Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
041281
Nº Convencional: JSTJ00009267
Relator: LOPES DE MELO
Descritores: RECURSO
PODERES DE COGNIÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
MATERIA DE FACTO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRESSUPOSTOS
ROUBO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
CRIME COMPLEXO
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: SJ199105020412813
Data do Acordão: 05/02/1991
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T CR LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7685/89
Data: 05/03/1990
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
DIR PROC PENAL.
Legislação Nacional: CPP87 ARTIGO 1 N1 F ARTIGO 410 N2 A.
CP82 ARTIGO 73 N1 N2 D ARTIGO 306.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1983/04/14 IN BMJ N326 PAG322.
ACÓRDÃO STJ DE 1983/11/30 IN BMJ N331 PAG345.
Sumário : I - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos o erro notório na apreciação da prova, a contradição insanável da fundamentação ou a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
II - Para efeitos da lei processual penal, alteração substancial dos factos é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
III - O crime de roubo é um crime complexo que contém, como elemento essencial, a lesão de um bem jurídico eminentemente pessoal, pelo que ao respectivo agente são imputáveis tantos crimes dessa espécie quantas as pessoas ofendidas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- Relatorio.
O arguido A foi julgado pelo Tribunal Colectivo do 1 Juizo Criminal de Lisboa, em acordão de folhas 96 a 98, como autor material de um crime de roubo, p. e p. nos artigos 306, ns. 1 e 5, e 297, n. 2, alineas c) e e), ambos do Codigo Penal, ao qual correspondia a pena maxima de 12 anos de prisão.
Foi então condenado pela pratica de dois (2) crimes de roubo, definido nos citados artigos 306, ns. 1 e 2, alinea a) - atento o emprego da navalha, 3, alinea b) atenta a produção dolosa de ofensas corporais em ambos os ofendidos, e 5, 297 n. 2, alinea c) - circunstancia do aproveitamento da noite para melhor concretização dos intentos apropriativos, e h)- atento o concurso de cinco individuos, entre os quais o arguido; na moldura penal abstracta - por cada um dos dois referidos crimes - de 4 anos e 6 meses de prisão e 18 anos de prisão, mas no limite maximo de 12 anos de prisão (artigo 1, alinea f), do Codigo de Processo Penal de 1987).
Do mesmo acordão, que condenou o referido arguido na pena unica de sete (7) anos de prisão, sendo cinco (5) anos de prisão por cada um dos dois (2) aludidos crimes de roubo, requer o arguido, apresentando a motivação de folhas 102 a 108 com as seguintes conclusões:
1) O douto acordão proferido pelo tribunal de 1 instancia, ora recorrido, deve ser revogado por manifesta e rigorosa insuficiencia da produção de prova, face a materia de facto constante da douta acusação (artigo 410, n. 2, alinea a), do Codigo de Processo Penal).
2) Caso assim se não entenda, deve o acordão recorrido ser modificado no sentido de ser condenado apenas e tão so por um unico crime de roubo, p. e p. pelo artigo 306 ns. 1, 2 alinea a), 3, alinea b), e 5, com referencia ao artigo 297, n. 2, alineas c) e b), ambos do Codigo Penal.
3) Ou ainda, se assim se não entender, pela pratica de um crime continuado de roubo, p. e p. pelos artigos 306, ns. 1, 2, alinea a), 3, alinea b), e 5, 30 n. 2, e 78, n. 5, todos do Codigo Penal.
4) Deve ser atendida, porque relevante, a atenuação constante do disposto no artigo 73, n. 2, alinea d), do Codigo Penal, no caso de se decidir pela aplicação de qualquer pena, ao ora recorrente.
5) Desta forma, deve-se considerar mal interpretada pelo tribunal recorrido a norma do artigo 306, n. 1 em conjugação com o artigo 30, n. 1, in fine, ainda que não referida no acordão, deve tambem ser considerada violada, por não aplicada, a disposição do artigo 73, n. 2, alinea d).
O Ministerio Publico, na sua resposta de folhas 110 a 111 a referida motivação, entende que deve manter-se o acordão recorrido.
2. Fundamentos e decisão.
2.1. Corridos os vistos legais e realizada a audiencia publica, cumpre decidir.
A materia de facto provada e a seguinte:
No dia 6 de Abril de 1988, cerca da 1 hora, o arguido A e quatro (4) individuos não identificados perseguiram B e C quando estes sairam de uma sala de jogos situada na Avenida Alvares Cabral, na cidade de Lisboa.
