Deste modo, o próprio embargante reconduz a declaração enunciada no ponto 3) dos factos provados (versão alterada por este Tribunal) ao que concerne ao cumprimento dos acordos que entre ambos existiram sobre sociedades em que tinham interesses (ver os artigos 54 e 55 da petição de embargos) - o que se mostra coerente com a posição por si assumida de que o exequente não lhe havia emprestado dinheiro algum.

Provou-se que em 15-7-2011 o Dr. DD comunicou ao exequente que o embargante o encarregara de estabelecer as bases para efectivação das cessões das acções por este detidas nas sociedades B......, SA e C......., SA e que em 20-7-2011 o embargante comunicou ao exequente ter dado ordem ao Dr. DD para entregar acções de todas as empresas, bem como todos os documentos relativos às mesmas, acto que seria concretizado efectuada que fosse a quitação da dívida com o exequente.

Está demonstrada, assim, a existência de negociações atinentes às participações sociais das aludidas sociedades, contexto em que o exequente emite a "Declaração " datada de 9-8-11.

Desta, como vimos, consta:

«.. .declaro que já recebi de AA, portador do NIF ….., todos os documentos/ títulos referentes às sociedades comerciais B…..., S.A., W….., Limited e C…., S.A., designadamente os necessários para me tornar o legal proprietário das totalidades das suas ações e dos seus capitais sociais, ademais declarando nada mais ter a receber ou a reclamar do acima referido senhor, seja a que título for».

Nesta declaração o exequente diz que recebeu do embargante os documentos/títulos referentes às sociedades - assim, indubitavelmente, certifica que aquelas prestações do embargante foram por si recebidas, dando-lhe quitação quanto às mesmas.

Todavia, como decorre dos pontos 1) e 2) dos factos provados, em escritura pública outorgada em 21-11-2010 denominada "Mútuo" embargante e embargado declararam que este emprestou àquele a quantia de 50.000,00 €, declarando ainda o embargante que naquela data recebera em dinheiro do embargado a dita quantia, comprometendo-se a liquidá-la até 31-12-2011.

Tais declarações das partes perante o notário encontram-se plenamente provadas (art. 371 do CC) e reconduzem-se a um contrato de mútuo (art. 1142 do CC). Nada, nos factos provados, permite associar o contrato de mútuo celebrado em Dezembro de 2010, com prazo para restituição do capital mutuado até 31-12-2011, com as negociações relativas aos títulos/acções das sociedades que tiveram lugar em Julho/Agosto de 2011.

Neste contexto afigura-se-nos forçado, face aos elementos de facto de que dispomos, entender que a "Declaração" emitida em 9-8-11, no contexto das negociações dos títulos/acções e a elas se reportando expressamente, abrangesse também o capital em dinheiro que o embargante se obrigara a restituir até 31-12-2011. O embargado nada teria a reclamar do embargante seja a que título fosse no âmbito daquele negócio que ali é referido - sem que se houvesse indiciado o envolvente circunstancialismo alegado pelo embargante sobre o formalizado mútuo corresponder a uma garantia que se remetia às negociações relativas à aquisição de capital social o empréstimo de dinheiro que anteriormente tivera lugar e cujo prazo de pagamento era, aliás, bem mais alargado, não era abrangido pela "quitação". Ou seja, para um declaratário normal, colocado na posição do embargante e no contexto apurado, a "Declaração" em referência não comportaria uma renúncia abdicativa do exequente ao direito que lhe assistia à restituição do capital emprestado que ali não se diz haver sido restituído - como o apelante pressupõe (ver conclusões XXXIII e XXXIV).

Refíra-se que sabendo-se que a renúncia, como perda voluntária de um direito por manifestação unilateral de vontade, não é admitida em termos gerais no domínio das obrigações como forma de extinção de créditos, a eventualidade seria a de perspectivar-se uma remissão, nos termos previstos no art. 863 do CC, que todavia! pelas razões apontadas se afigura não estar demonstrada.”.

É contra tal entendimento que se manifesta o executado embargante, ora recorrente, o qual defende, em resumo e em conclusão, que a declaração emitida pelo exequente em 09.08.2011, nos termos constantes do nº 3 dos factos provados, deve ser interpretada como prova do pagamento do capital mutuado, cujo pagamento coercivo o exequente, ora recorrido, pretende obter na execução.

