Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | OLIVEIRA ABREU | ||
Descritores: | PROPRIEDADE INTELECTUAL PEDIDO AUTORIZAÇÃO PATENTE PUBLICIDADE MEDICAMENTO INTERESSE EM AGIR PROPOSITURA DA AÇÃO EXCEÇÃO DILATÓRIA CONHECIMENTO OFICIOSO VALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 09/15/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA (PROPRIEDADE INTELECTUAL) | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | I. O nosso direito adjetivo civil não contempla o interesse em agir como exceção dilatória típica, e, nesta medida, o conceito tem sido tema doutrinal e jurisprudencial, sendo geralmente considerado exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso. II. O interesse em agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura. III. Os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem propor a ação especial prevista no art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO
1. Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company, (adiante também designada ‘1ª A.’), Swords Laboratories, (adiante também designada ‘2ª A.’) e Bristol-Myers Squibb Farmacêutica Portuguesa, S.A. (adiante também designada ‘3ª A.’ ou ‘BMSFP’), vieram intentar a presente ação declarativa de condenação contra as rés (RR.) Sandoz, B.V. (adiante também designada ‘1ª R.’ ou ‘Sandoz’) e Sandoz Farmacêutica, Lda. (adiante também designada ‘2ª R.’), pedindo que sejam as RR. condenadas a: a) absterem-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si próprias e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo das AIMs identificadas no artigo 70º, após serem concedidas) a invenção protegida pela EP ‘415 e pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no comércio, vender e/ou oferecer, os Genéricos Apixabano identificados no artigo 70º da Petição Inicial, enquanto a EP ‘415 e o CCP 456 estiverem em vigor; b) absterem-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si próprias e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo das AIMs identificadas no artigo 70º, após serem concedidas) a invenção protegida pela EP ‘415 e pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer quaisquer produtos que compreendam apixabano como substância activa, enquanto a EP ‘456 e o CCP 456 estiverem em vigor se mantiver em vigor. Articularam, com utilidade, que a BMSHI é titular da patente europeia nº 1427415 referente a ‘Compostos contendo lactama e seus derivados como inibidores do factor XA’ (adiante ‘EP 415’), solicitada junto do Instituto Europeu de Patentes (EPO) em 17.09.2002 e concedida em 12.08.2009 e validada em Portugal em 22.10.2009 (doc. 2, a fls. 69-273), a qual se manterá em vigor até 17.09.2022. A patente EP 415 protege (reivindicação 1) a substância activa apixabano, um dos compostos contendo lactama, cuja fórmula química é: 1-(4-metoxifenil)-7-oxo-6-[4-(2-oxopiperidin.1-il)fenil]-4,5-dihidropirazolo[3,4-c]piridina-3-carboxamida, que é a única substância activa do medicamento Eliquis®, desenvolvido em colaboração entre a Brystol-Myers Squibb e a Pfizer Inc. e indicado para as seguintes terapias cfr. cópia do correspondente Resumo das Características do Medicamento (RCM) – doc. 1, fls. 22-67: - prevenção de acontecimentos tromboembólicos venosos (TEV) em doentes adultos que foram submetidos a artroplastia electiva da anca ou joelho; - prevenção de acidente vascular cerebral e embolismo sistémico em doentes adultos com fibrilação auricular não valvular com um ou mais factores de risco tais como acidente vascular cerebral ou acidente isquémico transitório prévios; idade ≥ 75 anos; hipertensão; diabetes mellitus; insuficiência cardíaca sintomática (Classe NYHA ≥ II); - tratamento de trombose venosa profunda (TVP) e embolia pulmonar (EP), e prevenção de TVP recorrente em adultos (para doentes com EP hemodinamicamente instáveis ver secção 4.4). A EP 415 é a patente de base do certificado Complementar de Protecção nº 456 (CCP 456), concedido em 24.10.2011 com base na dita patente e na autorização de introdução no mercado C(2011)3595 (EU/1/11/691) para o medicamento Eliquis®, que foi a primeira autorização de introdução no mercado para a colocação do apixabano no mercado como medicamento na União Europeia, concedida em 18.05.2011 e notificada em 20.05.2011 – doc. 3, fls. 276-311. O CCP 456 entrará em vigor logo após a caducidade da patente de base EP 415, estendendo assim a protecção desta relativamente à substância activa apixabano, única substância activa do Eliquis®. A 1ª A concedeu uma licença à 2ª A., e esta uma sub-licença à 3ª A. para explorar no mercado português os direitos conferidos pela EP 415, incluindo o direito de vender e/ou usar ou por outra forma dispor dos medicamentos abrangidos pela dita patente, bem como propor ações em juízo, com vista à defesa desses direitos, licenças estas averbadas no INPI cfr. docs. 4 e 5, fls. 311v-326. De acordo com a lista publicada na página eletrónica oficial do Infarmed, a 1ª R. Sandoz B.V. requereu em 31.10.2019 autorizações de introdução no mercado (AIMs) nº 650746, publicada em 11.01.2020, e nº 650747, publicada em 15.01.2020, para medicamentos genéricos contendo a substância activa ‘Apixaban’ na dosagem 2,5mg em forma de ‘comprimidos revestidos por película’ (adiante também designados ‘genéricos apixaban’), cujo medicamento de referência é aí identificado como ‘Eliquis’, cfr. certidões emitidas pelo INFARMED juntas como docs. 6 e 7 a fls. 326v-327 dos autos, que se dá por reproduzido. Decorre das ditas certidões juntas como docs. 8 e 9 (fls. 327v-328) que a 2ª R. Sandoz Farmacêutica, Lda. é a futura titular proposta da AIM dos genéricos apixaban, assim que esta for concedida. Os genéricos apixabano, bem como qualquer produto que compreenda o composto apixabano, enquanto tal ou para as aplicações terapêuticas protegidas pela EP 456 (reivindicações 1, 2, 5 e 7), estão abrangidos no âmbito de protecção desta e do CCP 415 que estende a dita protecção para o produto apixabano. A exploração da invenção protegida pela EP 415 e pelo CCP 456 e, nomeadamente, o fabrico, a oferta, a venda, a armazenagem, a colocação no mercado ou a utilização, no território português, ou a respetiva importação ou posse, com vista a qualquer das finalidades acima referidas, dos genéricos apixabano ou de quaisquer outros produtos que compreendam o composto apixabano, constituirá uma violação dos direitos da BMS decorrentes da EP 415 e do CCP 456. Sendo certo que as RR. não solicitaram nem obtiveram o consentimento das AA. para explorar a invenção protegida pela EP 415 e pelo CCP 456. 2. Regularmente citadas, as RR. contestaram, alegando designadamente falta de interesse em agir por parte das AA. e pedindo a consequente absolvição da instância. 3. As AA. replicaram, pronunciando-se pelo indeferimento da requerida suspensão da instância e improcedência da reconvenção. 4. Foi realizada audiência prévia nos termos e para os efeitos do art.º 591º n.º 1, alíneas a) e b) do Código de processo Civil. 5. Foi proferido saneador/sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, e nos termos das disposições citadas, na presente acção movida pelas AA. Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company, Swords Laboratories e Bristol-Myers Squyibb Farmacêutica Portuguesa, S.A. contra as RR. Sandoz, B.V. e Sandoz Farmacêutica, Lda. julgo a excepção de falta de interesse em agir deduzida pelas RR. procedente e provada e, em consequência, absolvo as RR. da instância.” 6. É contra esta decisão que as Autoras/Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company e outras se insurgem, interpondo recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, aduzindo as seguintes conclusões: “A. OBJETO DO RECURSO: O presente recurso vem interposto da Sentença de 3 de março de 2022, que absolveu as Rés da instância por verificação de exceção inominada de falta de interesse em agir por parte das Autoras. B. O recurso versa também, por ora, sobre o julgamento da matéria de facto relativa aos factos provados 6, 9 e 10, os quais configuram erros materiais. Mas quando, como se espera, o Tribunal a quo proferir um despacho a retificar os erros materiais, como requerido pelas Recorrentes ao abrigo do artigo 614.