Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00000785
Parecer: P000621995
Nº do Documento: PPA31052001006200
Descritores: SEXO
PORNOGRAFIA
ESPECTÁCULO PÚBLICO
ATENTADO AO PUDOR
ACTO SEXUAL DE RELEVO
MORAL PUBLICA
MORAL SEXUAL
CRIME SEXUAL
PROTECÇÃO DE MENORES
LICENÇA
CONTRA-ORDENAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIGNIDADE
VIDA PRIVADA
CINEMA
UNIDADE DO SISTEMA JURÍDICO
BEM FORA DO COMÉRCIO
Livro: 00
Pedido: 10/03/1995
Data de Distribuição: 10/06/1995
Relator: LUIS DA SILVEIRA
Sessões: 01
Data da Votação: 05/31/2001
Tipo de Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Sigla do Departamento 1: PCM
Entidades do Departamento 1: SE DA CULTURA
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 11/29/2001
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 08-03-2002
Nº do Jornal Oficial: 57
Nº da Página do Jornal Oficial: 4586
Indicação 2: ASSESSOR: MARIA JOSÉ RODRIGUES
Área Temática:DIR ADM * ADM PUBL* GARANT ADM / DIR CIV * TEORIA GERAL *DIR PERSON * DIR OBG / DIR COM * SOC COM / DIR CONST* DIR FUND / DIR CRIM / DIR HOMEM / DIR MENORES / DIR ORDN SOC
Ref. Pareceres:P000201999
P000271982
P000241987
P000231995
Legislação:CP82 ART171 ART172 ART212 ; DL 48/95 DE 1995/03/18 ; L 65/98 DE 1998/09/02; CP886 ART420; DL 38964 DE 1952/10/27 ART2 ART4; DL 41051 DE 1957/04/01; DL 263/71 DE 1971/08/10 ; DL 199/74 DE 1974/05/14 ; DL 254/76 DE 1976/04/07; DL 652/76 DE 1976/07/31; DL 396/76 DE 1976/07/31; DL 116/83 DE 1983/02/24; PORT 242/83 DE 1983/03/03; DL 106-B/92 DE 1992/06/01; DL 315/95 DE 1995/11/28; L 29/78 DE 1978/06/12; L 65/78 DE 1978/10/13; CONST76 ART24 ART25 ART27 ART1 ; CCIV66 ART70 ART182 ART280 N 2 C ; CSC86 ART6 N1 ;
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:CODIGO PENAL ESPANHOL 1995 ART185 ART186
CODIGO PENAL FRANÇES ART222-32
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:DUDH ART29
PIDCP ART19
CEDH ART10
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª - Os espectáculos de “sexo ao vivo” não são, enquanto tais, ilegais, desde que essa sua natureza se encontre claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias;

2ª - A ausência ou insuficiência desse anúncio em relação a um espectáculo dessa índole pode dar azo ao preenchimento do tipo de crime previsto no artigo 171º do Código Penal, por parte do(s) respectivo(s) promotore(s), se alguém se sentir por aquele “importunado”;

3ª - Independentemente do circunstancialismo indicado na conclusão anterior, a intervenção ou assistência de menores de 14 anos a espectáculos de “sexo ao vivo” perfaz o tipo de crime de “abuso sexual de crianças” previsto e punido no artigo 172º do Código Penal;

4ª - De qualquer modo, os menores de 18 anos não podem assistir a espectáculos de “sexo ao vivo”, dado que estes cabem na classificação de espectáculos pornográficos do 1º escalão (“hard core”), para maiores daquela idade;

5ª - A violação da proibição enunciada na conclusão anterior assume natureza contra-ordenacional.

Texto Integral:
Senhor Secretário de Estado da Cultura,
Excelência:



1.



Por despacho de 5 de Maio de 1995, decidiu o então Subsecretário de Estado da Cultura pedir o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a legalidade de espectáculos de sexo ao vivo.

Esse despacho foi proferido sobre Informação da Direcção-–Geral dos Espectáculos ([1]), da qual consta que num cinema de Lisboa, recinto licenciado para espectáculos de variedades, se teriam vindo a realizar espectáculos em que "ao vivo e em directo, os espectadores assistem aos mesmos actos que podem ser visionados em filmes pornográficos".

A Direcção-Geral levantou, por um lado, a questão - que já noutras situações similares lhe terá sido suscitada - de saber se tais espectáculos podem ou não ser qualificados de crime.

A este propósito, a Direcção-Geral ponderava - naturalmente perante a lei penal à altura em vigor – se os espectáculos em causa não representariam atentado ao pudor, já que não lhe restariam dúvidas de que eles "chocam, em grau elevado, os sentimentos gerais de moral sexual", que vão no sentido da privacidade dos respectivos actos".

Mas não deixava de questionar se, "pagando o espectador um bilhete e estando avisado do que vai ver, se possa entender que é "levado a sofrer, presenciar ou praticar" os actos em causa".

E ampliou o âmbito do problema posto, em termos de se pretender saber se tais espectáculos podem ou não considerar-se lícitos, ou não proibidos por lei.

E isso, designadamente, com vista a poder tomar decisão sobre o eventual encerramento das instalações em causa, por nelas se estarem a realizar espectáculos de sexo ao vivo que não estariam licenciados.

Cumpre, pois, emitir parecer, relativo às duas perspectivas acima indicadas.

2.

Comecemos, como se afigura ajustado, dada a maior gravidade do desvalor social e jurídico que poderá estar em causa, por ajuizar da eventual relevância criminal da actividade em questão.

Essa relevância será aferida, directamente, em função da legislação penal ora aplicável, ou seja, do Código Penal na versão resultante das revisões de 1995 e 1998, operadas, respectivamente, pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 18 de Março ([2]), e pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro ([3]).

Parece inegável que, na economia do Código Penal revisto, a eventual relevância criminal de espectáculos de "sexo ao vivo" deverá ser apreciada no âmbito do Capítulo V – "Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual".

Ora, de entre as disposições contidas nesse Capítulo, aquelas face a cujas previsões poderá discutir-se se abarcam ou não a factualidade dos espectáculos de "sexo ao vivo" parecem ser as dos artigos 171º e 172º, respectivamente do seguinte teor:
"Artigo 171º
(Actos exibicionistas)

Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
"Artigo 172º
(Abuso sexual de crianças)

1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2. Se o agente tiver cópula, coito anal ou coito oral com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
3. Quem:
a) Praticar acto de carácter exibicionista perante menor de 14 anos;
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa obscena ou de escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
c) Utilizar menor de 14 anos em fotografia, filme ou gravação pornográficos; ou
d) Exibir ou ceder a qualquer título ou por qualquer meio os materiais previstos na alínea anterior;
é punido com pena de prisão até 3 anos.
4. Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos."

Importa a propósito atentar em que o primeiro destes preceitos se integra na Secção I do aludido Capítulo, dedicada aos "Crimes contra a liberdade sexual", enquanto que o segundo pertence à Secção II, subordinada à epígrafe "Crimes contra a autodeterminação sexual".

3.

3.1 - Começando por intentar captar o significado do transcrito artigo 171º, cabe notar que a lei não explicita o que sejam "actos de carácter exibicionista". Contudo, a história da discussão do preceito na Comissão de Revisão, e, sobretudo, a epígrafe - "Crimes contra a liberdade sexual" – da Secção em que se integra apontam decididamente para que se deva tratar de actos com significado ou conotação sexual ([4]).

Conquanto os actos a que a consulta se reporta assumam, por si mesmos, significado ou conotação sexual, não se afigura que eles preencham o tipo de crime contemplado no preceito em análise.

