Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1412/20.9T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
CRÉDITO FISCAL
SEGURANÇA SOCIAL
INEFICÁCIA
Data do Acordão: 06/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: PARCIALMENTE CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I- A imposição legal de proibição da modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não implica necessariamente a solução drástica de recusa de homologação judicial do plano de recuperação em processo especial de revitalização, nos termos do artigo 215º e 17º-F, nº 7, do CIRE, que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível.
II- A solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, respeitando ainda os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado Português, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar a ineficácia relativa à homologação do plano de revitalização no que concerne aos créditos reclamados e aprovados de que é titular o Instituto da Segurança Social.
III- O plano de revitalização produzirá assim os seus efeitos, aproveitando à recuperanda e seus credores na medida do acordado, com excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo estes intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.
Decisão Texto Integral:



 Revista nº 1412/20.9T8VNF.G1.S1.


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).


I - RELATÓRIO.
No presente Processo Especial de Revitalização (vulgo PER) da ECOVEST LDA., a recuperanda apresentou plano de revitalização, através do requerimento entrado em juízo em 4 de Agosto de 2020.
O administrador judicial provisório nomeado nos autos juntou o quadro da votação, nos termos do artigo 17º F, nº 3, do CIRE, através de requerimento de 8 de Setembro de 2020.
Foi então proferida a seguinte decisão judicial, datada de 17 de Setembro de 2020, na qual se concluiu:
“Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 17º-F, n.º 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, homologo, por sentença, o plano de revitalização de ECOVEST, Lda., ora junto aos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Custas pela devedora, nos termos do art. 17º - F, n.º 11, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Fixo à acção o valor de € 30.000,01 - art. 301º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique e publicite, nos termos do art. 17º - F, n.º 10, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Inconformado, o Centro Distrital de ... do Instituto de Segurança Social interpôs recurso de apelação.
O Tribunal da Relação de Guimarães, no seu acórdão de 4 de Fevereiro de 2021, julgou procedente a apelação e revogou a decisão recorrida, recusando a homologação do plano de recuperação, ao abrigo do disposto no artigo 215º, do CIRE.
Apresentou ECOVEST - Sociedade Têxtil, Lda. recurso de revista.
Concluiu nos seguintes termos:
A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães que julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a decisão proferida pela 1ª instância, tendo recusado a homologação do plano de recuperação da recorrente.
B) De acordo com a tese que obteve vencimento no Acórdão, ora em recurso, decidiu-se que: “Em síntese, a homologação de plano de revitalização que inclua o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da Fazenda Nacional e/ou da Segurança Social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, caindo na previsão do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas.”
C) O acórdão em recurso recorrido perfilha, assim, no domínio da mesma legislação, entendimento contrário ao da Jurisprudência consolidada dos nossos Tribunais Superiores e designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, expresso em diversos arestos, nomeadamente, Ac. do STJ de 25.11.2014 – Proc. n.º 1783/12.0TYLSB-B.L1.S1, mas igualmente, entre vários outros, Ac. do STJ de18.02.2014 – processo n.º 1786/12.5TBTNV.C2.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
D) Encontram-se, assim, verificados os pressupostos admissibilidade do presente recurso, não se mostrando, por outro lado, fixada jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça.
E) O plano de Recuperação conducente à revitalização da Devedora prevê o pagamento dos créditos reclamados pelos ISS através do Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 prestações mensais e sucessivas, sendo o respectivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte; prevendo ainda que as garantias serão analisadas no âmbito da execução fiscal, cumprindo, pois, todos os requisitos legalmente exigidos, quanto aos créditos fiscais, mormente os decorrentes do artigo 196.º do CPPT, razão pela qual nada obrigava a Mma. Juiz da 1.ªinstância a recusar a homologação do mesmo, pelo que se impõe, nesta sede, repristinar a douta sentença homologatória.
F) Na verdade, do plano aprovado pelos credores não resulta qualquer redução de capital, juros vencidos e vincendos do ISS, nos termos do disposto, respectivamente, nos artigos 30.º, n.os 2 e 3 da LGT e 196.º, n.º 7 do CPPT.
