Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3/12.2GALLE.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
FACTO CONCLUSIVO
FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
CULPA
CONDIÇÕES PESSOAIS
ANTECEDENTES CRIMINAIS
Data do Acordão: 06/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DOS FACTOS / PENAS / MEDIDA DA PENA - TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO - RECURSOS.
Doutrina:
- Maia Costa em “Direito Penal da droga: breve história de um fracasso”, Revista do Ministério Público, Ano 19, Nº 74, 103 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 7.º E 8.º.
D.L. N.º 15/93, DE 22-01: - ARTIGOS 21.º, 24.º, 25.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 31.01.20202, PROCESSO N.º 4624/01, 5.ª SECÇÃO;
-DE 18.12.2013, PROCESSO N.º 1/12.6GBAVR.S1.
Sumário :

I  -   O acórdão recorrido concretizou o período de tempo em que o arguido vendeu droga, como se movimentou para o efeito, os números dos telemóveis utilizados nas «negociações» para a venda da droga; as concretas expressões que o arguido e os seus clientes usavam nas negociações, as concretas condições impostas pelo arguido para a aceitação do negócio, os concretos locais onde as vendas eram efectuadas e as circunstancias em que foram feitas, não individualizando todas as pessoas a quem vendeu droga (porque não foi possível identificar todas as que foram referenciadas nos meios de obtenção de prova debatidos em julgamento). Assim sendo, estão concretizados o espaço, o tempo e a frequência com que o arguido exerceu o negócio, de modo a permitir o exercício pleno do contraditório.

II -  A diferenciação entre o crime de tráfico de estupefacientes p.e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01 e o crime p. e p. pelo art. 24.º e o crime p. e p. pelo art. 25.º do mesmo diploma, faz-se a partir do mesmo tipo base, tendo em consideração o concreto grau de ilicitude da conduta ajuizada. A conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá que resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstancias que o preceito (art. 25.º do DL 15/93) enumera de forma não taxativa mas, ainda, outras que apontem para aquela considerável diminuição.

III - O que releva é a imagem global do facto, a sua ilicitude global e não o grau de ilicitude de cada uma das transacções. No caso em apreço, é apreciável a quantidade de cocaína apreendida (12,890 g) e entretanto vendida; a qualidade da droga transaccionada é das mais nefastas para a saúde, desde logo pelo grau e intensidade de adição que provoca; a modalidade da conduta – venda a consumidores com fins lucrativos – é das mais graves das enunciadas no tipo fundamental; as circunstâncias em que o arguido agiu, ao invés de atenuarem, agravam a ilicitude do seu comportamento, dado ter constituído família e vindo para Portugal à procura de melhores condições de vida e desde então tem vivido praticamente sem trabalhar, tendo procurado na venda de droga os meios de sobrevivência. Não estamos perante um quadro fáctico de ilicitude consideravelmente diminuída, razão por que a conduta do arguido cai na previsão do art. 21.º do DL 15/93.

IV - O arguido já foi condenado, cerca de 2 anos antes de ter iniciado a actividade delituosa agora em causa, a 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, também por tráfico de estupefacientes, de menor gravidade, e apesar de ter vindo para Portugal com vista a obter melhores condições de vida, nunca exerceu, de forma contínua, qualquer actividade profissional. Não lhe são apontadas falhas posteriores aos factos em julgamento. Assim, sendo mediano o grau de ilicitude da conduta, elevado o grau da culpa e fortes as exigências de prevenção (geral e especial) afigura-se adequada a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

Decisão Texto Integral:

               Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

            1. Relatório

            1.1. No processo em epígrafe, respondeu, perante o Tribunal Colectivo do 2º Juízo de Competência Especializada do Tribunal Judicial de Faro, o arguido AA, nascido em ..., em ..., filho de ... e de ..., ..., titular do passaporte nº ..., residente em ..., na Rua ..., que foi condenado, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1, do DL 15/93, de 22.01, com referência à tabela I-B a ele anexa, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e na pena acessória de expulsão do território nacional pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses (acórdão de 21.02.2014, fls. 2198 e segs.).

            1.2. Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça de cuja motivação (fls. 2253 e segs.) extraiu as seguintes conclusões:

            «1. Os pontos 1 a 12 contêm matéria de facto genérica, não concretizada e que por este motivo deve ser removida dos factos provados.

                2. São apenas formulações genéricas, relacionando-se vagamente o arguido com outras pessoas, sugerindo-se atos de tráfico sem tradução em factos concretos praticados pelo recorrente.

                3. de resto, as afirmações genéricas, contidas no elenco desses «factos» provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe os locais em que os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como «factos» inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da Constituição.

                4. Violaram-se em consequência, os direitos de defesa dos arguidos – art. 32º da C.R.P. –, pois os factos acima referidos deveriam ter sido dados como não provados.

                5. Os factos provados, ainda que não modificados, devem integrar a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade – art. 25º do DL 15/93 de 22.1.

                6. Apurou-se em concreto uma atividade de venda direta ao consumidor, apurando-se cerca de 14 vendas a 6 pessoas.

                7. Ainda nos casos, como o presente, em que se verifica falta de alguma precisão sobre a quantidade da cocaína objecto de cada entrega, é de considerar, pro reo, que se trata de pequenas quantidades, e que a conduta integra a previsão do art. 25.°, al. a), do DL 15/93, de 22-01.

                Violaram-se as seguintes disposições:

                - Artigos 70º e 71º do CP;

                - Artigo 21º e 25º do DL 15/93 de 22/01.

                Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento :

                - Declarando-se como não escritos os descritos nos pontos 1 a 12;

                - Qualificarem-se os factos nos termos do art. 25º do DL 15/93 de 22.1;

                - Reduzindo-se sempre a pena aplicada».