É que, por um lado, para que esse tipo se perfaça, torna-se necessário um resultado: "importunar outra pessoa".

E, ademais, o presenciamento de tais actos há-de, senão impor-se à pessoa que a eles assiste, pelo menos surpreendê-la. De qualquer modo, tal presenciamento deve, por parte dessa pessoa, ser involuntário. Revela-o, de resto, desde logo, o facto de o legislador qualificar este delito como crime contra a "liberdade sexual".

Sendo assim, será de concluir que os espectáculos de "sexo ao vivo" não correspondem ao tipo de crime designado de "actos exibicionistas" no aludido artigo 171º.

É que as pessoas que a eles assistem fazem-no voluntariamente, exprimindo aliás esse propósito na aquisição dos bilhetes ou títulos que facultam a entrada nas salas ou recintos em que ocorrem.

E muito menos se poderão considerar "importunadas" por tais actos, já que têm a consciência daquilo a que irão assistir, e procuram-–no intencionalmente.


3.2. Isto, naturalmente, desde que essa decisão de assistir a tal tipo de espectáculo tenha sido conscientemente tomada, com pleno conhecimento da respectiva índole.

Ou, dito de outro modo: a pessoa em causa não poderá considerar-se "importunada" por um espectáculo que integre actos de natureza exibicionista se e na medida em que estiver informada da sua natureza.

Para obstar, pois, a que se perfaça o elemento do tipo relativo ao aspecto de o assistente ser "importunado" pelos actos exibicionistas em causa, importa que os organizadores do espectáculo informem sempre claramente os eventuais interessados das características deste.

4.

4.1 - O alcance da incriminação da norma em causa pode, de resto, apreender-se melhor se se proceder ao respectivo confronto com o teor da correspondente regra integrada no texto originário, de 1982, do Código Penal.

Atente-se, a propósito, no modo como este Conselho explanou tal contraposição, no parecer nº 20/99, de 20 de Novembro de 1999:

"O Código Penal de 1982 não faz qualquer menção ao ultraje à moral pública ([5]), mas contemplou no artigo 212º, no elenco dos crimes sexuais, o “Exibicionismo e ultraje público ao pudor” nos seguintes termos:

“Quem, publicamente e em circunstâncias de provocar escândalo, praticar acto que ofenda gravemente o sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual, será punido com prisão até um ano e multa até 100 dias.”

"O centro de gravidade do bem jurídico protegido é ainda a moral social sexual, como o revela a circunstância de a norma incriminadora se encontrar inserida num Capítulo I, sob a epígrafe “Dos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social”, do Título III referente aos “Crimes contra valores e interesses da vida em sociedade."

"O tratamento desta matéria sofreu, no entanto, uma importante reformulação com a revisão no Código Penal operada pelo Decreto–Lei nº 48/95, de 15 de Março, quer no que concerne ao enquadramento sistemático do tipo incriminador, quer quanto à definição do bem jurídico normativamente tutelado: os crimes sexuais passam a inserir-se num Capítulo V do Título I da Parte Especial intitulado “Dos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual” e o objecto da protecção jurídico-penal desloca-se dos bons costumes para a liberdade sexual.

"Essa essencial mudança de concepção é realçada na exposição preambular do Decreto–Lei nº 48/95, onde, em referência às alterações introduzidas na parte especial, se afirma:

“Assim, é de assinalar a deslocação dos crimes sexuais do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade para o título dos crimes contra as pessoas, onde constituem um capítulo autónomo, sob a epígrafe “Dos crimes gerais contra a liberdade e autodeterminação sexual, abandonando-se a concepção moralista (“sentimentos gerais de moralidade”), em favor da liberdade e autodeterminação sexuais, bens eminentemente pessoais.”

"Na Comissão Revisora, FIGUEIREDO DIAS, a propósito da designação que passou a ser atribuída à secção I do mencionado Capítulo V (crimes contra a liberdade sexual) refere:

“Agora estamos perante a protecção da liberdade sexual das pessoas e já não de um interesse da comunidade. Daí a importante e significativa alteração sistemática: inserida nos crimes contra a sociedade, vê-se agora colocada nos crimes contra as pessoas”.

"Na mesma linha, em relação à similar evolução antecedentemente ocorrida no direito penal germânico no âmbito das práticas sexuais, espelhada na alteração da epígrafe do capítulo – a expressão “Crimes e delitos contra a moral” foi substituída por “Crimes contra a autodeterminação sexual” - LAUFHUTTE, citado por COSTA ANDRADE, discorre:

"Com a adopção desta rubrica, o legislador deixou claramente afirmada a vontade de abandonar as representações ultrapassadas sobre os valores a tutelar penalmente em matéria sexual e, em conformidade, de deixar de considerar a manutenção da moral sexual como um bem jurídico (...). O legislador significou univocamente que em causa estão apenas bens individuais e não bens supra-individuais da comunidade ou do Estado (...). O direito penal tem de manter distâncias em relação aos programas de ética sexual qualquer que seja a sua orientação".

"No local anteriormente citado, FIGUEIREDO DIAS elege como regra essencial da tipificação legal dos crimes sexuais a seguinte nota: “Não é crime qualquer actividade sexual (qualquer que seja a espécie) praticada por adultos, em privado, e com consentimento”. Aspecto que é igualmente sublinhado por TERESA BELEZA nestes termos: “só o carácter coagido, ou a publicidade com incómodo de terceiros, ou a imaturidade do parceiro, poderão ser campos de actuação legítimos à dissuasão penal em matéria de sexo”.

“O bem jurídico a proteger – como esclarece a mesma autora – será em qualquer caso a liberdade, liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade de razão para aí se poder exercer plenamente aquela liberdade”.

"São estes dois pólos que correspondem à delimitação positiva e negativa da liberdade sexual erigida como bem jurídico-penalmente protegido. À filosofia penal reserva-se uma intervenção subsidiária que só se justifica “onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições comunitárias essenciais do livre desenvolvimento e realização da personalidade de cada homem”. Nos crimes sexuais: os vectores condicionantes são agora a protecção da liberdade de expressão sexual de cada um, ao invés da protecção das convicções comunitárias de cariz moral.

"Esta perspectiva geral foi, aliás, reiterada pelo mesmo parecer quando especificamente se reportou ao concreto teor do actual artigo 171º do Código Penal. Fê-lo, pois, nos seguintes moldes:

"O exibicionismo que está aqui em causa é o relacionado com a sexualidade, como se depreende da circunstância de a norma se encontrar inserida na secção I do Capítulo V, sob a epígrafe “Crimes contra a liberdade sexual.”

"FIGUEIREDO DIAS observou na Comissão Revisora que o que se pretende punir com este preceito não é o ultraje público ao pudor, mas uma outra realidade que se traduz na desadequação social de acções de carácter exibicionista.

"Em qualquer caso, o legislador não alude ao ultraje público ao pudor, nem referencia a finalidade da norma à moralidade sexual ou ao sentimento geral de pudor. Estamos aqui perante uma limitação à liberdade sexual que leva a excluir que o indivíduo possa praticar actos relacionados com o sexo em lugar ou circunstâncias tais que cause incómodo a terceiros. A tutela penal incide, neste caso, na liberdade sexual na sua vertente estática ou defensiva, em paralelo com outras formas de intromissão sexual alheia que são igualmente inadmissíveis.

"O que pode dizer-se é que, em confronto com o Código Penal de 1982, a actual versão descriminalizou o comportamento que configurava o crime de ultraje público ao pudor anteriormente previsto no artigo 212º, o que vem a corresponder à orientação da Reforma de 1995 de deixar de considerar os crimes sexuais como crimes ligados aos “sentimentos gerais de pudor e da moralidade sexual”.


