Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | TOMÉ GOMES | ||
Descritores: | ÁGUAS ESCOAMENTO DE ÁGUAS SERVIDÃO DE ESCOAMENTO RELAÇÕES DE VIZINHANÇA DIREITO DE TAPAGEM OBRIGAÇÕES «PROPTER REM» ENCARGOS RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 01/15/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / DISPOSIÇÕES GERAIS / ACÇÃO DIRECTA – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / SERVIDÕES PREDIAIS / CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES / SERVIDÕES LEGAIS / SERVIDÕES LEGAIS DE ÁGUA. | ||
Doutrina: | - Guilherme Alves Moreira, As Águas no Direito Civil Português, Livro II, Coimbra Editora, 1960, p. 250 e 251; - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2.ª Edição 1987, p. 190 e 191; - Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Vol. II, Coimbra Editora, 1990, p. 62; - Veloso de Almeida, Comentário à Lei das Águas, Livraria Cruz, Braga, 2.ª Edição, 1958, p. 369 a 374. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 336.º, 1346.º, 1351.º, N.ºS 1 E 2, 1356.º, 1547.º, N.º 1 E 1563.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B). | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I. O encargo de escoamento natural das águas estabelecido no artigo 1351.º, n.º 1, do CC circunscreve-se ao escoamento de águas de prédio superior para prédio inferior que procedam de corrente natural e sem obra do homem, não alcançando os casos em que tais águas sejam encaminhadas ou desviadas por intervenção ou obra humana. II. É também nesse âmbito confinado que o n.º 2 do mesmo artigo estatui a proibição de o dono do prédio inferior fazer obras que estorvem tal escoamento e de o dono do prédio superior realizar obras suscetíveis de o agravar, da qual resulta para ambos correspetivos deveres de prestação de non facere. III. Do referido encargo de escoamento natural das águas derivam obrigações propter rem inerentes aos direitos de propriedade sobre os prédios envolvidos, que se impõem nas relações de vizinhança imobiliária e delimitam ou cerceiam o exercício desses direitos em vista da sua função social. IV. Tratando-se de escoamento de águas que tenham sido, de algum modo, desviadas do seu curso natural ou condicionadas por meio de obra humana, o direito a tal escoamento só poderá ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artigo 1547.º, n.º 1, do CC (contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família) ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, conforme o previsto no artigo 1563.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo Código. V. Não existindo o encargo de escoamento natural das águas estabelecido no artigo 1351.º do CC, o proprietário do prédio inferior tem a livre disposição do direito de tapagem do seu prédio, em ordem a impedir o escoamento das águas, desse modo, provenientes do prédio superior, bem como de obstar ao escoamento das águas inquinadas, respetivamente ao abrigo do preceituado nos arts. 1356.º e 1346.º do mesmo Código. VI. Mesmo que o proprietário do prédio inferior assim proceda sem recorrer aos meios judiciais, não recaindo sobre ele obrigação decorrente do referido encargo de escoamento de águas, tal comportamento não pode ser tido, sem mais, como facto ilícito relevante. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório 1. AA e cônjuge BB (A.A.) intentaram, em 21/04/2014, ação declarativa, sob a forma de processo declarativo comum, contra CC e cônjuge DD (1.ºs R.R.) e EE (2.ª R.), esta por si e em representação da herança indivisa dos seu falecido marido FF, alegando, em síntese, que: . Os 1.ºs R.R. e a 2.ª R. são proprietários, respetivamente, de dois prédios urbanos compostos por casa de habitação, anexos e quintal, que confinam com um prédio urbano dos A.A. também composto por casa de habitação e quintal, os três prédios originariamente resultantes da desanexação de um único prédio coberto por bouça de mato e pinheiro, com um acentuado declive descendo de nascente para poente e de norte para sul, por onde escorriam as águas pluviais e outras de curso natural provenientes da superfície do terreno que hoje constitui o prédio dos A.A; . Assim, o referido prédio dos A.A. confronta a sul com o prédio dos 1.ºs R.R. e a poente com o prédio da 2.ª R.; . Tendo os A.A. adquirido o seu prédio em 20/03/1997, nos últimos meses desse ano, procederam à construção de um muro de suporte, erigido em pedra de granito e alguma massa, para delimitar aquele prédio dos dois prédios dos R.R., nas respetivas confrontações, e também para, através de interstícios e de buracos de forma circular, com 5 centímetros de diâmetro, deixados no referido muro, permitir o escoamento das águas naturais provenientes daquele prédio dos A.A.; . Há seis anos atenta a data da propositura da ação, tendo os 1.ºs R.R. dado conhecimento aos A.A. da sua intenção de construir uma casa de habitação no seu prédio e manifestado a preocupação com o escoamento das águas oriundas do prédio dos A.A., acordaram numa solução consistente na construção de uma caixa de recolha de águas no prédio dos A.A. e de uma canalização para o prédio dos 1.ºs R.R., o que levaram a cabo com funcionamento em termos satisfatórios; . Porém, em agosto de 2013, os 1.ºs R.R. começaram a fazer escavações junto da confrontação sul do prédio dos A.A. com aprofundamento do nível do seu terreno, deixando a descoberto os alicerces do muro de suporte construído pelos A.A.; . De seguida, os 1.ºs R.R. construíram um muro em betão e blocos de cimento em toda a extensão da confrontação com o prédio dos A.A., com o cumprimento de 12,2 metros, a espessura de 20 centímetros e a altura de 4 metros acima do solo do seu prédio, originando uma diferença de nível de 2,5 metros, no sentido descendente do prédio dos A.A. para o dos 1.ºs R.R.; . Desse modo, os 1.ºs R.R. obstruíram o escoamento das águas que escorriam pelos buracos e interstícios do muro dos A.A., destruindo também as canalizações que transportavam as águas da caixa de recolha existente no prédio dos A.A.; . Por seu lado, também a 2.ª R. obstruiu os buracos do muro dos A.A. que permitiam o escoamento das águas naturais na confrontação de poente; . Em virtude de tais obstruções, as águas pluviais ou de curso natural que caiem no prédio dos A.A. ficam ali empoçadas no canto sul-poente desse prédio, chegando a forma um lençol de água de 10 centímetros de profundidade, numa área superior a 100 metros quadrados, impedindo o trânsito normal de pessoas e o aproveitamento de produtos hortícolas e herbáceas; . Os A.A. têm vindo a sentir desgosto e tristeza com tal situação e incómodos, por não poderem desfrutar como desejavam do logradouro da sua casa. . Com tais comportamentos, os R.R. violaram, nomeadamente, o disposto nos artigos 1305.º e 1351.º do CC, incorrendo ainda em responsabilidade civil emergente desses atos ilícitos. Concluíram os A.A., além da pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre o seu prédio, com a formulação dos seguintes pedidos: a) – A título principal e cumulativamente, a condenação dos 1.ºs R.R. a demolir o muro de betão que construíram junto da confrontação sul do prédio dos A.A. até à altura da coroa do muro velho de granito; b) - Subsidiariamente, a condenação dos mesmos R.R. a demolir o sobredito muro nos nove locais em que os A.A. deixaram os interstícios e buracos para o escoamento das águas, na confrontação sul do seu prédio; c) - A título principal e também cumulativamente, a condenação da 2.ª R. a desobstruir os três locais em que os A.A. deixaram os interstícios e buracos para o escoamento das águas na confrontação poente do seu prédio e a se abster, futuramente, de obstaculizar o escoamento das águas por aquele lado; d) – Cumulativamente, a condenação solidária de todos os R.R. no pagamento de uma indemnização aos A.A., a título patrimonial e não patrimonial, em valor não inferior a € 5.000,00, acrescido de juros de mora desde a citação. 2. Os R.R. contestaram, impugnando a versão dos factos dada pelos A.A. e sustentando, em síntese, que o escoamento de águas provenientes do prédio destes decorre de intervenção humana, quer por virtude da realização de obras que geram o direcionamento das águas para os buracos do muro, quer por efeito do alteamento levado a cabo pelos mesmo A.A. no seu prédio, e ainda pelo factos de tais águas se apresentarem conspurcadas. 3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 337-345, de 05/07/2017, a julgar a ação parcialmente procedente, declarando os A.A. proprietários do prédio descrito no ponto 1 dos factos provados e absolvendo todos os R.R. no mais peticionado. 4. Inconformados com tal decisão, os A.A. recorreram para o Tribunal da Relação de …, em sede de facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 413 a 439, de 20/03/2018, em que foi decidido, por unanimidade, julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. 5. Mais uma vez inconformados, os A.A. vieram interpor revista excecional, ao abrigo das alíneas a), b) e c), do n.º 1, do artigo 672.º do CPC, convocando como acórdão-fundamento o acórdão do STJ, de 06/12/2012, transitado em julgado em 22/01/2013, proferido no processo n.º 1523/08. 9TJVNF.P1.S1, formulando, no que aqui releva, as seguintes conclusões: 1.ª – No acórdão recorrido, foi entendido que: a) – Os proprietários de prédio inferior, face ao entendimento de que o curso das águas que estão obrigados a receber foi alterado pelo proprietário do prédio superior, podem construir um muro tampão que impeça as águas (todas e quaisquer que sejam) de cair no seu prédio, desde que provindas do prédio superior; b) – Os proprietários do prédio inferior também têm o poder de proceder a tal tamponagem, quer construindo um muro tampão, quer tapando com cimento os orifícios deixados pelo proprietário do prédio superior no seu muro; 2.ª – Por sua vez, no acórdão-fundamento, entendeu-se que o encargo previsto no art.º 1351.º do CC envolve uma obrigação negativa de non facere, quer sobre o proprietário do prédio superior, quer sobre o proprietário do prédio inferior, não podendo aquele fazer obras que tornem mais oneroso o referido encargo, nem este estorvar o escoamento das águas que naturalmente, e sem obra do homem, decorrem do prédio superior; 3.ª - Do acórdão-fundamento consta que: “Do material probatório resulta que os prédios dos A.A. e dos R.R. são confinantes entre si e que o prédio daqueles se situa num plano ou cota de nível ao destes e que os R.R. construíram um muro que impede o escoamento das águas provindas do prédio dos A.A., criando acumulação de água junto ao dito muro e, consequentemente danificando as culturas aí existentes; No entanto, ficou também provado que no prédio dos AA foram abertos regos que guiam a água, incluindo a da chuva impondo uma condução artificial da água. Mais se provou que o caseiro dos AA despeja cisternas provenientes dos despejos de fossas cujas águas conspurcadas, devido à morfologia do terreno tendem a invadir o prédio dos RR. É certo que os RR não são obrigados a receber águas não escoem naturalmente (sem obra do homem) do prédio superior e muito menos são obrigados a receber águas inquinadas, porém, não se tendo verificado (como bem se diz no acórdão recorrido) os pressupostos no art.° 336.º, n.° 1, do CC, não podiam os R.R. lançar mão da acção directa através da construção de um muro cuja finalidade é a de impedir o escoamento das águas vindas do prédio dos AA." 4.ª – É assim que os 1.ºs R.R. e a 2.a R. - aqueles no levantamento de um muro tampão, esta tapando os orifícios com cimento - impediram, cada um a seu modo, o escoamento das águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorriam para os seus prédios, praticando, assim, cada um deles um ato ilícito; 5.ª – Não se tendo verificado os pressupostos previstos no art.º 336.º, n.º 1, do CC, não podiam os R.R. lançar mão da ação direta através da construção do muro-tampão, nem da tapagem dos furos (orifícios ou hiatos) deixados pelos A.A. no muro-suporte que construíram; 6.ª - Daí que o comportamento dos 1.ºs R.R. e da 2.a R. sejam atentatórios do direito que o referido n.º 1 do art.º 1351.º atribui ao prédio dos A.A.; 7.ª – Com tal comportamento os mesmos R.R. atuaram, tomando como possível a atuação prevista no n.º 1 do art.º 336.º do CC, o que lhes estava vedado; 8.ª – É no teor do conteúdo interpretativo do acórdão- fundamento que se encontra a solução adequada para a melhor apreciação do interesse jurídico como o interesse social do conflito de judicial suscitado; 9.ª - Também não restam dúvidas de que havendo, como há, uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, quanto ao escoamento e quanto à ação direta, é no acórdão-fundamento que está contida a melhor solução de direito para o caso; 10.ª - Nesta conformidade, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 336.º, 1305.º, 1351.º e 1356.º do CC; 11.ª – Assim sendo, os pedidos deduzidos e não contemplados na presente ação devem ser julgados procedentes. 6. Não foram apresentadas contra-alegações. 7. Pelos três juízes da formação deste Supremo Tribunal a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC, foi proferido o acórdão de fls. 835 a 838, de 18/10/2018, a julgar verificado apenas o invocado requisito da contradição jurisprudencial, previsto na alínea c) do n.º 1 do mesmo normativo e, nessa base, admitida a revista excecional. Nesse acórdão, foi considerado o seguinte: «Enquanto no acórdão deste Supremo de 2012.09.06 proferido no âmbito do processo 1523/08.9TJVNF, apresentado como acórdão fundamento, se tinha decidido que “quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não pode instalar um muro de tal forma compacto que sirva de dique contra o qual a água de torrente natural ou de chuva, fique retida, prejudicando o proprietário de terreno inferior”, no acórdão recorrido se teria decidido em contrário. E, na realidade, parece ser assim. E entendemos haver uma identidade, em ambos os casos, do núcleo central da situação de facto e de normas jurídicas interpretandas ou aplicandas, a essencialidade da questão para determinar o concreto resultado da decisão num e noutro dos acórdãos, isto é, para condicionar em termos decisivos a solução da questão e ambos os acórdãos assentarem as concretas decisões em confronto em idêntico quadro normativo.» Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. I I - Delimitação do objeto do recurso Do teor das conclusões recursórias em função das quais se delimita o objeto do recurso, extrai-se que o objeto da presente revista excecional, centrado, como está, na invocada contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento acima indicado, compreende as seguintes questões: i) – Saber se assiste aos A.A., mormente nos termos do artigo 1351.º do CC, o direito ao escoamento das águas provenientes do seu prédio para o prédios dos 1.ºs R.R. e da 2.ª R. com aquele confinantes, respetivamente, a sul e a poente, através dos buracos existentes no muro erigido, junto daquelas confrontações, pelos mesmos A.A. ; ii) – Consoante a solução que for dada à questão precedente, saber se aos R.R. está vedada a obstrução do escoamento daquelas águas pelo modo por que o fizeram, em especial a título de exercício de ação direta nos termos do art.º 336.º do CC; iii) – Em função das soluções dadas às questões precedentes, ajuizar se procedem, e em que medida, as pretensões de condenação dos R.R. nas prestações de facto e de indemnização formuladas pelos A.A.. III - Fundamentação 1. Factualidade dada como provada pelas instâncias Vem dada como provada a seguinte factualidade: 1.1. Encontra-se registado a favor dos AA. a aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …. com o n.º 5…4/200…5 - …, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 1544.º. 1.2. Tal prédio é constituído por casa composta de cave, rés-do-chão e andar, com quintal, destinada à habitação, sita no lugar de …, Rua do …, n.º 158, freguesia de …, município de …. 1.3. Tal prédio confronta do norte com caminho público, do sul com CC e Outro, do nascente com AA e do poente com herdeiros de FF; 1.4. O identificado prédio foi adquirido pelos A.A. a GG e Dr. HH e mulher II, por virtude de contrato de compra e venda em que estes foram vendedores e os A.A. compradores, titulado por escritura pública de 20/03/1997. 1.5. De qualquer modo, quer por si, quer por antecessores, antepossuidores e anteriores proprietários, há mais de 5, 10, 15 e 20 anos, de forma contínua, que os A.A. utilizam o identificado prédio, cultivando-o, arrendando-o, recebendo rendas, colhendo frutos, venerando construções, quintais e culturas, pagando as respetivas contribuições, sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de ninguém e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém e em tudo se comportando como donos e por todos como tal sendo considerados. 1.6. Os 1.ºs R.R. CC e DD são proprietários de um prédio urbano constituído por casa de habitação, anexos e quintal, sito na Avenida … n.º 573, …, …. 1.7. Tal prédio confronta a norte com o prédio dos AA., constituindo a confrontação sul do prédio dos A.A. 1.8. Encontra-se registada a favor da 2.ª R. EE o prédio descrito na CRP de … sob o n.º 1…1/20…9 – …, constituído por casa de habitação, anexos e quintal, sito na Rua do …, n.º 130, …, …. 1.9. Tal prédio confronta a nascente com o prédio dos A.A., constituindo a confrontação poente do prédio dos A.A.; 1.10. Antes de neles serem levadas a cabo as construções que ali atualmente existem, os referidos prédios de A.A. e R.R. constituíam uma bouça a mato e pinheiros. 1.11. E apresentavam um declive descendente de nascente para poente e de norte para sul. 1.12. Pelo que nestes dois sentidos – “nascente-poente” e “norte-sul” - corriam todas as águas pluviais e outras que, de modo natural, caíam dos céus ou também, naturalmente, brotavam à superfície da terra, tudo no prédio dos A.A. 1.13. Atualmente, todos os prédios de A.A. e R.R são constituídos por moradias com quintais, jardins ou terreiros adjacentes às respetivas habitações. 1.14. Atualmente, o prédio dos A.A. apresenta ligeiro declive de nascente para poente e de norte para sul; o prédio dos 1.ºs. R.R. apresenta declive de norte para sul; e o prédio da 2.ª R. apresenta declive de nascente para poente. 1.15. Em data não concretamente apurada mas anteriormente à aquisição pelos 1.ºs R.R. do seu prédio, os A.A. procederam à construção de um muro de suporte delimitativo da sua propriedade nas confrontações sul com os 1.º R.R. e poente com a 2.ª R. do identificado prédio dos A.A.;. 1.16. Tal muro foi executado em alvenaria de blocos de betão, assente sobre betão, com orifícios com cerca de 5 centímetros de diâmetro cada um para escoamento das águas. 1.17. Após a construção desse muro, as águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr por entre os referidos orifícios em direção aos prédios dos R.R. 1.18. Em agosto de 2013, os 1.ºs R.R. começaram a fazer escavações para abrirem alicerces no seu prédio, na confrontação norte, face à confrontação sul do prédio dos A.A.. 1.19. Ao mesmo tempo, aprofundaram o nível do seu terreno, na zona correspondente ao quintal da casa de habitação, a ponto de deixarem a descoberto os alicerces do muro de suporte do prédio dos A.A.. 1.20. De seguida, iniciaram e concluíram um muro em betão e blocos de cimento a toda a extensão da confrontação com o prédio dos A.A. com cerca de 4 metros de altura acima do solo do prédio dos 1.ºs R.R. e 70 centímetros de altura acima do nível do prédio dos A.A.; 1.21. Este muro tem a extensão de cerca de 12,2 metros e de espessura cerca de 20 centímetros. 1.22. A diferença de nível, agora, entre os referidos prédios, na confrontação norte do prédio dos 1.ºs R.R. e na confrontação sul do prédio dos A.A., é de 2,5 metros, sendo o prédio dos A.A. o que se encontra a nível mais elevado. 1.23. O referido muro foi construído por encostamento ao que havia sido construído pelos A.A., tapando, na face voltada para o prédio dos 1.ºs R.R., os oito buracos existentes neste último muro. 1.24. Aquando da realização dessas obras, os 1.ºs R.R. retiraram do seu prédio um tubo em “PVC” que provinha de uma caixa existente no prédio dos A.A. onde eram recolhidas águas, desembocando esse tubo na caixa de reunião de águas do prédios dos 1.ºs R.R., situada a cerca de um metro da via pública. 1.25. Por força desses factos, as águas provenientes do prédio dos A.A. estão impedidas de escoar para o prédio dos 1.º R.R.; 1.26. Na parte do muro construído na confrontação do prédio dos A.A. com a da 2.ª R. e num troço de cerca de três metros de extensão a partir do canto “sul-poente” do prédio dos A.A., foram por estes deixados 3 orifícios de forma circular com cerca de cinco centímetros de diâmetro, cada um deles ao nível do terreno do prédio dos A.A.. 1.27. As águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr por entre esses hiatos deixados na construção do muro, dado que a superfície do prédio da 2.ª R. fica a um nível inferior ao da superfície do prédio dos A.A. em cerca de 1 metro. 1.28. A partir do ano de 2012, a 2.ª R. obstruiu tais hiatos com cimento, assim impedindo a passagem de água. 1.29. Por força dessa obstrução, as águas provenientes do prédio dos A.A. estão impedidas de escoar para o prédio da 2.ª R. 1.30. Por força dos atos praticados pelos 1ºs e 2ª réus, por vezes, as águas empoçam-se no canto “sul-poente” do prédio dos A.A., chegando a criar um lençol de água com mais de 10 centímetros de profundidade, numa área não concretamente apurada, impedindo o trânsito a pé dos A.A. e dos demais elementos do seu agregado familiar por esse local. 1.31. Os A.A. sentem desgosto e tristeza por não poderem disfrutar daquela área empoçada do logradouro da sua casa de habitação. 1.32. Antes da construção do muro pelos 1.ºs R.R. e da tapagem dos buracos do muro dos A.A. pela 2.ª R., escorria, por vezes, pelos buracos do muro construído pelos A.A. para os prédios dos 1.ºs R.R. e da 2ª R. uma substância líquida de cor avermelhada, contendo dejetos de animais, dela emanando maus cheiros. 1.33. Depois de adquirirem o seu prédio, os A.A. colocaram terra no quintal do mesmo, alteando a respetiva cota, em medida não concretamente apurada mas inferior a um metro, e minorando o declive que o mesmo apresentava, tornando-o praticamente plano. 2. Factos não provados: Vem dado como não provado o seguinte: 2.1. O muro construído pelos A.A. apresentava interstícios entre as pedras que o constituíam, sendo que, após a sua construção, as águas vindas do seu prédio passavam por esses interstícios. 2.2. Há cerca de seis anos, os 1.ºs RR, deram conhecimento aos AA. que haviam adquirido o prédio situado a sul do prédio dos AA. e no qual procediam à construção do que seria a sua casa de habitação. 2.3. Manifestou o 1.º R. marido ao A. marido a sua preocupação por se ver na circunstância de aceitar que o seu prédio suportasse as águas pluviais e outras provenientes do prédio dos A.A., mas que se fosse possível minorar esse ónus ou encargos veria tal com muito bons olhos. 2.4. Propôs então o 1.º R. marido ao A. marido uma solução que minorasse as consequências daquela situação e e que seria: a) - os A.A. fariam uma caixa de recolha de águas no seu prédio que recolheria todas as águas pluviais e outras provenientes do seu prédio; b) - os A.A. forneciam a canalização em cimento necessária para as águas serem enviadas até à confrontação Sul (com o caminho publico) do prédio dos 1.º RR, atravessando este prédio de Norte a sul; c) - os 1.º R.R. procederiam a todas as obras necessárias (ligações montagem e instalação da canalização, feitura das caixas necessárias, sistema de escoamento) a ocorrer no seu prédio para escoamento das águas. d) - todas as despesas com materiais e mão de obra a partir da saída da canalização do prédio dos AA. até ao destino final a dar às águas em apreço, seriam da conta e responsabilidade dos 1.º RR. 2.5. Tal solução foi aceite pelo A. marido. 2.6. O empoçamento das águas no canto “sul-poente” do prédio dos A.A. provocou a destruição dos produtos hortícolas e herbáceos aí existentes. 2.7. As águas provenientes do prédio dos A.A. danificaram a re lva e plantas existentes nos prédios dos R.R, atraíam insetos e roedores e inundaram os anexos onde os 1ºs R.R. guardavam lenha e outros objetos. 2.8. Os A.A. efetuaram no seu prédio condutas e regos para encaminhar as águas para as aberturas do muro. 3. Do mérito do recurso 3.1. Quanto ao invocado direito dos A.A. ao escoamento das águas provenientes do seu prédio para os prédios dos R.R. com aquele confinantes A questão em apreço inscreve-se, nuclearmente, na órbita do disposto no artigo 1351.º do CC, sob a epígrafe escoamento natural das águas, em que se prescreve o seguinte: 1 – Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente. 2 – Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida. Por sua vez, o artigo 1563.º do mesmo Código, sob a epígrafe servidão legal de escoamento, preceitua, no que aqui interessa, que: 1. A constituição forçada da servidão de escoamento é permitida, precedendo indemnização do prejuízo: a) – Quando, por obra do homem, e para fins agrícolas ou industriais, nasçam águas em algum prédio ou para ele sejam conduzidas de outro prédio; b) – Quando se pretenda dar direção definida a águas que seguiam o seu curso natural; c) – Em relação às águas provenientes de gaivagem, canos falsos, valas, guarda-matos, alcorcas ou qualquer outro modo de enxugo de prédios; (…) Em anotação ao transcrito artigo 1351.º, Pires de Lima e Antunes Varela[1] referem que: «O princípio de que as águas devem seguir o seu curso normal, sem que os utentes delas ou os donos dos prédios imponham a outros a alteração artificial (por meio de obras do homem) desse fluxo normal, provém já do direito romano. E ainda hoje todas as legislações aceitam que nem o proprietário do prédio superior deve aliter aquam mittere quam natura solet, nem, em relação ao prédio inferior, opere facto inhibere aquam, quae natura fluat, per suum agrum decurrere. E, embora as fontes romanistas se refiram especialmente à aqua pluvia (…), certo é que cedo de atribuíu um conteúdo genérico à doutrina, de forma a abranger no seu dispositivo todas as águas correntes, qualquer que seja a sua origem.» Os mesmos Autores esclarecem[2] que o encargo de escoamento natural das águas consagrado naquele artigo, que no Código Civil de 1867 era considerado uma servidão constituída pela natureza das coisas, traduz-se agora em restrição imposta por lei ao exercício do direito de propriedade sobre imóveis. Também Tavarela Lobo[3], referindo-se àquele encargo, observa que: «As águas pluviais, em princípio, deverão seguir a direcção determinada pela inclinação natural do terreno, sendo vedado ao proprietário do prédio onde caem desviá-las desse curso natural.» Ainda no domínio da legislação anterior ao Código Civil de 1966, Guilherme Alves Moreira[4], a tal propósito, referindo-se às águas pluviais que caiam diretamente no prédio superior ou que para este decorram de outros prédios superiores, às águas provenientes da liquefação das neves e do degelo e às que se infiltrem no terreno ou que brotem de nascentes, escrevia o seguinte: «Em relação a qualquer destas águas, só há para os prédios inferiores o ónus de as receberem quando elas sigam o seu curso normal, que é o determinado pelo declive do terreno. Sempre que tais águas sejam desviadas do seu curso natural, cessa a obrigação que aos proprietários dos prédios inferiores é imposta (…), e, embora haja para os proprietários dos prédios inferiores a obrigação de dar escoamento às águas, essa obrigação só poderá ser imposta judicialmente, na falta de prévio acordo, e mediante indemnização E debruçando-se sobre o sentido da expressão da lei naturalmente e sem ação do homem, esclarece o mesmo Autor que: «(…) devem considerar-se como proibidas quaisquer modificações no prédio superior de que resulte prejuízo para o prédio inferior, quer por elas se pretenda actuar directamente sobre o decurso da água, quer se tenha apenas em vista o aproveitamento desta.» Elucidativas são também as observações de Veloso de Almeida[5] citadas no acórdão recorrido, ao escrever: «Para que se verifique a existência de servidão natural de terem os prédios inferiores de receber as águas e matérias por estas arrastadas, é necessário que não intervenha a acção do homem no sentido de modificar as condições do relevo do terreno de modo a dirigir as águas para esses prédios ou actuando directamente no desvio das águas, dando-lhes direcção diferente da determinada pela acção da gravidade» Para depois afirmar ser proibido ao proprietário do prédio superior «juntar as águas no seu prédio e fazê-las convergir para os prédios inferiores, quando estes as recebiam anteriormente espalhadas, nem dar às águas um declive ou inclinação diferente do anterior de modo a prejudicar os prédios inferiores.” À luz destes ensinamentos, tem sido pacífico o entendimento de que o encargo de escoamento natural das águas estabelecido no artigo 1351.º, n.º 1, do CC se circunscreve ao escoamento de águas de prédio superior para prédio inferior que procedam de corrente natural e sem obra do homem, não alcançando, portanto, os casos em que tais águas sejam encaminhadas ou desviadas por intervenção ou obra humana. E é também nesse âmbito confinado que o n.º 2 do mesmo artigo estatui a proibição de o dono do prédio inferior fazer obras que estorvem tal escoamento e de o dono do prédio superior realizar obras suscetíveis de o agravar, da qual resulta para ambos correspetivos deveres de prestação de non facere. Assim, do referido encargo de escoamento natural das águas derivam obrigações propter rem inerentes aos direitos de propriedade sobre os prédios envolvidos, que se impõem nas relações de vizinhança imobiliária e delimitam ou cerceiam o exercício desses direitos em vista da sua função social. Tratando-se já de escoamento de águas que tenham sido, de algum modo, desviadas do seu curso natural ou condicionadas por meio de obra humana, o direito a tal escoamento só poderá ser licitamente fundado em constituição de servidão predial nos termos gerais do artigo 1547.º, n.º 1, do CC (contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família) ou em servidão legal de escoamento mediante indemnização, conforme o previsto no artigo 1563.º, n.º 1, alíneas a) e b), do mesmo Código. Ora, tanto o acórdão recorrido como o acórdão-fundamento adotaram o sobredito entendimento no respeitante à interpretação dada ao artigo 1351.º do CC, sendo afirmado, claramente, neste último aresto, o seguinte: «É certo que os R.R. não são obrigados a receber águas que não escoem naturalmente (sem obra do homem) do prédio superior e muito menos são obrigados a receber águas inquinadas». A divergência entre os referidos acórdão pode, pois, inscrever-se já no plano da sua aplicação aos casos neles contemplados. No caso dos presentes autos, a 1.ª instância considerou que dos factos provados resulta que as águas provenientes do prédio dos A.A. escoavam para o prédio dos R.R. através de uns buracos existentes no muro por aqueles construídos nas divisórias dos prédios em referência e que, além disso, os mesmos A.A. procederam ao alteamento da cota do seu terreno, provocando, desse modo, uma corrente artificial que levava à concentração das águas em pontos específicos – nos indicados buracos. E, a tal propósito, foi ponderado que, antes da construção desse muro, certamente que as águas não se sumiam pelo exato local onde se situavam tais buracos, mas antes escorreriam livremente por toda a extensão do limite do prédio. Foi também ainda tido em conta o facto provado de que as águas que escorriam do prédio dos A.A. para o prédio dos R.R., antes de estes as obstaculizarem, apresentavam, por vezes, cor avermelhada, exalando maus cheiros e contendo restos de dejetos de animais, tratando-se, portanto, de águas inquinadas, que os R.R. não eram obrigados a receber nos seus prédios. Com efeito, tais considerações apresentam-se perfeitamente ancoradas no seguinte acervo da factualidade provada: i) - Os 1.ºs R.R. CC e DD são proprietários de um prédio urbano constituído por casa de habitação, anexos e quintal, confrontando a norte com o prédio dos AA., constituindo a confrontação sul do prédio dos A.A. – pontos 1.6 e 1.7; ii) – O prédio urbano da 2.ª R. confronta a nascente com o prédio dos A.A., constituindo a confrontação Poente do prédio dos A.A. – ponto 1.9; iii) - Depois de adquirirem o seu prédio, os A.A. colocaram terra no quintal do mesmo, alteando a respetiva cota, em medida não concretamente apurada mas inferior a um metro, e minorando o declive que o mesmo apresentava, tornando-o praticamente plano – ponto 1.33; iv) - Em data não concretamente apurada mas anteriormente à aquisição pelos 1.ºs R.R. do seu prédio, os A.A. procederam à construção de um muro de suporte delimitativo da sua propriedade nas confrontações sul com os 1.º RR. e poente com a 2.ª R. do identificado prédio dos A.A. – ponto 1.15; v) - Tal muro foi executado em alvenaria de blocos de betão, assente sobre betão, com orifícios com cerca de 5 centímetros de diâmetro cada um para escoamento das águas – ponto 1.16; vi) - Após a construção desse muro, as águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr por entre os referidos orifícios em direção aos prédios dos R.R. – ponto 1.17; vii) - Na parte do muro construído na confrontação do prédio dos A.A. com a da 2.ª R. e num troço de cerca de três metros de extensão a partir do canto “sul-poente” do prédio dos A.A., foram por estes deixados 3 orifícios de forma circular com cerca de cinco centímetros de diâmetro cada um deles, ao nível do terreno do prédio dos A.A. – ponto 1.26; viii) - As águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr por entre esses hiatos deixados na construção do muro, dado que a superfície do prédio da 2.ª R. fica a um nível inferior ao da superfície do prédio dos A.A. em cerca de 1 metro – ponto 1.27; ix) - Atualmente, todos os prédios de A.A. e R.R são constituídos por moradias com quintais, jardins ou terreiros adjacentes às respetivas habitações – ponto 1.13; x) - Atualmente, o prédio dos AA. apresenta ligeiro declive de nascente para poente e de norte para Sul; o prédio dos 1ºs. R.R. apresenta declive de norte para sul; e o prédio da 2.ª R. apresenta declive de nascente para poente – ponto 1.14; xi) - Antes de ali serem levadas a cabo as construções atualmente existentes, os referidos prédios de A.A. e R.R. constituíam uma bouça a mato e pinheiros – pontos 1.10 e 1.11; xii) E apresentavam um declive descendente de nascente para poente e de norte para sul – ponto 1.11; xiii) - Pelo que nestes dois sentidos – “nascente-poente” e “norte-sul” – corriam todas as águas pluviais e outras que, de modo natural, caíam dos céus ou também, naturalmente, brotavam à superfície da terra, tudo no prédio dos A.A. – ponto 1.12; xiv) - Antes da construção do muro pelos 1.ºs R.R. e da tapagem dos buracos do muro dos A.A. pela 2.ª R., escorria, por vezes, pelos buracos do muro construído pelos A.A. para os prédios dos 1.ºs R.R. e da 2ª R. uma substância líquida de cor avermelhada, contendo dejetos de animais, dela emanando maus cheiros – ponto 1.32. Perante este quadro factual e em conformidade com a interpretação dada ao artigo 1351.º do CC, a 1.ª instância concluiu que os A.A. não tinham direito a escoar as águas em causa para os prédios dos R.R., nem este estavam obrigados a recebê-las. Tal entendimento foi inteiramente seguido e corroborado no acórdão recorrido. Por seu lado, no acórdão-fundamento, fora tida como provada, no que aqui releva, a seguinte factualidade: 1. Os autores são donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários de um prédio misto constituído por casa de habitação e quintal, cortes, eirado e varandão (…); 2. Tal prédio confronta do norte com JJ e réus; do sul com caminho público; do nascente com JJ, Fábrica … e réus e do poente com herdeiros de KK, caminho, linha férrea antiga e outros; 7. Os réus são donos, senhores, legítimos possuidores e proprietários de um prédio urbano, constituído por casa de habitação, anexos e quintal (…); 8. Tal prédio confronta do poente e sul entre outros com o prédio dos autores referenciado em 1; 9. Nas confrontações poente e sul (com o prédio dos autores), os réus construíram um muro de vedação; 10. Entre os prédios dos autores (a nível superior) e o prédio de que os réus se intitulam proprietários (a nível inferior) há um desnível que varia entre 80 centímetros e 1,20 metros; 11. Há cerca de dois a três meses os réus iniciaram no seu prédio a construção de um muro; 12. Tal muro, confrontando do lado poente com o prédio dos autores numa extensão de 40 (quarenta) metros faz um ângulo quase reto e prolongado então já na sua confrontação com o prédio dos autores numa extensão de cerca de 50 metros. 13. Tem altura variável entre 1 um metro mais e 1,5 metro mais a nascente acima do nível do prédio dos autores; 14. É feito em blocos de cimento com cerca de 20 centímetros de espessura. 15. E aparece em fase de acabamento denso, liso, sem qualquer fenda, buraco ou outro orifício congénere; 16. Nas suas confrontações: norte e nascente (em parte de qualquer uma delas), o prédio dos autores é delimitado (e contido) por um muro de suporte em pedra de granito e de bordo irregular; 17. Tal bordo que ora vai aflorando ao nível do prédio dos autores, ora se contém a esse nível serve de suporte às terras dos autores e serve para permitir o escoamento das águas pluviais e outros que (quando abundam) se esvaiam para o prédio de que os réus são proprietários; 18. E é exatamente para isso que tal muro de suporte é constituído por pedra de granito, de razoável envergadura, sobreposta (sem que esteja unida com argamassas); 19. E aflora, acima do nível da terra (ora sim, ora não) de forma irregular. 20. Porque o prédio dos autores tem uma inclinação descendente no sentido poente-nascente, há mais de 5, 10, 15, e 20 anos que as aguas sobrantes no prédio dos autores, pluviais e outras, e que este prédio não consegue absorver, seguem e escoam-se para o prédio dos réus; 21. E tal escoamento natural ocorria, quer porque as águas se infiltravam na terra e se entendiam, fugindo pelos interstícios existentes entre as pedras do muro, sobrepostas há pelo menos 20 anos; 22. Quer porque, mesmo que as terras estivessem saturadas, passava não só o rebordo do muro quando ele ascendia, como também onde o mesmo rebordo estava ao nível do solo do prédio dos autores (neste caso com mais facilidade); 23. Após a construção do muro pelos réus, as águas deixaram de escoar; 24. No prédio dos autores, na sua confrontação nascente com o prédio dos réus, acumulou-se um lençol de água que junto ao muro chegou a ter 50 centímetros acima do nível do solo do prédio dos autores, alargando-se numa área superior a 200 metros quadrados; 25. Do que resultaram danos que se consubstanciaram na perda e inutilização das culturas de ervas ao tempo existentes. 26. Sendo que a manutenção da situação tal como se encontra neste momento leva a que se multipliquem (com chuvas a ocorrer) os incidentes semelhantes. 27. Com o acumular de prejuízos e incómodos, pois que os lençóis de água impedem e/ou dificultam o trânsito de pessoas, animais e tractores. 28. Várias vezes ao ano, e de há alguns anos a esta parte, que LL, arrendatário das terras dos A.A., despejava “Cisternas” provenientes de despejos de fossas. 29. Tais despejos eram feitos dentro do terreno dos autores, nos seus limites nascente com o prédio dos réus. 30. Sendo o terreno dos A.A. inclinado, descendentemente, no sentido nascente e sendo o terreno contíguo dos R.R. desnivelado, cerca de 1 metro mais baixo, os despejos referidos em 13, invadiam e conspurcavam o quintal do prédio dos réus. 31. A construção do referido muro dos réus, teve como objetivo específico evitar a ocorrência de dejectos; 32. Nos terrenos rústicos pertencentes aos autores e referidos em 1, cultiva-se erva para pasto de gado e milho; 33. Nos terrenos rústicos pertencentes aos autores são abertos “regos” para “guiarem” a água, englobando a das chuvas; 34. E regos esses consistentes em canais, abertos na terra. 35. Pelo menos um desses “regos” corre a marginar os ditos terrenos rústicos dos autores, encaminhado e direcionado, em sentido descendente e em declive, para o lugar de confronto com o muro dos réus, referido em 9. 36. Quando chove demasíado e tendo em, conta os “regos” referidos em 33 a 35, uma parte da água é desviada do seu curso natural e também é obstada à sua natural infiltração nos terrenos rústicos dos autores. 37. E tais obras vêm, assim, provocar, natural e adequadamente, uma nova concentração de água junto do lugar onde se situa o dito muro dos réus. Com base neste universo factual, em sede de análise jurídica, foi então considerado o seguinte: «Desde logo o direito de propriedade deve ser exercido dentro dos limites impostos por um lado, pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social e económico (art. 334.º do CC) e, por outro lado, pelas restrições, quer de interesse privado, quer de interesse público que a lei expressamente consagra. As restrições de interesse particular estão, fundamentalmente, reguladas no código civil e derivam, normalmente, de relações de vizinhança, como é o caso dos autos. Por haver contiguidade entre os dois prédios, em apreço, os proprietários de um e outro imóvel não são livres de fazer tudo aquilo que se compreenderia num ilimitado ius utendi, fruendi ac abutendi. O art.1356° do CC permite a todo tempo ao proprietário de murar, vaiar, rodear de sebes o seu prédio ou tapá-lo de qualquer modo (não sendo taxativa as formas de tapagem constantes da lei), por isso, aos RR assistia o direito de construírem, como construíram, o muro dos autos. No entanto, o art.1351 ° do CC preceitua que “os prédios inferiores (in casu o dos RR) estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores (aqui o dos AA) assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente”. Dali se retira que quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não possa instalar um muro de tal forma compacto que sirva de dique contra o qual a agua de torrente natural ou de chuva, fique retida prejudicando o proprietário do terreno superior, na medida em que o alaga destruindo culturas ou dificultando o trânsito de pessoas, animais ou veículos. Neste caso configura-se uma limitação do direito dos AA. O art.1351° citado estabelece para ambos os proprietários uma recíproca obrigação de non facere: em os AA podem fazer obras que tornem mais oneroso o encargo de "receber as águas" nem os RR podem estorvar o escoamento. Do material probatório resulta que os prédios dos AA e dos RR são confinantes entre si e que o prédio daqueles se situa num plano ou cota de nível ao destes e que os RR (ora recorrentes) construíram um muro que impede o escoamento das aguas provindas do prédio dos AA, criando acumulação de água junto ao dito muro e, consequentemente danificando as culturas aí existentes. No entanto, ficou também provado que no prédio dos AA (aqui recorridos) foram abertos regos que guiam a água, incluindo a da chuva, impondo uma condução artificial da água. Mais se provou que o caseiro dos AA despeja cisternas provenientes dos despejos de fossas cujas águas conspurcadas, devido à morfologia do terreno tendem a invadir o prédio dos RR. É certo que os RR não são obrigados a receber águas não escoem naturalmente (sem obra do homem) do prédio superior e muito menos são obrigados a receber águas inquinadas, porém, não se tendo verificado (…) os pressupostos previstos no art.º 336.º, n.º 1, do CC, não podiam os R.R. lançar mão da acção directa através da construção de um muro cuja finalidade é a de impedir o escoamento das águas vindas do prédio dos A.A.» Assim, não obstante a interpretação dada ao artigo 1351.º, n.º 1, do CC, no acórdão-fundamento, foi considerado que: «(…) quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não possa instalar um muro de tal forma compacto que sirva de dique contra o qual a água de torrente natural ou de chuva, fique retida prejudicando o proprietário do terreno superior, na medida em que o alaga destruindo culturas ou dificultando o trânsito de pessoas, animais ou veículos. Neste caso configura-se uma limitação do direito dos AA.» Tal proibição assenta, pois, no pressuposto de se tratar de escoamento natural das águas pluviais ou de outras correntes naturais, sem interceção relevante de obra humana na sua génese, deflúvio e orientação. De seguida, atentando no caso concreto, foi observado que: «Do material probatório resulta que os prédios dos AA e dos RR são confinantes entre si e que o prédio daqueles se situa num plano ou cota de nível ao destes e que os RR (ora recorrentes) construíram um muro que impede o escoamento das aguas provindas do prédio dos AA, criando acumulação de água junto ao dito muro e, consequentemente, danificando as culturas aí existentes. No entanto, ficou também provado que no prédio dos AA (aqui recorridos) foram abertos regos que guiam a água, incluindo a da chuva, impondo uma condução artificial da água. Mais se provou que o caseiro dos AA despeja cisternas provenientes dos despejos de fossas cujas águas conspurcadas, devido à morfologia do terreno tendem a invadir o prédio dos RR. É certo que os RR não são obrigados a receber águas não escoem naturalmente (sem obra do homem) do prédio superior e muito menos são obrigados a receber águas inquinadas (…)» Conjugando estas observações com a interpretação ali assumida do artigo 1351.º do CC, afigura-se que o acórdão-fundamento teve por assente que, pelo menos, o escoamento das águas do prédio dos ali autores para o prédio dos também ali réus através de um antigo muro de suporte, em pedra de granito e bordo irregular, que delimitava aquele prédio nas suas confrontações: norte e nascente, era ainda um “escoamento natural”. E é isso o que se pode extrair dos seguintes factos provados: 16. Nas suas confrontações: norte e nascente (em parte de qualquer uma delas), o prédio dos autores é delimitado (e contido) por um muro de suporte em pedra de granito e de bordo irregular; 17. Tal bordo que ora vai aflorando ao nível do prédio dos autores, ora se contém a esse nível serve de suporte às terras dos autores e serve para permitir o escoamento das águas pluviais e outros que (quando abundam) se esvaiam para o prédio de que os réus são proprietários; 18. E é exatamente para isso que tal muro de suporte é constituído por pedra de granito, de razoável envergadura, sobreposta (sem que esteja unida com argamassas); 19. E aflora, acima do nível da terra (ora sim, ora não) de forma irregular. 20. Porque o prédio dos autores tem uma inclinação descendente no sentido poente-nascente, há mais de 5, 10, 15, e 20 anos que as aguas sobrantes no prédio dos autores, pluviais e outras, e que este prédio não consegue absorver, seguem e escoam-se para o prédio dos réus; 21. E tal escoamento natural ocorria, quer porque as águas se infiltravam na terra e se entendiam, fugindo pelos interstícios existentes entre as pedras do muro, sobrepostas há pelo menos 20 anos; 22. Quer porque, mesmo que as terras estivessem saturadas, passava não só o rebordo do muro quando ele ascendia, como também onde o mesmo rebordo estava ao nível do solo do prédio dos autores (neste caso com mais facilidade). Daí que se compreenda que, não obstante terem sido abertos regos no prédio dos autores para condução artificial da água e que tenham sido despejadas águas conspurcadas, mesmo assim se considerou que aos réus era vedado: «(…) instalar um muro de tal forma compacto que sirva de dique contra o qual a agua de torrente natural ou de chuva, fique retida prejudicando o proprietário do terreno superior, na medida em que o alaga destruindo culturas ou dificultando o trânsito de pessoas, animais ou veículos. Neste caso configura-se uma limitação do direito dos AA.» Tal só pode significar o entendimento de que os ali réus incorriam em violação do artigo 1351.º do CC, ao impedir, com a construção de um muro compacto, ainda assim, o escoamento natural das águas do prédio dos autores para o seu, quer por via de infiltração na terra e pelos interstícios existentes entre as pedras do velho muro, sobrepostas há pelo menos 20 anos, quer pelo rebordo deste muro. É, pois, sobre este ponto em particular que o caso do acórdão-fundamento se afigura algo diferenciado do caso versado no acórdão recorrido. Com efeito, no caso dos presentes autos, dos factos provados resulta que os referidos prédios dos A.A. e R.R., antes das construções atualmente ali existentes, constituíam uma bouça de mato e pinheiros (pontos 1.10 e 1.11), apresentando um declive descendente de nascente para poente e de norte para sul (ponto 1.11), pelo que todas as águas pluviais e outras que, de modo natural, caíam dos céus ou também, naturalmente, brotavam à superfície da terra, tudo no prédio dos A.A., corriam nesses dois sentidos, ou seja de nascente para poente e de norte para sul (ponto 1.12). Sucede que os A.A., depois de adquirirem o seu prédio, em 1997, colocaram terra no quintal do mesmo, alteando a respetiva cota, em medida inferior a um metro, e minorando o declive que o mesmo apresentava, tornando-o praticamente plano (ponto 1.33). E também em data não concretamente apurada, mas anteriormente à aquisição pelos 1.ºs R.R. do seu prédio, procederam à construção de um muro de suporte delimitativo da sua propriedade nas confrontações a sul com o prédio dos 1.º R.R. e a poente com o prédio da 2.ª R. (ponto 1.15). Esse muro foi construído em alvenaria de blocos de betão, assente sobre betão, com orifícios com cerca de 5 centímetros de diâmetro cada um para escoamento das águas (ponto 1.16). E, na parte do muro construído na confrontação do prédio dos A.A. com a da 2.ª R., num troço de cerca de três metros de extensão a partir do canto “sul-poente” do prédio dos A.A., foram por estes deixados 3 orifícios circulares também com cerca de cinco centímetros de diâmetro cada um deles, ao nível do terreno do prédio dos mesmos A.A. (ponto 1.26). Foi assim que, após a construção desse muro, as águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr pelos referidos orifícios em direção aos prédios dos R.R. (ponto 1.17). Neste quadro factual, mostra-se inequívoco que as águas provenientes do prédio dos A.A. que, dantes se escoavam pelo declive natural do prédio originário constituído em bouça, com a construção do muro pelos A.A., passaram a escoar-se para os prédios dos R.R. especificamente pelos buracos feitos naquele muro. Além disso, o alteamento da cota do quintal dos A.A., tornando-o praticamente plano, implicou necessariamente uma alteração topográfica do declive originário em relação aos prédios dos R.R.. Nestas circunstâncias, não se pode deixar de concluir que o escoamento das águas, após aquele alteamento e a construção do muro com os referidos buracos, ambos por obra dos A.A., se traduz numa modificação significativa do anterior meio de escoamento natural, passando a constituir um sistema de escoamento artificial. E o mesmo se verifica relativamente ao escoamento pelo tubo em “PVC” que provinha de uma caixa existente no prédio dos A.A. onde eram recolhidas águas, desembocando esse tubo na caixa de reunião de águas dos prédios dos 1.ºs R.R. (ponto 1.24). Trata-se, por conseguinte, de uma situação modificativa do escoamento natural das águas, introduzida por obra humana (dos A.A.) e, portanto, fora do âmbito de tutela do artigo 1351.º do CC, só podendo merecer acolhimento, porventura, em sede de constituição voluntária ou legal de servidão predial, nos termos acima aludidos, desde que verificados os respetivos pressupostos de facto, mas o que extravasa o objeto da presente ação. Nestas circunstâncias, ao abrigo do mencionado artigo 1351.º, não assiste aos A.A. o invocado direito de escoamento das águas, nem recai sobre os R.R. a obrigação de um tal encargo, que se imponha, como restrição legal, ao exercício dos direitos de propriedade sobre os prédios destes. Em tal medida, tinham os R.R. livre disposição do direito de tapagem dos seus prédios, nos termos do artigo 1356.º do CC, em ordem a impedir o escoamento das águas provenientes, desse modo, do prédio dos A.A., como ainda lhes assistia o direito de obstar ao escoamento das águas inquinadas ao abrigo do preceituado no artigo 1346.º do mesmo Código. Neste aspeto, o caso dos presentes autos revela-se especificamente diferenciado do versado no acórdão-fundamento, em que o escoamento das águas do prédio dos ali autores para o prédio dos ali réus, em boa medida, se processava quer por infiltração na terra e pelos interstícios existentes entre as pedras sobrepostas de um velho muro, de há pelo menos 20 anos, quer pelo rebordo deste ao nível do solo do prédio daqueles autores, escoamento esse tido por natural, não se evidenciando assim, como no caso dos presentes autos, a introdução de um exclusivo sistema artificial de escoamento. Foi nessa base que, no acórdão-fundamento, se considerou que, não obstante terem sido abertos regos no prédio dos autores para condução artificial da água e que tenham sido despejadas águas conspurcadas, ainda assim os réus incorriam em violação do disposto no artigo 1351.º do CC, ao terem impedido, pela construção de um muro compacto, aquele escoamento natural das águas do prédio dos autores para o seu. Em face disso, impõe-se concluir que o acórdão recorrido se conforma com a correta aplicação do disposto nos artigos 1346.º, 1351.º e 1356.º do CC, sem colidir com o critério decisório-aplicativo adotado no acórdão-fundamento, dada a específica diferenciação factual dos casos concretos num e noutro versados. 3.2. Quanto à questão do exercício da ação direta Invocam também os Recorrentes contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento relativamente ao exercício da ação direta por parte dos R.R.. Com efeito, no acórdão-fundamento, foi considerado que aos ali réus não era lícito reagir, em sede de ação direta, mediante a construção do muro, para impedir o escoamento das águas provenientes do prédio dos autores, mesmo que, em parte, este escoamento não fosse lícito (no caso das águas conspurcadas e das oriundas dos regos de condução), na medida em que tinham ao seu dispor os mecanismos normais. No caso dos autos, na sentença da 1.ª instância, foi considerado que a atuação dos R.R. se justificava e era proporcionada, o que foi sufragado pela Relação. O artigo 336.º do CC, sob a epígrafe ação direta), dispõe que: 1 – É lícito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, quando a ação direta for indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo. 2 – A ação direta pode consistir na apropriação, destruição ou deterioração de uma coisa, na eliminação da resistência irregularmente oposta ao exercício do direito, ou noutro ato análogo. 3 – A ação direta não é lícita, quando sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar. Nesses termos, a ação direita consiste num meio de autotutela de direitos subjetivos, inclusive do direito de propriedade (art.º 1314.º do CC), de exercício excecional e somente permitido, quando sendo indispensável, se mostre impossibilitado o acesso, em tempo útil, aos meios coercivos de tutela judicial. Assim, o exercício da ação direta visa impedir, de forma imediata, a violação de um direito do agente contra um ato de terceiro atentatório desse direito, podendo até constranger ou neutralizar direitos deste, como se alcança da exemplificação dada no n.º 2 daquele normativo. Dos factos provados colhe-se que: 1.18. Em agosto de 2013, os 1.ºs R.R. começaram a fazer escavações para abrirem alicerces no seu prédio, na confrontação norte, face à confrontação sul do prédio dos A.A.. 1.19. Ao mesmo tempo, aprofundaram o nível do seu terreno, na zona correspondente ao quintal da casa de habitação, a ponto de deixarem a descoberto os alicerces do muro de suporte do prédio dos A.A.. 1.20. De seguida, iniciaram e concluíram um muro em betão e blocos de cimento a toda a extensão da confrontação com o prédio dos A.A. com cerca de 4 metros de altura acima do solo do prédio dos 1.ºs R.R. e 70 centímetros de altura acima do nível do prédio dos A.A.; 1.21. Este muro tem a extensão de cerca de 12,2 metros e de espessura cerca de 20 centímetros. 1.22. A diferença de nível, agora, entre os referidos prédios, na confrontação norte do prédio dos 1.ºs R.R. e na confrontação sul do prédio dos A.A., é de 2,5 metros, sendo o prédio dos A.A. o que se encontra a nível mais elevado. 1.23. O referido muro foi construído por encostamento ao que havia sido construído pelos A.A., tapando, na face voltada para o prédio dos 1.ºs R.R., os oito buracos existentes neste último muro. 1.24. Aquando da realização dessas obras, os 1.ºs R.R. retiraram do seu prédio um tubo em “PVC” que provinha de uma caixa existente no prédio dos A.A. onde eram recolhidas águas, desembocando esse tubo na caixa de reunião de águas do prédios dos 1.ºs R.R., situada a cerca de um metro da via pública. 1.25. Por força desses factos, as águas provenientes do prédio dos A.A. estão impedidas de escoar para o prédio dos 1.º R.R.; 1.26. Na parte do muro construído na confrontação do prédio dos A.A. com a da 2.ª R. e num troço de cerca de três metros de extensão a partir do canto “sul-poente” do prédio dos A.A., foram por estes deixados 3 orifícios de forma circular com cerca de cinco centímetros de diâmetro, cada um deles ao nível do terreno do prédio dos A.A.. 1.27. As águas provenientes do prédio dos A.A. passaram a correr por entre esses hiatos deixados na construção do muro, dado que a superfície do prédio da 2.ª R. fica a um nível inferior ao da superfície do prédio dos A.A. em cerca de 1 metro. 1.28. A partir do ano de 2012, a 2.ª R. obstruiu tais hiatos com cimento, assim impedindo a passagem de água. 1.29. Por força dessa obstrução, as águas provenientes do prédio dos A.A. estão impedidas de escoar para o prédio da 2.ª R. 1.30. Por força dos atos praticados pelos 1ºs e 2ª réus, por vezes, as águas empoçam-se no canto “sul-poente” do prédio dos A.A., chegando a criar um lençol de água com mais de 10 centímetros de profundidade, numa área não concretamente apurada, impedindo o trânsito a pé dos A.A. e dos demais elementos do seu agregado familiar por esse local. Deste universo factual decorre que os 1.ºs R.R. se limitaram a exercer o seu direito de tapagem dentro do seu próprio prédio contra o escoamento das águas provenientes do prédio dos A.A., numa situação em que, diversamente do caso versado no acórdão-fundamento, aqueles R.R. não estavam sujeitos a esse encargo, nem assistia aos A.A. tal direito de escoamento, como já foi referido. Significa isto que, diferentemente do verificado no caso tratado no acórdão-fundamento, o exercício, pelos aqui 1.ºs R.R., do direito de tapagem e de obstrução do escoamento das águas provenientes do prédio dos A.A. não se encontrava sequer condicionado ou restringindo pelo pretenso encargo a tal escoamento. Nestas circunstâncias, tais atos de tapagem e obstrução a esse escoamento não se configuram sequer como qualquer ato que se deva ter por ilícito sobre a esfera jurídica pessoal ou patrimonial dos A.A., pela simples razão de que não atentaram contra qualquer direito destes, mormente quanto ao invocado direito ao escoamento das águas, mas que não lhes assiste. Já quanto à 2.ª R., poder-se-ia dizer que esta não se limitou a exercer o direito de tapagem dentro do seu prédio, mas que reagiu ao escoamento das águas, tapando com cimento os buracos existentes no próprio muro dos A.A.. De qualquer modo, mesmo que um tal comportamento se possa traduzir em exercício de ação direta, também aqui não se divisa que, através desse comportamento, a 2.ª R. tenha violado o pretenso direito dos A.A. ao escoamento das águas, porquanto não assistia a estes tal direito, não sendo, nessa medida, imputável àquela qualquer dano relevante que, de forma ilícita, tenha provocado na esfera patrimonial ou pessoal dos mesmos A.A.. Em suma, também sobre este ponto, não ocorre uma situação idêntica à do caso versado no acórdão-fundamento. 3.3. Conclusão final Ainda que se tenha configurado a invocada contradição jurisprudencial para efeitos preliminares da admissibilidade da presente revista excecional, conclui-se, agora em sede mais aprofundada de análise de mérito, que o critério decisório-aplicativo dos artigos 336.º, 1351.º e 1356.º do CC seguido no acórdão-fundamento não é inteiramente transponível para o caso dos presentes autos, atenta a diferenciação dos segmentos da situação de facto de um e de outro caso acima referenciados. Termos em que deve ser negada a revista. IV – Decisão Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido. As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes. Lisboa, 15 de janeiro de 2018 Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)
Maria da Graça Trigo
Maria Rosa Tching _________ [1] In Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2.ª Edição 1987, pp. 190-191. |