            1.3. Respondeu o Exmo. Magistrado do Ministério Público que concluiu pela confirmação integral do acórdão recorrido (fls. 2289/90).

            1.4. Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 2300 e segs. em que defendeu (a) a «rejeição liminar» do recurso, em parte; (b) o seu não provimento, na parte restante:

             – rejeição, na parte em que o Recorrente pretende que o Supremo Tribunal de Justiça, contra o regime das disposições conjugadas dos arts. 434º e 432º, nº 1, alínea c), do CPP, «anule» matéria de facto julgada provada, tanto mais que, acrescenta, no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não surpreendeu qualquer dos vícios enumerados no nº 2 do artº 410º do mesmo Código;

            – não provimento, quanto à pretendida desqualificação dos factos e, consequentemente, quanto à desejada redução da medida da pena. Por um lado, porque, face aos factos julgados provados, «é desadequado… pretender que o crime cometido … é o previsto e punido pelo art. 25º do Dec-Lei nº 15/93». Por outro, porque a pena aplicada – de 5 anos e 6 meses de prisão – se mostra «adequada, … considerando as exigências prementes da prevenção geral…». De resto, prossegue, o Arguido já foi «condenado por um crime de tráfico de estupefacientes, e não obstante tal advertência não foi suficiente para alterar o seu comportamento…»; a culpa é grave, porque «actuou sempre com dolo directo e as circunstâncias atenuativas que militam a seu favor não relevam suficientemente para que se coloque em causa a justeza e adequação da pena de prisão aplicada».     

            1.5. Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, o Recorrente reiterou (fls. 2307) que, «quanto à matéria de facto genérica e conclusiva», a questão que colocou é de direito, por estar em causa a violação dos seus direitos de defesa, designadamente o princípio do contraditório»;

            Quanto ao «enquadramento jurídico e pena», realça que o acórdão recorrido, «para aferir do correcto enquadramento jurídico e afastar o artigo 25º…valorou na vertente mais gravosa os factos de natureza genérica». E, «nem que seja pela via do afastamento dos factos genéricos, a pena … deve sempre ser reduzida…».     

           

            2. É do seguinte teor a “Fundamentação de Facto“ do acórdão recorrido:

            «Factos Provados:

                1 Desde data não apurada, mas pelo menos desde o início de Novembro de 2012, e até 4 de Abril de 2013, o arguido AA dedicou-se à venda de produtos de natureza estupefaciente – cocaína – o que fez diariamente e a vários indivíduos que o procuraram para o efeito.

                2 – Inicialmente o arguido AA vendia o referido produto estupefaciente todos os dias. A partir de Fevereiro de 2013 começou a ausentar-se uma vez por semana para Lisboa e mais tarde, a partir de Março, passou a permanecer a semana em Lisboa, onde tem familiares, a fim de obter um contrato de trabalho, para legalizar a sua permanência em Portugal.

                3 – O arguido passou desde então a ter duas residências, uma em Lisboa e outra no Algarve, esta última localizada numa zona isolada, em ..., Faro.

                4 – A partir desse momento, o arguido permanecia aos fins-de-semana na sua residência de ..., procedendo à venda de cocaína aos vários indivíduos que o contactavam para o efeito, ou a quem o arguido contactava.

                5 – Para esse efeito, o arguido deslocava-se habitualmente no veículo ligeiro de mercadorias, marca “Seat”, modelo “Ibiza”, de cor preta, com a matrícula ...-JE.

                6 – Para vender cocaína, o arguido utilizava o seu telemóvel, com o n.º ..., sendo conhecido por “Toni” ou “Olhos Verdes”.

                7 – Todavia o arguido já tinha utilizado os seguintes n.ºs de telemóvel: ...; ....; ....

                8 – Durante as conversações entre o arguido e os vários indivíduos, com quem negociava para vender cocaína, os intervenientes referiam-se em regra ao produto estupefaciente, reportando-se às quantidades e aos valores pretendidos, utilizando designadamente os seguintes termos/expressões: «quatro pacotes»; «Queria dois»; «Se calhar vou comprar três»; «Estou com uma amiga, a moça quer cem»; «Uma de Cinquenta»; «Vou comprar três»; «Posso ir aí às flores?».

                9 – Era também habitual negociarem as quantidades, em função da qualidade, designadamente: «uma de cinquenta, boa»; «Olha boa, a outra era um bocado fraca»; «É duas de cinquenta, mas traz isso bom»; «Duas de quarenta boas».

                10 – O arguido recusava-se a vender quando a quantidade solicitada era inferior a € 20,00.

                11 – O arguido dedicava-se à venda do referido produto na zona de ..., ..., ...., .... e ....

                12 – As vendas eram efectuadas em contactos rápidos, realizados muitas vezes através da janela do veículo do arguido.

                13 – Na sequência dos referidos contactos telefónicos, o arguido negociou/entregou a vários indivíduos panfletos, contendo cocaína, designadamente a BB; CC; DD; EE; FF e GG, tendo pontos de venda acordados com cada um deles em zonas isoladas, sendo os contactos desenvolvidos quase sempre através da janela do veículo e de forma muito rápida.

                14 – GG comprou cocaína ao arguido durante 4/5 meses antes da detenção do arguido.

                15 – Para o efeito, contactou o arguido através do seu número de telemóvel ..., para o número do arguido ..., e, como residia em ..., deslocou-se, nessas ocasiões, à zona de ..., de carro, acompanhada por vezes pelo seu companheiro HH.

                16 – Pelo menos no mesmo período de tempo, DD comprou cocaína ao arguido em número de vezes não determinado mas superior a três. Em regra adquiria meia grama por € 20,00.