E isto porque, ainda segundo o recorrente, é o que resulta dos factos dados como provados (relativos à celebração do contrato de mútuo e à comunicação do Dr. DD de 15.07.2011), conjugados com os emails referidos na conclusão 19:

 - um de 15.07.2011, enviado por DD ao exequente - a que se refere o nº 4 dos factos provados (“no seguimento da sua mensagem telefónica e daquela hoje deixada junto do meu escritório pela sua secretária, gostaria de lhe transmitir que me encarregou o Dr. AA de estabelecer consigo as bases para efectivação das cessões das acções por este último detidas nas sociedades B…., SA e C…., SA. Segundo me transmitiu o Dr. AA, as mesmas serão efectuadas para a sua pessoa, tendo apenas por contrapartida o reconhecimento por parte do Sr. Eng. BB que nada mais terá a receber, directa ou indirectamente (i.e. enquanto titular de participações sociais nas ditas sociedades ou outras) do Dr. AA, seja a que título for, aqui estando, pois, incluído o reconhecimento de dívida que o mesmo lhe fez de €50.000,00, cujo prazo de vencimento é o dia 31.12.2011.Caso o Sr. Eng. Esteja de acordo com as premissas básicas que antecedem, informe-me disso mesmo, pois creio encontrar-me em condições de ultimar os documentos contratuais necessários, designadamente para efectivar as respectivas operações de cessão para a sua pessoa.”);

- outro de 20.07.2011, remetido pelo exequente ao executado (“Diga ao Dr DD para me dar as acções da C….., SA. Envie um Mail ao EE (com cópia para mim ) dizendo que as acções me pertencem na totalidade”);

- outro de 20.07.2011, remetido pelo executado ao exequente (“Caro Sr. Eng. BB, Antes demais bom dia e espero que esteja bem de saúde. Devo apenas responder o seguinte ao seu email: - Dei ordem ao meu Advogado Dr. DD para entregar as acções de todas as empresas (o que implica claro uma comunicação ao Sr. EE a informar que o Sr. é o único titular após esta transferência de cotas) bem como todos os documentos relativos ás mesmas. - Este acto só será concretizado no seguimento da quitação da divida com o Sr. Eng. BB. Devo também informar o Sr. Eng. Apenas a titulo de curiosidade que informei no dia 02 de Junho 2011 que iria renunciar enquanto procurador da empresa C…. SA e que o acto oficial (tal como documento registado no Gov.Panama e que pode ser solicitado caso assim o entenda ao Sr. EE, no dia 15 do mesmo mês ) assim sendo dissolveu-se a C….. Lda. no dia 09 de Junho e foi feita a minha renuncia oficial ás entidades competentes no dia 15 de Junho. Devo também informar que às autoridades Portuguesas de registo comercial tiveram de validar a competência da minha pessoa enquanto GERENTE da C…. Lda. para o acto e só depois efectuar a dissolvência. Claro que todo este processo foi acompanhado de muito perto e aconselhado juridicamente para que não houvesse ilegalidades nos processos.”);

- e outro de 27.07.2019, remetido pelo executado ao exequente (“Caro Sr. Eng., Tal como anteriormente havia referido caso efectue a quitação da divida ser-lhe à entregue as cotas e documentos de todas as sociedades. Relativamente ao BPI não tenho qualquer acesso mas sei que lá se encontra o valor de 10 K. Cumprimentos”)


Com efeito, ainda segundo o recorrente, de tais elementos probatórios resulta que:

- Houve uma proposta de negócio de transmissão das ações pelo embargante/recorrente a favor do embargado/recorrido, tendo como contrapartida a emissão de declaração de remissão de dívida dos € 50.000,00 (emergente do contrato de mútuo) por parte do recorrido, proposta essa que veio a ser aceite pelo recorrido;

- É por de mais evidente que o sentido a retirar da declaração efetuada pelo recorrido só pode ter sido a de abdicar da dívida dos € 50.000,00, dado que a mesma era a condição sine qua non proposta pelo recorrente para a entrega das ações, sendo este o sentido da declaração que um qualquer declaratário, um declaratário normal, mediamente informado dela extrairia.

