Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
439/18.5T8FAF.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: POSSE PRECÁRIA
INVERSÃO DO TÍTULO
USUCAPIÃO
CORPUS
ANIMUS POSSIDENDI
PRESUNÇÕES LEGAIS
MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGAR A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.

II - Estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, as declarações de parte, quando não constantes de declaração confessória escrita.

III - É definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação.

IV - A doutrina e a jurisprudência definem o corpus como o exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se carateriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.

V - São havidos como detentores ou possuidores precários todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com animus de exercer o direito real correspondente
.
VI - Sendo fáceis de constatar os atos objetivos da posse, ou seja, o corpus, o animus (intenção de agir do titular) é mais difícil de apreender e por isso a lei faz presumir que quem exercer os atos materiais da posse também os exercerá (em princípio) com intenção.

VII - Não tendo os réus intenção de usar a faixa de terreno como sua não existe qualquer dúvida que permita concluir que os mesmos beneficiam da presunção legal a seu favor. A presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252.º do CC só funciona nos casos de dúvida.

VIII - A inversão do título da posse tem que consistir numa oposição expressa através de atos positivos, inequívocos e reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como proprietário.

IX - A inversão do título de posse “Trata-se, portanto, de uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado por este autor, “a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante” – Prof. Santos Justo, in “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.a edição, pág. 194.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 439/18.5T8FAF.G1.S1

***

1. AA e mulher BB, intentaram a presente ação de reivindicação contra CC, também conhecida por CC, viúva e DD e mulher, EE e formulam os seguintes pedidos:

A.) que seja declarado e reconhecido o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio urbano, sito na Rua …, n.º … (ou rua ...) da freguesia ..., do Concelho ..., constituído por uma casa de cave, R/c, 1.º andar e logradouro, com a superfície coberta de 187,00m2 e descoberta de 576,50m2, descrito sob o número ..., a confrontar de Norte caminho municipal, Sul FF, Nascente domínio público e Poente CC, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …, com o limite melhor identificado na planta topográfica junta;

B.) que sejam os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o referido prédio;

C.) que sejam os Réus condenados a reporem a área do prédio dos autores, nela integrando a área de 146,m2, em falta, recuando para tal o muro divisório do seu prédio, do lado nascente em toda a sua extensão norte – sul, com a delimitação melhor indicada na planta topográfica junta;

D.) que sejam os Réus condenados a proceder à demolição do muro existente e reconstrução do muro divisório em conformidade com o que consta da alínea c) do petitório;

E.) Sejam os Réus condenados a absterem-se de praticar quaisquer atos que atentem contra o direito de propriedade dos autores, mormente, que impeçam o uso e fruição, plena e exclusiva, do dito prédio identificado no art. 1º da Petição Inicial, por parte dos ora autores.

2.Para tanto alegaram:- que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano que identificaram, onde construíram a sua casa de habitação, reparando-o e administrando-o à vista de todos, sem oposição de ninguém; tal parcela foi-lhes doada pela 1ª Ré, que tinha 763,50 m2 e foi desanexada do prédio descrito na mesma Conservatória sob o n.º ..., a qual, após a construção daquela habitação, procedeu à edificação de um muro divisório, na confrontação nascente/poente de ambos os prédios, mas que, por erro de medição, este entrou cerca de 7,80 m para dentro da parcela dos autores, tendo a 1ª Ré assumido logo à data o erro, comprometendo-se a reconstruí-lo no local certo. Esta ainda pretendeu posteriormente restaurar a situação do muro, mas não foi possível, porque os 2ºs Réus se opuseram.

3.Embora a 1ª Ré não tenha contestado, os 2ºs Réus apresentaram contestação, impugnando e defendendo a improcedência da ação, alegando, em súmula, que a 1ª Ré é possuidora do imóvel - casa e terreno - que ocupa atualmente como usufrutuária, mas ininterruptamente, desde há mais de 20 anos, sendo a sua posse anterior à dos Autores. A 1º Ré adquiriu o prédio por sucessão, objeto de registo na Conservatória no ano de 1993, e, também, por usucapião e os 2º Réus ao adquirir a raiz do prédio urbano sito na Rua ..., nº …, em ..., por doação da 1ª Ré, em 2015, sucederam-lhe na posse e em todos os direitos transmitidos pelo anterior possuidor; os novos prédios resultantes da desanexação, de natureza urbana, desde 1999 não sofreram qualquer alteração no que respeita à respetiva configuração e área.

Deduziram ainda reconvenção na qual peticionaram que seja declarado e reconhecido pelos Autores o seu direito de propriedade da raiz do prédio urbano composto de casa de habitação de r/chão e logradouro, sito na Rua ..., nº …, ..., …, inscrita na matriz sob o artigo 959º e descrito na Conservatória sob o número 816.

4. Saneados os autos, realizou-se julgamento e foi proferida sentença, a qual julgou a ação parcialmente procedente, declarando os autores proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...e improcedentes os demais pedidos formulados contra os Réus.

Mais julgou a reconvenção totalmente procedente e declarou os Reconvintes proprietários do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ....

5. Não se conformando com o assim decidido vieram os autores interpor recurso de apelação, que mereceu a seguinte deliberação do Tribunal da Relação de Guimarães:

“Pelo exposto, acorda este Tribunal em:

-Alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos apontados na Fundamentação de Facto;

- julgar parcialmente procedente a apelação e em consequência, mantendo-se o que foi decidido na 1ª instância quanto ao pedido reconvencional, revoga-se parcialmente a sentença e:

-Declara-se que os Autores são proprietários do prédio urbano, sito na Rua ..., n.º … (ou rua ...) da freguesia ..., do Concelho ..., constituído por uma casa de cave, R/c, 1.º andar e logradouro, com a superfície coberta de 187,00m2 e descoberta de 576,50m2, descrito sob o número ..., a confrontar de Norte caminho municipal, Sul FF, Nascente domínio público e Poente CC, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …, com o limite melhor identificado na planta topográfica junta na perícia realizada nos autos, condenando-se os Réus a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o referido prédio e a abster-se de praticar quaisquer atos que atentem e impeçam o uso e fruição, plena e exclusiva, deste prédio por parte dos ora autores.

-Condenam-se os Réus a reporem a área do prédio dos autores, nela integrando a área de 114,60m2, em falta, demolindo para tal o muro divisório do seu prédio, do lado nascente em toda a sua extensão norte – sul, com a delimitação melhor indicada na planta topográfica junta com a perícia e

-Absolvem-se os Réus do demais peticionado pelos Autores.

*

6-Agora, inconformados com o decidido pela Relação, interpõem recurso de Revista para este STJ, os 2ºs réus e, formulam as seguintes conclusões:

“A) O douto acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Guimarães, julgou parcialmente procedente a apelação dos AA., e revogou a decisão da 1ª instância.

B) Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo aderiu à alteração da factualidade assente, proposta pelos AA., em violação do direito processual. Art. 662º do CPC.

C) E, procedeu, ainda, a uma errada interpretação dos factos e aplicação do direito, pelo que se impõe o presente recurso de Revista.