                17 – Para o efeito, estabeleceu contacto telefónico do seu número 916878667, para o número do arguido ....

                18 – Desde data não determinada de Novembro de 2012, EE comprou cocaína ao arguido, em número não determinado de vezes, o que fez para o seu filho, que consumia o referido produto há vários anos.

                19 – Até Março de 2013, EE comprou cocaína três vezes por semana, pagando entre € 30,00 a € 50,00 de cada vez, consoante a quantidade adquirida.

                20 – A partir de Março de 2013, como o arguido passava a semana em Lisboa, EE comprou cocaína ao arguido aos fins-de-semana, uma só vez por fim-de-semana, em quantidade correspondente a € 140,00/150,00 cada fim-de-semana.

                21 – Adquiriu o referido produto na zona de ..., utilizando o seu n.º de telemóvel ... para contactar o arguido e, várias vezes, o arguido contactou-a a informá-la que já estava no Algarve.

                22 – Por sua vez, BB comprou cocaína ao arguido, durante o mesmo período de tempo, pelo menos por duas vezes, pagando entre € 20,00 a € 50,00 de cada vez consoante a quantidade.

                23 – Para o efeito, contactou o arguido através do seu n.º ... para o n.º ... e, a fim de não ser identificada, identificou-se como “Sónia”.

                24 – As entregas foram feitas a BB nas traseiras do ..., em ..., ..., e sempre através da janela do veículo do arguido.

                25 – Também CC, consumidor de cocaína, acompanhou BB, sua companheira, a fim de adquirir cocaína para o seu consumo.

                26 – No dia 28 de Março de 2013, pelas 17H00, o arguido dirigiu-se, no seu veículo, a ..., a fim de se encontrar com BB para lhe vender cocaína.

                27 – Aí chegado, o arguido imobilizou o seu veículo junto à rotunda existente entre a Rua ..., onde também parou um veículo, marca Volkswagen Golf, de cor vermelha, no qual se fazia transportar BB.

                28 – De imediato, BB saiu do seu veículo e entrou no veículo do arguido.

                29 – Nesse momento, o arguido entregou a BB cocaína e recebeu uma quantia pecuniária em troca, tendo ambos abandonado o local em seguida.

                30 – No dia 4 de Abril de 2013, após ter chegado ao Algarve, cerca das 16:00 horas, o arguido recebeu um telefonema de DD, tendo-se então deslocado no seu veículo a uma zona isolada de Pechão, onde lhe vendeu cocaína por quantia pecuniária não apurada.

                31 – No mesmo dia, cerca das 18H00, o arguido contactou do seu telemóvel (n.º ...) a testemunha BB, informando-a de que já se encontrava no Algarve, tendo-lhe a mesma lhe pedido «duas de 50», ou seja duas bolas de cocaína, no valor de 50 euros cada.

                32 – O arguido combinou então com BB encontrar-se no local do costume, ou seja nas traseiras do ..., em ..., ..., e esta fez-se acompanhar de CC, seu companheiro, e da filha de ambos.

                33 – Nesse momento, o arguido trazia consigo:

                - Um telemóvel, marca “Nokia”, modelo x2, de cor preta e vermelha, com o IMEI ..., com o contacto n.º ..., no valor de 25 euros;

                - Um telemóvel, marca “Samsung”, modelo GTE, de cor preta, com o IMEI ..., com o contacto n.º ..., no valor de 10 euros;

                - Um telemóvel, marca “Samsung”, modelo GTE, de cor cinzenta, com o IMEI ..., com o contacto ..., sem valor comercial; e

                - Uma carteira contendo: várias anotações e quatro talões de depósito, dois em nome de II, datados de 03.10.2012 e 24.01.2013, respectivamente nos valores de 100,00 euros e 20,00 euros e outro no nome de JJ, irmã do arguido, datado de 08.03.2013, no valor de 10000 euros.

                34 – O arguido AA estava ainda na posse do veículo automóvel da marca “Seat”, modelo “Ibiza, a gasóleo, com a matrícula ...-JE, de que é proprietário.

                35 – No interior do referido veículo foram encontrados:

                - O documento único automóvel, emitido em nome do arguido AA e datado de 19.07.2012;

                - O documento único automóvel, ligeiro de passageiros, relativo ao veículo matrícula 34-01-NT, marca “Toyota”, modelo “Avensis”, a gasolina, emitido em nome do arguido AA e datado de 31.10.2012, veículo este que foi exportado, pelo arguido, para Cabo Verde, a 26.12.2012.

                - Dois talões de Payshop, referentes a carregamentos, em numerário, do telemóvel ...;

                - Um recibo de portagem de saída em Carcavelos, datado de 19.03.2013, pelas 10H23;

                - Um certificado de destruição de veículo em fim de vida, referente ao veículo ...-JX, marca “Mitsubishi, modelo Canter;

                - Comprovativo de apresentação para transferência de propriedade do veículo ...-NT, Toyota, Avensis;

                - Três orçamentos realizados na empresa “... & Irmão, SA”, com valores de 1980,20 euros e 811,50 euros e 2.228,16 euros, referentes a materiais de construção e sanitários; e

                - Uma agenda, contendo diversas anotações, contactos telefónicos e outras informações manuscritas pelo arguido.