º do CPC, as Recorrentes desistirão do recurso nesse segmento, assim se reunindo os pressupostos para que este Supremo Tribunal conheça do recurso per saltum que ora se interpõe. C. ADMISSIBILIDADE DO PER SALTUM: O primeiro requisito previsto no artigo 678.º, n.º 1, alínea a), do CPC, encontra-se verificado, uma vez que o valor da presente causa é de €30.000,01 – portanto, superior à alçada da Relação; o segundo requisito também se encontra igualmente verificado, considerando que a sucumbência foi total; o terceiro requisito também se verifica uma vez que as Recorrentes irão (como se espera) desistir do seu recurso na parte relativa à matéria de facto, ficando o seu recurso a versar apenas sobre matéria de Direito; o quarto também se encontra preenchido, uma vez que a decisão impugnada é a decisão final, não havendo recursos de despachos interlocutórios. D. IMPUGNAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO – FACTO PROVADO 6: é incorretamente feita referência à substância ativa fingolimod (esta substância ativa não foi em momento algum referida nestes autos), quando deveria ter sido referida a substância ativa apixabano, (cf. factos assentes 5 e 7, articulados apresentados pelas Partes e por exemplo Doc. n.º 1 junto à Petição Inicial). O facto 6 deve assim ser substituído por “No mercado português os medicamentos de referência que contêm apixabano como substância activa são comercializados sob a marca Eliquis®”. E. FACTO PROVADO 9: é incorretamente feita referência apenas à dosagem de 2,5mg, sendo omitida a dosagem de 5mg que também deveria ser mencionada (cf. referência do próprio Tribunal às datas em que foram publicitados cada um dos pedidos de AIM em causa, em conformidade com o que foi alegado no artigo 70.º da Petição Inicial e provado documentalmente através dos Doc.s n.os 6 e 7 juntos à Petição Inicial). O facto 9 deve ser assim substituído por “De acordo com as listas publicitadas nos dias 11.01.2020 e 15.01.2020 na página electrónica do Infarmed, a 1ª R. requereu em 31.10.2019 autorizações de introdução no mercado (AIMs) para medicamentos que contêm a substância activa ‘Apixiban’ sob a forma farmacêutica de ‘Comprimidos revestidos por película’, nas dosagens de 2,5mge de 5 mg, tendo por medicamento de referência o Eliquis® das AA”. F. FACTO PROVADO 10: uma vez que não está em causa uma única AIM, mas sim duas AIMs, impõe-se o emprego do plural no facto 10 (cf. também artigo 71.º da Petição Inicial e Doc.s n.ºs 8 e 9 juntos à Petição Inicial). O facto 10 deve ser assim substituído por “A 2ª R. foi indicada como futura titular das referidas AIMs.”. G. IMPUGNAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO –FINALIDADES DA LEI 62/2011: A Lei 62/2011 tem duas finalidades primordiais (i) pôr termo à consagração prática do chamado patent linkage pelos tribunais administrativos e (ii) criar uma ação preventiva precoce, tendente a prevenir a infração de patentes farmacêuticas por medicamentos genéricos. H. Esta ação visa, assegurar, em tempo anterior à sua lesão, a efetividade dos direitos de propriedade industrial (no caso, da BMS), tutelando adequada e oportunamente o jus prohibendi dele resultante e obtendo, desse modo, a realização de garantia constitucional da tutela jurisdicional efetiva – neste caso, preventiva. I. A IMPORTÂNCIA DA TUTELA PREVENTIVA: A tutela preventiva é crucial para defesa dos direitos de propriedade industrial, considerando a natureza temporária dos mesmos. Como reconheceu por exemplo o STJ já em 2010, o prejuízo decorrente da entrada prematura e ilegal de um medicamento genérico num mercado exclusivo poderá nunca vir a ser devidamente ressarcido. J. Importa recordar que o artigo 20.º, n.º 5, da CRP é perentório e absolutamente definitivo a estabelecer o direito fundamental à tutela jurisdicional preventiva efetiva, para defesa de ameaças de violação, o que foi reconhecido também no artigo 2.º, n.º 2 do CPC. Isto significa que as ações judiciais declarativas tanto podem servir para prevenir a violação de um direito como para realizá-lo coativamente ou para reparar a sua violação quando cometida. K. OS ERROS DOS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA RECORRIDA – ERRO NA IDENTIFICAÇÃO DA QUESTÃO A DECIDIR: A questão a decidir não é saber se o pedido de AIM que espoletou os presentes autos consubstancia violação ou ameaça de violação patente da EP 415 ou do CCP 456 por parte das Recorridas, desde logo porque as Recorrentes nunca alegaram que os pedidos de AIM formulados pelas Recorridas consubstanciassem uma violação dos seus direitos de propriedade industrial. L. Nem se percebe de que forma é que os pedidos formulados nesta ação teriam como efeito estender o período de exclusivo além do período de validade dos direitos invocados, como afirma o Tribunal a quo, quanto os pedidos são claríssimos ao limitar a condenação a “enquanto os direitos estiverem em vigor”). M. O RISCO DE VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PATENTE OU CCP: É incabível o argumento do Tribunal a quo segundo o qual a AIM é um risco tão potencial de violação dos direitos exercidos nestes autos como qualquer outro, uma vez que, como o próprio nome indica, um pedido de AIM (Autorização de Introdução no Mercado) permite o lançamento do medicamento em causa no mercado. N. Além da sua natureza permissiva, a AIM tem também uma eficácia de natureza impositiva ou injuntiva, visto que da sua concessão decorre para o destinatário a obrigação de comercialização efetiva do medicamento que é objeto imediato desse ato administrativo (artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do Estatuto do Medicamento). O. É, pois, evidente que o risco que advém da apresentação de um pedido de uma AIM não pode ser considerado tão potencial como qualquer outro risco – tendo sido de resto por isso que a Lei 62/2011 estabeleceu este ato e não outro como desencadeando a ação que regula (neste sentido, cf. jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, por exemplo Processo n.º 346/20.1YHLSB.L1). P. O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO QUE ANTECEDEU A LEI 62/2011: O Tribunal a quo persiste na narrativa incorreta acerca das ações propostas nos tribunais administrativos que precederam a Lei 62/2011; mas a Recorrentes nunca defenderam (como não defendem agora) que uma AIM, por si só, viola patentes. Q. As ações administrativas que eram propostas antes da Lei 62/2011 assentavam no fundamento de que o ato administrativo de concessão de uma AIM (e não o seu pedido), eram nulos, nos termos do artigo 133.º, n.º 2, alíneas c) e d) do Código do Procedimento Administrativo, se a sua eficácia não fosse diferida para data posterior à da caducidade da patente na medida em que abria caminho à violação dessa patente, o que representava uma infração por parte do INFARMED dos seus deveres de proteção de direitos fundamentais constitucionalmente protegidos (artigo 9.º, alínea b) da Constituição). R. A NECESSIDADE DE OBTENÇÃO DE UMA DECISÃO CONDENATÓRIA: É também totalmente incompreensível o argumento de que não faria sentido que o legislador tivesse criado uma ação com vista a reforçar um preceito legal, no caso o artigo 102.