D) Consideram os RR/Recorrentes que o Tribunal de 1ª instância apreciou de forma criteriosa e correta toda a prova carreada para os autos, tendo efetuado a adequada subsunção jurídica dos factos, não merecendo a decisão qualquer censura.

E) A decisão proferida sobre a matéria de facto só pode ser alterada se a prova produzida impuser decisão diversa da obtida na 1ª instância.

F) O Tribunal a quo baseou a alteração da factualidade assente, com fundamento nas declarações da Ré CC e na escritura de doação de 13/5/1999.

G) Porém, os AA./Recorridos não alegaram nem provaram que a diferença de área do seu prédio - de 114,60 m2 - só pode ter resultado da construção do muro na confrontação Poente, pela Ré CC.

H) Uma vez que a divergência de área (de 114.60 m2) pode ter resultado de outra realidade como a retificação de estremas, cedência ao domínio público, ou até, de simples erro de medição.

I) Considerou ainda o Tribunal a quo que a Ré CC prestou as suas declarações de forma desinteressada e sem querer tomar partidos, ou no dizer do acórdão: “(até depôs de forma a prejudicar o seu património)”.

J) Este entendimento carece de fundamento porquanto foi patente do aludido depoimento a sua parcialidade, a favor dos AA. e, também, por saber que em nada prejudicava o seu património com tal depoimento por já não ser proprietária de qualquer prédio desde 2015.

K) Por outro lado, o Tribunal de 1ª instância havia expressamente consignado na sentença, a propósito das declarações da Ré CC: “Destas declarações que podiam ter sido a chave para a decisão, o tribunal nada pode retirar atenta a ausência de credibilidade das mesmas, resultantes em grande parte da vontade de não querer estar mal com ninguém.”

L) No julgamento da matéria de facto e face aos princípios da imediação, da oralidade e da concentração, o Tribunal aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção. Art. 607º do CPC

M) Esta apreciação livre das provas está subordinada à experiência e prudência do julgador com base numa análise serena de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, designadamente a prova produzida pelos RR/Recorrentes que o Tribunal a quo relevou.

N) Atente-se o ARG de 11/7/2017, no Proc. 5527/16.0T8GMR.G1:

II. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação…., nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

O) O Tribunal a quo não apontou o erro de apreciação cometido pelo Tribunal de 1ª instância, tanto mais que não dispôs da evidência da perceção e oralidade da audiência de julgamento.

P) Porém, devia a Relação determinar a renovação da prova se dúvidas houvesse sobre a credibilidade da Ré CC. Art. 662º do CPC

Q) Não existindo erro de apreciação da factualidade assente na 1ª instância impunha-se que a mesma se mantivesse inalterada.

R) Sem prescindir, e salvo melhor opinião, o douto Acórdão recorrido revela uma errada interpretação e aplicação dos arts. 1260º, 1263º, 1264º, 1287º e 1290º do C.Civil.

S) Está provado - alíneas r), t), u) e v) da matéria de facto provada - que os RR/Recorrentes exercem os poderes de facto sobre a parcela de terreno – de 114.60 m2 - em questão.

T) Incumbia aos AA/Recorridos demonstrar que os RR./Recorrentes eram apenas meros detentores, uma vez que existe a inversão do ónus da prova previsto no art. 1252º do CC.

U) A posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito e, também, pelo constituto possessório. Arts. 1263º e 1264º

V) O constituto possessório não opera automaticamente mas requer antes um acordo pelo qual o anterior possuidor continue a deter a coisa sem a entregar ao novo possuidor, passando a possuidor precário.

W) No caso sub judice, nada foi alegado que permita concluir ter existido tal acordo de vontades e que a Ré CC tenha passado a ser mera detentora em nome de outrem.

X) Forçoso é, pois, concluir que não se verificou o constituto possessório, como forma de aquisição solo consensu da posse.

Y) Sendo certo que, apesar da doação, a Ré CC não deixou de usar como quis a parcela de terreno de 114,60m2, sendo a sua posse integrada pelos dois elementos – corpus e animus – exercida sobre todo o terreno que delimitou com o muro. Art. 1251º do CC

Z) Assim, a posse da Ré CC, que antecedeu a dos RR/Recorrentes, só pode ser tida por titulada, de boa fé, pacífica e pública, que perdura há mais de 20 anos, e, constituiu fundamento de aquisição derivada da propriedade por via da usucapião. Art. 1287º do CC

AA) O douto acórdão violou as disposições legais citadas e deve ser revogado”.

7- Foram apresentadas contra-alegações pelos autores, nas quais concluem:

“A. No presente recurso, as questões suscitadas pelos recorrentes radicam em saber se houve ou não uma errada alteração da matéria de facto levada a cabo pelo tribunal a quo (Tribunal da Relação de Guimarães) em violação do direito processual e se houve uma errada interpretação e aplicação do direito;

B. Analisadas as alegações e as conclusões apresentadas, em lado algum, os recorrentes, especificam em que medida o tribunal a quo ao alterar a matéria factual o fez em clara violação das regras processuais;

C. O que, na realidade, os recorrentes fazem é discordar do entendimento levado a cabo pelo tribunal a quo para alterar a factualidade provada e não provada;

D. Face ao preceituado no nº 3 do art. 674.º e, no nº 2 do art. 682 º do CPC, aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido (Relação) o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julga adequado, sendo que a decisão da matéria de facto só pode ser excepcionalmente alterada por este Supremo havendo ofensa de disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”;

E. Pelo que, em bom rigor, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer a primeira das questões levantadas pelos recorrentes, devendo, por conseguinte, manter-se inalterada a factualidade provada e não provada;

F. Tanto mais que, o tribunal a quo, Tribunal da Relação de Guimarães, confrontado  com   a   prova  documental,   com   a   prova   pericial   e  com   o depoimento da Ré CC, não teve dúvidas em alterar a factualidade constante do acórdão recorrido, nos moldes em que o fez e segundo a aplicação criteriosa dos preceitos legais a que estava vinculado;

G. Não existe assim qualquer argumento válido invocado por parte dos recorrentes que sustente a procedência do recurso de revista quanto à questão da alteração da matéria de facto, porquanto nenhuma violação normativa pode ser assacada ao acórdão recorrido;

H. E, não tendo o tribunal a quo tido quaisquer dúvidas quanto aos depoimentos e demais prova, não poderia, como pretendem os recorrentes, determinar a renovação da prova;

I. Assim, situando-se a questão suscitada pelos recorrentes no domínio da apreciação e fixação das provas, matérias que cabem por excelência nos poderes de aferição e produção de prova das instâncias, in casu, do Tribunal da Relação, não pode este Venerando Supremo Tribunal conhecer da primeira questão suscitada pelos recorrentes;

J. Os recorrentes alegam, ainda que, mesmo que a matéria de facto se mantenha alterada, conforme determinado no tribunal a quo, o certo é que mesmo assim o acórdão recorrido revela uma errada interpretação e aplicação dos artigos 1260.°, 1263.°, 1264.°, 1287°, e 1290°, todos do Código Civil, mas sem razão;