G) Assim, e após o trânsito em julgado da decisão homologatória, competiria à devedora solicitar, junto do ISS, a elaboração de tal plano prestacional, o qual contemplaria valores (designadamente, juros entretanto vencidos e outros encargos e despesas), para além do montante de € 76,547,00, reconhecido no âmbito do PER, e acolheria seguramente todas as prescrições legais aplicáveis.
H) Vale, pois, isto por dizer que os contornos de pormenor atinentes à elaboração do concreto plano de reembolso em prestações dos créditos fiscais – designadamente o número e montante de cada prestação e o tipo de garantia idónea a prestar – foram remetidos, nos termos expressos no Plano aprovado, para o ISS.
I) Impõe-se, pois, concluir que a indisponibilidade dos créditos tributários não é absoluta, pois que a própria lei tributária – artigo 196.º, n.os 5 e 6 da LGT – admite a possibilidade de pagamento dos créditos tributários até às 150 prestações, aliás, nos exactos termos em que foi previsto no âmbito do plano de revitalização da devedora.
J) O Plano de Recuperação foi elaborado de acordo com os ditames legais, foi votado, foi aprovado com observância do quórum deliberativo legalmente imposto, não tendo, em momento algum, o ISS invocado o incumprimento, pelo mesmo, de qualquer norma imperativa.
K) Apesar do ISS ter votado desfavoravelmente o Plano de Recuperação, nem sequer pugnou pela sua não homologação, no momento processual adequado, tendo a Mma. Juiz da 1.ª instância – bem – entendido que todas as formalidades legais e processuais haviam sido cumpridas e, como tal, decidiu homologar o Plano aprovado, vindo somente, em apelação, o ISS insurgir-se contra tal homologação.
L) Acresce que, apesar de ter interposto recurso de apelação da sentença que homologou o plano, o mesmo ISS aprovou um plano prestacional para o pagamento da quantia em dívida, tendo o mesmo sido deferido em 01.10.2020, relativamente à quantia exequenda de 58.893,95€ e posteriormente, em 10.12.2020, quanto ao remanescente em dívida.
M) Tendo o ISS emitido em 11.01.2021 declaração de situação regularizada relativamente à devedora.
N) Do previsto no Plano de Recuperação da devedora quanto à regularização do crédito do ISS – Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respectivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano - não resulta qualquer prejuízo para o ISS e, muito menos, qualquer redução nos seus créditos.
O) Pelo que não se pode admitir que tenha havido qualquer violação de normas aplicáveis ao conteúdo do Plano de Recuperação da Devedora – mormente as apontadas, no Acórdão recorrido – inexistindo, portanto, qualquer razão para impor a recusa da homologação do Plano aprovado.
P) Neste sentido, bem decidiu o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-11-2014, que serve de fundamento ao presente recurso, que acompanhamos, em situação em tudo idêntica àquela sobre a qual versam os presentes autos.
Q) Em suma, não nos confrontamos, “in casu”, com qualquer violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação da devedora/recorrente, pelo que carece de fundamento legal a respectiva recusa de homologação.
R) Sem prescindir do supra exposto, ainda que assim não se entenda -o que não se concede nem concebe – sempre deveria a Relação de Guimarães ter decidido apenas no sentido da ineficácia do Plano de Recuperação aprovado relativamente aos créditos do ISS, mantendo, no mais, a sentença homologatória, produzindo o Plano aprovado e homologado os seus efeitos quanto aos demais credores – neste sentido, aliás, eloquentemente decidiu o Ac. STJ de 18 de Fevereiro de 2014.
S) Com efeito, mesmo que se entenda que a homologação do plano de revitalização, que preveja o pagamento em prestações de créditos tributários, nos termos que vierem a ser autorizados pelo ISS, sem o voto favorável do mesmo, constituiu uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, apenas deverá ser ineficaz em relação ao referido ISS, não produzindo a sua homologação quaisquer efeitos quanto aos respectivos créditos.