4.2 - O ponto de vista acabado de expor tem sido corroborado pela generalidade dos autores.

Atente-se, por exemplo, em que, logo no intróito de "Crimes sexuais", ([6]) Reis Alves afirma que:

"2. A inserção sistemática agora concedida aos crimes sexuais (que ocupam um capítulo autónomo no Título reservado aos crimes contra as pessoas) e a alteração profunda a nível de tipos e molduras penais traduzem uma das mudanças mais radicais introduzidas com a revisão.
A saída dos crimes sexuais do capítulo destinado aos crimes contra os fundamentos ético-sociais da vida social justificava-–se desde o momento em que se assumiu, sem margem para dúvidas, que o bem jurídico tutelado em tais tipos legais não era a honra ou a formação moral da vítima mas sim o seu direito a dispor livremente da sua sexualidade."

E a mesma ideia surge desenvolvida e aprofundada por Ferreira Ramos ([7]), quando pondera que:

"Não se desconhecendo as divergências entre os autores no tocante ao bem jurídico a proteger pelo direito penal sexual, esta nova inserção sistemática pode e deve interpretar-se como significando um compromisso da Comissão Revisora.
Ela expressa que o bem jurídico aqui em causa é a liberdade e autodeterminação sexual, um dos vectores em que se analisa a liberdade da pessoa humana, direito fundamental constitucionalmente reconhecido.
Liberdade sexual entendida não só como a livre disposição do sexo e do próprio corpo para fins sexuais, como a liberdade de opção e de actuação de cada um no domínio da sexualidade, mas também como o direito de cada um a não suportar de outrem a realização de actos de natureza sexual, contra a sua vontade.
O que significa, noutro enfoque, que o direito penal não deve ser um limite da liberdade sexual, mas um garante desta mesma liberdade, que há-de partir do reconhecimento da plena autonomia da livre determinação pessoal em matéria sexual entre adultos e em privado, pautando a sua intervenção pelos princípios da necessidade ou dignidade penal e conduzindo também à não criminalização de condutas meramente imorais que não ofendem bens jurídicos fundamentais da comunidade.
Regra essencial na tipificação legal será, pois, não criminalizar qualquer actividade sexual, de qualquer espécie, praticada por adultos, em privado, e com consentimento."

5.

5.1 - O legislador penal considera com maior severidade, relativamente à genérica prática de "actos exibicionistas" previstos no artigo 171º, o crime de "abuso sexual de crianças" tipificado no preceito seguinte.

Engloba-o, de resto, como já se apontou, nos "crimes contra a autodeterminação sexual", e não já nos "crimes contra a liberdade sexual", categoria em que aqueloutro se integra.

Entendeu, pois, que, sendo a vítima dos actos aí especificados um menor de 14 anos, não é a sua liberdade sexual o valor atingido - já que uma criança dessa idade não terá ainda o discernimento e a capacidade de adequada ponderação volitiva e valorativa para poder exercer normalmente a faculdade de decisão e escolha inerente à liberdade sexual.

O que tais crimes afectam é, na perspectiva da lei penal vigente, a "autodeterminação sexual", pois que, incidindo sobre menores de 14 anos, são susceptíveis de prejudicar, comprometendo a sua normal evolução, o desenvolvimento da sua maturidade sexual, nos aspectos físico, psicológico e de capacidade de opção valorativa.

É por isso que as penas previstas neste artigo 172º são bem mais graves que as contempladas no preceito precedente.

Mas, sobretudo, na tipificação de qualquer dos actos criminalmente relevantes configurados na norma em causa prescinde-–se em absoluto - diversamente do teor do artigo 171º - de qualquer elemento volitivo por parte do menor, e, designadamente, da circunstância de se apurar se tais condutas o "importunaram" ou não.

E isso, precisamente, porque o legislador entendeu que tais actuações ferem, em termos objectivos, a "autodeterminação sexual" de menores de 14 anos, não relevando, para o efeito, qualquer eventual opção por estes feita, porque não radicada num grau de discernimento e capacidade de ponderação tal que permitisse considerar a existência de "liberdade sexual" perfeita da sua parte.


5.2 - A apreciação acabada de sintetizar encontra, no essencial, conforto na lição dos principais comentadores das regras penais em referência.

Recorde-se o que, por todos, a tal respeito ponderam, designadamente,

Figueiredo Dias ([8]):

"§ 1. Já no § 2 da nótula antes do artigo 163º se procurou pôr a claro a especificidade do bem jurídico protegido pelo tipo em comentário. Trata-se ainda nele, pode dizer-se, de proteger a autodeterminação sexual, mas sob uma forma muito particular: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coactiva ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade. A lei presume – pode também afirmar-se com razoável correcção (de forma paralela fala Teresa Beleza, Jornadas, 1996, 169, de uma "convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia)" – que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (presume este prejuízo, não que "a pessoa não é livre para se decidir em termos de relacionamento sexual": assim todavia Teresa Beleza, RMP, 15-59, 1994, 56); e considera este interesse (no fundo, um interesse de protecção da juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal (insistiu sobre este ponto também Costa Andrade, AR, Reforma, II, 43).

E Mouraz Lopes ([9]):

"2. Protege-se nesta secção o direito à protecção da sexualidade numa fase inicial ou em desenvolvimento, que, pelas suas características, é carecida de tutela jurídica.
O limite etário dos 14 anos é normalmente entendido como a fronteira entre a infância e a adolescência.
Trata-se de crimes de perigo abstracto, cujos tipos estão pré-–ordenados à protecção da juventude e infância.
Atente-se que as perturbações fisiológicas e psicológicas que um precoce despertar sexual (seja ou não violento ou consentido) pode provocar, são factos e motivos suficientes para uma tutela jurídica efectuada naqueles termos.
Por outro lado, "os tipos de experiências sexuais que uma pessoa tem, especialmente durante a adolescência, são importantes na direcção ou reforço do fluxo da sua preferência sexual", sendo por isso importante que nesta fase da formação da personalidade se procure de sobremaneira um desenvolvimento adequado da sexualidade, no sentido de proteger a liberdade do menor no futuro, para que decida, em liberdade, o seu comportamento sexual."


5.3 - A previsão do artigo 172º ora em apreciação é, pois, de índole a qualificar criminalmente "espectáculos de sexo ao vivo", na medida em que afectem a autodeterminação sexual de menores de 14 anos.

A intervenção de um tal menor no próprio acto sexual de relevo – se é que pode, sequer, imaginar-se tal eventualidade – estaria abrangida pelo nº 1 ou 2 da aludida disposição legal.

A assistência dum menor de 14 anos a espectáculo dessa natureza estaria, porventura, abrangida pela alínea b) do nº 3 dessa prescrição, quando menciona "actuar sobre menor de 14 anos, por meio de ...espectáculo ou objecto pornográfico".

Isto, na medida em que qualquer espectáculo "actua", através dos sentidos, nomeadamente o da visão ([10]), "sobre" aqueles que ao mesmo assistam.