                36 – Nesse mesmo dia, pelas 19H00, o arguido AA tinha na sua residência, n.º1-A, sita em ...:

                - Vários recortes de plástico; uma tesoura azul, diversos rolos de fita adesiva e uma balança digital, de cor preta, objectos que o mesmo utilizava para pesagem e acondicionamento dos produtos estupefacientes;

                - Três telemóveis: um de marca “Nokia”, com o IMEI ..., com o valor de 50 euros; um de marca “Samsung”, com o IMEI ..., com o valor de 10 euros, e outro de Marca “Nokia, com o IMEI ..., com o valo de 50 euros;

                - Um contrato de arrendamento e dois recibos de renda, todos em nome de AA;

                - Dois talões de carregamento de telemóvel, um para o n.º ... e outro para o n.º ...;

                - Um cartão sim da Vodafone com o n.º 3346;

                - Um papel com vários nomes e contactos telefónicos;

                - Um envelope, contendo vários escritos com valores monetários;

                - 130 euros em notas do BCE, que se encontravam escondidos dento da Bíblia, a qual estava sobre o móvel do quarto; e

                - Um pacote contendo 12,89 gramas de cocaína (peso líquido), que se encontrava dissimulado junto à janela da casa de banho do arguido.

                37 – O arguido tinha ainda na referida residência:

                - Um televisor LCD, marca “Toshiba”, modelo 26AV635DG, n.º de série 943G61P00330K1, no valor de 50 euros;

                - Um sistema de som, marca “Monitor Audio”, com ficha de ligação ao estilo britânico, no valor de 20 euros;

                - Uma coluna de som, marca “Sony”, cor preta, n.º de série 5112219, no valor de 20 euros;

                - Um Ipod, da marca “Aple”, 120GB, de cor preta e cinza, n.º de série 943G61PO, no valor de 50 euros;

                - Um computador portátil, marca “Toshiba, com o n.º série X8120476K, no valor de 120 euros;

                - Um receptor digital, marca “Samsung”, n.º de série 166695455372, sem valor comercial;

                - Nove garrafas de bebidas alcoólicas (Whisky e vinho tinto), tudo no valor global de 69 euros; e

                - Um fio em prata no valor de 50 euros.

                38 – O produto estupefaciente encontrado na posse do arguido AA era de sua pertença e destinava-se a ser vendido aos diversos consumidores que o procurassem para o efeito.

                39 – O arguido tinha conhecimento da natureza da substância – cocaína – que vendeu e que detinha consigo para vender, bem como sabia que não podia deter nem vender tal produto, e ainda assim quis e agiu da forma descrita, concertadamente e em conjugação de esforços e meios, de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

                40 – O dinheiro e os demais objectos apreendidos ao arguido, com excepção dos referidos em 37 supra, eram provenientes da sua actividade de venda de cocaína ou relacionados com o exercício da mesma.

                41 – O arguido é cidadão de nacionalidade cabo-verdiana e encontra-se a residir em Portugal pelo menos desde 2009, mantendo-se em situação de permanência irregular em território nacional.

                42 – Até vir para Portugal, o arguido viveu sempre em Cabo Verde.

                43 – Originário de uma família composta pelos progenitores e pelos seus oito irmãos, o arguido iniciou a sua actividade laboral com cerca de 13 anos de idade, no sector agrícola.

                44 – Aos 17 anos de idade, o arguido constituiu família, actualmente composta pela sua companheira e por dois filhos menores, de 10 e 5 anos de idade, e residente em Cabo Verde, sendo que desenvolveu actividades diversificadas como distribuidor de armazém, taxista e camionista, reunindo condições sócio-económicas para assegurar a subsistência da família.

                45 – Apesar de ter vindo para Portugal por motivos de lazer, o arguido optou por permanecer com vista a obter condições de trabalho que melhorassem a sua condição económica, mantendo contacto com a sua irmã cá residente na área de Lisboa.

                46 – Esteve inicialmente inactivo por vários meses, tendo trabalhado como indiferenciado construção civil, para duas entidades patronais.

                47 – Desde há cerca de dois anos adquire motores e peças automóveis à sociedade de sucata, Auto Peças, sita em Lagoa, com o objectivo de remetê-las para venda para o seu país de origem, onde tais peças têm valor de mercado superior.

                48 – Entre 09.03.2011 e 26.12.2012, o arguido exportou para Cabo Verde diversos objectos, que acondicionou em contentores, designadamente: Um veículo ligeiro de mercadorias, marca “Toyota”, matrícula ...-SN, a gasóleo; Um veículo pesado de mercadorias, marca “Mitsubishi”, matrícula ...-JX, a gasóleo; Um veículo ligeiro de passageiros, marca “Toyota”, matrícula ...-NT, a gasolina; Vários electrodomésticos, designadamente frigoríficos, fogões, televisores, radiadores; Várias mobílias de quatro; Colchões; Sofás; e Bicicletas.

                49 – Porém, o arguido não exercia actividade profissional com regularidade, na data a que se reportam os factos.

                50 – Em meio prisional, tem registado um comportamento conforme às regras estabelecidas, disponibilizando-se para desenvolver ocupação laboral ou formativa, e estando integrado num curso de português para estrangeiros.

                51 – O arguido foi já condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, praticado a 31.10.2009, por sentença de 21.10.2010, na pena de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, declarada extinta a 10.02.2012.

                Factos Não Provados

                1 – A fim de não ser detectado, o arguido seleccionou um grupo restrito de compradores.

                2 – O arguido trazia o produto estupefaciente consigo de Lisboa para o Algarve.

                3 – O arguido aliciava diversos indivíduos a adquirirem-lhe cocaína.

                4 – O arguido utilizava o nº de telefone ... para vender cocaína.

                5 – O arguido quando mudava de número informava os seus clientes do novo número a partir do qual seriam feitas as transacções.

                6 – No dia 04.04.2013, no trajecto para o local combinado com BB, o arguido apercebeu-se da presença da GNR, tendo deitado fora o produto estupefaciente que trazia consigo.