- Estamos na presença, em simultâneo, de duas figuras jurídicas: a dação em pagamento por parte do recorrente e a remissão por parte do recorrido, ambas causas da extinção das obrigações, nos termos dos artigos 837.º e 863.º do Código Civil.

Mais defende ainda que caso se entenda que a declaração expressa de remissão da dívida não resulta expressamente da declaração de 09.08.2011, a declaração de remissão resulta dos emails trocados entre as partes, de onde resulta que o recorrido recebeu as ações, e foi por isso que emitiu aquela declaração.


Vejamos:

O recorrente baseia a sua argumentação não apenas na factualidade que foi dada como provada como também em determinados documentos  particulares (alguns dos emails supra referidos) cujo conteúdo não foi dado como provado, sendo certo que os documentos (a menos que se trate de documentos autênticos, e apenas relativamente aos factos neles referidos como praticados ou  objeto de perceção por parte da respetiva autoridade – artigo 371º, nº 1 do C. Civil) apenas visam a prova dos factos alegados pelas partes com relevância para o mérito da causa.

Conforme se estabelece no artigo 341º do C. Civil “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.”

Ora, como é sabido, o STJ, que apenas conhece de direito, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 674º do CPC, estando-lhe vedado fixar ou alterar a matéria de  facto fixada pelas instâncias, a menos que se trate de prova tabelada, nos termos do nº 3 deste artigo (o que não é o caso), terá que julgar de direito com base nos factos que foram dados como provados e como não provados pelas instâncias, que não em documentos juntos aos autos e que foram apreciados pelas instâncias para efeitos probatórios.

Inclusivamente, e contrariamente ao que sucede com as instâncias, designadamente com as Relações, que podem fixar matéria de facto com base em presunções judiciais (neste sentido vide acórdão do STJ de 12-02-2019, proferido na revista nº 25459/15.T8SNT-A.L1.S1, in Sumários dos Acórdãos do STJ – Cível: “Mostra-se abrangido no âmbito dos poderes da Relação em sede da impugnação da decisão de facto ao abrigo do n.º 1 do art. 662.º do CPC, o aditamento de matéria fáctica socorrendo-se da utilização de presunção judicial, carecendo, por isso, de cabimento legal a notificação prévia das partes para o efeito”), o STJ não se pode socorrer sequer de presunções judiciais para dar como assente esta ou aquela factualidade – apenas lhe competindo sindicar o uso indevido das presunções judiciais por parte das Relações (conforme bem se considerou no acórdão do STJ de 19.01.2017 -revista nº 841/12.6TBMGR,C1.S1, in www.dgsi.pt “em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita, admitindo-se, ainda que com alguma controvérsia, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados.”).

Aliás, as presunções apenas se podem retirar de factos provados, que não de documentos (artigo 350º, nº 1 do C. Civil).

  Assim, o que importa saber é se a declaração negocial contida na declaração de 09.09.20102, referida no nº 3 dos factos provados, conjugada com a demais factualidade dada como provada, particularmente o facto dado como provado sob o nº 4 (comunicação de 17.07.2011 do Dr. DD ao exequente) pode ser interpretada, com base nas regras da interpretação das declarações negociais estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do C. Civil, no sentido pretendido pela recorrente.

      Vejamos:

  Desde já se diga que não podemos concordar com a Relação quando esta diz que os factos provados apenas demonstram “a existência de negociações atinentes às participações sociais das aludidas sociedades, contexto em que o exequente emite a "Declaração " datada de 9-8-11”.           

Com efeito, resultando provado que o recorrente, comunicou ao recorrido, em 15.07.2011, através do Dr. DD, de que este fora encarregado de estabelecer as bases para a efetivação da cessão das ações que o recorrente detinha nas sociedades B......., SA e C…, SA e em  20.07.2011, que deu ordem ao Dr. DD para entregar ações de todas as empresas, bem como todos os documentos relativos às mesmas, ato que seria concretizado efetuada que fosse a quitação da dívida com o exequente (nº 4 dos factos provados):

O facto de na declaração  de quitação do recorrido, de 09.08.2011 (nº 3 dos factos provados) este ter declarado  ter recebido “todos os documentos/ títulos referentes às sociedades comerciais B…, S.A., W…, Limited e C…, S.A., designadamente os necessários para me tornar o legal proprietário das totalidades das suas ações e dos seus capitais sociais, ademais declarando nada mais ter a receber ou a reclamar do acima referido senhor, seja a que título for» só pode ser entendido no sentido de o negócio de cessão de ações haver sido dado como consumado entre as partes.