K. Mas, ao contrário do que pretendem fazer crer, ao arrepio da alteração factual operada pela tribunal a quo, a verdade é que, foi precisamente a alteração da matéria factual constantes das alíneas r), t), u), v), x) e z), que permitiu que o entendimento jurídico perfilhado pelo tribunal a quo fosse em sentido contrário ao adoptado pelo tribunal de primeira instância;

L. Da factualidade constante das alíneas r), u) e v) dos factos provados, não resultou qualquer posse da parcela antes da construção da habitação dos autores, ora recorridos, assim como não resultou qualquer publicidade da mesma posse quanto à parcela de terreno, nem sequer resultou qualquer prova quanto ao prazo da utilização por mais de 20 anos da mesma parcela de terreno;

M. Pela análise da factualidade dada como provada, não restam dúvidas que os autores ora, recorridos, provaram ter adquirido, por contrato de doação outorgado a 13 de Maio de 199, o direito de propriedade sobre o prédio desanexado do prédio da primeira ré, prédio este, que como também resultou provado tem uma área de 763,50m2, e se encontra devidamente registado a favor dos autores;

N. Também, não restam dúvidas que a primeira Ré após a construção da casa, por parte dos autores, construiu um muro que devia separar os dois prédios, mas para dentro do prédio dos autores, e passou a usar a faixa de terreno que ficou do seu lado como se fosse sua.

O. Ao contrário do que possa parecer, nos presentes autos resultou provado na al. u) que a posse dos réus exercida e mantida à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, ou seja, a posse pacifica e pública, só ocorreu quanto ao prédio referido em n) e já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60m2 que segue ao longo desse muro referida em z.

P. Em lado algum resultou provado que a primeira Ré, CC e consequentemente os réus, recorrentes, tivessem tido a posse pública e pacífica, convencidos de que estavam a exercer um direito próprio e que não prejudicavam ninguém, quanto à faixa do terreno e antes da construção do referido muro.

Q. Para efeitos de usucapião, é indispensável que se verifique uma situação de posse, nos termos definidos no art. 1251.º do CC, equivalente ao poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício material do direito de propriedade ou de outro direito real. A relevância jurídica conferida à posse assenta, fundamentalmente, na necessidade de tutelar a aparência no mundo direito, ditada por exigências de segurança nas relações sociais e sancionamento da inércia do titular do direito;

R. A posse da coisa sem animus possidendi equivale a posse precária ou simples detenção - art. 1253.º, alínea a), do CC;

S. Tendo em conta a factualidade provada no acórdão recorrido, conclui-se que a primeira Ré, embora, possa ter praticado actos materiais sobre a parcela de terreno reivindicada, ocupando-a e fruindo-a, não o fez, contudo, como se fosse sua proprietária, ou seja, no exercício do direito de propriedade sobre a mesma parcela, faltando assim provar o elemento do animus possidendi, que competia aos segundos Réus (art. 342.º, n.º 1, do CC).

T. Neste contexto, a posse exercida simplesmente no aproveitamento de tolerância concedida pelos autores corresponde a uma situação de simples detenção ou posse precária - art. 1253.º, alíneas b) e c), do CC, que não confere o direito à aquisição da propriedade, por usucapião (art. 1290.º do CC);

U. Não havendo dúvidas sobre a titularidade do direito de propriedade, a primeira Ré era mera detentora ou possuidora precária;

V. Por essa razão não poderia haver acessão na posse da primeira Ré para os segundos Réus;

W. E, mesmo que houvesse a posse sempre seria não titulada, tendo em conta o preceituado no artigo 1256.º, n.º 2, do Código Civil, e por isso de má-fé;

X. É manifesto que os segundos réus não adquiriram a parcela de terreno por usucapião e, por isso, a reconvenção devia ter improcedido, como improcedeu;

Y. Ao contrário do que alegam os recorrentes, nos termos n.º 1 do artigo 1264.º do Código Civil, “se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa”, não necessitando de qualquer alegação ou sequer que seja invocado um acordo nesse sentido;

Z. Conclui-se assim que os recorridos, não provaram a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre o terreno em litígio, decorrente da posse, exercida por mais de 20, 30 e 50 anos, de forma pacífica, pública, contínua, de boa-fé, com justo título;

AA. Tratando-se a presente acção de uma acção de reivindicação, dispõe o artigo 1311.º do Código Civil que todo o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição do que lhe pertence, e caso o autor consiga demonstrar que é o titular do direito real, como demonstrou in casu, o possuidor ou detentor, os aqui recorrentes, só podem evitar a restituição caso provem que adquiriram o direito originalmente ao abrigo das disposições que protegem terceiros de boa fé, que tem sobre o objecto um direito real compatível com a propriedade ou a detêm em virtude de um direito pessoal bastante;

BB. Ora, no caso dos autos, os autores, recorridos, reivindicaram a área em falta (114,60m2), do prédio que adquiriram à primeira Ré, por escritura pública de doação, área que resulta do título (escritura) e do registo;

CC. Os autores, recorridos, provaram, ainda, que o prédio se encontra, na sua totalidade, registado a seu favor, pelo que nos termos do artigo 7.º do Código de Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define;

DD. Assim sendo, não podia o tribunal a quo deixar de considerar, como considerou, que por escritura pública de doação, lavrada no dia 13 de Maio de os autores adquiriram, por doação à primeira Ré, uma parcela de terreno que com área de 763,50m2, descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n…., da freguesia ..., …, e tendo-se provado que o prédio dos autores tem menos 114,60m2 em relação ao que consta do título de aquisição o que resultou do facto da ré CC ter construído um muro fora do limites do seu prédio, podendo a área ser reposta com a demolição e recuo do muro de vedação em toda a extensão de forma a restituir aos autores, recorridos, os 114,60m2, a decisão do tribunal a quo só poderia ser no sentido de “condenar os réus a reporem a área do prédio dos autores, nela integrando a área de 114,60m2, em falta, demolindo o muro divisório do seu prédio, do lado nascente em toda a extensão norte-sul, com a delimitação melhor indicada na planta topográfica junta com a perícia;

EE. Os recorres, réus, por sua vez, ao contrário do que pretendem fazer crer, não provaram qualquer causa impeditiva da restituição da parcela em causa;

FF.O recurso não merece assim acolhimento em toda a linha, impondo-se a manutenção do acórdão recorrido;

Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências proficientemente suprirão, deverá o recurso apresentado pelos recorrentes ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido”.

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O recurso foi admitido.

Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.