º do CPI. S. Além dos casos limitados de recurso à ação direta, os direitos não são automaticamente exercíveis – e o direito de propriedade industrial não é exceção. O facto de um direito estar previsto na lei substantiva é precisamente a premissa básica e necessária para que o seu titular possa intentar uma ação judicial, como aconteceu no presente caso, com vista a que o mesmo seja reconhecido e protegido através de uma decisão judicial. T. O ALEGADO EMPOLAMENTO DO CONTENCIOSO: É também totalmente falso que tenha havido um empolamento do contencioso no rescaldo da entrada em vigor da Lei 62/2011, quando o que aconteceu foi precisamente o oposto: a Lei 62/2011 contribui para o incremento de transações extrajudiciais entre inovadores e genéricos, como ficou definitivamente demonstrado pelo relatório da Direção-Geral da Concorrência da EU, que deu nota que Portugal foi, de longe, o Estado-Membro onde mais transações haviam sido celebradas, associando esse aumento à Lei 62/2011. U. A ALEGADA IMPOSSIBILIDADE DE AS RÉS INVOCAREM A NULIDADE DOS DIREITOS INVOCADOS PELAS AUTORAS: O Tribunal a quo sabe perfeitamente que são inúmeras as vezes que as rés deduzem um pedido reconvencional no contexto destas ações, sendo que as Recorrentes nunca defenderam que o processo desenhado na Lei 62/2011 impedia a dedução de um pedido reconvencional. V. Para mais, como também é do conhecimento do tribunal a quo, o Tribunal da Relação de Lisboa já se reconheceu mais do que uma vez que a Lei 62/2011 não impede a dedução dos pedidos reconvencionais no contexto destas ações. Portanto, as Recorridas apenas não invocaram a nulidade da EP ‘415 e/ou do CCP 456 porque não o quiseram fazer. W. A ALEGADA “INEXISTÊNCIA DO LITÍGIO”: As considerações efetuadas pelo Tribunal a quo a propósito da suposta inexistência de litígio por inexistir violação dos direitos invocados são totalmente despidas de fundamento, desde logo quando estamos perante uma ação contestada em que, por isso, o litígio é apodítico. X. Em concreto, a palavra “litígio” não esta definida na lei processual, não significando coisa diversa de “o próprio pleito”. Por isso, não tem qualquer cabimento o entendimento do Tribunal a quo segundo o qual apenas existiria litígio caso o direito das Autoras estivesse a ser violado. Na realidade, esse entendimento descura por completo a existência de ações preventivas – ações essas que, como vimos são expressamente admitidas pela Constituição. Y. E nem faria qualquer sentido que o legislador tivesse atribuído aos titulares de direitos de propriedade industrial o direito de iniciarem ações, ao abrigo da Lei 62/2011, com base na simples publicitação de um pedido de AIM, e, ao mesmo tempo, fazer depender a procedência da ação da demonstração de uma infração ou iminência de infração dos direitos invocados para existência de um litígio e, naturalmente, da vertente subjetiva desse ilícito traduzido na vontade do demandado. Z. A menos que a Sentença do Tribunal a quo pretendesse, afinal, afirmar que aos titulares das patentes está vedada a tutela inibitória preventiva, fora do quadro da violação, o que, não só não cabe no conceito deste tipo de ações, tal como definido no artigo 10.º, n.º 3, alínea b) in fine, do CPC, como representaria uma interpretação inconstitucional dessa norma, por restringir, de forma constitucionalmente intolerável, o direito à tutela jurisdicional efetiva decorrente do artigo 20.º da CRP quando aplicada aos titulares de patentes. AA. A formulação, pela Primeira Recorrida, dos pedidos de autorização para lançar no mercado o medicamento protegido na vigência da patente base, cerca de 7 anos antes da caducidade dos direitos de propriedade industrial invocados, é suficiente para configurar uma ameaça de lesão do direito das Recorrentes, traduzida na previsão ou probabilidade de que a Recorrida projetassem entrar no mercado “em risco”, ou seja, na vigência dos referidos direitos. Em particular, num quadro legal que estipula um prazo de duzentos e dez dias para a decisão pelo INFARMED sobre o pedido de AIM. BB. O INTERESSE EM AGIR E A JURISPRUDÊNCIA NESSA MATÉRIA: Em suma, o interesse em agir das Recorrentes pode ser perspetivado sobre três prismas diversos: (i) como decorrente da própria Lei 62/2011 que dispensa a demonstração de quaisquer outras circunstâncias, suportando a admissibilidade processual da ação fundada no regime nela instituído; (ii) como decorrendo dos termos gerais da Lei (nomeadamente dos artigos 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, artigo 2.º, n.º 2 e artigo 10.º, n.º 3, alínea b), in fine, ambos do CPC), que prevê especificamente o acesso à tutela preventiva ou (iii) por razões de segurança jurídica, atendendo à jurisprudência contraditória que existe sobre a questão da caducidade do direito de ação após o prazo estabelecido na Lei 62/2011, sempre teriam interesse processual em iniciar uma ação para garantirem que o seu direito de ação não ficaria futuramente precludido. CC. Por outro lado, é de assinalar a vasta jurisprudência sobre esta matéria, proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa e mesmo por este Supremo Tribunal de Justiça – cf. Acórdãos proferidos nos processos n.ºs 346/20.1YHLSB.L1, 438/21.0YHLSB, 40/20.3YHLSB.L1, 83/20.7YHLSB-A.L1, 242/20.2YHLSB.L1, 200/20.7YHLSB.L1, 144/20.2YHLSB.L1, 314/19.6YHLSB.L1, 119/21.4YHLSB.L1, 169/20.8YHLSB.L1, 104/22.9YRLSB, 226/20.0YHLSB.L1-PICRS, 139/19.9YHLSB.L1, 11/20.0YHLSB.L1, 505/20.7YHLSB.L1, 225/21.5YHLSB.L1, 130/21.5YHLSB.L1e 138/21.0YHLSB.L1 pelo TRL e acórdãos proferidos nos processos n.ºs 219/19.0YHLSB.L1.S1, 225/20.2YHLSB.S1 ou 115/20.9YHLSB.L1.S1 do STJ. DD. CONHECIMENTO IMEDIATO DO MÉRITO: Decidida que seja a revogação da Sentença, pelos fundamentos acima expostos, nada obsta a que este Tribunal profira de imediato decisão de mérito relativamente aos pedidos formulados na Petição Inicial, uma vez que os factos constantes dos autos, provados documentalmente, permitem a condenação imediata das Rés, ora Recorridas condenação em todos eles. EE. Em concreto, resulta provado que: 1. A Primeira Recorrente é titular da EP 415 e do CCP 456 (cf. artigos 37.º e 43.º da Petição Inicial e Docs. n.os 2 e 3 juntos à Petição Inicial) – facto assente 1; 2. A Segunda e Terceira Recorrentes são, respetivamente, licenciada e sublicenciada da EP 415 e do CCP 456 (cf. artigos 66.º e 67.º da Petição Inicial e Docs. n.ºs 4 e 5 juntos à Petição Inicial) – facto assente 1; 3. AEP 415tem29 reivindicações que são as que constam do Doc. n.º 2 junto à Petição Inicial (cf. artigo 41.º da Petição Inicial e Doc. n.º 2) – facto assente 4; 4. O CCP 456, que tem como patente base a EP 415, estende a proteção da EP 415 relativamente à substância ativa “apixabano”, que é a única substância ativa no ELIQUIS® (cf. artigo 50.º da Petição Inicial e Doc. n.º 3) – facto assente 8; 5. A Primeira Recorrida requereu, em 31 de outubro de 2019, duas autorizações de introdução no mercado para medicamentos genéricos que contêm a substância ativa “apixabano” sob a forma farmacêutica de comprimidos revestidos por película, nas dosagens de2,5 mg e 5 mg, que têm como medicamento de referência o ELIQUIS® (cf. artigo 70.º da Petição Inicial e Docs. n.os 6 e 7 juntos à Petição Inicial) – facto assente 9; 6. A Segunda Recorrida foi indicada como futura titular das referidas AIMs (cf. Artigo 71.º da Petição Inicial e Docs. n.os 8 e 9) – facto assente 10; 7. As Recorridas nunca solicitaram, nem obtiveram, por alguma forma, a autorização para explorar, por qualquer meio, as invenções protegidas pela EP 415 e pelo CCP 456 (cf. artigo 69.º da Petição Inicial) – facto assente 11. FF. À luz destes factos, mostram-se reunidos os requisitos para que sejam as Rés imediatamente condenadas no primeiro e segundo pedidos formulados na petição inicial. GG. Finalmente, também o pedido de pagamento de uma sanção pecuniária deve proceder a fim de forçar e incitar as Recorridas a realizar a prestação devida (uma obrigação negativa – de non facere – e infungível) mediante a ameaça de consequências mais gravosas para os seus interesses do que aquelas que resultam do adimplemento. Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exªas doutamente suprirão, deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e, em consequência, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, com os corretos pressupostos de facto e respetiva fundamentação, e sem os vícios de Direito nesta sede alegados, julgue verificado o interesse em agir das Recorrentes e condene as Recorridas em todos os pedidos formulados pelas Recorrentes na sua Petição Inicial.” 8. As Recorridas/Rés/Sandoz, B.V. e outra apresentaram contra-alegações. 