T) No entanto, tal não significa que o Plano de Recuperação não possa valer perante os demais credores que lhe deram o seu acordo, porquanto a sua ineficácia em relação aos créditos do ISS não impede que o mesmo seja homologado, mas tão só em relação aos demais credores.
U) Ao decidir nos termos em que o fez, o Acórdão recorrido violou as normas constantes dos arts. 30°, n°s 2 e 3 e 36°, n°3 da Lei Geral Tributária; do art.° 85°, n°s 1 e 3 e 196° a 198°, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e dos art.° 192°, n° 2 e 215°, do CIRE.


II – FACTOS PROVADOS.
Foi considerado provado:
O Plano foi votado por mais de um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto (85,3%), tendo recolhido voto favorável de mais de 2/3 (dois terços) da totalidade dos votos emitidos e, mais de metade dos votos emitidos correspondente a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
O Plano recolheu o voto favorável de credores cujos créditos representam mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos corresponda a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções.
O Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social reclamou créditos de natureza privilegiada no valor de € 76.547,58 proveniente de dívida de contribuições à segurança social, e assim reconhecido e reclamou ainda créditos no valor de € 1.111,23 reconhecido como crédito de natureza comum.
O Plano de Revitalização homologado prevê, relativamente à Segurança Social o seguinte:
“A divida à Segurança Social será regularizada através de Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respetivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte. - Garantias: A analisar no âmbito da execução fiscal”.
O Instituto de Segurança Social votou contra os termos propostos no Plano de Revitalização.


III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
Recusa de homologação judicial do plano de revitalização que envolve o pagamento fraccionado, em condições a especificar, relativamente aos créditos de que é titular Segurança Social, ao abrigo do disposto no artigo 215º e 17º-F, nº 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (havendo o Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social votado contra a respectiva aprovação). Fixação de eficácia relativa (inoponibilidade ao credor Segurança Social) à homologação do plano de revitalização, sem afectação dos créditos de natureza tributária.
Passemos à sua análise:
O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães pronunciou-se pela não aprovação do Plano de Revitalização, revogando a sentença recorrida, ao abrigo do disposto nos artigos 215º e 17º-F, nº 7, do CIRE.
Fundou-se essencialmente em que:
“E no caso como o dos autos apesar da alteração do CIRE, dar prevalência à recuperação económica do devedor e relegar para um plano secundário a liquidação do respectivo património, através da criação deste processo especial de revitalização, a LGT consagra a indisponibilidade dos créditos tributários e a prevalência do seu regime sobre qualquer legislação especial, designadamente no âmbito dos processos de insolvência – cf. arts. 30.º, n.ºs 2 e 3, e 125.º da LGT.
A inclusão, no acordo de recuperação de empresa, do pagamento da Segurança Social em prestações, no âmbito da execução fiscal, sem a autorização expressa daquela constitui violação não negligenciável de regras procedimentais e das normas aplicáveis ao seu conteúdo, não consentida pelo artigo 215º do CIRE. Com efeito, no caso, não se observou o disposto no artigo 215.° do CIRE – no sentido de que o tribunal como guardião da legalidade cabe-lhe sindicar o cumprimento e aplicação das normas relativas ao procedimento de elaboração e aprovação da proposta de plano de insolvência – não pode admitir-se a validade da homologação do plano de insolvência [contra a qual se manifesta o Instituto da Segurança Social, LP., ao abrigo do disposto no artigo 214.° do mesmo.
Em síntese, a homologação de plano de revitalização que inclua o pagamento em prestações de créditos por tributos, sem o acordo da Fazenda Nacional e/ou da Segurança Social, constitui uma violação não negligenciável das normas legais aplicáveis, caindo na previsão do artigo 215.º do CIRE e, por tal motivo, deve o juiz recusar oficiosamente a homologação do acordo na parte em que viola regras legais imperativas”.
Na presente revista deverá essencialmente aferir-se:
1º-da legalidade da decisão de recusa de homologação judicial do plano de revitalização que, embora votado favoravelmente pela maioria necessária dos credores, incluiu o pagamento em prestações, nos termos e condições a definir futuramente, de créditos da Segurança Social, contra a vontade manifestada pelo Centro Distrital ... do Instituto de Segurança Social, ora recorrido.