*

Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos (incluídas as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação na decisão do recurso da matéria de facto):

1. Factos provados

a. Está descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ..., o prédio urbano, sito na Rua ..., n.º … (ou rua ...) da freguesia ..., do Concelho ..., constituído por uma casa de cave, R/c, 1.º andar e logradouro, com a superfície coberta de 187,00m2 e descoberta de 576,50m2, a confrontar de Norte caminho municipal, Sul FF, Nascente domínio público e Poente CC, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º …;

b. Este prédio está inscrito a favor dos aqui autores, pela Ap. 26 de 1999-06-08;

c. O referido prédio resultou da desanexação de uma parcela de terreno do prédio descrito na Conservatória sob o n.º ..., parcela essa descrita como parcela de terreno com 763,50 m2, a confrontar de Norte caminho municipal, Sul com FF, Nascente domínio público e FF;

d. No dia 13 de maio de 1999, foi outorgada no cartório Notarial ..., a fl. 60 a 60v do livro Quatrocentos e Setenta A, escritura de doação, através da qual a primeira Ré CC declarou doar a referida parcela de terreno ao autor marido;

e. Os autores, por si e pelos ante possuidores foram administrando livremente o referido prédio, nomeadamente, construído a habitação, pedindo a respetiva licença de construção e habitabilidade, construindo muros, fazendo obras de manutenção e reparação, construindo passeios e jardim, cortando e limpando ou mandando limpar o quintal, erva e demais vegetação.

f. Plantando arbusto e flores no jardim.

g. No quintal, plantando árvores de fruto, couves, alfaces e demais produtos hortícolas.

h. E, onde os anteriores possuidores haviam plantado horta, semeado erva e jardim.

i. E, foram-no utilizando de acordo com a sua autónoma e livre vontade, afetando-o como muito bem entenderam.

j. Dele foram retirando todos os frutos e demais utilidades.

k. E, sempre pagaram as contribuições sobre o prédio incidentes.

l. O que tudo tem feito de forma contínua, sem interrupção e sem oposição de ninguém.

m. O que sempre fizeram de forma pública, pacifica e de boa-fé, por ignorarem lesar direitos de terceiros, à vista e com conhecimento de toda a gente, designadamente da ré, sem violência ou oposição de quem quer que fosse.

n. Está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo n.º …, o prédio composto por casa de rés-do-chão e logradouro, com a superfície coberta de 122,00m2 e logradouro de 2.396.5m2;

o. Este prédio encontra-se inscrito a favor dos segundos Réus, através da Ap. 2336 de 2015-08-25, sendo a causa da aquisição uma doação efetuada pela primeira Ré CC;

p. Está ainda averbado pela Ap. 2637 de 2015-08-25 uma reserva de usufruto a favor da primeira Ré;

q. Os prédios supra identificadas confrontam entre si do lado nascente/poente;

r. Após a conclusão das obras do prédio descrito na Conservatória sob o art. 1253, a primeira ré mandou edificar um muro divisório para separar os dois prédios e delimitar o terreno objeto do destaque do terreno que ficava para o logradouro do prédio mãe;

s. Da reconvenção

t. Desde antes da edificação do supra referido muro que a 1ª Ré e depois os 2ºs Réus usam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o art. ... para aí habitarem, cuidando também do respetivo terreno conforme entendem, recebendo visitas e familiares, fazendo obras de conservação e suportando os encargos que lhes são inerentes.  Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: t. “A 1ª Ré habitou, cuidando também do respetivo terreno e usou conforme entendeu, recebendo visitas e familiares, fazendo obras de conservação e suportando os encargos que lhes são inerentes, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... na sua primitiva configuração e na que resultou da desanexação referida em c), primeiro sozinha e depois acompanhada dos demais Réus; igualmente utilizou como bem quis, a partir da construção do muro referido em r), a faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z).”

u. O que fazem à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, convencidos de estarem a exercer um direito próprio e de que não prejudicam ninguém.  Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: U. O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.

v. De forma ininterrupta e há mais de 20 anos - Na sequência da decisão da impugnação da matéria de facto esta alínea passa a ter a seguinte redação: V. De forma ininterrupta e há mais de 20 anos quanto ao prédio sob o nº ... nas configurações que teve ao longo do tempo; e desde a construção do muro referido em r), quanto à faixa de terreno do prédio, com área de 114,60 m2, referida em z).

X. A habitação foi construída numa parcela de terreno destinada a construção com a área total de 763.50m2, que deu lugar ao prédio urbano descrito no nº. 1253 da Conservatória. (alínea aditada na sequência da procedência da impugnação da matéria de facto não provada)

Z. O muro, referido em r), que a poente do prédio referido em a) o separa do referido em n), não foi construído na linha divisória dos supra identificados prédios, mas dentro do terreno pertencente ao prédio referido em a), seguindo em toda a sua extensão a cerca de 6,40m para dentro do limite daquele prédio. (alínea aditada na sequência da procedência da impugnação da matéria de facto não provada)

2. Factos não provados

a. Que o prédio urbano descrito no art. 1253 da Conservatória tenha sido construído pelos autores numa parcela de terreno destinada a construção com a área total de 763.50m2; (esta alínea passou para a matéria de facto provada, com a redação dada à supra aditada alínea X).

b. Que os Autores tenham exercido os atos descritos em e. a m. dos factos provados sobre a parcela descrita no art. 43º, da petição inicial;

c. Que por erro de medição, o muro não foi feito na linha divisória dos supra identificados prédios, mas dentro do terreno pertencente à parcela de terreno objeto de construção e que faz parte integrante do prédio dos autores. (esta alínea passou para a matéria de facto provada, conjuntamente com o constante da alínea d), com a redação dada à supra aditada alínea z).

d. Tendo o muro sido construído no alinhamento a cerca de 7.80 metros para dentro do limite do lote de terreno. (esta alínea passou para a matéria de facto provada, conjuntamente com o constante da alínea c), com a redação dada à supra aditada alínea z).

*

Conhecendo:

São as questões suscitadas pelos recorrentes e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do CPC.

Os recorrentes suscitam as seguintes questões:

- julgamento da matéria de facto pelo tribunal da Relação (conclusões A) e Q)): os recorrentes entendem que o tribunal recorrido não podia ter alterado a decisão de facto com fundamento nas declarações da 1.ª ré e na escritura de doação;

- erro de direito (conclusões R) a AA)): os recorrentes entendem que a 1.ª ré exerceu posse pública, pacífica, de boa fé e titulada sobre a parcela em litígio e que a usucapiu.

- Julgamento da matéria de facto pelo tribunal da Relação:

Refere o acórdão recorrido no que a esta questão respeita: “…importa desde já entrar no cerne da questão, após a audição da prova produzida e leitura dos documentos e perícia junta aos autos, salientando-se os meios de prova que com mais relevo se debruçaram sobre as questões em debate e permitem a decisão sobre a matéria de facto que já foi supra adiantada, com a sua enunciação no capítulo destinado à descrição da Fundamentação de Facto.

Têm nesta sede particular relevo as declarações da Ré CC, a qual doou os prédios aqui em disputa, promoveu a separação do prédio dos autores e dos Réus e permitiu a construção do muro de separação de ambos, como se salienta na sentença e bem aceitam os Recorrentes.

A mesma prestou as suas declarações de forma desinteressada, sem querer tomar partidos e, ao contrário do que se afirma na sentença, de forma clara, se bem que a já proveta idade da declarante, com a preocupação de se não cansar, lhe permitisse alguma altivez e menor paciência para sanar as dúvidas apresentadas pelos intervenientes processuais.

Da mesma forma, a perícia mostra-se muito evidente sobre a matéria em debate e nada a pôs em causa, bem como toda a documentação junta aos autos.

A prova é unívoca quanto ao que foi doado e destacado, atendendo às declarações da doadora (que até depôs de forma a prejudicar o seu património) e aos documentos escritos, que infra se analisarão com mais pormenor.