Cite-se, neste sentido, o que a propósito comenta Figueiredo Dias ([11]):

"Para que uma manifestação pornográfica constitua um espectáculo não é indispensável a encenação que acompanha normalmente o espectáculo; como tão-pouco se requer que ele seja público. A prática de actos sexuais de relevo, p. ex., perante um menor de 14 anos, o levá-lo a presenciar uma orgia, ainda que ela nada tenha de público, mas ocorra mesmo num círculo familiar estrito, constitui um "espectáculo pornográfico" para efeito de integração do tipo.
§ 17 Actuar sobre o menor (alínea b) significa tentar satisfazer com ele ou através dele, por meio de processos de características sexuais, interesses ou impulsos de relevo, que todavia não têm, estes, de possuir natureza sexual, mas podem ser de natureza diferente. A utilização da palavra "sobre" não pressupõe por outro lado a necessidade de contacto corporal entre o agente e a vítima. Basta que o menor participe a qualquer título – ainda o mais radicalmente passivo – da conversa, da leitura, do espectáculo (visual ou sonoro, v.g., certas "hot lines" ou certos discos) ou da observação do instrumento pornográfico."

Reconhece-se que por vezes se propõe para a previsão legal em questão uma interpretação mais restritiva.

É assim, por exemplo, que Leal-Henriques e Simas Santos ([12]) opinam que: "Actua-se "sobre" quando se satisfaz com o menor ou através dele a acção em causa, não sendo indispensável que haja um contacto corporal com a vítima (é suficiente que o menor participe nas acções referidas no preceito)".

Mesmo, porém, para quem defenda essa posição (e pressupondo-se que ela implica que a participação não inclui a mera assistência) o facto de um menor de 14 anos assistir a um espectáculo de sexo ao vivo não deixa de merecer incriminação nos termos do artigo 172º do Código Penal.

E isso, decerto, por força da alínea a) do respectivo nº 3, quando se reporta a quem "praticar acto de carácter exibicionista perante menor de 14 anos."

Note-se, enfim, que do confronto entre as aludidas alíneas a) e b) do nº 3 do preceito mencionado parece ressaltar que o seu mais ajustado entendimento é o de que:

- a alínea a) incrimina quem pratica o acto em questão;
- a alínea b) abrange (para além de, logicamente, também caberem na alínea a) os organizadores do espectáculo - pois deles se pode acertadamente dizer que "actuam sobre menor de 14 anos por meio de ...espectáculos...pornográficos."

A título ilustrativo, mencione-se que algumas das mais recentes reformas penais ocorridas em países culturalmente próximos do nosso têm consagrado, na matéria em apreciação, soluções assentes em valoração análoga à que inspirou os artigos 171º e 172º do Código Penal português.

Isto, sem deixar de notar que se não observa entre elas uma completa identidade de regimes – o que bem reflecte a precariedade e dificuldade dos juízos éticos que, neste âmbito, podem confortar o legislador criminal.

Refira-se, pois, a este propósito, que a nova lei penal espanhola, de 1995, prescreve, no Capítulo IV do Livro II, Título VIII, ("De los delitos de exhibicionismo y provocación sexual"):

"Capítulo IV
De los delitos de exhibicionismo y provocación sexual
185. El que ejecutare o hiciere ejecutar a otra persona actos de exhibición obscena ante menores de edad o incapaces, será castigado com la pena de prisión de seis meses a un año o multa de seis a doce meses.
186. El que, por cualquier medio directo, vendiere, difundiere o exhibiere material pornográfico entre menores de edad o incapaces, será castigado com la pena de prisión de seis meses a un año, o multa de seis a doce meses."

Ressalta da previsão do artigo 185º, pois, que o exibicionismo (precisado como traduzido em "actos de exhibición obscena") não é punido quando incidente sobre maiores.

Mas é sancionado, não só quando praticado perante menores (no sentido geral), mas também quando o é face a incapazes ([13]).

Por seu turno, o artigo 222-32 do actual Código Penal francês estipula que:

"Art. 222-32 - L'exhibition sexuelle imposeé à la vue d'autrui dans un lieu acessible aux regards du public est punie d'un an d'imprisonnement et de 100.000F d'amende."

Esta norma não distingue, pois, no concernente à possível vítima do acto de exibicionismo – abrangendo, assim, os adultos, capazes ou não.

Mas deixa claro que só são punidos actos tais que possam considerar-se "impostos à vista de outrem" e que sejam cometidos em lugar acessível às vistas do público.

Considere-se, a este respeito, o comentário de Emmanuel Pierrat ([14]):

"L'exhibitionnisme n'est que depuis peu visé expressément par le droit pénal français. Dans le nouveau code pénal, on ne parle plus en effet d'outrage public à la pudeur mais d' "exhibition sexuelle" proprement dite.
Ce délit concerne toute attitude publique – ou mieux, visible par des tiers – considérée comme scandaleuse. Et ne sont pas seulement visés ici les messieurs nus, sous leur imperméable, à la sortie des écoles.
Le législateur, en changeant la terminologie de l'infraction, a simplement voulu écarter toute répression du naturisme dans les lieux spécialement aménagés. C'est pourquoi l' "exhibition sexuelle" n'est aujourd'hui répréhensible que si elle est "imposée à la vue d'autrui."

6.

6.1 - Uma vez feita a abordagem da questão em análise do ponto de vista criminal, cumpre, de seguida, passar a considerá-la na perspectiva da legislação reguladora dos espectáculos.

Afigura-se legítimo identificar, na evolução cronológica deste regime jurídico, dois períodos suficientemente distintos, quer no concernente ao espírito informador do legislador, quer no tocante aos meios por este conferidos à Administração Pública para propiciar a realização das finalidades com aqueles conformes.

O primeiro desses períodos foi o decorrido até à alteração de regime político verificada em 25 de Abril de 1974, constitucionalmente plasmada na Lei Fundamental de 1976; o segundo é o iniciado a partir dessa ruptura constitucional, acompanhada duma assinalável mudança valorativa na consideração das liberdades e seus eventuais limites.


6.2 - Logo em 1927, foi publicado um diploma geral regulador dos espectáculos e divertimentos públicos – o Decreto nº 13564, de 6 de Maio desse ano.

O respectivo artigo 4º conferiu ao Inspector-Geral dos Teatros superintendência "em todas as casas e recintos de espectáculos", conferindo-lhe competência, além do mais, para:

"10) Autorizar os espectáculos públicos e mandar visar os respectivos programas;
11) Fiscalizar os espectáculos e promover a repressão de quaisquer factos ofensivos da lei, da moral e dos bons costumes;"

Em 16 de Fevereiro de 1939, a Lei nº 1974 definiu genericamente quais os espectáculos a que podiam assistir menores, segundo as idades, e quais os reservados a adultos.

Mas, mais de uma década depois, o legislador governamental veio reconhecer que o objectivo dessa Lei não pudera, por falta de instrumentos para a sua efectivação, ser alcançado.

Por isso publicou, em 27 de Outubro de 1952, o Decreto-Lei nº 38964, regulando a assistência de menores a espectáculos públicos e revendo a constituição da Comissão de Censura aos Espectáculos.

Neste diploma se prescreveria, nomeadamente:

"Art. 2º. A admissão de menores aos espectáculos públicos a que se refere este diploma obedecerá às seguintes regras:
1. "Os espectáculos cinematográficos são vedados aos menores de 6 anos;
2. "Os menores de 13 anos só poderão assistir a espectáculos para crianças;
3. "Aos espectáculos que tenham a classificação especial para adultos só podem assistir indivíduos com mais de 18 anos de idade;
4. "Aos espectáculos aprovados sem classificação especial pela Comissão de Censura aos Espectáculos poderão assistir todos os indivíduos com mais de 13 anos de idade."

"Art. 4º. Serão classificados para adultos os espectáculos que, embora obedecendo às condições mínimas exigidas para a sua autorização pela Comissão de Censura aos Espectáculos, possam ser prejudiciais à formação espiritual e ao desenvolvimento moral e intelectual da juventude, ou possam excitar perigosamente a sua sensibilidade e imaginação, despertar-lhe instintos maus ou doentios, corromper ou amedrontar pelas suas sugestões, exercer acção nociva sobre o carácter ou sugerir-lhe noções erradas sobre os conceitos fundamentais da vida e os factos da história."