                7 – O arguido preparava-se para regressar a Cabo Verde».

            3. Objecto do recurso

            São as conclusões da motivação que definem o objecto do recurso – artº 412º, nº 1, do CPP e 635º, nº 4, do CPC2013.

            No caso em julgamento, as questões que emergem das conclusões da motivação do recurso interposto são as seguintes:

            1ª – a remoção dos “Factos Provados” da matéria dos seus nºs 1 a 12, dada a  sua natureza genérica e conclusiva, com a consequente violação dos direitos de defesa do Recorrente;

            2ª – a qualificação dos factos e a redução da medida da pena.

            4. Tudo visto e nada havendo que obste ao conhecimento do presente recurso, cumpre decidir.

            Julgamento/fundamentação:

            4.1. Começamos o nosso julgamento naturalmente pela primeira daquelas questões.

            4.1.1. A propósito desta questão, o Arguido alega, em síntese, que os referidos pontos da matéria de facto apenas contêm «formulações genéricas, relacionando-se vagamente o arguido com outras pessoas, sugerindo-se atos de tráfico sem tradução em factos concretos praticados pelo recorrente», a que falta «o tempo, lugar, modo, circunstâncias, qualidade ou quantidade». E, invocando a fundamentação dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.2004, Pº 04P908 e de 21.02.2007, Pº 06P3932, conclui que «a aceitação dessas afirmações como «factos» inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos [arguidos] assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32º da Constituição».

                A Senhora Procuradora-geral Adjunta, entende, porém, como vimos, que, nessa parte, o recurso deve ser «rejeitado liminarmente».

            Vejamos, ainda que sumariamente, a postura do Arguido ao longo de algumas das fases do processo:

                Deduzida pelo Ministério Público acusação contra o Arguido (fls. 1809 e segs.), este, por intermédio da Senhora Advogada por si mandatada, requereu a abertura da instrução (fls. 1933 e segs.), em cujo nº 4 alegou que a droga que lhe foi apreendida na sua residência (cfr. a última referência do nº 36 dos ”Factos Provados”) foi aí colocada pelos militares da GNR que realizaram a busca, com o intuito de o incriminarem.

                O Senhor Juiz, no despacho de pronúncia (fls. 2012), observou que, no 1º interrogatório judicial, o Arguido, apesar de confrontado com todos os meios de prova até aí contra ele recolhidos, designadamente aquela apreensão de cocaína, não os pôs em causa.

                O Arguido acabou pronunciado nos termos em que havia sido acusado.

                No decurso da audiência, em que esteve assistido pela mesma Senhora Advogada, o Arguido declarou desejar exercer o seu direito ao silêncio quanto à matéria da acusação (cfr. Acta de fls. 2139).

                Na sessão da audiência do dia 21.02.2014 (cfr. Acta de fls. 2228), o Senhor Juiz Presidente do Tribunal ditou para a acta um despacho em que, considerando que, no decurso da audiência, «resultou, além de tudo o mais, a prova de determinados factos que constituem concretizações dos factos constantes da acusação pública», que a seguir enumerou (em cujo rol estão incluídos os indicados nos quatro primeiros números dos “Factos Provados”) e que se tratava «de uma alteração não substancial de factos», procedeu à comunicação imposta pelo no nº 1 do artº 358º do CPP.

                A Senhora Advogada do Arguido respondeu nada ter a requerer e prescindiu do prazo para preparação da defesa.

                Proferido o acórdão, o Arguido interpôs dele o recurso agora em julgamento, subscrito por novo Mandatário, por substabelecimento da inicialmente constituída.

            Pois bem.

            Constatamos, assim, face à descrição acabada de fazer, que a estratégia da defesa do Arguido, apesar de o núcleo essencial dos factos que lhe vêm sendo imputados desde o primeiro interrogatório judicial se ter mantido inalterado, vem mudando em função da fase processual, com evidente postergação dos princípios da cooperação e da boa-fé processual, impostos pelos arts. 7º e 8º do CPC2103 (arts. 266º e 266º-A, do CPC anterior).

            Não compreendemos, com efeito, que, depois de naufragada a tese da intervenção criminosa dos soldados da GNR para o incriminar e que, depois da expressa afirmação de concordância com o aditamento à acusação de certos factos, venha agora, só agora, por coincidência assistido por novo Advogado, alegar a «natureza genérica» de alguns desses factos e a violação dos seus direitos de defesa.

            O princípio da preclusão levar-nos-ia, pois, só por si, a julgar inoperante esta parte da motivação, pelo menos enquanto referida aos nºs 1 a 4 dos “Factos Provados”.

            Vamos, no entanto, prosseguir e apreciar a alegação do Recorrente.

            Os factos dos nºs 5 a 12 deste mesmo capítulo do acórdão recorrido estão, de facto, fora do conjunto dos que o Tribunal aditou, nos termos do artº 358º do CPP. Mas o conjunto de todos eles (dos nºs. 1 a 12) nada tem de genérico, de modo a impossibilitar o exercício do direito de defesa, designadamente do contraditório. Com efeito, referem, em concreto, o período de tempo em que vendeu droga (nºs 1 a 4); referem como se movimentou para o efeito, (nº 5); referem os números dos telemóveis utilizados nas «negociações» para a venda de droga (nºs 6 e 7); referem as concretas expressões que ele e os seus clientes usavam nas negociações, via telefone, para concretização do negócio – expressões que a experiência da vida associa inequivocamente à compra e venda de estupefacientes (nºs 8 e 9); referem as concretas condições impostas pelo Arguido para a aceitação do negócio (nº 10); indicam os concretos locais onde as vendas foram efectuadas e as circunstâncias em que foram feitas (nºs 11 e 12).