A única matéria menos nítida, mas que neste recurso não é objeto de impugnação direta, diz respeito à existência ou não de alguma reclamação por parte dos Autores relativamente à sua faixa de terreno que ficou para aquém do muro no período que se seguiu à construção da sua habitação, anterior à doação efetuada aos Réus, em que se verifica desacordo entre o que diz esta Ré (os demais nada sabem sobre a matéria) e o que dizem os Autores: estes afirmam que esta prometeu mudar o muro logo que lhe fosse pedido, esta diz que estes nada lhe pediram, à data, porque a sua boa-educação não lho permitiu. Não põe em causa que exista algum erro na construção do muro e aceita que seja alterada a sua localização.

Das declarações da Ré CC, decorre que a mesma disse aos Autores que lhes oferecia parte do prédio (de onde veio a ser destacado o que hoje é dos Autores, tendo doado, décadas depois, a nua propriedade do restante aos demais Réus) para a construção de uma habitação, indicando inicialmente tal porção de terreno fisicamente, sem marcos, nem medidas, “a olho”; estes, como o arquiteto lhes disse que o que havia sido prometido era insuficiente para tal construção, apontaram-no à 1ª Ré, a qual lhes disse que lhes oferecia o remanescente que fosse necessário, tendo sido pelo arquiteto indicada qual era a área imprescindível para tal construção, a qual a 1ª Ré declarou doar.

Foram os Autores (através desse arquiteto) que trataram de toda a burocracia necessária para o destaque, assinando a Ré o que lhe foi apresentado para tal efeito.

E foi com referência a essa área (de 763,50m2, como decorre dos títulos) que a Ré subscreveu a escritura de doação e os requerimentos para o destaque da área que doou aos Autores e correção da área sobrante (este em 23-4-1999), como resulta da cópia da escritura e do documento nº 8 junto com a petição inicial, o que fez consciente e de livre vontade, como a mesma esclareceu em sede de audiência final.

No entanto, quem mandou erigir o muro de separação do prédio doado daquele de onde fora destacado, foi o irmão da 1ª Ré, após a construção da moradia pelos Réus, muro esse que cortava parte da área que havia sido atribuída a tal parcela doada.

Não se demonstrou que os Autores tenham reclamado a faixa de terreno que ficou fora do seu perímetro do seu prédio com a construção do muro a mando da Ré, nem tão pouco que a mesma agiu desconhecendo que o muro não estava colocado no local correto (prometendo emendá-lo), havendo, versões contraditórias sobre tal, sem que o tribunal tenha elementos para poder escolher por uma delas.

A perícia explica que o muro está construído em local diferente do apresentado no levantamento topográfico junto aos autos e que a área desse lote, neste momento, é inferior à área assinalada no levantamento topográfico que levou à desanexação do atual prédio dos Autores, sendo a diferença de áreas de cerca de 114,60m2; “O muro encontra-se construído a uma cota de aproximadamente 6,40 metros do muro que está identificado no levantamento topográfico… A área que se encontra afeta ao terreno, neste momento, é 648,90 m2 … Para repor a área em falta, o muro divisório terá de ser afastado para poente em aproximadamente 6,40 metros”.

Embora perguntado, não esclarece se a área do prédio dos 2ºs Réus, coberta e descoberta, corresponde às áreas constantes na matriz e na conservatória de 122,00 m2 (AC) e 2.654,50m2 (AD), apenas repetindo que essas são as áreas que constam desses títulos (resp. ao quesito 10).

Nada afastou o explanado na perícia; as testemunhas limitaram-se a dizer que o muro foi erigido após a construção da casa de habitação dos Autores (sabendo-se que esta ocorreu após a doação, de 1999)”.

A matéria de facto apurada (factos provados e não provados) há-de resultar da prova produzida (depoimentos/declarações de parte, pareceres, exames/perícias, documentos) conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso sobre a matéria de facto é um remédio para corrigir patentes erros de julgamento sobre matéria apontada pelo recorrente e tendo por base a sua argumentação que pode levar a decisão diversa e apenas isso.

A Relação, e face ao objeto do recurso que lhe é apresentado, “deve alterar a decisão sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, tal como preceitua o art. 662 nº 1 do CPC.

Mas, deve a Relação no acórdão, assim como qualquer tribunal nas sentenças ou despachos que não sejam de mero expediente, especificar os fundamentos de facto decisivos para a sua convicção e que justificam a decisão da matéria de facto, como impõe o art. 607 nº 4 e art. 615 nº 1 al. b), do CPC, fulminando este com a nulidade a sentença não motivada. E essa fundamentação consta do acórdão, como supratranscrito.

A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674, nº 3 e 682, nº 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação. Assim o entendemos no Ac. deste STJ de 04-02-2020, Revista n.º 3932/17.3T8BRG.G1.S1 - 1.ª Secção.

Estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, as declarações de parte, quando não constantes de declaração confessória escrita (o depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente – art. 463, nº 1 do CPC), os documentos tais como, o relatório de peritagem e requerimentos para o destaque e correção da área sobrante subscritos pela 1.ª ré, sem força probatória plena. E estes foram os meios de prova produzidos e que determinaram a convicção do Tribunal da Relação.

Face ao normativo do CPC, a Relação e para formar a sua própria convicção, pode proceder não só à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, como de todos aqueles que se mostrem acessíveis nos autos e estejam abarcados pela previsão do art. 662.

Como refere o Ac. do STJ de 07-07-2016, proferido no proc. nº 487/14.4TTPRT.P1.S1, no CPC “foi concedida ao Tribunal da Relação uma autonomia decisória, há muito reclamada, em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto”.

E acrescenta: “E constando do processo todos os elementos probatórios que permitam à Relação a reapreciação da matéria de facto, em conformidade com o disposto no art. 662, pode a Relação, conforme se salientou, mesmo oficiosamente, alterar a matéria de facto em função da convicção que crie face à prova produzida nos autos – testemunhal e documental – desde que a mesma imponha decisão diversa em face da própria convicção criada pelo Tribunal da Relação”.

De igual modo entende Teixeira de Sousa, no Comentário, fls. 32 e segs., sobre “Prova, Poderes da Relação e Convicção: a lição de epistemologia”, onde refere: “O Princípio que rege a apreciação da prova é o da livre valoração: sempre que a prova não tenha um valor legal ou tarifado, a prova é apreciada segundo a prudente convicção do juiz (art. 607, nº 5, do CPC).

Isto significa que o juiz tem de formar uma convicção subjetiva sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando – ou seja, tem de adquirir um estado psíquico de convicção sobre essa verdade ou plausibilidade – baseado numa convicção objetiva – isto é, num conjunto de razões que permite afirmar que um facto é verdadeiro ou é plausível”.

“Não ocorreu, neste domínio, erro suscetível de sindicância deste Tribunal Supremo e também não se descortina qualquer violação das regras de direito probatório, soçobrando tudo o que os recorrentes alegaram e concluíram a tal propósito. Há que manter intocável, por isso, a materialidade fáctica dada por assente pela Relação” – ac. do STJ de 19-01-2017, proferido no proc. nº 841/12.6TBMGR.C1.S1.

“I - É definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação, não podendo ser modificado ou censurado pelo STJ, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do n.º 3 do art. 674.º do mesmo Código. 