"Art. 5º. Compete à Comissão de Censura aos Espectáculos decidir sobre a classificação dos espectáculos segundo os grupos referidos no artigo anterior, cabendo à Inspecção dos espectáculos a execução dessas decisões."

"Art. 10º. Os pais, tutores ou pessoas encarregadas da educação ou simples vigilância dos menores que permitirem ou facilitarem o seu acesso a espectáculos ou os acompanharem, em contravenção com o disposto no artigo 2º, incorrerão na multa de 100$ a 1.000$, e, em caso de reincidência, na pena de prisão até três meses."

"Art. 14º. O julgamento de infracções previstas neste decreto, bem como a instrução do processo, são da competência dos tribunais de menores."

"Art. 15º. A pena de multa, quando não for paga, será sempre substituída pela de prisão, nos termos do Decreto-Lei nº 35978, de 23 de Novembro de 1946."

O diploma acabado de mencionar veio a ser revogado e substituído pelo Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957, cujo artigo 8º definiu, contudo, os espectáculos "para adultos" em termos análogos aos daqueloutro.

Decorrido, porém, pouco mais de um biénio, foi publicada, em 20 de Novembro de 1959, uma série de diplomas gerais que procederam ao enquadramento jurídico global dos espectáculos e outros divertimentos públicos.

O mais importante de entre eles foi o Decreto-Lei nº 42660 ([15]), do qual merecem ser destacadas as seguintes regras:

"Art. 35º. Apenas poderão ser apresentados em espectáculos e divertimentos públicos os filmes, peças teatrais, bailados, canções e números congéneres previamente autorizados e classificados pela Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957."

"Art. 40º. A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer outros elementos de espectáculo ofensivos dos órgãos da soberania nacional, das instituições vigentes, dos chefes de Estado ou representantes diplomáticos de países estrangeiros, das crenças religiosas e da moral cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à educação do povo."

XII
Da fiscalização e das infracções

"Art. 67º. A fiscalização do disposto neste diploma e seus regulamentos cabe ao pessoal da Inspecção dos Espectáculos, nos termos dos respectivos diplomas, e a todas as autoridades administrativas e policiais, sem prejuízo do disposto no artigo 18º do Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957, devendo os autos de notícia ser sempre remetidos à Inspecção dos Espectáculos.
§ único. Os membros da Comissão de Exame e Classificação dos espectáculos têm também funções de fiscalização relativamente ao cumprimento do disposto no artigo 35º deste diploma."

"Art. 68º. As infracções ao disposto neste diploma e seus regulamentos serão punidas com as seguintes sanções:
1º Multa até 10.000$;
2º Encerramento dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos até dois anos;
3º Suspensão do exercício da actividade até dois anos;
4º Apreensão e perda de máquinas dos ambulantes de cinema e dos aparelhos receptores de radiodifusão visual, os quais serão vendidos em hasta pública, revertendo o produto da venda para o Fundo do Cinema Nacional;
5º Apreensão e perda das cópias de filmes.
§ único. Os casos de recusa de abandono dos recintos de espectáculos públicos, quando a saída seja imposta pelas entidades para tanto competentes, e as falsas declarações prestadas à Inspecção dos Espectáculos serão punidos, respectivamente, nos termos dos artigos 188º e 186º, conforme os casos, e 242º, todos do Código Penal.

Art. 69º. À Inspecção dos espectáculos cabe a aplicação das sanções previstas no corpo do artigo anterior, bem como das sanções a que se refere o artigo 14º do Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957.
............................................................................................"

O conteúdo do diploma legal acabado de mencionar foi desenvolvido pelo Decreto nº 42661, da mesma data ("Regulamento dos Espectáculos e Divertimento Públicos"). Deste regulamento constavam, nomeadamente, as seguintes regras, subordinadas à epígrafe "Do exame e classificação dos diversos elementos do espectáculo":

"Art. 63º. Apenas poderão ser apresentados em espectáculos e divertimentos públicos filmes, peças teatrais, bailados, canções e números congéneres previamente autorizados e classificados pela Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957.
§ 1º A autorização pode ser revogada quando os superiores interesses do Estado ou razões de ordem internacional assim o exigirem.
§ 2º Feita a classificação, nenhuma alteração pode ser introduzida pelas empresas ou artistas nos elementos do espectáculo a que este artigo se refere, a não ser que sejam submetidos a nova classificação.
§ 3º As empresas e demais entidades organizadoras de espectáculos teatrais comunicarão à Inspecção dos Espectáculos o local e a hora dos ensaios de apuro, a realizar com a indumentária, as caracterizações e os cenários que hão-de figurar na representação.
§ 4º As infracções ao disposto no corpo deste artigo serão punidas nos termos do artigo 14º do Decreto-Lei nº 41051, sem prejuízo da aplicação de outras sanções previstas na lei.
§ 5º As infracções ao disposto no § 2º serão punidas com multa de 1.000$ a 5.000$ e as infracções ao § 3º com multa de 200$ a 500$.

"Art. 64º Os diversos elementos do espectáculo serão submetidos à Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos, mediante requerimento dos interessados."

O regime constante dos diplomas acima mencionados foi parcialmente substituído pelo do Decreto-Lei nº 263/71, de 10 de Junho, no qual, designadamente, se podia ler:

"Art. 14º - 1. Apenas poderão ser apresentados em espectáculos e divertimentos públicos os filmes, peças de teatro, bailados, canções e números congéneres previamente autorizados e classificados pela Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos, nos termos do presente diploma.
2 - Quando dos espectáculos ou divertimentos públicos façam parte elementos de natureza diversa dos previstos no nº 1, ficam os mesmos igualmente sujeitos a prévia autorização e classificação da Comissão de Exame e Classificação dos espectáculos.
3 - Para efeito do disposto no número anterior, considera-se que fazem parte do espectáculo ou divertimento quaisquer realizações ou números apresentados depois de franqueada ao público a entrada do respectivo recinto.
4 - Ficam dispensados do disposto neste artigo os elementos de espectáculos a exibir no Teatro Nacional de S. Carlos e no Teatro Nacional de D. Maria II, nos termos, respectivamente, do artigo 1º do Decreto-Lei nº 35775, de 31 de Julho de 1976, e do artigo 3º do Decreto-Lei nº 45251, de 18 de Setembro de 1963.
5 - As infracções ao disposto nos nºs 1 e 2 serão punidas com multa de 1000$ a 10.000$, elevada para o dobro na primeira reincidência, e agravada, ainda, em segunda reincidência, com o encerramento até seis meses da casa ou recinto onde for praticada a infracção, sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.
6 - O encerramento previsto no número anterior será substituído pela proibição do exercício da respectiva actividade, por igual período, sempre que a empresa não utilize normalmente o mesmo recinto."

"Art. 26º - 1. A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer outros elementos de espectáculos ofensivos dos órgãos de soberania nacional, das instituições vigentes, dos chefes de Estado ou dos representantes diplomáticos de países estrangeiros , das crenças religiosas e da moral cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à educação do povo."

Em termos muito sintéticos, pode, pois, afirmar-se que, até à alteração de regime político verificada em 25 de Abril de 1974, a Administração Pública dispunha, através da Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos ([16]), de um poder discricionário de autorização prévia dos espectáculos.

Esse poder discricionário era exercido em função de critérios segundo os quais eventuais pedidos para a realização de espectáculos de "sexo ao vivo" – se é que fosse pensável a sua formulação – seriam decerto recusados.