2º -da possibilidade de salvaguarda dos efeitos a produzir pela homologação judicial do Plano, desde que não afectem, modificando restritivamente, o conteúdo dos créditos de natureza tributária.
Vejamos:
Dispõe o artigo 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável aos processos especiais de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal:
“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devem preceder a homologação”.
Conforme salientam Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2008, a páginas 713 a 714:
“(...) não são negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido. (...) O que importará é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição de credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta -, tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.
(Relativamente aos critérios de recusa de homologação judicial do plano de revitalização, vide também Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in “PER. O Processo Especial de Revitalização. Comentário aos artigos 17º-A a 17º-I do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas”, Coimbra Editora, Março de 2014, páginas 128 a 155).
Estabelece, a este propósito, o artigo 30º, nº 2, da Lei Geral Tributária:
“O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e legalidade tributária”.
Acrescenta no nº 3 do mesmo preceito – aditado pelo artigo 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011):
“O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
No mesmo sentido, o artigo 125º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2011) tornou extensiva a aludida norma aos processos de insolvência que se encontravam pendentes e ainda aos que não tivessem sido objecto de homologação.
Perante esta intervenção legislativa que evidencia, pela sua assertividade, de forma clara e inequívoca, o carácter imperativo conferido à tutela do crédito de natureza tributária, queda insofismável e incontornável a impossibilidade de homologação pelo tribunal do plano de recuperação que se traduza numa afectação, pela modificação restritiva do seu conteúdo, dos créditos de natureza tributária que foram reclamados e reconhecidos.
(Neste sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2011 (relator Silva Gonçalves), proferido no processo nº 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 2012 (relator Álvaro Rodrigues), proferido no processo nº 368/10.0TBPVL-D.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, que constituíram uma inflexão na corrente jurisprudencial que se tinha formado em sentido inverso, remetendo-se então para a especialidade das normas pertinentes ao processo de insolvência e de revitalização face ao carácter geral das disposições legais de natureza tributária.
Sobre tal mudança de rumo e referenciando discriminadamente a jurisprudência que defendeu posição contrária à que resulta actualmente da lei, vide Catarina Serra, in “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina, 2017, 2ª edição, páginas 104 a 105.
Precisamente sobre esta temática, vide ainda Sara Luís Dias in “A afectação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente”, artigo publicado in “Revista do Direito da Insolvência”, Ano 0, páginas 256 a 261.
Por sua vez, criticando a mencionada opção legislativa, chegando mesmo a advogar a interpretação restritiva da norma de forma a permitir compatibilizar a protecção dos créditos tributários com a efectiva e eficaz prossecução das finalidades do CIRE, assegurando ainda o cumprimento das obrigações a que o Estado Português se vinculou no “Memoradum de entendimento sobre condicionalismos específicos de política económica”, de 17 de Maio de 2011, onde se consagra: “as autoridades tomarão também as medidas necessárias para autorizar a administração fiscal e a segurança social a utilizar uma maior variedade de instrumentos de reestruturação baseados em critérios claramente definidos nos casos em que os credores tenham aceite a reestruturação dos seus créditos, e para rever a lei tributária com vista à remoção de impedimentos à restruturação voluntária das dívidas” , vide Catarina Serra, in “Processo Especial de Revitalização - contributos para uma “rectificação”, artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados, nº 72, Abril/Setembro de 2012, páginas 739 a 741).
Na situação sub judice, o plano aprovado pela maioria dos credores previa que “A dívida à Segurança Social será regularizada através de Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respetivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte. - Garantias: A analisar no âmbito da execução fiscal”.
Tal cláusula consubstancia objectivamente uma (inegável) restrição ao conteúdo desse mesmo crédito, ofensiva das mencionadas disposições legais e que motivou aliás o voto desfavorável do Centro Distrital do Instituto da Segurança Social de ..., ora recorrido.