            É, pois, manifestamente improcedente o argumento da falta de indicação do tempo, lugar, modo, circunstância e qualidade (da quantidade falaremos mais à frente).

            Não se individualizam, é verdade, todas as pessoas a quem vendeu droga. Naturalmente porque não foi possível identificar todas as que foram referenciadas nos meios de prova debatidos em julgamento, designadamente nas acções de vigilância, nas reportagens fotográficas e nas escutas telefónicas (cfr. a “Fundamentação da Decisão de Facto” do acórdão recorrido, máxime fls. 2207) a que o Arguido teve pleno e livre acesso e possibilidade de contradizer. Mas estão concretizados o espaço, o tempo e a frequência com exerceu o negócio (nºs 1 a 4), de modo a permitir o exercício pleno do contraditório.

            Por outro lado, das actas do julgamento e da própria fundamentação do acórdão recorrido sobressai que o Tribunal a quo cumpriu escrupulosamente o seu dever de investigação.

            Assim, nesta parte, o recurso é manifestamente improcedente e, como tal, tem de ser rejeitado, nos termos do disposto no artº 420º, nº 1, alínea a), do CPP, com a consequência estabelecida no nº 3 do mesmo artigo.

            (cfr. a este propósito o Acórdão deste Tribunal, de 18.12.2013, Pº nº 1/12.6GBAVR.S1).

            4.1.2. A leitura da motivação não sugere, em nossa opinião, que o Arguido (também) tenha querido sindicar o julgamento da matéria de facto – pretensão que, a verificar-se, teria de ser efectivamente rejeitada, nos termos e com os fundamentos invocados pela Senhora Procuradora-geral Adjunta, acima referidos.

            Consequentemente, temos, pois, por fixada a matéria de facto tal foi como julgada pelo Tribunal recorrido.

            4.2. Quanto à qualificação dos factos e à medida da pena.

            4.2.1.Quanto à qualificação dos factos:

            O DL 15/93, de 22 de Janeiro, desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes – o descrito no seu artº 21º –, ao qual aditou certas circunstâncias atinentes à ilicitude que agravam – artº 24º – ou atenuam – artº 25º – a punição prevista para o crime matricial. O primeiro, destinado a cobrir os casos de média e grande dimensão; o segundo, para prevenir os casos de excepcional gravidade; o terceiro, para combater os de pequena gravidade, o pequeno tráfico de rua.

            As modalidades da acção são, em qualquer dos casos, as mesmas, as descritas no tipo base. A diferenciação entre eles faz-se a partir do mesmo tipo base, tendo em consideração o concreto grau da ilicitude da conduta ajuizada

            Esta, em resumo, a orientação, pode dizer-se pacífica, que o Supremo Tribunal de Justiça vem trilhando há vários anos e que o Tribunal recorrido mostra ter perfilhado (cfr. fls. 2218 do acórdão recorrido).

            O problema que, então, há aqui que resolver é, assim, o de saber se a ilicitude da conduta do Arguido, materializada nos factos que foram julgados provados, deve/tem de se qualificar como consideravelmente diminuída ou se, pelo contrário, assume um grau de gravidade médio ou elevado (a excepcional gravidade está aqui, de facto, fora de questão).

            O Supremo Tribunal de Justiça, a propósito daquele crime dito de menor gravidade, tido como válvula de segurança do sistema, em ordem a evitar que situações efectivas de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas – trata-se de um crime «para o pequeno tráfico, para o pequeno “retalhista” de rua», como se disse, por exemplo, no Acórdão de 31.01.02, Pº nº 4624/01-5ª, citando Maia Costa em “Direito Penal da droga: breve história de um fracasso”, Revista do Ministério Público, Ano 19, Nº 74, 103 e segs. –, vem entendendo, também sem discrepâncias de relevo, que a conclusão sobre o elemento típico da considerável diminuição da ilicitude do facto terá de resultar de uma valoração global deste, tendo em conta, não só as circunstâncias que o preceito enumera de forma não taxativa mas, ainda, outras que apontem para aquela considerável diminuição.

            Reiteramos, uma vez mais, este entendimento, porquanto também pensamos que a avaliação da ilicitude de um facto criminoso como consideravelmente diminuída não pode deixar de envolver uma avaliação global de todos os elementos que interessam àquele elemento do tipo, tanto no domínio do direito penal da droga como em qualquer outro. Aqui, como em qualquer outro campo do direito penal, não bastará, por certo, a presença de uma circunstância fortemente atenuativa para considerar preenchido o conceito, quando as restantes, com incidência nessa avaliação, são de sentido contrário, do mesmo modo que um conjunto de circunstâncias fortemente atenuativas não poderá ser postergado, sem mais, pela presença de uma circunstância grave. A imagem global do facto, no que se refere à sua ilicitude (parece pacífico que, para efeitos de preenchimento do crime do artº 25º, não intervêm considerações sobre a culpa) é que é decisiva, como nos parece evidente. As dificuldades estarão em eleger os critérios de aferição dessa imagem global dos factos.

            O acórdão recorrido que, como referimos, seguiu o critério de qualificação que adoptamos, invocou a natureza da droga traficada, o período de tempo em que o Arguido vendeu droga (cerca de 4-5 meses, de forma sistemática), a «significativa disseminação efectiva do produto», a circunstância de ser elementar o grau de organização (tráfico de rua) e a quantidade de droga apreendida destinada à venda (12,890 gr de cocaína, correspondente a 64 doses diárias), para concluir que a ilicitude da sua conduta, sendo de «grau elevado», preenche o tipo legal do artº 21º.     