II - As declarações de parte que não contenham uma confissão escrita não têm força probatória plena, sendo apreciadas livremente pelas instâncias”-  ac. do STJ de 03-03-2020, Revista n.º 3936/17.6T8PRT.P1.S1.S1 - 1.ª Secção 

Como já se referiu e, não se verificando qualquer das exceções previstas na parte final desta norma - nº 3 do art. 674 do CPC –, a fundamentação alegada pelo recorrente não pode ser objeto do recurso de revista.

“Nada havendo a censurar à legalidade da decisão recorrida, não pode o STJ apreciar o seu acerto ou o erro de julgamento que lhe é imputado” - Revista n.º 232/13.1TBLMG.C1.S1 - 1.ª Secção, de 04-07-2017.

“II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista salvo havendo "ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe força de determinado meio de prova" (artigo 674.º/3 do CPC)”. – Revista nº1345/13.5TVLSB.L1.S1 ,de 03-05-2018.

Tendo a Relação reapreciado a matéria de facto, não compete ao STJ, em sede de revista, colocar em causa essa reapreciação por não se verificar a previsão do art. 674, n.º 3, do CPC. Neste sentido, a Revista n.º 248/12.5TBCMN.G1.S1, de 30-03-2017.

O poder do Supremo Tribunal de Justiça, nesta matéria, como tribunal de revista, está limitado, nomeadamente ao conhecimento da eventual violação do direito probatório material, da qual poderá resultar a modificação da decisão relativa à matéria de facto (art. 674º, n.º 3, do CPC). Trata-se, contudo, de um poder meramente residual, cabendo à Relação a última palavra sobre a matéria de facto.

Não se verificam fundamentos, neste segmento.

Não se verificando fundamentos da revista, no âmbito da matéria de facto, fica prejudicado o conhecimento da pretendida anulação dos factos provados resultante da alteração verificada pelo acórdão recorrido, mantendo-se, por conseguinte, intacta a decisão da matéria de facto que foi fixada pelo Tribunal da Relação, não havendo motivo para questionar os efeitos jurídicos que da mesma foram extraídos.

- Erro de direito: os recorrentes entendem que a 1.ª ré exerceu posse pública, pacífica, de boa fé e titulada sobre a parcela em litígio, verificando-se os pressupostos de aquisição originária por usucapião.

Concluem os recorrentes: R) Sem prescindir, e salvo melhor opinião, o douto Acórdão recorrido revela uma errada interpretação e aplicação dos arts. 1260º, 1263º, 1264º, 1287º e 1290º do C.Civil.

S) Está provado - alíneas r), t), u) e v) da matéria de facto provada - que os RR/Recorrentes exercem os poderes de facto sobre a parcela de terreno – de 114.60 m2 - em questão.

Donde se extrai que, no entendimento dos recorrentes, a matéria de facto, mesmo após as alterações pela Relação, é suficiente para fazer vingar a tese deles recorrentes.

Sobre o direito a aplicar ao caso e tendo em conta a matéria de facto alterada, refere o acórdão recorrido: “Alterada a matéria de facto provada e não provada, há que proceder à aplicação do direito.

Pela ação declarativa de condenação em que se traduz a reivindicação, o proprietário pede o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição da coisa reivindicada a quem tenha a posse ou detenção da coisa que lhe pertence.

Ao proprietário cabe o ónus de provar o seu direito de propriedade e que a coisa se encontra na posse e é detida pelo demandado.

De outra banda, apresentado um título de aquisição e a prova que o demandado a detém, este só pode evitar a restituição da coisa, provando que esta lhe pertence por um dos títulos legalmente admitidos; que tem sobre ela um direito real que justifique a sua posse; ou que a detém por virtude de um direito pessoal de gozo que a lei tutela.

Não basta, no entanto, ao Autor, provar que adquiriu a propriedade do alienante, caso não tenha a seu favor a presunção do registo; deve também provar que este a adquiriu, o que pode implicar a necessidade de provar as aquisições dos sucessivos alienantes até à aquisição originária de um deles.

Com efeito, a nossa legislação admite em relação aos imóveis, uma presunção legal, que dispensa o reivindicante da prova da propriedade – a resultante do artigo 7º do Código do Registo Predial.

Esta norma determina que: “o registo definitivo constitui presunção de que o direito pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define.”

Não se inscrevem direitos, mas sim factos dos quais se presumem os direitos a publicitar. Assim, o facto registado e que está na base da presunção será o registado, por exemplo, o contrato de compra e venda, doação, partilha, usucapião, etc..

Cumpre ainda salientar que o artigo 1264º do Código Civil dispõe que «se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa». Trata-se da consagração legal da figura do constituto possessório que, como é sabido, é uma forma de aquisição solo consensu de posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um ato material ou simbólico que a revele.

E nesse caso, se o transmitente mantém a coisa, fá-lo como mero detentor em nome alheio, só podendo voltar a adquirir a posse se ocorrer inversão do título de posse, como decorre do artigo 1263º, alínea d), do Código Civil .

A inversão do título de posse pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse. No primeiro caso, ensina Henrique Mesquita (“Direitos Reais”, Coimbra – 1967, págs. 98-99) “A oposição tem de traduzir-se em atos positivos materiais ou jurídicos, inequívocos (reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a que os atos se opõem”.

A aquisição por via da usucapião, porque é originária, faz ceder o registo anterior ao início da respetiva posse (e por maioria de razão posterior), ainda que o mesmo exista. Como se resume no Ac. TRC de 05/23/2012, no processo 387/08.7TATMR.C1 “Isto porque, citando Oliveira Ascensão (Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, pág. 43 a 46), o instituto da usucapião é que constitui fundamento primário dos direitos reais no ordenamento jurídico, porque a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, com função essencialmente declarativas, mas na usucapião.”

A usucapião é a constituição facultada ao possuidor do direito real correspondente á sua posse, desde que esta, dotada de certas características, se tenha mantido pelo lapso de tempo determinado na lei (cfr A. Menezes Cordeiro, Teoria Geral dos Direitos Reais, p 467).

“A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais que destrói quaisquer direitos em contrário, podendo o seu beneficiário, por força das regras da acessão na posse, começar a contar o respetivo prazo a partir da constituição da posse. Demonstrada a usucapião, a reivindicação [baseada nesta] procede sempre, uma vez por ela, se extinguem todos os direitos anteriores em contrário.” Menezes Cordeiro, Teoria Geral dos Direitos Reais, 1979, p 592.

A posse manifesta-se na atuação de uma pessoa sobre uma coisa (corpórea) de forma correspondente ao exercício de um direito real (artigo 1251º do Código Civil).

Determina o artigo 1263º do Código Civil que posse se adquire pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito, ou pela tradição material ou simbólica da coisa, efetuada pelo anterior possuidor, por constituto possessório ou, por fim, pela inversão do título de posse. A reiteração aqui indicada tem que ser lida como indicador da intensidade do ato material inicial da posse: este ato, mais do que repetido tem que ter força bastante para ser percetível a constituição da situação (cfr Menezes Cordeiro, obra cit. 460).

A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem, embora na dúvida se presuma a mesma naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252º do Código Civil).