As infracções relativas à realização de espectáculos não autorizados tinham a natureza (penal) de transgressões, puníveis com multa e vários tipos de sanções acessórias.


6.3 - Logo em 14 de Maio de 1974, o Decreto-Lei nº 199/74 extinguiu a Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos ([17]) – decisão que simbolicamente representou a ruptura com o regime anteriormente vigente nesta matéria.

E é assim que no Decreto-Lei nº 254/76, de 7 de Abril, se aborda a realização de espectáculos pornográficos (bem como a edição e venda de publicações e outros objectos de índole similar) sob uma perspectiva diversa da adoptada nas décadas antecedentes, denunciada nos seguintes passos do respectivo preâmbulo:

"De igual modo se fugiu a qualquer forma de censura de filmes. Neste domínio – um dos mais visados pelas críticas de que se tem notícia – avançou-se apenas até à sua classificação como pornográficos e não pornográficos, para o efeito da aplicação aos primeiros de sobretaxas de algum modo desestimulantes da sua importação e da sua procura, ao mesmo tempo que se proíbe que assistam às respectivas exibições menores de 18 anos.
Os que a elas possam e queiram assistir, de antemão sabendo o que vão ver, fazem uso consciente da sua liberdade de acção, assumindo a correspondente responsabilidade. As penas previstas são suaves, embora não tanto quanto à infracção se verifique em relação a menores ou tenha provocado ou seja susceptível de provocar grave dano de natureza social. Em caso de segunda ou ulterior reincidência, a pena não será remível."

Em termos de regulamentação, a estatuição deste diploma concernente aos espectáculos teatrais ou em recintos de diversões nocturnas era a do respectivo artigo 4º, assim configurado:

"Art. 4º – 1. A comissão de classificação etária de espectáculos cinematográficos ([18]) passará a classificá-los também em pornográficos e não pornográficos, para o efeito do disposto no número seguinte:
2 – Em relação aos filmes classificados de pornográficos, serão agravadas a sobretaxa de importação e as taxas incidentes sobre o preço dos bilhetes, nos termos que vierem a ser regulamentados, sendo proibida a entrada e assistência às respectivas exibições de menores de 18 anos.
3 – O disposto nos números anteriores poderá a vir ser aplicado, com as necessárias adaptações, aos espectáculos teatrais ou em recintos de diversões nocturnas ou ainda aos objectos e publicações referidos no nº 1 do artigo 1º por decreto dos Ministros das Finanças, da Administração Interna e da Tutela."

Depois de várias intervenções legislativas que se foram sucedendo no tempo ([19]), a regulação da matéria em apreciação veio a plasmar-se essencialmente no Decreto-Lei nº 396/82, de 21 de Setembro ([20]), diploma sistematizador das normas sobre classificação de espectáculos.

Deste decreto-lei se destacam, nomeadamente, as regras seguintes:


"Da classificação de espectáculos

Artigo 1º – 1 – A classificação dos espectáculos e divertimentos públicos obedece ao disposto no presente diploma e a outras normas legais aplicáveis, não podendo, em caso algum, a classificação atribuída depender de juízos de carácter ideológico.
2 – A realização de qualquer espectáculo ou divertimento público carece da atribuição da respectiva classificação, a qual, no entanto, nunca poderá ser denegada.
3 – A classificação dos espectáculos de radiodifusão visual será regulada por diploma próprio."

"Art. 2º – 1 – Os espectáculos ou divertimentos públicos serão classificados nos seguintes escalões etários:
Para maiores de 4 anos;
Para maiores de 6 anos;
Para maiores de 12 anos;
Para maiores de 16 anos;
Para maiores de 18 anos;
2 – Os espectáculos e divertimentos públicos serão ainda classificados, sempre que for caso disso, "De qualidade" ou "Pornográficos" e estes em escalões, de acordo com as disposições aplicáveis.
3 – Devem ser publicados no Diário da República os critérios gerais de classificação propostos pela Comissão de Classificação de Espectáculos e homologados por portaria do Ministério da Cultura e Coordenação Científica.
4 – Serão definidos por portaria do Ministério da Cultura e Coordenação Científica símbolos gráficos correspondentes, a cada escalão classificativo, os quais deverão ser incluídos nos elementos de publicidade ao espectáculo bem como nas pontas-filme a que se referem os artigos 9º e 10º."

"Art. 11 – 1 – A classificação dos espectáculos de teatro compete à Comissão de Classificação de Espectáculos, de acordo com as normas aplicáveis.
...................................................................................................."

"Art. 18º – Quaisquer outros espectáculos cuja natureza não seja abrangida pelo disposto nos artigos anteriores deverão ser classificados pela Comissão de Classificação de Espectáculos, nos termos do disposto para os espectáculos de teatro, com as necessárias adaptações."

"Art. 19º – A classificação e demais especificações dos espectáculos e divertimentos públicos deverão ser afixadas em letreiros bem visíveis junto das bilheteiras e portas de entrada dos recintos onde os espectáculos se realizem."

"Art. 20º – Os cartazes, prospectos e quaisquer outros meios de publicidade relativos a espectáculos e divertimentos públicos em curso, ou a algum dos seus elementos abrangidos pelo presente diploma, não deverão ser diversos do programa a visar e deles constarão obrigatoriamente as classificações e demais especificações que tenham sido atribuídas."

As infracções às regras constantes deste diploma são, nos respectivos artigos 22º e seguintes, punidas, enquanto contra–ordenações, com coimas de vária gravidade.

Em regulamentação do Decreto-Lei nº 396/82, a Portaria nº 242/83, de 3 de Março, explicitou o conceito de espectáculos pornográficos e reiterou a sua inclusão na classificação etária de "para maiores de 18 anos":

Capítulo I
Classificação etária

"Artigo 1º. Serão classificados para maiores de 18 anos os espectáculos pornográficos e os espectáculos que explorem formas patológicas de violência física e ou psíquica."
..................................................................................................
Capítulo II
Espectáculos pornográficos

"Art. 6º. Caracterização genérica:
Serão considerados pornográficos os espectáculos que apresentem, cumulativamente:
a) Exploração de situações e de actos sexuais com o objectivo primordial de excitar o espectador;
b) Baixa qualidade estética."

"Art. 7º. Caracterização específica:
1) Serão classificados no 1º escalão ("hard-core") os espectáculos que apresentem uma descrição ostensiva e insistente de actos sexuais realmente praticados, com exibição dos órgãos genitais;
2) Serão classificados no 2ª escalão ("soft-core") os espectáculos que apresentem uma descrição ostensiva e insistente de actos sexuais simulados."

Na década de 90, dois diplomas de âmbito geral vieram, sob o ponto de vista institucional e procedimental, respectivamente, estabelecer regras também relevantes para a regulamentação dos espectáculos.

Reportamo-nos, por um lado, ao Decreto–Lei nº 106-B/92, de 1 de Junho ([21]), que criou a Direcção-Geral dos Espectáculos e das Artes.

Deste diploma se realçará o constante dos seus artigos 2º, alíneas a) e e), e 5º:



"Artigo 2º
Atribuições
São atribuições da DGEAT:
a) Assegurar o cumprimento da legislação sobre espectáculos e sobre direitos de autor, através de acções de carácter informativo, orientador e formador;
................................................................................................
e) Assegurar a legalização dos espectáculos e divertimentos públicos, bem como promover a classificação prévia dos espectáculos, nos termos estabelecidos na legislação em vigor ([22]);
.........................................................................................".
"Artigo 5º
Competências da Comissão de Espectáculos

1 - A Comissão de Classificação de Espectáculos, adiante designada por CCE, é o órgão deliberativo em matéria de classificação de espectáculos, nos termos estabelecidos na legislação em vigor, competindo-lhe, em especial:
a) A classificação etária e qualitativa dos espectáculos;
b) A classificação dos espectáculos em pornográficos e não pornográficos e respectivos escalões;
..........................................................................................".