9. Foi proferido despacho com o seguinte conteúdo: “Requerimento de 13.04.2022 (ref.ª 41933115): atendendo a que se trata de meros lapsos cuja correcção decorre necessariamente do contexto e restantes referências da decisão, defiro a requerida rectificação de erros materiais da sentença de 3.03.2022 (ref.ª 475390, fls. 513-522) nos termos do artigo 614º, nº 3, do CPC, passando as expressões ‘fingolimod’ (facto assente 6), ‘na dosagen de 2,5 mg’ (facto assente 9) e ‘da referida AIM’ (facto assente 10) a ler-se ‘apixabano’, ‘nas dosagens de 2,5 mg e de 5 mg’ e ‘das referidas AIMs’, respectivamente. 10. Foram dispensados os vistos. 11. Cumpre decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. A questão a resolver, recortada das alegações de revista interposta pelas Autoras/Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company e outras consiste em saber se: (1) O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao deixar de reconhecer o interesse de agir das Autoras quando se impõe o respetivo interesse processual, como necessidade de proteção jurídica, circunscrito às AIMs reconhecidamente pedidas pelas demandadas, entretanto, publicadas? II. 2. Da Matéria de Facto Com relevância e interesse para a decisão do mérito da causa, da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: “1- A 1ª A. é titular da EP 415, com a epígrafe “Compostos contendo lactama e seus derivados como inibidores do factor Xa”, sendo a 2ª A. licenciada da 1ª A. e a 3ª A. sublicenciada da 2ª A. para exploração dos direitos conferidos por esta patente no mercado português. 2 - O pedido de patente que deu lugar à EP 415 foi apresentado no Instituto Europeu de Patentes em 17.09.2002. 3 - Em Portugal foi apresentada no INPI a tradução em portuguesa do fascículo da Patente em 22.10.2009. 4 - A EP 415 vigorará até 17.09.2022 e tem 29 reivindicações, cfr. doc. 2 junto a fls. 69-272 dos autos, que se dá por reproduzido. 5 – A EP 415 protege compostos contendo lactama e seus derivados que são inibidores de enzimas serina-proteases tipo tripsina (especialmente factor Xa), designadamente o apixabano (cuja fórmula química é: 1-(4-metoxifenil)-7-oxo-6-[4-(2-oxopiperidin.1-il)fenil]-4,5-dihidropirazolo[3,4-c]piridina-3-carboxamida), e métodos de utilização dos mesmos como agentes anticoagulantes para tratamento de desordens tromboembólicas. 6 - No mercado português os medicamentos de referência que contêm apixabano, como substância activa são comercializados sob a marca Eliquis®. 7 - A Bristol-Myers Squibb Pfizer EEIG é a titular da AIM C(2011)3595 (EU/1/11/691) para o medicamento de referência contendo apixabano como substância activa comercializados em Portugal pela 3ª A., sob a designação comercial Eliquis® 8 - A 1ª A. é ainda titular do CCP 456, concedido em 24.10.2011 com base na patente de base EP 415 e na referida AIM para o medicamento Eliquis® (ponto 7 do presente enunciado de factos). 9 - De acordo com as listas publicitadas nos dias 11.01.2020 e 15.01.2020 na página electrónica do Infarmed, a 1ª R. requereu em 31.10.2019 autorizações de introdução no mercado (AIMs) para medicamentos que contêm a substância activa ‘Apixiban’ sob a forma farmacêutica de ‘Comprimidos revestidos por película’, ‘nas dosagens de 2,5 mg e de 5 mg’, tendo por medicamento de referência o Eliquis® das AA.. 10 - A 2ª R. foi indicada como futura titular das referidas AIMs. 11 - As RR. nunca solicitaram autorização para explorar as invenções protegidas pela EP 415 e pelo CCP 456.” II. 3. Do Direito O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil. II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito, ao deixar de reconhecer o interesse de agir das Autoras quando se impõe o respetivo interesse processual, como necessidade de proteção jurídica, circunscrito às AIMs reconhecidamente pedidas pelas demandadas, entretanto, publicadas? (1) A exegese seguida na sentença recorrida concluiu da ausência de necessidade para as Autoras de recorrer às vias judiciais para tutela do direito arrogado. Na verdade, respigamos do aresto em escrutínio: “Questão a decidir Cumpre analisar e decidir se o pedido de AIM com vista à introdução no mercado de medicamentos genéricos contendo a substância activa ‘apixabano’, nos termos invocados, consubstancia violação ou ameaça de violação da EP 415 ou do CCP 456 por parte da RR., requerentes daquele pedido. (…) No caso, a patente foi concedida e tem efeitos em Portugal, conforme resulta não só da documentação junta, como da consulta efectuada ao site oficial do INPI, nos termos dos artigos 77º a 81º do CPI. A patente está em vigor, sendo que tais factos nem sequer foram impugnados ou colocados, por qualquer forma, em causa. A real questão prende-se, tão só, com o pedido de AIM por parte da 1ª R. para medicamentos genéricos, em dosagem e formulação compatíveis e que igualmente contêm a substância activa ‘apixabano’ presente no medicamento de referência da autora – o Eliquis®, e o facto de a 2ª R. ter sido indicada como sendo a futura titular da AIM. Vejamos então, começando por transcrever alguns preceitos legais referentes ao Regime Jurídico dos Medicamentos de Uso Humano, aprovado pelo DL nº 176/2006, de 30 de Agosto (Estatuto do Medicamento). (…) Em suma, dos mencionados preceitos legais, resulta claro que o pedido ou a concessão de AIM não violam os direitos decorrentes de patentes ou de CCPs. Concluir de outro modo seria inferir que a protecção conferida pelo artigo 102.º do CPI, poderia, na prática, estender-se para além do período de validade da patente e do seu CCP. Isto porque, levando esse raciocínio ao limite, o pedido de AIM apenas poderia ser formulado findo o período de vigência da patente. Não foi este o objetivo pretendido, ao ser fixado o prazo de vinte anos, para a validade das patentes (eventualmente acrescidos de um prazo até cinco anos, por efeito do CCP). O objetivo foi, antes, o de garantir que no período da protecção, a exploração da invenção é exclusiva. Mas não depois dele. Caso contrário, seria passar de um monopólio justificado pela necessidade de garantir e optimizar o retorno dos investimentos feitos, a um monopólio abusivo, prejudicial, não apenas aos princípios da livre concorrência do mercado, como também aos interesses dos Estados e dos consumidores dos medicamentos – cfr. neste sentido, Maria José Costeira e Maria Teresa Garcia de Freitas, A Tutela Cautelar das Patentes de Medicamentos: Aspetos Práticos, revista Julgar - n.º 8, 2009. Esta é a melhor interpretação e a que se coaduna com a certeza jurídica que deve ser conferida pelas patentes. Por meio dela, o titular da patente sabe que durante o prazo legal pode explorar de forma exclusiva a sua invenção, mas que, no dia subsequente ao termo do mesmo, qualquer concorrente pode também começar a fazer essa exploração. O concorrente tem precisamente a mesma expectativa, na perspetiva inversa. Posto isto, temos por certo que: 1 - O pedido de AIM configura um acto administrativo preparatório para uma futura comercialização do medicamento. 2 - As autoridades administrativas que o concedem não têm que verificar se o mesmo viola ou não os direitos de propriedade industrial. 3 - Para obter uma AIM são desenvolvidos procedimentos que a lei expressamente exclui da violação da patente (citado artigo 103.º, n.º 1, al. c) do Código da Propriedade Industrial). 4 - O pedido de AIM não viola o artigo 102.