            Mas o Recorrente contrapõe que não se apurou com precisão a quantidade de droga efectivamente vendida em cada transacção – o que é de considerar, pro reo, que se trata de pequenas quantidades, a preencher a previsão do artº 25º. Concretizando alega que «estão em causa cerca de 14 vendas de cocaína a 6 pessoas, em dias não apurados – com exceção do provado em 26 a 29 e 30 – num local ermo escolhido para o efeito, circunstâncias que permitem apurar a atividade do recorrente como de venda direta de pequenas quantidades de cocaína a consumidores, obtendo os ganhos inerentes mas, de acordo com as regras da experiência, não se podem considerar elevados, sendo certo que seriam, em medida também não apurada, canalizados para a sua subsistência uma vez que se apurou que o arguido não tinha atividade profissional regular».

            Enfim, pensa «não poder ser considerada a atividade delituosa deste arguido em algo mais do que de pequeno tráfico – quanto muito médio» (sublinhamos).

            Como se constata, o Recorrente põe o acento tónico desta sua pretensão na indefinição da quantidade de droga vendida em cada transacção que entende deverem ser tidas como «pequenas quantidades».

            Porém, além de ter ficado provado que se recusava a vender quantidades de valor inferior a €20,00 (Facto do nº 10), os factos, designadamente os dos nºs 13 e segs., indiciam quantidades médias, normais neste tipo de tráfico directo, algumas até elevadas e que exerceu esse comércio durante meses, até ser preso.

            De qualquer modo, em nossa opinião o que releva é a imagem global do facto, a sua ilicitude global e não o grau de ilicitude de cada uma das transacções. Ora, no caso sub judice, para além das quantias concretamente apuradas e antes referidas, ficou provado, além do mais, que, com o produto da venda de cocaína ou relacionados com essa actividade, o Arguido adquiriu o dinheiro e os bens descritos nos nºs 33, 34, 35 e 36, em que avultam depósitos em dinheiro a favor de terceiros de valor não despiciendo, dois automóveis, a disponibilidade para pedir orçamentos de materiais de construção e sanitário no valor de cerca de €5000,00, um contrato de arrendamento e recibos de renda, em seu nome – tudo a evidenciar um volume razoável de venda de cocaína, tanto mais que, como o próprio confessa, não exercia qualquer actividade profissional regular e que era desse negócio que tirava o necessário para a sua subsistência.

            É certo que não se apurou que o Recorrente estivesse integrado, associado ou de qualquer modo conotado com qualquer estrutura ou organização dedicada ao tráfico de estupefacientes. Mas também está fora de causa a hipótese de estarmos perante actos meramente ocasionais. O que aqueles factos evidenciam é, pelo contrário, que o tráfico era a sua actividade principal, de onde retirou o necessário ao seu sustento (Note-se que as exportações de sucata para Cabo Verde a que se refere o nº 48 dos “Factos Provados”, embora apenas coincidentes com o tráfico de estupefacientes durante o mês de Novembro de 2012, também ocorreram quando o Arguido não exercia qualquer actividade profissional com regularidade, como nos diz o nº 49 dos “Factos Provados”).

            Seja como for, também entendemos que a actuação isolada, por sua conta e risco, não constitui, em si, índice de menor ilicitude da conduta do fornecedor directo, designadamente de que a ilicitude do tráfico praticado deva, por essa circunstância, considerar-se diminuída e, muito menos, consideravelmente diminuída, como exige o artº 25º. A actuação criminosa individual, neste como em outros domínios, além de não se traduzir em menor danosidade qualitativa para a saúde, liberdade pessoal e tranquilidade pública e de ser particularmente importante para o próprio êxito do tráfico, poderá ser até mais eficaz do ponto de vista da fuga à prevenção e repressão, como a experiência da vida a cada passo nos mostra. As hipóteses de delação, por quebra de cumplicidades, serão aqui praticamente inexistentes.

            Perante este quadro, temos de concluir que

            - é apreciável a quantidade de cocaína apreendida e entretanto vendida;

            - a qualidade da droga transaccionada é das mais nefastas para a saúde, desde logo pelo grau e intensidade de adição que provoca;

            - a modalidade da conduta – venda a consumidores com fins lucrativos – é, quanto a nós, das mais graves das enunciadas no tipo fundamental;

            - as circunstâncias em que agiu ao invés de atenuarem, agravam a ilicitude do seu comportamento. De facto, tendo constituído família e vindo para Portugal à procura de melhores condições de vida, tem vivido praticamente sem trabalhar, tendo procurado na venda de droga os meios de sobrevivência.

Estamos, assim, sem dúvida, perante um quadro que não consente que falemos em ilicitude consideravelmente diminuída, razão por que a conduta do arguido cai na previsão do artº 21º do DL 15/93, como bem decidiu o acórdão recorrido.

            Improcede, pois, o recurso, nesta parte.

            4.2.2. Da medida da pena.

            O Recorrente reclama a redução da medida da pena ainda que soçobre a pretendida desqualificação do crime, alegando, em síntese, que os factos provados quanto às condições pessoais – ser oriundo de uma família de muito modesta condição económica; trabalhar desde os 13 anos de idade; ter imigrado para Portugal, sozinho, à procura de melhores condições de vida – «conjugados com a ilicitude e a culpa, impõem, em última análise, uma redução da pena aplicada».