Aponta-se, enfim, por outro lado, o Decreto–Lei nº 315/95, de 28 de Novembro, que, para além de regular a instalação e financiamento dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos, estabeleceu o regime jurídico geral dos espectáculos de natureza artística ([23]).

Este diploma substituíu o antigo «visto» exigido para a realização de cada espectáculo, pelas razões assim expressas no respectivo preâmbulo:

"De entre as reformas introduzidas pelo diploma a que talvez mereça explicação mais detalhada é a substituição do «visto» para efeito de realização de espectáculos.
Se bem que indevidamente ligado à ideia de «censura» que caracterizou o Estado Novo – porquanto a verdade é que se trata de um instituto que vem dos primórdios da Inspecção de Teatros, criada por Almeida Garrett, e antecessora da actual Direcção-Geral de Espectáculos –, o certo é que o «visto» vinha tendo uma carga negativa e burocrática que importava suprimir.
Havia, porém, que garantir a tutela dos direitos de autor e conexos, que o instituto vinha permitindo, única finalidade, quase, que num Estado de direito se pode compreender que prossiga."

Tal «visto» passou, pois, a ser substituído pela licença de representação, destinada a assegurar a protecção dos direitos de autor e conexos relativos à representação ou execução do espectáculo em causa.

Tal propósito foi assim legislativamente configurado nos artigos 25º e 26º do diploma em referência:

"Artigo 26º
Licença de representação
1 – Os espectáculos de natureza artística só podem ser anunciados ou realizados após a emissão pela DGESP de licença de representação.
2 – A licença de representação tem por finalidade garantir a tutela dos direitos de autor e conexos devidos pela representação ou execução.
3 – A licença de representação pode abranger várias sessões."
"Artigo 27º
Procedimento para emissão da licença de representação
1– O requerimento da licença de representação deve indicar:
a) O programa do espectáculo e a sua classificação etária;
............................................................................................."
"Artigo 28º
Afixações obrigatórias

1 - No decurso dos espectáculos de natureza artística é obrigatória a afixação, em local bem visível, dos originais ou fotocópias do alvará da licença de recinto, da cópia da licença de representação e ainda da lotação do recinto.
2 - Todos os espectáculos onde haja entradas pagas ou seja exigida qualquer outra forma de pagamento, ainda que indirecta, devem ser anunciados por meio de cartazes afixados na entrada principal do recinto contendo os elementos de informação constantes das alíneas a) a d) do nº 1 do artigo anterior."

O desrespeito ao estatuído no artigo 26º, nº 1, é sancionado, na perspectiva contra-ordenacional, no artigo 43º, alínea c):
"Artigo 43º
Contra-ordenações
Constituem contra-ordenações, puníveis com as seguintes coimas;
...............................................................................................
c) De 10 000$ a 600 000$ e de 50 000$ a 6 750 000$, conforme seja praticada por pessoa singular ou colectiva, respectivamente, a violação do disposto nos artigos 20º, 26º, nº 1, 2 e 3, quando relativa a recintos referidos no artigo 20º ou com menos de 200 lugares;
................................................................................................".


6.4 - A abordagem e tratamento dos chamados espectáculos de "sexo ao vivo" por parte da actual legislação dos espectáculos é, pois, susceptível de apresentar-se, sucinta e esquematicamente, do modo seguinte:

- não existe qualquer norma que expressa e especificamente se lhes refira, em particular em termos de os proibir;

- enquanto espectáculos pornográficos do 1º escalão ("hard core") estão integrados na classificação etária de "para maiores de 18 anos", estando por isso os que não hajam atingido essa idade proibidos de aos mesmos assistir;

- conquanto a lei o não diga explicitamente, decorre da proibição relativa à assistência de menores de 18 anos a estes espectáculos, que pessoas que não hajam atingido essa idade não poderão, por maioria de razão, participar como intervenientes nos mesmos;

- não sendo os espectáculos em questão proibidos, enquanto tais, é livre a assistência aos mesmos por banda de maiores de 18 anos – importando, de qualquer forma, que a respectiva natureza de espectáculos pornográficos "hard core" esteja claramente indicada nos respectivos anúncios públicos (e, de todo o modo, sempre antes da entrada nas salas em que se realizem), para que a opção de a eles assistir seja tomada conscientemente;

- coerentemente, o teor desses anúncios não poderá, dada a sua natureza pública, frustrar, pela sua redacção ou imagens, a finalidade justificativa da restrição relativa à assistência aos espectáculos pornográficos do 1º escalão;

- as violações às regras mencionadas são sancionadas no âmbito do direito contra-ordenacional.

7.

7.1 - Procurando, para uma mais cabal apreensão do significado do regime jurídico acima resumido, determinar a valoração que o inspirou, parece acertado ponderar que se está, na essência, perante uma questão de limitação do direito à liberdade, em geral e/ou nalguma das modalidades específicas em que se concretiza.

Cabe, a este propósito, realçar que este Conselho tem considerado ([24]) que, conquanto a Constituição só admita limitações aos "direitos, liberdades e garantias" desde que nela "expressamente previstas" (artigo 18º, nº 2), são de considerar legítimos os condicionamentos previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, designadamente no respectivo artigo 29º, quando dispõe:
"Artigo 29º

1 - O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.
2 - No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.
3 – Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas."

E isto é assim, precisamente, na medida em que o artigo 16º, nº 2, da Lei Fundamental manda que "os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem."

Esta susceptibilidade de limitação dos direitos fundamentais, nomeadamente no tocante à liberdade de expressão, é, ademais, reconhecida nos mais relevantes instrumentos internacionais a este respeito e dos quais Portugal é parte.

Citem-se, de entre eles, nomeadamente, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos ([25]):
"Artigo 19º
1 - Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões.
2 - Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e ideias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha.
3 - O exercício das liberdades previstas no parágrafo 2 do presente artigo comporta deveres e responsabilidades especiais. Pode, em consequência, ser submetido a certas restrições, que devem, todavia, ser expressamente fixadas na lei e que são necessárias:
a) Ao respeito dos direitos ou da reputação de outrem;
b) À salvaguarda da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas."

Bem como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem ([26]), cujo artigo 10º, relativo à liberdade de expressão, é do seguinte teor ([27]):
"Artigo 10º
1 - Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão, que compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2 - O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do Poder Judicial."

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem interpretado o alcance das restrições admitidas pelo preceito transcrito ao exercício da liberdade de expressão por forma muito prudente (demasiado, segundo alguns), reconhecendo aos tribunais nacionais uma assinalável margem de apreciação na sua aplicação.

Fê-lo, nomeadamente, nos Acórdãos Handyside e Müller, nos quais reconheceu, em especial, não poder delinear os contornos de uma "moral europeia", aceitando por isso a interpretação que, num e noutro caso, os tribunais britânicos e suíços, respectivamente, fizeram da noção de "moral" enquanto condicionadora da liberdade de expressão ([28]).

Tanto num como noutro caso, aliás, a perspectiva adoptada pelo Tribunal Europeu levou-o a concordar com as decisões dos tribunais nacionais, no sentido de se terem por justificadas determinadas limitações à liberdade de expressão.