º. Em suma, o pedido de AIM é um acto lícito e, como tal, não poderá, por si só, constituir ameaça aos direitos de propriedade industrial, conforme vem alegado. Aliás, a violação ou ameaça de violação de uma patente ou CCP poderá ocorrer sem a existência de AIM. E, nessa perspectiva, qualquer titular de patente está sujeito a um potencial risco de violação da sua patente. O pedido de AIM é um risco tão potencial como qualquer outro. (…) Da alegação efectuada pelas AA. na petição inicial (p.i.) resulta tão só que: - as AA. são titulares de uma patente e um CCP que protege compostos contendo lactama e seus derivados que são inibidores de enzimas serina-proteases tipo tripsina (especialmente factor Xa), designadamente o apixabano, o qual está presente em medicamentos por si comercializados sob a marca Eliquis®, estando a patente em vigor até 17.09.2022. - em 31.10.2019, a 1ª R. pediu AIMs para medicamentos genéricos contendo ‘Apixabano’ como substância activa, na forma farmacêutica de ‘Comprimidos revestidos por película’, na dosagem de 2,5mg. - tal pedido foi publicitado na página oficial do Infarmed a 11.01.2020 e 15.01.2020. - o medicamento de referência para os medicamentos genéricos referidos supra é o Eliquis®. - sendo genéricos do medicamento de referência Eliquis®, os genéricos da ré deverão ser bio-equivalentes ao aludido medicamento de referência e serão aprovados para utilizações terapêuticas semelhantes ao medicamento de referência. Assim sendo, em teoria, esses genéricos poderão, caso venham a ser comercializados antes da caducidade/revogação da patente, infringir o exclusivo das AA.. Contudo, da análise da p.i., que resumidamente se subsume ao supramencionado, não decorre qualquer tipo de alegação de que a ré violou ou ameaça infringir o direito de exclusivo de que as AA. são titulares ou licenciadas/sublicenciadas, sendo que nem alegado é que já obtiveram a AIM em causa. É certo que a 1ª R. pediu AIMs para medicamentos genéricos de Apixabano, protegido pela EP 415 e pelo CCP 456. É também certo que, obtidas as AIMs, as RR. poderão, em abstracto, comercializar tais medicamentos genéricos. Mas, o facto de a obtenção de AIM do genérico de Apixabano facultar a possibilidade de comercialização do mencionado medicamento não significa que tal vá ocorrer antes de cessada a validade dos exclusivos de que a 1ª A. é titular e as 2ª e 3ª AA. licenciada e sublicenciada, respectivamente. Aliás, a AIM é legalmente necessária à futura comercialização de qualquer medicamento. E, pretendendo, obviamente, as RR. comercializar o genérico equivalente ao medicamento de referência das AA. assim que cessar a exclusividade destas sobre o mesmo, todo o processo administrativo necessário à comercialização de tal medicamento tem de estar terminado nessa altura. Para além de que, como vimos supra, o Infarmed não poderia nunca recusar um pedido de AIM com fundamento na existência de direitos exclusivos como os aqui invocados. Resulta apenas que a R. apresentou pedidos de AIM para um genérico do medicamento de referência protegido pela patente/CCP das AA., o que constitui exercício de um direito que não interfere com direitos de propriedade industrial, nem depende do consentimento dos respectivos titulares, nos termos dos citados artigos 14º nº 1, 15º nº 1, 19º nº 8 e 25º nº 2 do DL 176/2006, 103º, nº 1, al. c) do CPI e 5º do Regulamento 469/2009/CE. Não se verifica, pois, qualquer violação de direitos exclusivos das AA. por parte das RR., susceptível de fundamentar a condenação destas nos termos peticionados. O pedido de AIM, enquanto acto realizado exclusivamente para instrução de processo administrativo necessário à aprovação de produtos farmacêuticos pelos organismos oficiais competentes, está excluída dos direitos conferidos pela patente, nos termos dos artigos 103º, nº 1, al. c), 19º, nº 8 do DL 176/2006 e 5º do Regulamento 469/2009/CE. (…) Ora, não obstante as AA. entenderem que o simples pedido de uma AIM poderá, eventualmente, permitir que as RR. comercializem um medicamento, o certo é que tal entendimento não nos permite proceder com a apreciação do pedido formulado, pois inexiste um conflito real que vise ser dirimido. (…) Em suma, não se tendo provado qualquer violação ou iminência de violação dos direitos das AA., sendo que nem tal foi, sequer, alegado, falece o interesse em agir das AA., o que constitui excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição da instância, nos termos dos artigos 576º, nºs 1 e 2 e 577º do CPC.” Vejamos: Como sabemos, o nosso direito adjetivo civil não contempla o interesse em agir como exceção dilatória típica, e, nesta medida, o conceito tem sido tema doutrinal e jurisprudencial, sendo geralmente considerado exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso. “O interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, página 97. O interesse de agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação. De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve ter a virtualidade de corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura. Como defende, Anselmo de Castro, in, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, 1982, página 253, “O interesse em agir apresenta-se como um interesse instrumental em relação ao interesse substancial primário, pressupondo a lesão de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reintegração ou tanto quanto possível integral satisfação”. A propósito da questão que importa apreciar, temos que este Supremo Tribunal de Justiça tem assumido uma orientação consistente no sentido de reconhecer o interesse em agir às demandantes com reconhecidos direitos de propriedade industrial, decorrente de uma patente, face a um pedido de AIM, entretanto publicitado, donde, seguiremos de perto um recente aresto que, de forma clara e bem estruturada, evidencia a orientação jurisprudencial sufragada. Assim, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 21 de abril de 2022, no âmbito do Processo n.º 40/20.3YHLSB.L1.S1, foi entendido, e este Tribunal coletivo, sufraga, que os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem propor a ação especial prevista no art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado, respigando-se deste aresto: “Quanto à matéria do recurso das rés envolvendo o pressuposto do interesse processual, ainda que este não conste do Código de Processo Civil, é admitido e reconhecido pela jurisprudência - cfr. acs. do STJ de 6-10-2016 no proc. 1946/09.6TJLSB.L1.S1, de 29-6-2017 no proc. 5043/16.0T8STB.S1; de 9-5-2018 no proc. 673/13.4TTLSB.L1.S1; de 19-12-2018 no proc. 742/16.9T8PFR.P1.S1.; 8-4-2021 no proc. 219/19.0YHLSB.L1.S1 ou de 9 de Dezembro de 2021 no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1, in dgsi.pt. - consistindo na “necessidade de usar do processo, de instaurar ou de fazer prosseguir a ação” - cfr. Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de processo civil, cit., pág. 179. Estando preenchido este requisito do interesse em agir quando, relativamente ao autor, “a situação de carência, em que se encontre, necessite da intervenção dos tribunais (…) exige-se, por força dele uma necessidade razoável, justificada, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação - mas não mais do que isso” - Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, op. cit. p. 180 e 181 – resulta daqui que o demandante de uma ação de condenação só terá interesse processual desde que alegue a violação do seu direito – cfr Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, p. 80 ou por Antunes Varela / José Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, op. cit. p. 182. No caso em decisão, o que se deixa exposto imporia que as autoras (…), não tivessem interesse processual em propor a presente ação por não ser o pedido de autorização de introdução do mercado de um medicamento genérico, por si só, uma violação dos direitos de propriedade intelectual do titular da patente do medicamento de referência. O ac. do STJ de 20-5-2015 no proc. 747/13.1YRLSB.S1, que por sua vez é acolhido no ac. do STJ de 8-4-2021 já antes citado afirma que “O titular de uma patente tem o direito à sua exploração económica exclusiva, isto é, um verdadeiro monopólio de exploração – art. 101.º, n.º 1, do CPI –, podendo fazer valer os seus direitos contra terceiros que, de algum modo, pretendam invadir esse monopólio, enquanto aquela não caducar. Concretizando o conteúdo desse direito de monopólio de exploração, o art. 101.º, n.