Tal perseguição desenrolou-se ate a Rua das Amoreiras, onde o arguido e seus comparsas aceleraram o passo e cercaram o B e o C, referidos.
De imediato um dos comparsas do arguido empunhou uma navalha aberta e apontou-a ao pescoço do B, enquanto o arguido e demais comparsas agarravam o B e o C.
Com os ofendidos agarrados, o arguido e seus comparsas começaram a bater-lhes, tendo sido o B socado e pontapeado em varias regiões do corpo, nomeadamente nos braços, pernas, cabeça e pescoço, e tendo sido ainda golpeado com a referida navalha, causando-lhe escoriação linear com 2 cm de comprimento no sentido transversal da parte media da região cervical anterior, que foram causa de 2 dias de doença.
O arguido desferiu ainda uma cabeçada que atingiu o B no peito.
O C foi igualmente socado e pontapeado em varias regiões do corpo, nomeadamente no peito e região abdominal.
Em seguida o arguido e seus comparsas retiram aos ofendidos varios objectos, tendo-se apoderado de, um relogio de pulso marca Logus, no valor de 7000 escudos; uma carteira em pano marca Palumes, no valor de 1000 escudos, a qual continha 1000 escudos em dinheiro, um bilhete de identidade e outros documentos, um blusão de cabedal no valor de 100000 escudos, objectos e valores que o B trazia consigo, e, ainda, de um relogio de pulso marca Benetton no valor de 8000 escudos; uma carteira de pano marca blarpiou, no valor de 1000 escudos, a qual continha 2600 escudos em dinheiro, um bilhete de identidade e outros documentos; e, ainda, de um casaco de tecido no valor de 12000 escudos.
Na posse de tais objectos e valores o arguido e seus comparsas puseram-se em fuga.
Agiram o arguido e seus comparsas com o proposito de fazerem seus como fizeram - aqueles objectos, bem sabendo que os mesmos lhes não pertenciam como que agiam contra a vontade dos donos dos mesmos, e tendo actuado conjunta e concertadamente colocando os ofendidos na impossibilidade de resistir as descritas apropriações e ofendendo-os na integridade fisica do modo descrito, tendo ainda escolhido a noite para melhor alcançarem os seus intentos.
O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente bem sabendo ser a sua conduta proibida e censurada por lei.
O arguido e de humilde condição social, humilde ou modesta situação economica e media situação cultural e era delinquente primario.
Negou a totalidade da materia apurada e de que vinha acusado.
Por sentença proferida a 23-6-1989, no processo 696/88 da 1 secção do 3 Juizo do Tribunal Judicial de Oeiras, foi o arguido condenado na pena de 1 (um) ano de prisão, cuja execução lhe foi suspensa pelo periodo de dois (2) anos, pela autoria de crime de roubo na forma tentada, e o qual fora cometido a 1 de Março de 1988.
Por sentença proferida a 24-8-1989, no processo sumario n. 707/89, da 2 secção do 3 Juizo do Tribunal de Policia, foi o arguido condenado na pena de 2 (dois) meses de prisão efectiva pela autoria de crime de furto, cometido a 23 de Agosto de 1989.
Em consequencia da intervenção policial foi apreendido ao arguido um casaco de cabedal avaliado em 100000 escudos e que fora retirado ao ofendido B.
2.2. O Acordão recorrido não merece qualquer censura.
Não violou qualquer das disposições legais invocadas pelo recorrente.
Não se justifica a anulação do julgamento e o reenvio do processo para repetição do mesmo.
Com efeito, a alinea a) do n. 2 do artigo 410 do Codigo de Processo Penal, citada pelo recorrente (folhas 107 verso), não tem aqui aplicação, ja que do texto da decisão recorrida, por si so ou conjugada com as regras da experiencia comum, não resulta a insuficiencia para a decisão da materia de facto provada.
Os factos provados são os suficientes para ser proferida a respectiva decisão.
O que o recorrente invoca e diferente, pois o que ele pretende e outra produção de prova (folhas 163), aludindo, por isso, a folhas 107 verso, a "manifesta e rigorosa insuficiencia da produção de prova", mas nem sequer invoca a alinea c) do mesmo numero do artigo 410 ("erro notorio na apreciação da prova").