Isto, independentemente de se desconhecerem, porque não provados, os exatos contornos deste negócio, designadamente no que se refere ao preço a pagar pelo recorrido pelas ditas ações.

Mas se as ações foram cedidas pelo recorrente ao recorrido, naturalmente, como não poderia deixar de ser, sempre haveria um preço a pagar, como contrapartida, pelo recorrido ao recorrente, fosse qual fosse o preço da cedência das ações-

E da mesma forma, não podemos concordar com a Relação quando diz que “Neste contexto afigura-se-nos forçado, face aos elementos de facto de que dispomos, entender que a "Declaração" emitida em 9-8-11, no contexto das negociações dos títulos/acções e a elas se reportando expressamente, abrangesse também o capital em dinheiro que o embargante se obrigara a restituir até 31-12-2011” e que “para um declaratário normal, colocado na posição do embargante e no contexto apurado, a "Declaração" em referência não comportaria uma renúncia abdicativa do exequente ao direito que lhe assistia à restituição do capital emprestado que ali não se diz haver sido restituído - como o apelante pressupõe”.

Pelo contrário, afigura-se-nos que, na perspetiva de um normal declaratário, aquela declaração do recorrido, quando este declara “nada mais tem a receber ou a reclamar” do recorrente “seja a que título for”, conjugada com a restante factualidade provada, só pode ser interpretada no sentido de a declaração de quitação abranger a dívida relativa ao mútuo.

E isto porque:

- o pagamento da quantia mutuada pelo recorrido ao recorrente, em 21.12.2010 devia ser paga até 31.12.2012 (nºs 1 e 2 dos factos provados);

- as negociações para a cessão das ações das referidas sociedades tiveram lugar em meados de julho de 2011 (nº 4 dos factos provados), ou seja, menos de meio ano antes do vencimento do mútuo;

-  a declaração de quitação (nº 3 dos factos provados, veio a ser emitida depois disso e antes do vencimento do mútuo;

- e na mesma, o recorrido declara nada mais ter a receber ou reclamar, “seja a que título for”.

Assim, dado o referido contexto de proximidade temporal (do vencimento do mútuo, das negociações relativas à cessão das ações e da declaração de quitação) e não tendo sido especificado na declaração qualquer outro ou outros negócios de que resultasse para o recorrente qualquer outra obrigação de pagamento (e sendo que nada foi dado como provado ou sequer alegado nesse sentido), afigura-se-nos que a declaração de quitação em questão, dada a amplitude do seu âmbito (nada mais a receber seja a que título for), deverá ser interpretada no sentido de abranger a dívida emergente do mútuo dando-a o recorrido como paga .

Aliás, em tal contexto, não deixa de ser significativo o facto de o recorrido não ter apresentado contra-alegações.

Procedem assim, nesta conformidade, as conclusões recursórias, impondo-se conceder a revista e julgar procedentes os embargos.


    Quanto ao abuso de direito:

  Trata-se de questão cujo conhecimento se mostra prejudicado pela solução dada à questão de que acabámos de conhecer.

   Termos em que, concedendo-se a revista, se acorda em julgar procedentes os embargos e em julgar extinta a execução.           

   Custas pelo recorrido.


Lx. 12.01.2021

(Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de maio, o Relator, que assina eletronicamente, declara que os Exmos. Conselheiros Adjuntos, abaixo indicados, têm voto de conformidade e não assinam o presente acórdão por não o poderem fazer pelo facto de a sessão, dada a atual situação pandémica, ter sido realizada por videoconferência).


Acácio das Neves (Relator)

Fernando Samões (1º Adjunto)

Maria João Vaz Tomé (2ª Adjunta).