º 2, do CPI, prescreve que “a patente confere ao seu titular um conjunto de direitos, nomeadamente o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português e de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados”. E não obstante a entrada no mercado de medicamentos genéricos implicar, necessariamente, que as patentes respeitantes aos medicamentos de referência tenham expirado (arts. 99.º e 101.º do CPI), o processo administrativo de concessão de autorização de introdução no mercado (AIM) e de fixação de preço pode ser iniciado antes dessa caducidade, por razões económicas e de ordem pública que se prendem com a morosidade de tais processos. A Lei n.º 62/2011, de 12-12, ao introduzir alterações ao Estatuto do Medicamento, aditou igualmente um art. 23.º-A, no qual expressamente se declara que o pedido que visa a obtenção de inclusão do medicamento na comparticipação não pode ser indeferido com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial, e que a decisão a proferir sobre a inclusão ou exclusão de medicamento na comparticipação não tem por objeto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial. De igual forma o art. 179.º do mesmo Estatuto do Medicamento, respeitante à suspensão, revogação ou alteração de autorização ou registo concedido ao abrigo do diploma passou a prever expressamente que “a autorização ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial”. Face ao referido em IV e V, resulta evidente a constatação, e subsequente afirmação, de que para o legislador, sem qualquer distinção, a concessão de autorização de introdução de um genérico no mercado não constitui, por si, violação da patente que proteja substância, processo de fabrico ou utilização implicada nesse medicamento, não se inserindo assim em nenhuma das atuações proibidas pela previsão do n.º 2 do art. 101.º do CPI. Pelo que, podiam as demandadas ter requerido a concessão da AIM e podia o INFARMED tê-la concedido, como concedeu em alguns dos medicamente genéricos aqui em causa, sem que com isso esteja a ser violado o direito de propriedade industrial decorrente da patente do medicamento de referência. […]” Em sintonia com este entendimento também o ac. do STJ de 17-5-2018, no proc. 889/17.4YRLSB.S1 repete que “[a] concessão de [autorização de introdução no mercado] de um genérico não constitui, por si só, violação do direito de propriedade industrial decorrente da patente do medicamento de referência, não se inserindo, por isso, em nenhuma das atuações proibidas pela previsão do art. 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial”. E tendo o texto do art. 102.º do novo Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro, correspondência ao art. 101.º do antigo Código da Propriedade industrial, verificamos que aquele (o art. 102.º do novo Código da Propriedade Industrial) é do seguinte teor: “1. A patente confere o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português. 2. A patente confere ainda ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento: a) O fabrico, a oferta, a armazenagem, a colocação no mercado ou a utilização de um produto objeto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados; b) A utilização do processo objeto da patente ou, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que a utilização do processo é proibida sem o consentimento do titular da patente, a oferta da sua utilização; c) A oferta, a armazenagem, a colocação no mercado e a utilização, ou a importação ou posse para esses fins, de produtos obtidos diretamente pelo processo objeto da patente. 3. A patente confere também ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, a oferta ou a disponibilização a qualquer pessoa que não tenha o direito de explorar a invenção patenteada dos meios para executá-la no que se refere a um seu elemento essencial, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que tais meios são adequados e destinados a essa execução”. Como se afirmou já - no ac. STJ de 8-4-2021 no proc. 219/19.0YHLSB.L1.S1 de que o aqui relator foi subscritor e cujo entendimento foi replicado no ac. STJ de 9 de Dezembro de 2021 no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1, de que o aqui relator foi ali relator - estando em causa uma ação de condenação, como a proposta pelas autoras contra as rés, a questão que se coloca em alternativa é a de saber se “ a apresentação de um requerimento de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico é suficiente para que os titulares de direitos de propriedade intelectual (p. ex., de patentes) sobre a substância ativa do medicamento tenham interesse em agir, pedindo que o requerente da autorização seja condenado a abster-se do fabrico, da comercialização, do armazenamento ou da exportação de medicamentos” ou se “a apresentação de um requerimento de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico não é suficiente para que os titulares de direitos de propriedade intelectual sobre a substância ativa do medicamento tenham interesse em agir, tonando-se necessário que o requerente tenha iniciado ou esteja na iminência de iniciar o fabrico, a comercialização, o armazenamento ou a exportação de medicamentos.” Neste âmbito o importante é averiguar se o critério geral de apreciação do interesse processual antes enunciado é derrogado pelo art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro que estabelece: “1- No prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. (INFARMED, I. P.), de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual ou, em caso de acordo entre as partes junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada. 2 - A não dedução de contestação, no prazo de 30 dias após citação na ação intentada no Tribunal da Propriedade Intelectual ou da notificação para o efeito pelo tribunal arbitral, implica que o requerente de autorização, ou registo, de introdução no mercado do medicamento genérico não pode iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direitos de propriedade industrial invocados nos termos do número anterior.” Neste particular, enuncia-se no ac. do STJ de 8-4-2021 que acompanhamos “[O ]texto do art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Setembro, é compatível com duas interpretações: a primeira no sentido de que impede os titulares de invocarem os seus direitos de propriedade intelectual depois do decurso do prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED do pedido de autorização de introdução no mercado de um medicamento genérico; a segunda no sentido de que não impede ou, em todo o caso, não impede em absoluto os titulares de invocarem os seus direitos depois do decurso do prazo de 30 dias. A preferência pela primeira interpretação determinaria uma de duas coisas - ou que se dispensasse o interesse processual ou, ainda que não se dispensasse o interesse processual, que o pedido de uma autorização de introdução no mercado tivesse como efeito automático, imediato e necessário a “necessidade razoável, justificada, fundada, de lançar mão do processo”. Em todo o caso, a primeira interpretação, nos termos absolutos, rígidos, em que é enunciada, causaria dificuldades insuperáveis ou quase insuperáveis - como concluíram, p. ex., o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2015, de 7 de Julho de 2015[11], o acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 2016, proferido no processo n.º 554/15.7YRLSB.L1.S1 ou os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 187/2018, de 10 de Abril de 2018, e n.º 496/2018, de 10 de Outubro de 2018”. Concretizando: no ac. do TC 123/2015 julgou-se “inconstitucional a dimensão normativa resultante do artigo 3.º, n.º 1, conjugado com o artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, segundo a qual o titular de direito de propriedade industrial não pode demandar o titular de Autorização de Introdução no Mercado ou o requerente de pedido de AIM para além do prazo de trinta dias, a contar da publicação pelo INFARMED referida no artigo 9.º, n.