            O acórdão recorrido, a propósito da “Determinação da Medida da Pena” (fls. 2220) depois de ter invocado a doutrina dos arts. 40º e 71º, do CPenal, fundamentou a medida concreta da pena que aplicou nos seguintes termos:

«No caso, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas. Na verdade, o tráfico de estupefacientes é comunitariamente sentido como uma actividade com grande extensão de afectação de valores sociais fundamentais – com enormes riscos de lesão de bens jurídicos estruturantes, como a vida, a saúde, a integridade física – cuja desconsideração perturba a própria coesão social, pelo grande número de cisões sociais que lhe está associado, seja a tragédia familiar e humana provocada, seja pelos crimes associados ao tráfico e consumo de estupefacientes, seja pela corrosão das economias legais com os ganhos ilícitos resultantes da actividade de tráfico.

Quanto às necessidades de prevenção especial, e nos termos já supra expostos, o grau de ilicitude da conduta do arguido é elevado, tendo em conta o modo de execução dos factos e as suas consequências, concretamente a natureza da substância vendida, cocaína, o número de vendas e o período em que vendeu, e o grau de disseminação do produto estupefaciente.

Tal é acentuado pelo facto de o arguido não exercer qualquer actividade profissional regular, dedicando-se à venda de estupefacientes e retirando daí os devidos lucros.

O arguido actuou com dolo directo e com culpa grave.

Para além disso, o arguido já regista uma condenação anterior pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (ainda que de menor gravidade), praticado em 31.10.2009, sendo a condenação de 21.10.2010, e a extinção da pena pelo cumprimento em 10.02.2012.

Ora, trata-se de uma condenação recente e de um crime praticado também recentemente, e mesmos assim o arguido voltou a praticar factos da mesma natureza. Repare-se que apenas cerca de oito meses depois da pena de prisão suspensa ter sido declarada extinta, o arguido iniciou a venda de estupefacientes que está sob julgamento neste processo.

É assim manifesto que a condenação anterior não constituiu advertência suficiente para que o arguido adoptasse um comportamento conforme à lei e ao direito, o que aponta claramente para uma maior e mais intensa intervenção ressocializadora através da pena.

Ao que acresce que não ficou demonstrado que o arguido fosse motivado na prática dos factos por uma grave situação de debilidade económica que o colocasse em situação desesperada de obtenção de dinheiro pra sustentar a sua família. Pelo contrário, apesar de irregular, a actividade de venda de sucata e peças automóveis pelo arguido para Cabo Verde permitia ao arguido obter rendimentos, conforme os autos o documentam.

Acresce assim em censurabilidade a conduta do arguido.

Por todo o exposto, o Tribunal considera que as necessidades de prevenção especial são acentuadas no caso.

                Assim sendo, e tudo ponderado, o Tribunal considera adequado aplicar ao arguido uma pena de cinco anos e seis meses de prisão».

            Pois bem.

            Concluímos atrás que não estamos perante um caso cuja ilicitude possa ser qualificada como consideravelmente diminuída, e que, por isso, a conduta sub judice cai na previsão do artº 21º.

            A moldura penal aí cominada vai de 4 a 12 anos de prisão. O que significa que a amplitude do grau de ilicitude abrangida é muito larga, aí cabendo um vastíssimo leque de condutas, desde aquelas que, embora não possam qualificar-se como de menor gravidade, confinam com o conceito, até às muito graves, já contempladas no artº 24º. Ou seja, desde as condutas de média gravidade até às de grande dimensão.

            A gravidade da conduta do Arguido, tal como antes a caracterizámos, afasta-se nitidamente do mínimo pressuposto pelo tipo base. Constitui-o, como ele próprio admite, um traficante médio (cfr. 1º parágrafo de fls. 2263).

            Por outro lado, o Arguido, foi condenado cerca de 2 anos antes de ter iniciado a actividade delituosa agora em causa, em 15 meses de prisão, suspensa por igual período, também por tráfico de estupefacientes, de menor gravidade, é certo, cometido em Outubro de 2009, o que, do ponto de vista do seu comportamento ético, é muito desvalioso e mostra, como acentua o acórdão recorrido, que essa condenação pouco ou nada significou para o Arguido em termos de advertência quanto ao comportamento futuro.

            Tem família constituída em Cabo Verde e, enquanto aí viveu, trabalhou em vários sectores de modo a assegurar a subsistência da família. Todavia, em Portugal, apesar de ter em vista obter melhores condições de vida, nunca verdadeiramente exerceu, de forma contínua, qualquer actividade profissional. 

Não lhe são apontadas faltas posteriores aos factos em julgamento, até porque foi preso em flagrante e nessa situação se vem mantendo. Na prisão, «tem registado um comportamento conforme às regras estabelecidas, disponibilizando-se para desenvolver ocupação laboral ou formativa».

            Nesta conformidade, entendemos, como o Tribunal recorrido, que, sendo mediano o grau da ilicitude, elevado o grau da culpa e fortes as exigências tanto de prevenção geral como de prevenção especial, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão em que o Arguido vem condenado é a pena adequada à sua conduta,

            Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto.

           

            5. Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

            5.1. Rejeitar o recurso, na parte em que o Recorrente pretendia a remoção do elenco dos “Factos Provados” dos aí arrolados nos nºs 1 a 12, por ser manifestamente improcedente, nos termos do artº 420º, nº 1, alínea a), do CPP;

            5.2. Negar provimento ao recurso, na parte restante (quanto à alteração da qualificação dos factos e quanto à pretendida redução da pena);

            5.3. Confirmar, consequentemente, o acórdão recorrido.

            Custas pelo Recorrente fixando-se a Taxa de Justiça em 7 (sete) UC’s.

            O Recorrente pagará ainda a importância de 5 (cinco) UC’s, nos termos do nº 3 do artº 420º do CPP.

                                                                                                   Lisboa, 4 de Junho de 2014

            Processado e revisto pelo Relator

             

       Sousa Fonte (relator)

       Santos Cabral