Assim sendo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães decidiu acertadamente quando entendeu que o Plano de Revitalização não podia produzir efeitos que se traduzissem na modificação restritiva do conteúdo dos créditos titulados pelo Instituto da Segurança Social e contra a sua vontade, constituindo violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, nos termos e para os efeitos do artigo 215º do CIRE, aplicável ao processo especial de revitalização nos termos do artigo 17º-F, nº 7, do mesmo diploma legal.
A revogação nessa parte – e segundo tal perspectiva - da sentença de 1ª instância impunha-se e afigura-se-nos não suscitar, em termos sérios e razoáveis, controvérsia ou dúvida fundada.
(sobre esta matéria, vide Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, Almedina 2015, a páginas 412 a 413, onde se enfatiza que “O aditamento do nº 3 referido (ao artigo 30º da Lei Geral Tributária) visava, designadamente, enfrentar as dúvidas que até aí surgiam acerca da relação entre o CIRE, a LGT, o CPPT, e o regime da regularização das dívidas à segurança social. Com efeito, a jurisprudência mostrava-se dividida quanto à possibilidade de o plano de insolvência, porque previsto em lei especial, afastar o regime contido em normas imperativas da legislação referida. O artigo 30º, nº 3, da LGT não permite agora dizer que as soluções previstas no plano prevaleceriam sobre a legislação fiscal”).
Todavia, da imposição legal de proibição de modificação restritiva do conteúdo do crédito tributário não resulta necessariamente a solução drástica de recusa, pura e simples, de homologação do plano de recuperação da revitalizada que o tornaria totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível.
Neste sentido, a solução mais equilibrada, adequada e curial que permitirá, simultaneamente, harmonizar os relevantes interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, reforçados em função dos formais compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado Português, com a imperativa e intransigente defesa dos créditos tributários em geral, consiste em fixar ineficácia relativa à homologação da aprovação do plano de revitalização no que concerne aos créditos de natureza tributária reclamados e de que é titular o Instituto da Segurança Social.
Ou seja, o plano de revitalização produzirá todos os seus efeitos, viabilizando-se assim o prosseguimento da actividade económica e comercial da empresa e satisfazendo os interesses dos credores na exacta medida acordada e por eles aceite, com excepção daqueles que teriam reflexo na esfera jurídica do Instituto da Segurança Social, enquanto entidade titular de créditos de natureza tributária, ao qual não serão oponíveis, permanecendo, portanto, intangíveis e imodificáveis no seu conteúdo.
A ineficácia relativa do Plano, não afectando os créditos de natureza tributária da Segurança Social, mas permitindo a sua homologação, foi aliás in casu expressamente solicitada, ainda que a título subsidiário, nas alegações de revista por parte da sociedade recuperanda – vide conclusões R) a T).
(neste preciso sentido, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2018 (relator Pinto de Almeida), proferido no processo nº 5781/16.7T8VIS-D.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2014 (relator Fonseca Ramos), Processo: 1412/20.9T8VNF.G1.S1, proferido no processo nº 1786/12.5TBTNV.C2.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Abril de 2014 (relator Fernandes do Vale), proferido no processo nº 185/13.6TBCHV-A.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (relator Fonseca Ramos), proferido no processo nº 217/11.2TBBGC.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYVNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.
Trata-se de resto da opção jurídica perfilhada, genericamente, pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, à qual se encontra deferida a competência neste tipo de acções (artigo 128º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Sobre o tema escreveu Catarina Serra in “O Processo Especial de Revitalização na Jurisprudência”, Almedina, 2017, 2ª edição, páginas 105 a 106: “Baseando-se na essência contratual do plano de recuperação, o Supremo Tribunal de Justiça e alguns Tribunais da Relação têm vindo a afirmar que o plano de recuperação de recuperação pode e dever ser homologado desde que se preservem os créditos tributários. Para tanto basta que se proceda, segundo uns, à restrição dos efeitos do plano aos créditos não tributários e, segundo outros, presumindo que a vontade hipotética ou conjectural das partes é no sentido de conservar o plano, à redução do plano às cláusulas incidentes sobre estes últimos créditos”.