º 3, da mesma Lei, por violação do artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa; no ac. STJ de 7 de Dezembro de 2016 decidiu-se que “os meios de defesa não se esgotam na ação arbitral (necessária), nem essa foi sequer a intenção do legislador, pois a declaração de nulidade ou de anulação de direitos de propriedade industrial só pode resultar de decisão judicial, como decorre dos termos do art. 35.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial” e que, “para além da ação arbitral, o interessado pode ainda servir-se, sempre, da ação de nulidade ou anulação, o que reforça a salvaguarda da sua tutela jurisdicional efetiva, em termos que se podem considerar como adequados”; e no ac. do TC 496/2018, foi decidido “não julgar inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 2.º e 3.º, nº 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, segundo a qual o titular do direito de propriedade industrial não pode demandar o titular de Autorização de Introdução no Mercado ou o requerente de pedido de AIM, nos termos e para os efeitos previstos na mesma Lei, para além do prazo de trinta dias, a contar da publicação, através da página eletrónica do Infarmed, a que se refere o artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, na redação conferida pela Lei n.º 62/2011” - explicando-se a diferença em relação ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2015, de 7 de Julho de 2015, com o argumento de que, no acórdão recorrido (o acórdão do STJ de 7 de Dezembro de 2016) se tinha afastado o “efeito preclusivo de utilização dos meios comuns de tutela da propriedade industrial pela não suscitação da arbitragem necessária”. Por outro lado, a preferência pela segunda interpretação, a que não impede ou não impede em absoluto os titulares de invocarem os seus direitos depois do decurso do prazo de 30 dias “é compatível com duas soluções: a primeira no sentido de que a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011 pode ser proposta desde que seja publicitado na página eletrónica do INFARMED um pedido de autorização de introdução do mercado de um medicamento genérico – defendido Evaristo Mendes, “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in: Propriedades Intelectuais, n.º 4-2015, págs. 26-40; “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, in: Revista de direito comercial, ano 3.º (2019), págs. 75-120; ou “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 78.º (2018), págs. 627-682; a segunda no sentido de que a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 62/2011 só pode ser proposta desde que haja algo mais que um pedido de autorização para a introdução no mercado, ou seja - uma violação ou uma ameaça de violação dos direitos de propriedade intelectual dos titulares das patentes dos medicamentos de referência - como defende Dario Moura Vicente, in “O regime especial de resolução de conflitos em matéria de patentes (Lei n.º 62/2011)”, cit., pág. 980; e, na jurisprudência, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Abril de 2017 no proc. 1757-16.2YRLSB-6 in dgsi.pt. Ainda em coincidência com o acórdão que vimos transcrevendo, “em favor do primeiro termo da alternativa, alega-se que, em derrogação das regras gerais, os titulares dos direitos de propriedade intelectual não precisam de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, ou de demonstrar um interesse em agir. Seria suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico para que os titulares das patentes dos medicamentos de referência pudessem propor a ação, porque o objetivo é, havendo direitos de propriedade intelectual em vigor, clarificar os exatos termos do exclusivo, de modo que, uma vez findo este, o medicamento para que é requerida a autorização possa, sem delongas, ser lançado no mercado. Está em causa, não um mero interesse particular dos titulares de patentes ou de certificados complementares de proteção, mas um interesse de índole geral - o que expressamente é sustentado por Evaristo Mendes, in “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, Revista de direito comercial, cit., pág. 103; ou Evaristo Mendes, in “O fim da arbitragem necessária em matéria de patentes farmacêuticas. Velhos e novos problemas”, Revista da Ordem dos Advogados, cit., pág. 656. “Em favor do segundo termo da alternativa, alega-se que, os titulares dos direitos de propriedade intelectual precisam — continuam a precisar - de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, e de demonstrar um interesse em agir. O pressuposto do interesse em agir não poderia ter-se como preenchido pela alegação pelo demandante de que existe, por parte do demandado, a intenção de introduzir no mercado os medicamentos para que pediu autorizações de introdução no mercado, sobretudo, “quando o tribunal for confrontado com a afirmação perentória do demandado, que não haja contestado o direito do demandante nem haja sido acusado de o ter violado, de que não pretende comercializar o genérico em causa antes da caducidade ou invalidação da patente. Seria sempre necessária a violação, ou a ameaça de violação, dos direitos de propriedade intelectual do demandante porque a inexistência da obrigação legal de instauração de ação arbitral - sempre que é publicitado o pedido de Autorização de Introdução no Mercado para um medicamento genérico e porque a mera formulação de tal pedido não gera, por si só, qualquer violação ou ameaça de violação da patente relativa a composto farmacêutico utilizado na produção de medicamentos - determinaria não existir interesse em agir do titular dessa patente em ação em que fosse peticionada a abstenção de violação dos direitos emergentes da mesma e a interdição de alienação a terceiros das AIM, à míngua de outras circunstâncias que apontem para a verosimilhança da previsão da violação de um direito” – termo de alternativa que é defendido por Dario Moura Vicente, in “O regime especial de resolução de conflitos em matéria de patentes (Lei n.º 62/2011)”, cit., pág. 980. Exposta a questão nos seus termos argumentativos e consequências, acolhemos como já o fizemos no acórdão transcrito e no de 9 de Dezembro de 2021 - no proc. 225/20.2YHLSB-A.S1 de que o aqui relator foi ali relator - que o art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, depõe essencialmente a favor de os titulares dos direitos de propriedade intelectual não precisarem de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente ou de demonstrar um interesse em agir, sendo suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico. Não se exige que o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deva fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual, podendo fazê-lo aí (no Tribunal da Propriedade Intelectual) mas também junto de tribunal arbitral institucionalizado ou junto de tribunal arbitral não institucionalizado. Em resumo, o processo previsto no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro configura processo especial de acertamento de direitos que sendo suscetível de ser desencadeado em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado (altura em que não haverá́, em princípio, qualquer infração ou ameaça iminente de infração de direitos de propriedade industrial), permite aos titulares dos direitos poderem instaurá-lo ou não, consoante o interesse que vejam nele. E pode tal procedimento ser instaurado dentro do prazo de um mês a contar dessa publicitação, porque tal se enquadra na logica de um processo rápido, destinado a ter fim, idealmente, antes de haver uma decisão Infarmed sobre o pedido de autorização de introdução no mercado – neste sentido Evaristo Mendes, in “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in: Propriedades Intelectuais, n.º 4, 2015, pp. 26-40. (…) No conhecimento do recurso das autoras, valendo aqui todas as observações normativas deixadas expostas na decisão do recurso das rés quanto à confirmação do interesse em agir das autoras, nessas considerações decisórias está já contida a razão para se entender que esse pressuposto processual existe a partir do momento da publicitação do pedido de autorização de introdução no mercado, mas só com essa publicação é que existe. Deixou-se decidido e tentou explicar-se que o critério geral de apreciação do interesse processual, dependente da concreta alegação de violação do seu direito invocado, é derrogado pelo art. 3º da Lei n.