Tudo posto, a questão mostra-se relativamente simples: os Autores demonstraram ter adquirido o direito de propriedade de um prédio desanexado do prédio da 1ª Ré, com a área de 763,50m2, por doação que com esta celebraram em 1999, o qual se mostra registado a seu favor.

No entanto, a 1ª Ré, doadora, depois da construção da habitação pelos Autores no prédio que lhes doara, veio a colocar um muro, que devia separar ambos os prédios fruto do destaque, ainda dentro do prédio dos Autores, passando a usar a faixa de terreno que ficou do lado do seu prédio como se sua fosse.

Pelo contrato de doação os Autores adquiriram a propriedade e posse do seu prédio e, por força dos efeitos que deste advém, como resulta do instituto do constituto possessório, a Ré, caso se tivesse nele mantido, passaria a ser mera detentora.

A construção de um muro que cortou o prédio dos Autores e colocou uma faixa do terreno desse prédio junto do da Ré, constituiu um ato material e inequívoco de que passaria a atuar como se fosse a proprietária do que estava para aquém do muro. Não se demonstrou qualquer oposição dos Autores e a Ré exerceu a posse desde então como se fosse a proprietária do imóvel (e depois como usufrutuária).

No entanto, a sua posse sobre tal faixa, que se conta desde a construção do muro (ato que consistiu na inversão do título de posse), embora pública e pacifica, não era titulada, pelo que se presume de má-fé (artigo 1260º nº 2 do Código Civil); assim, a usucapião só ocorreria ao fim de 20 anos (artigo 21290º do Código Civil).

Não se provou que decorreu tal período (veja-se que a doação teve lugar em 1999 e só após esta foi construída a habitação dos Réus, tendo o muro sido erigido depois do terminus dessa construção, sendo a ação de 2018).

Assim, demonstrado que está que os Réus estão na posse de uma faixa de terreno que é dos Autores, têm que a devolver (artigo 1312º do Código Civil); tendo a Ré construído o muro também fora desse local, tem que o repor a coisa no estado em que se encontrava, demolindo-o.

Nada justifica, no entanto, que sobre os Réus incida a obrigação de refazer tal muro no local correto, pelo que procede parcialmente a ação”.

Concorda-se com o explanado, de que os 2ºs réus não adquiriram aquela faixa de terreno, por usucapião.

No entanto, face aos factos provados, alterados pelo acórdão recorrido, os 2ºs réus não exerciam atos de posse sobre aquela faixa, mas eram meros detentores.

A al. U dos factos provados, após alteração, é do seguinte teor: “U. O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z” (negrito nosso).

Falta o elemento subjetivo, o animus, a intenção do exercício de atos, naquela faixa, como um direito próprio, sem causar prejuízos a outrem.

Refere-se no acórdão recorrido, “Quanto à alínea u) tendo em conta que a posse de facto faz presumir o animus, mas que a falta de título faz presumir a má-fé, há que excluir da menção da boa-fé a parcela aqui em questão” e daí a alteração à alínea U, sem que, depois, retirasse todas as conclusões devidas.

A expressão “mas já não quanto à faixa de terreno” não tem o sentido restrito de “já não se ter provado” mas antes, por incluído nos “factos provados”, de se ter provado que “os réus já não estavam convencidos de exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.”, o que poderá ser determinante na prova, pelos autores, da falta de animus dos réus e no comprometimento da posse e afirmação da mera detenção, insuficiente à aquisição do direito de propriedade por usucapião.

E, este entendimento não é contrariado pelo constante da parte final da al. T: “… igualmente utilizou como bem quis, a partir da construção do muro referido em r), a faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z).” “Utilizou como bem quis” enquadra-se nos atos de objetivos de posse “corpus” e não na intenção, “animus” de possuir como dono, proprietário.

O art. 1311 do Cód. Civil estatui que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa, o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

A ação de reivindicação reconhece-se pela causa petendi, constituída pelo facto jurídico de que deriva o direito real (propriedade) e pelos pedidos que são dois, o do reconhecimento do direito de propriedade e o da restituição da coisa- Cfr. Prof. P. Lima e A. Varela in Código Civil anotado, vol. III, em anotação ao art. 1311.

A usucapião, maneira típica de aquisição originária da propriedade, ou outro direito real, vem definida no art. 1287 do Cód. Civil. A posse do direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação.

E, a posse adquire-se, art. 1263 do Cód. Civil, pela prática reiterada, com publicidade, de atos materiais correspondentes ao exercício do direito, ou pela tradição da coisa. Refere o Ac. da relação do Porto de 2-10-1979, in Col. Jurisp. Tomo 4, pág. 1273 "a posse adquire-se pelo facto e pela intenção e define-se por dois elementos essenciais: o «corpus» na aquisição originária e a «traditio» na aquisição derivada- que se traduz na materialidade do facto; e o «animus», que se traduz na intenção de exercer o direito de propriedade".

A posse decompõe-se, assim, em dois elementos, o «corpus» e o «animus».

O «corpus» traduz-se no poder de facto- arts. 1252, 1253 do Cód. Civil- sobre a coisa, a influência que se exerce sobre a coisa. Pode não ser uma influência direta, pois como refere o Prof. Oliveira Ascensão in "Direitos Reais" pág. 243 "a fruição não exige contacto material efetivo, mas quando muito, a possibilidade desse contacto"; refere ainda este Professor que há "corpus" enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar a atuação material sobre ela, querendo.

No mesmo sentido, vasta jurisprudência, nomeadamente os Ac. do STJ de 21-10-2010, no proc. nº 120/2000.S1, de 06-04-2017, no proc. nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1e AUJ de 14-05-1996, no Proc. nº 085204.

A doutrina e a jurisprudência definem o corpus como o exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se carateriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.

 Embora o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça – processo nº 85204 - de 14.05.96, publicado no DR II série, de 24.06.96 tenha uniformizado a jurisprudência no sentido de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”, na sua fundamentação este AUJ também refere que “O ato de aquisição da posse que relava para a usucapião terá assim de conter dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insuscetível de conduzir à dominialidade” e, “São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no art. 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com animus de exercer o direito real correspondente”.

 Sendo fáceis de constatar os atos objetivos da posse, ou seja, o corpus, o animus (intenção de agir do titular) é mais difícil de apreender e por isso a lei faz presumir que quem exercer os atos materiais da posse também os exercerá (em princípio) com intenção.

O Ac. da Rel. de Co. de 25-02-2014, no proc. nº 1350/11.6TBGRD.C1, refere que “O legislador – sempre sensato no âmbito dos direitos reais - por entender que a prova do elemento intelectual da posse é, por vezes, difícil, estabeleceu, no nº 2 do art.º 1252 do C. Civil, uma presunção no sentido de que se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do nº 2 do art.º 1257 do mesmo diploma”. 

Ou seja, para facilitar ao possuidor a prova do “animus”, a lei estabelece no art. 1252, nº 2 do Cód. Civil, uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto. Isto é, a existência do “corpus” faz presumir a existência do “animus”.