A mesma autora discrimina, de seguida, os arestos que sufragaram tal posição jurisprudencial, a qual mereceu de resto o seu aplauso.
Em defesa desta solução vide Fonseca Ramos in “Os créditos tributários e a homologação do plano de recuperação da insolvência”, publicado in Revista do Direito da Insolvência, Ano 0, páginas 267 e seguintes.
Em sentido relativamente divergente, pronuncia-se Sara Luís Dias, no artigo citado supra, onde revela as suas reservas quanto à solução encontrada – que não obstante louva -, na medida em que, segundo refere, o CIRE não só prevê nos artigos 212º a 217º e 176º a aplicação das medidas a todos os credores, sem excepcionar a Autoridade Tributária, como privilegiou, através da Lei nº 16/2012, de 12 de Abril, a sua protecção pelo crédito tributário, o que nos parece indiciar a sua tomada de posição pela recusa, pura e simples, de homologação do plano.
A mesma autora conclui fazendo fé numa futura alteração legislativa direccionada ao combate aos efeitos nefastos associados ao encerramento de empresas, em que se prevejam medidas de redução dos créditos tributários, caso se demonstre a viabilidade da sociedade e a necessidade dessa aquiescência (salvífica, digamos assim).
Intervenção legislativa esta que, como bem se compreende, virá quando vier – se vier – de nada servindo em termos actuais, enquanto mera expectativa ou vã esperança, para acudir, enfrentar e resolver os sérios prementes e inadiáveis problemas das empresas em graves dificuldades financeiras, embora viáveis, num contexto económico crescentemente problemático e de gravíssima crise social).
Acresce dizer ainda que o valor expressivo do créditos privilegiados reclamados pelo Instituto de Segurança Social de ... – no valor total de € 76.547,58 proveniente de dívida de contribuições à segurança social – e a amplitude e relativa generosidade quanto ao seu modo de pagamento – onde se prevê a sua regularização “através de Plano Prestacional a autorizar no âmbito do Processo de Execução Fiscal, no máximo de 150 (cento e cinquenta) prestações mensais e sucessivas, sendo o respetivo requerimento formalizado pela empresa no mês de aprovação do Plano, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte, com garantias a analisar no âmbito da execução fiscal” – não justificam, na situação sub judice, o recurso à “válvula de segurança interpretativa” ensaiada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Março de 2015 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 664/10.7TYNG.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, para as situações em que se trate de “uma mera modificação dos prazos de pagamento e/ou taxas de juros que reflictam e exprimam uma redução global do crédito pouco expressiva”.
Em suma, a solução da fixação de eficácia relativa à homologação do plano de revitalização permitirá – sem perigo de ofensa de qualquer disposição legal imperativa – criar as condições necessárias para que a recuperanda retome a sua actividade e procure porventura no âmbito da execução fiscal pendente, fazendo realçar as inegáveis vantagens sociais e económicas associadas continuação do seu giro empresarial, apresentando alternativas negociais realistas e viáveis que sejam aceites pela credora pública, em termos da regularização escalonada destes créditos.
Caberá à esta última entidade, directamente vocacionada para seguir os ditames da emergência e coesão sociais, ponderar devidamente os interesses em contraposição e optar pela solução que se afigure mais razoável e conforme ao espírito da legislação (CIRE) em causa.
É concedida a revista nestes termos.


IV – DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido e subsistindo a decisão de 1ª instância que homologou o plano de revitalização, sendo embora ineficaz em relação aos créditos de que é titular o Instituto de Segurança Social ora recorrido, ao qual é nesses termos inoponível.
Sem custas.

Lisboa, 9 de Junho de 2021.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Paula Boularot.

Pinto de Almeida.  

(Tem o voto de conformidade dos Exmºs Adjuntos Conselheiros Ana Paula Boularot e Fernando Pinto de Almeida, que compõem este colectivo, nos termos do artigo 15º A, aditado ao Decreto-lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, pelo Decreto-lei nº 20/2020, de 14 de Março).



V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.