2.3. Os factos provados encontram-se bem qualificados na decisão recorrida, integrando, na verdade, a autoria material de dois crimes de roubo (e não so um como pretende o recorrente), correspondendo a cada um desses dois crimes a pena abstracta de prisão de 4 anos e 6 meses a 18 anos, mas no limite maximo de 12 anos de prisão (artigo 1, alinea f), do Codigo de Processo Penal).
"O roubo e um crime complexo, protegendo simultaneamente a liberdade individual, o direito de propriedade e a detenção das coisas que podem ser subtraidas, mas apresenta-se juridicamente como integrando na sua estrutura varios factos que constituem, em si mesmos, crimes.
"No seu tipo fundamental, roubo encerra, fundidos em unidade juridica, o furto (que e o crime - fim), o constrangimento ilegal e a lesão corporal leve (ou a contenção das vias de facto) que, por sua vez, e absolvido pelo constrangimento ilegal), chamados crimes formulativos. Por isso mesmo que entre os bens juridicos que o roubo ofende figuram a liberdade pessoal e a integridade fisica, que são eminentemente pessoais, não admite ele a continuação, senão quando sucessivamente dirigida contra a mesma prova. Assim, se um ladrão de estrada assalta um auto onibus e, de revolver em punho, ameaçadoramente, despoja os passageiros, comete em concurso material, tantos roubos quantas são as vitimas".
Nelson Hungria, op. cit, pagina 57)"(cfr. Leal - Henriques e Simas Santos, "O Codigo Penal de 1982", vol.4, pagina 105).
Dos dois elementos constitutivos do bem juridico, o que ilumina o tipo legal do referido artigo 306, isto e, e que e acentuado pela lei, e o pessoal.
Assim, o Professor Eduardo Correia, no seu livro "Unidade e Pluralidade de Infracções", pagina 356, ensina que "... não sera possivel falar de um crime continuado de roubo cometido com violencia ou ameaça contra varias pessoas. Na verdade, a consideração da defesa da liberdade, da integridade fisica ou da propria vida das pessoas - bens juridicos eminentemente pessoais - aparece como elemento essencial do respectivo tipo legal de crime".
No mesmo sentido, decidiu este Supremo Tribunal em varios acordãos, por ex, nos de 14-4-83 e 30-11-83, publicados no B.M.J., respectivamente, ns. 326, pagina 322, e 331, pagina 345).
2.4. Pretende o recorrente que se prove a verificação da atenuação especial prevista no artigo 73, n. 2, alinea d), do Codigo Penal ("ter decorrido muito tempo sobre a pratica do crime, mantendo o agente boa conduta").
Mas não tem razão, pois não deve considerar-se - para esse efeito - "muito tempo" o decorrido desde 6-4-1988 e nem o recorrente mostra desde então boa conduta ja que em 23-8-1989 praticou um crime de furto pelo qual foi condenado (em 24-8-89) na pena de dois meses de prisão efectiva.
Ja em 1-3-1988 ele cometera um crime tentado de roubo, tendo sido condenado (em 23-6-89) por esse crime na pena de 1 ano de prisão (suspensa na sua execução por 2 anos).
De resto, o n. 1 do citado artigo 73 e bem claro ao declarar que o tribunal so pode atenuar especialmente a pena quando existam circunstancias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporaneas dele que diminuiram por forma acentuada a ilicitude de facto ou a culpa do agente.
Para a hipotese de não se verificar - como acontece - a referida atenuação especial, não aponta o recorrente qualquer modificação da pena concreta, parcelares e unica, estabelecida na decisão recorrida e ja indicada no relatorio do presente acordão.
Essa pena - bem fundamentada na mesma decisão - mostra-se adequada, considerando em conjunto os factos e a personalidade do arguido; e por isso a mantemos.
3. Conclusão.
Nestes termos, negam provimento ao recurso e confirmam integralmente o acordão recorrido.
O recorrente pagara 2 Ucs de taxa de justiça e 5000 escudos de procuradoria.
Lisboa, 2 de Maio de 1991.
Lopes de Melo,
Ferreira Dias,
Cerqueira Vahia,
Pereira dos Santos.
Decisão impugnada:
Acordão do 1 Juizo Criminal da Comarca de Lisboa de 90-04-26.