Face ao constante da al. U dos factos provados, a “posse” dos réus não pode senão recortar-se como uma posse precária, insuscetível de poder conduzir à aquisição de um direito real por usucapião (cfr. arts. 1253, a) e b) e 1290 do Cód. Civil).

Como refere o Ac. da Rel. de Lisboa, de 04-06-2009, no Proc. nº 1837/08.8TVLSB.L1-6 , “São havidos como detentores ou possuidores precários: os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem” e, os meros detentores não exercem sobre a coisa (objeto dos seus atos), os poderes de facto com animus de exercer o direito real de propriedade.

O referido al. U da matéria de facto provada é claro ao referir: “O que fizeram à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém quanto a toda a área de terreno que utilizaram; convencidos de estar a exercer um direito próprio e de que não prejudicavam ninguém relativamente ao prédio referido em n), mas já não quanto à faixa de terreno com área de 114,60 m2, que segue ao longo desse muro, referida em z.” (sublinhado nosso).

Não tendo os réus intenção de usar a faixa de terreno como sua não existe qualquer dúvida que permita concluir que os mesmos beneficiam da presunção legal a seu favor. Relativamente àquela faixa, os recorrentes não exerciam atos de posse, mas eram meros detentores, conforme definição do art. 1253 do CC.

A presunção estabelecida no nº 2 do art. 1252 do CC só funciona nos casos de dúvida, e não existe qualquer dúvida face ao provado na referida al. U, da qual resulta provado que o detentor não é possuidor.

Como se lhe refere o Ac. deste STJ de 20-03-2014, no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2 “A presunção estabelecida no art. 1252, n.º 2, do CC só atua em caso de dúvida, e não quando se trate de uma situação definida, que exclua a titularidade do direito”.

Podem adquirir por usucapião, os que exercem o poder de facto sobre a coisa, mas apenas nos casos em que a presunção de posse não for ilidida. Mas no caso, a matéria de facto daquela al. U ilide a presunção.

Assim o entende o Ac. deste STJ de 12-05-2016, no proc. nº 9950/11.8TBVNG.P1.S1 quando refere “A presunção estabelecida no n.º 2 do art. 1252 do CC é estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do doutrinado no AUJ do STJ, de 14/05/1996”. A matéria daquela al. U prova a falta do animus por parte dos réus recorrentes.

Improcedendo a questão da aquisição originária por usucapião verifica-se que estes réus não são, não podem ser, proprietários daquela faixa de terreno.

Mas, ainda que se considerasse que essa intenção de agir como proprietário ocorreu, pelo menos, com a construção do muro e demais atos subsequentes praticados na faixa de terreno, não decorreu período temporal suficiente para consubstanciar a aquisição originária por usucapião.

Entendendo-se que com a construção do muro os réus pretenderam inverter o título da posse, nos termos dos arts. 1263 al. d) e 1265, ambos do CC, e passar a comportar-se, a atuar, como proprietários, donos daquela faixa de terreno, temos não ter decorrido o prazo legal necessário.

Tentariam adquirir “uma posse boa para efeito de usucapião”, como se refere no Ac. do STJ de 17-12-2014, no proc. nº 1313/11.1TBCTB.C1.S1, que refere ainda “A inversão do título da posse tem que consistir numa oposição expressa através de atos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos (reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como proprietário) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os atos se opõem”.

O Ac. do STJ de 20-03-2014, no proc. nº 3325/07.0TJVNF.P1S2 refere, “III-Quem exerce a posse em nome alheio só poderá adquirir o direito de propriedade se entretanto ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos arts. 1265 e 1290 do CC. IV- A eficácia da oposição referida no art. 1265 do CC depende da prática de atos inequivocamente reveladores de que o detentor quer atuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa. V- A oposição deve, além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a coisa e tornar-se dela conhecida”.

E o Acórdão do STJ de 09-02-2012, proferido no processo nº 3208/04.6TBBRR.L1.S1, “A oposição que aquele preceito legal [art. 1265 do CC] reclama implica uma contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica”. E acrescenta; “Mister é que o detentor de uma coisa, em nome alheio, se apresente perante aquele em nome de quem detinha com uma atitude ou um comportamento diverso daquele que havia assumido até esse momento, isto é, confrontando o titular do direito com um comportamento típico de quem passou a possuir sem qualquer constrangimento ou liberto de peias que tolhessem o uso, a fruição e a disposição plenas da coisa”.

No mesmo sentido, o Prof. Santos Justo, in “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194. “Trata-se, portanto, de uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado por este autor, “a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante”.

No entanto não decorreu o prazo legal necessário para a aquisição por usucapião, pelo que nos resta concluir como no acórdão recorrido: “A construção de um muro que cortou o prédio dos Autores e colocou uma faixa do terreno desse prédio junto do da Ré, constituiu um ato material e inequívoco de que passaria a atuar como se fosse a proprietária do que estava para aquém do muro. Não se demonstrou qualquer oposição dos Autores e a Ré exerceu a posse desde então como se fosse a proprietária do imóvel (e depois como usufrutuária).

No entanto, a sua posse sobre tal faixa, que se conta desde a construção do muro (ato que consistiu na inversão do título de posse), embora pública e pacifica, não era titulada, pelo que se presume de má-fé (artigo 1260º nº 2 do Código Civil); assim, a usucapião só ocorreria ao fim de 20 anos (artigo 21290º do Código Civil).

Não se provou que decorreu tal período (veja-se que a doação teve lugar em 1999 e só após esta foi construída a habitação dos Réus, tendo o muro sido erigido depois do terminus dessa construção, sendo a ação de 2018)”.

Assim que, não se verificou a inversão do título da posse.

Consequentemente, há-de ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelos 2ºs réus.

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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I- A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674, nº 3 e 682, nº 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.

II- Estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova, as declarações de parte, quando não constantes de declaração confessória escrita.

III- É definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação.

IV- A doutrina e a jurisprudência definem o corpus como o exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se carateriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos atos realizados.

V-São havidos como detentores ou possuidores precários todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com animus de exercer o direito real correspondente.

 VI-Sendo fáceis de constatar os atos objetivos da posse, ou seja, o corpus, o animus (intenção de agir do titular) é mais difícil de apreender e por isso a lei faz presumir que quem exercer os atos materiais da posse também os exercerá (em princípio) com intenção.

VII- Não tendo os réus intenção de usar a faixa de terreno como sua não existe qualquer dúvida que permita concluir que os mesmos beneficiam da presunção legal a seu favor. A presunção estabelecida no nº 2 do art. 1252 do CC só funciona nos casos de dúvida.

VIII- A inversão do título da posse tem que consistir numa oposição expressa através de atos positivos, inequívocos e reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como proprietário.

IX-A inversão do título de posse “Trata-se, portanto, de uma conversão duma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detinendi passa a ser detido a título de animus possidendi”, ou nas palavras de Orlando de Carvalho, citado por este autor, “a inversão do título de posse é uma inversão do animus: o animus não relevante transforma-se em animus relevante”- Prof. Santos Justo, in “Direitos Reais”, Almedina, 2011, 3.ª edição, pág. 194.

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Decisão:

Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça e 1ª Secção em julgar o recurso improcedente e, consequentemente, nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

13-10-2020

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta

António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto