Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
171/07.5TMPRT.P1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: DIVÓRCIO LITIGIOSO
DEVERES CONJUGAIS
DEVER DE RESPEITO
CÔNJUGE CULPADO
Data do Acordão: 11/16/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - O dever conjugal de respeito abrange as liberdades individuais do consorte, os seus direitos conjugais e, dum modo geral, a sua integridade física e moral.
II - É um dever residual, só autonomamente violado por condutas que não constituam em si mesmas violação dos outros deveres indicados no art. 1672.º do CC (fidelidade, coabitação, cooperação e assistência).
III - Age com culpa, comprometendo a possibilidade de vida em comum, o cônjuge que, ao estabelecer particular amizade com uma mulher mais nova, assumiu em relação a ela de modo ostensivo e reiterado, quer no domicílio conjugal, quer publicamente, atitudes que feriram o outro cônjuge no seu brio e amor próprio, humilhando-o escusadamente perante os filhos do casal e outros familiares, e causando-lhe vergonha, constrangimento e desgosto.

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* Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. AA intentou a presente acção de divórcio litigioso contra sua mulher, BB, pedindo que fosse decretado o divórcio entre ambos com culpa exclusiva da ré e esta condenada em indemnização não inferior a 40.000 €, com fundamento, no essencial, em violação grave e reiterada dos deveres conjugais de respeito, fidelidade e cooperação.
Frustrada a tentativa de conciliação, a ré contestou e deduziu reconvenção, alegando a violação por parte do autor dos deveres conjugais de respeito e coabitação e pedindo, com base nisso, que seja decretado o divórcio com culpa exclusiva dele, seu marido, bem como a sua condenação numa indemnização por danos não patrimoniais provocados pela dissolução do casamento, a liquidar em execução de sentença.
O autor replicou, impugnando a matéria da reconvenção e concluindo pela sua absolvição dos pedidos reconvencionais.
Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, decretou o divórcio entre o autor e a ré, declarou esta a principal culpada e condenou-a a pagar ao autor a quantia de 2.500 € a título de indemnização pela dissolução do casamento.
A Relação confirmou a decisão da 1ª instância.
Nesta revista a ré conclui, essencialmente, que não resultando dos factos apurados a violação culposa do dever de respeito de molde a comprometer a possibilidade da vida em comum, deve o acórdão recorrido ser revogado e a acção julgada improcedente.

II. Factos a considerar:
1) O autor e a ré contraíram casamento católico, sem precedência de convenção antenupcial, em 13.07.1985.
2) Do casamento nasceram dois filhos, CC e DD, nascidos, respectivamente, em 06.05.1986 e em 22.03.1989.
3) Autor e ré vivem com os filhos na morada supra indicada, sendo o autor Administrador de empresa comercial, não exercendo a Ré actualmente actividade profissional.
4) A ré frequenta um ginásio.
5) Desde finais de 2005 a ré passou a alongar os períodos diários das actividades lúdicas e desportivas, designadamente preferindo praticar as actividades de ginásio, três vezes por semana, a partir das 18h, chegando a casa entre as 21h e 30 e as 22 h.
6) No Verão de 2006, a ré foi com um dos filhos a Lisboa, ao Rock in Rio, e só regressou na manhã seguinte.
7) A ré saía por vezes à noite, até de madrugada, nomeadamente com os filhos, facto que não agradava ao autor, que exprimia a sua discordância.
8) Autor e ré, na companhia da mãe da ré, gozaram um período de 8 dias no Algarve no mês de Abril de 2006, permanecendo num apartamento do casal.
9) No mesmo período, gozaram férias no mesmo local vários familiares do autor e ré, designadamente irmão, cunhados, sobrinhos e a mãe da ré.
10) Autor e ré são conhecidos no local onde possuem o apartamento no Algarve, designadamente na praia e estabelecimentos que frequentam - restaurantes, supermercados, entre outros - visto que há mais de 20 anos que duas vezes por ano aí permanecem em férias.
11) Antes de rumarem ao Algarve a ré manifestou ao autor vontade de levar para as férias uma “miúda” sua companheira das aulas de ginásio.
12) Jovem, de quem dizia sentir muita pena por ser órfã e provir de família necessitada.
13) Motivos pelos quais dizia pretender proporcionar-lhe uma semana de férias no Algarve.
14) As atitudes da ré para com a referida jovem amiga, durante a estadia no Algarve no indicado período, produziram constrangimento e vergonha no autor, nos demais familiares do autor e ré e nos amigos com quem privaram.
15) A ré fazia questão, e impunha mesmo, ficar sentada ao lado da jovem amiga durante as refeições tomadas em locais públicos (restaurantes e cafés), e convívios em casa de familiares e num jantar de aniversário, na presença de amigos e familiares do casal.
16) Permitiu-se mesmo, nalgumas dessas ocasiões estar de mão dada com a amiga e encostar-se a ela, sem que espaço físico o impusesse.
17) A ré, num restaurante deu de comer na boca à jovem amiga.
18) Na praia a ré colocava a sua toalha sempre ao lado e junto da amiga.
19) A dita amiga trata a ré por “amor”.
20) O autor, entre outros, utilizava até meados de Junho do ano em curso o telemóvel da rede Optimus com o nº ...5.
21) O qual, apesar de ter sido contratado pela sociedade ... - Comércio e Indústria de Plásticos, Ldª, era do seu uso exclusivo, desde há vários anos, visto que o autor era e é sócio e gerente único daquela.
22) Na noite de 14 para 15 de Junho de 2006, sendo que o dia 15 foi feriado, a ré havia-se ausentado após o jantar.
23) Às 4h06m, já do dia 15/06/2006, foi enviada para o número de telefone móvel do autor a seguinte mensagem : «Daqui a pouco já vou para casa, amor».
24) E logo a seguir, pelas 4h30m, foi-lhe enviada para o referido número de telemóvel, outra mensagem de texto, com os seguintes dizeres: «Amor, já está em casa? Está tudo bem?».
25) No momento em que as mensagens foram enviadas a Ré ainda não tinha chegado a casa, o que ocorreu algum tempo depois.
26) As duas mensagens de texto acima transcritas foram enviadas do número de telemóvel: ....
27) Tal número de telemóvel era, na ocasião, utilizado pela amiga da Ré, acima referida.
28) Tais mensagens eram, dirigidas à ré e não ao autor.
29) Passando a dormir, por opção própria, dela ré, noutro quarto, há cerca de 8 meses.
30) O autor é pessoa pacata, modesta, de média sensibilidade, dedicado ao trabalho.
31) A dissolução do casamento é causa de padecimento e sofrimento psíquico para o autor.
32) A ré trabalhou algum tempo na empresa de que o autor é sócio gerente.
33) Em dia que não sabe precisar, em plena hora de almoço, na morada de casa de família, na presença dos filhos, o autor chamou a ré de “prostituta”.
34) O autor entrou em depressão, tendo tido necessidade de recorrer a acompanhamento médico e medicamentoso.
35) Por lhe ser insuportável viver com a ré nessas circunstâncias o autor saiu de casa e passou a residir num apartamento, com a tipologia T-0, para onde se mudou a semana anterior à entrada da PI.

***
As instâncias convergiram no entendimento de que o divórcio tinha que ser, como foi, decretado com base na violação grave e culposa do dever de respeito por parte da ré; e, também convergentemente, consideraram-na a principal culpada pela dissolução do matrimónio.
É contra este julgamento que a recorrente continua a manifestar na presente revista o seu inconformismo, sustentando, essencialmente, que o acórdão recorrido violou o artº 1779º, nº 1, do CC; e isto porque, na sua tese, os factos coligidos não permitem concluir que faltou culposa e gravemente ao dever de respeito conjugal, por forma a comprometer a possibilidade de vida em comum, como a lei exige naquele preceito.
Mas sem razão.
O acórdão recorrido merece inteira confirmação, quer quanto à decisão propriamente dita, quer quanto aos fundamentos que a sustentam.
Efectivamente, conforme entendimento que pode dizer-se unânime da doutrina e da jurisprudência, o dever conjugal de respeito abrange as liberdades individuais do consorte, os seus direitos conjugais e, dum modo geral a sua integridade física e também moral (1) . E trata-se, por outro lado, de um dever residual, que só é autono­mamente violado por condutas que não constituam, em si mesmas, violação dos outros deveres indicados no artº 1672º do CC (fidelidade, coabitação, cooperação e assistência). É um dever simultaneamente negativo e positivo. Enquanto dever negativo “... ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na “integridade moral” todos os bens ou valores da personalidade...: a honra, a consideração social, o amor próprio, a sensibilidade e ainda a susceptibilidade pessoal... Mas o dever de respeito como dever de non facere é ainda, em segundo lugar, o dever de cada um dos cônjuges não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público”. Enquanto dever positivo não consiste “ no dever de cada um dos cônjuges amar o outro, pois a lei não impõe nem pode impor sentimentos... Mas o cônjuge que não fala ao outro, que não mostra o mínimo interesse pela família que constituiu, que não mantém com o outro qualquer comunhão espiritual, não respeita a personalidade do outro cônjuge e infringe o correspondente dever”. Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, 4ª edição, Vol. I, pág. 349.
Ora, afigura-se indiscutível que o tipo de comportamento da ré que surge retratado nos factos elencados sob os nºs 14 a 19 e 23 a 28 é ofensivo, em concreto, da integridade moral do autor enquanto homem que, por ter contraído casamento com ela, justificadamente podia aspirar ao estabelecimento entre ambos da plena comunhão de vida que constitui a essência do instituto, segundo a definição do artº 1577º do CC. Ao assumir de modo ostensivo e reiterado, e até publicamente, as atitudes que se deram como provadas em relação à mulher com quem estabeleceu uma relação de particular amizade, a ré, há que reconhecê-lo, desconsiderou o autor, feriu-o no seu brio e amor próprio, e humilhou-o escusadamente perante os filhos do casal e outros familiares. A sua conduta com a amiga nada tem de usual, como as instâncias observaram, pois não é de todo comum e socialmente reco­nhecido como natural que duas mulheres adultas, sendo uma casada, e na vigência desse casamento, fiquem encostadas uma à outra em restaurantes (sem que o espaço físico o justifique), permaneçam de mão dada, uma delas (no caso, a ré) dê comida à outra na boca, e se tratem por “amor”. Acerca do comportamento da ré não cabe ao STJ formular juízos de valor morais; apenas lhe compete, nos termos e para os efeitos do artº 1779º, nº 1, do CC, qualificar normativamente a sua conduta; ora, analisada nessa perspectiva, esta foi sem qualquer dúvida inadequada e des­primorosa para o autor, e apta a causar-lhe – a ele e também a terceiros, como efectivamente causou (facto 14) – vergonha, constrangimento e desgosto.
Também não sofre dúvida que a violação do dever de respeito conjugal praticada pela ré foi culposa, como a lei exige, e suficientemente grave para comprometer a possibilidade da vida em comum; isto porque, casada com o autor há mais de duas décadas, mãe de dois filhos dele já de maior idade, e sabendo tratar-se de homem pacato, trabalhador e de média sensibilidade (facto 30), obviamente não podia desconhecer que a sua reiterada actuação, além de atentar contra os padrões de comportamento socialmente dominantes, o atingia fortemente no amor próprio e consideração social, como atingiria qualquer outro cônjuge da mesma condição e estatuto confrontado com idêntica situação.
Improcedem, consequentemente, ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso.

III. Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 16/Novembro/2010
Nuno Cameira (Relator)
João Camilo
Salreta Pereira
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(1) Neste sentido, entre outros, cfr. os Ac. deste STJ de 29/1/94 (Pº 084708), 26/1/94 (Pº 96A516), 30/5/95 (Pº086872), 16/5/02 (Pº 02B1290) e 6/3/08 (Pº 07B1315); cfr. ainda Antunes Varela, Direito da Família, Lisboa, 1993, pág. 357.