º 62/2011(na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro) o qual acolhe a possibilidade excecional de os titulares dos direitos de propriedade intelectual não precisarem de justificar o recurso à ação com base numa infração, atual ou iminente, sendo suficiente a publicitação, na página eletrónica do Infarmed, de um pedido de autorização de introdução no mercado (ou registo) para medicamento genérico. Todavia este entendimento, em desvio da aludida regra geral, é admitido porque, não existindo qualquer violação concreta do direito dos autores a existência/publicação do pedido de AIM compreende, na economia interpretativa dos preceitos observados, razões objetivas relevantes para, ainda nesse caso, se conceder tutela de interesse à pretensão dos autores. Mesmo que não exista violação do direito invocado, existe um pedido de publicação AIM e é esta existência e o que ela significa que determina a configuração do interesse em agir. Por outro lado, para lá desse círculo de interesses com respaldo na publicação do AIM, não pode extrapolar-se a decisão que concede ao demandante interesse agir para estender esse mesmo interesse quando não se esteja em presença de quaisquer solicitações e publicações de AIM e exista apenas um composto (e suas associações) protegido por um EP e no CCP. Não poderá sustentar-se que inexiste sentido ou razão normativa processual para que só em face de um pedido de AIM publicado e/ou concedido pelo INFARMED se proponha uma ação quando a substância ativa em causa é a mesma. Em verdade, como deixámos dito, a razão determinante do interesse em agir é, por regra, a delimitação desse interesse a um quadro de violação efetiva dos direitos invocados visando a sua reparação ou aos casos destinados a prevenir a violação consistentes em ameaça séria, real e atual, traduzida na alegação e prova de indícios suficientes. E se no caso em presença a lei permite uma interpretação que configura como objetivamente verificável (o pedido de AIM) para sustentar (com atualidade) o interesse em agir, cremos que tal já não se configura quando não exista pedido de AIM solicitado e publicado. Não estão em causa razões de economia processual ou de unidade do sistema, mas sim de certeza e segurança jurídicas. Em cenário de ilustração de raciocínio podemos convocar a hipotética situação de uma demandante pedir que uma demandada que não tivesse requerido qualquer AIM fosse condenada a abster-se de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contivessem uma determinada substância ativa cuja EP e/ou CCP fossem da titularidade da peticionante e se encontrassem, em vigor. Neste caso, sem que a demandada tivesse requerido e tivesse sido publicada uma AIM, a questão que se imporia seria a de saber como configurar um interesse em agir se nenhum facto de violação ou ameaça do direito, nem mesmo um pedido/publicação anterior de AIM, tivesse sido requerido pela demandada. Nenhum sentido teria demandar alguém se nenhuma AIM pedida e publicada estivesse em questão. Por outro lado, se quer argumentar-se - como parece estar implícito mas não é evidente nem se encontra alegado - que, afinal, só nos casos em que tivesse já sido pedida/publicada uma AIM se poderia/deveria estender a condenação da ré nessa abstenção de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contivessem a substância ativa protegida fora do âmbito da AIMs pedidas ou de quaisquer outras ainda não pedidas, teremos de concluir pelo indeferimento dessa possibilidade. Permitir que a invocação de AIMs publicadas para obter a abstenção mencionada quanto a elas, mas, também, extensivamente e de forma universal para obter a mesma proibição fora do âmbito de qualquer AIM, seria criar, mais que uma presunção - arts. 349 e 351 do CCivil - que as regras de experiência comum não admitem, uma verdadeira petição de princípio legal. Estar-se-ia a configurar, quanto à substância ativa em causa, a publicitação de uma AIM como um elemento objetivo de interesse em agir para evitar a atualidade dessa AIM, mas ao mesmo tempo a utilizar esse facto (a publicação) como prognose certa e segura para declarar perigo real, sério e atual de violação do direito da demandante relativamente a algo que é de todo improvável e sem qualquer fundamento de consistência: que o requerente da AIM contrariado pela ação do demandante julgada procedente venha a requerer outras AIMs iguais quanto à mesma substância ativa. Um tal raciocínio, em nosso entender, estaria inquinado de ilogismo, incerteza e insegurança. Não encontramos nenhum nexo de lógica normativa ou naturalística para que a publicitação da AIM possa, por si só, fundar qualquer interesse por parte do demandante para obter uma condenação de abstenção fora do âmbito das AIMs publicadas. Se pretende prevenir-se com a procedência da ação que, depois de obtida a inibição de um ou vários AIMs e em face dessa decisão judicial, não venha o demandado a repetir novos pedidos com a mesma finalidade, então o que pode contrapor-se é que a exigência de publicitação do AIM continua a ser o (único) elemento central para aferir tal interesse. Isto, à falta de alegação e prova de quaisquer factos (que não conseguimos cogitar como exemplo, mas não negamos poderem ser possíveis de ocorrer) de onde se colham indícios suficientes, seguros e sérios da ameaça de violação do direito. Em qualquer caso, na situação em presença, com os factos que servem a decisão entende-se que sem pedido de AIM e fora do quadro da publicitação desse pedido não podem as recorrentes obter a abstenção das recorridas de importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham a substância ativa em causa.” Ante a clareza da orientação perfilhada quanto ao reconhecimento do interesse em agir das demandantes com reconhecidos direitos de propriedade industrial, decorrente de uma patente, face a um pedido de AIM, entretanto publicitado, cremos ser despiciendo acrescentar o que seja ao enquadramento jurídico vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de abril de 2022 (Processo n.º 40/20.3YHLSB.L1.S1), orientação que, de resto, foi recentemente seguida nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de junho de 2022 (Processo n.º 11/20.0YHLSB.L1.S1), e de 7 de julho de 2022 (Processo n.º 226/20.0YHLSB.L1.S1). Cingindo-se a questão decidenda à apreciação da questão jurídica atinente ao interesse em agir das demandantes, e tendo em atenção a facticidade adquirida processualmente, designadamente, item 9 “De acordo com as listas publicitadas nos dias 11.01.2020 e 15.01.2020 na página electrónica do Infarmed, a 1ª R. requereu em 31.10.2019 autorizações de introdução no mercado (AIMs) para medicamentos que contêm a substância activa ‘Apixiban’ sob a forma farmacêutica de ‘Comprimidos revestidos por película’, ‘nas dosagens de 2,5 mg e de 5 mg’, tendo por medicamento de referência o Eliquis® das AA..” e item 10 “A 2ª R. foi indicada como futura titular das referidas AIMs.”, importa revogar a sentença recorrida, para que os presentes autos prossigam com vista ao conhecimento do mérito da causa. Pelo exposto, na procedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pelas Autoras/Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company e outra, reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade no sentido de alterar o destino da demanda, merecendo censura a sentença recorrida. III. DECISÃO Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar procedente o recurso interposto, e, consequentemente, concede-se a revista, revogando-se o saneador/sentença, devendo os autos prosseguir os seus termos, com vista ao conhecimento do mérito da causa. Custas pelas Recorridas/Rés/Sandoz, B.V. e outra. Notifique. Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 15 de setembro de 2022 Oliveira Abreu (Relator) Nuno Pinto Oliveira Ferreira Lopes |