Anote-se, a propósito, que o Tribunal não deixou de tomar em consideração, no caso inglês, que ele respeitava à apreensão de publicações consideradas obscenas que podiam estar à disposição de crianças e, no caso suíço, que nele se apreciava o confisco temporário de quadros também qualificados de obscenos que, integrados numa exposição, estavam patentes ao público em geral.


7.2 - O legislador português actual abandonou, como pôde constatar-se, na abordagem da pornografia em geral, tanto do ponto de vista criminal como no da legislação dos espectáculos (constituído por normas reguladoras de natureza administrativa e regras punitivas contraordenacionais), o critério da limitação ou condicionamento da liberdade, na modalidade de liberdade de expressão e/ou realização sexual ([29]), por noções de tipo objectivo, tais como as de "moral pública", "pudor público", "bons costumes" e análogos ([30]).


7.3 - A actual lei portuguesa parte, em qualquer dos mencionados sectores da ordem jurídica, da ideia de que se deve reconhecer às pessoas maiores devidamente informadas a liberdade para escolherem as formas de realização da sua vida sexual.

Isto, como reflexo ou manifestação do direito geral de liberdade, firmado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, enquanto elemento típico do Estado de Direito.

A exigência do devido esclarecimento ou informação justifica, pois, que a índole dos espectáculos pornográficos deva estar claramente anunciada, para que a opção de a eles assistir seja conscientemente tomada.

E, ainda, que seja criminalmente punível, enquanto acto exibicionista, o espectáculo desse tipo que haja importunado algum dos assistentes, por essa sua natureza não ter sido capazmente avisada.


7.4 - Face à liberdade de expressão dos organizadores de espectáculos pornográficos, entende todavia o nosso legislador que sobreleva, no tocante à eventual intervenção ou assistência aos mesmos, o valor do direito à formação da personalidade sexual dos menores – faceta, afinal, dos próprios direitos à vida e à integridade moral e física garantidos nos artigos 24º, nº 1, e 25º, nº 1, da Lei Fundamental, na sua mais abrangente – e, quanto a nós, exacta - acepção.

Trata-se, bem vistas as coisas, ainda de defender a (futura) liberdade sexual dos menores, impedindo que, afectando a normal evolução da formação física, psíquica e ética destes, aquela venha a ser comprometida.

Assim, pois, é que os menores de 18 anos não podem assistir – nem, por maioria da razão, neles intervir – a espectáculos pornográficos.

E, tratando-se de menores de 14 anos, essas assistência ou intervenção são mesmo tipificadas como crimes.


7.5 - O tipo de valoração que inspira, neste sector da ordem jurídica, a legislação portuguesa, tem sido aceite também por outras reformas ocorridas recentemente noutros países.

E pode encontrar-se descrito e preconizado por diversos estudiosos da matéria.

De entre outros, citam-se, por particularmente detalhadas, as considerações propostas por Jorge Malem Seña ([31]), recomendando, nesta matéria, uma posição fundamentalmente respeitadora da autonomia individual, com restrições respeitantes à protecção dos interesses dos menores e dos eventuais assistentes de espectáculos pornográficos não devidamente alertados para a natureza destes.

8.
Não pode deixar de se ter em conta, a propósito da consideração da posição de base em que radica a actual legislação portuguesa aplicável nesta matéria, que a liberdade que ela reconhece não significa sempre, necessariamente, uma valoração positiva das acções assim permitidas.

Assim será, é certo, quando p.e. se confere a liberdade de ensino ou de associação.

Mas, outras vezes, a liberdade garantida pelo direito pode reportar-se a condutas que o direito entenda não dever proibir, por respeito para com a auto-responsabilidade das pessoas, conquanto tenha em relação àquelas uma atitude de neutralidade, ou, até, as possa ter por menos recomendáveis.

Recordam-se, a propósito, as justas palavras de Andrew Heywood ([32]) sobre a distinção entre tolerância e permissividade:

"A permissividade refere-se à actividade social consistente em permitir a outrem agir como lhe aprouver. "Permitir" significa simplesmente "deixar fazer", o que, nesses termos, é moralmente neutro, já que nenhum juízo é proferido sobre a conduta em questão. Por exemplo, permitir que se realize uma conferência, ou tenha lugar uma reunião ou uma manifestão, não implica aprovação ou reprovação do que aí se diga faça; a conferência, a reunião ou a manifestação não são, nem "boas", nem "más".
..................................................................................................

A tolerância assemelha-se à permissividade na medida em que constitui uma recusa a interferir, constranger ou controlar a conduta ou convicções de outrem.

Mas difere da permissividade na medida em que essa não interferência existe apesar do facto de a conduta ou convicções em questão merecerem a reprovação ou, simplesmente, o desagrado de quem toma tal atitude".

O condicionamento etário e a exigência de prévio e claro anúncio da natureza dos espectáculos pornográficos a realizar, estabelecidos na lei portuguesa, quer na perspectiva penal, quer na da regulamentação dos espectáculos, sugerem que o legislador – mesmo o actual – quando e na medida em que consagra a esse respeito uma área de liberdade, o faça, não tanto por razões de aprovação ou permissividade, mas de tolerância.

9.

Como pôde constatar-se, os espectáculos de “sexo ao vivo” não se encontram, enquanto tais, especificamente regulados, nem na lei penal, nem na legislação referente aos espectáculos públicos.

O seu tratamento, do ponto de vista criminal, é função da respectiva inclusão no conceito de “actos exibicionistas” (artigos 171º e 172º do Código Penal), bem como, se estiverem em causa menores de 14 anos, nas outras situações típicas integradas, no artigo 172º, no “abuso sexual de crianças”.

Do ponto de vista da legislação dos espectáculos, o seu regime jurídico decorre da respectiva inserção na classificação de espectáculos pornográficos do 1º escalão, para maiores de 18 anos.

A índole extrema destes actos justifica, de qualquer forma, a nosso ver, que, para arredar a eventual aplicação do artigo 171º do Código Penal, as afixações obrigatórias relativas a tais espectáculos contenham, para além da respectiva classificação, a menção expressa à sua natureza – embora sempre com o cuidado, como antes se preconizou, de não comprometer, pela sua redacção ou imagens, o objectivo do regime restritivo da assistência aos espectáculos pornográficos de 1º escalão.

De outro modo, sempre poderá haver assistentes que, não avisados desse facto, possam sentir-se por esses espectáculos “importunados”.

Isto, naturalmente, para além do particular peso que essa mesma natureza poderá ter em sede de medida das punições penais ou contra-ordenacionais que – por violação de alguma das regras antes consideradas – possam ter lugar.

10.


Em conclusão:

1ª - Os espectáculos de “sexo ao vivo” não são, enquanto tais, ilegais, desde que essa sua natureza se encontre claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias;

2ª - A ausência ou insuficiência desse anúncio em relação a um espectáculo dessa índole pode dar azo ao preenchimento do tipo de crime previsto no artigo 171º do Código Penal, por parte do(s) respectivo(s) promotore(s), se alguém se sentir por aquele “importunado”;

3ª - Independentemente do circunstancialismo indicado na conclusão anterior, a intervenção ou assistência de menores de 14 anos a espectáculos de “sexo ao vivo” perfaz o tipo de crime de “abuso sexual de crianças” previsto e punido no artigo 172º do Código Penal;

4ª - De qualquer modo, os menores de 18 anos não podem assistir a espectáculos de “sexo ao vivo”, dado que estes cabem na classificação de espectáculos pornográficos do 1º escalão (“hard core”), para maiores daquela idade;

5ª - A violação da proibição enunciada na conclusão anterior assume natureza contra-ordenacional.




VOTOS


Eduardo de Melo Lucas Coelho - Vencido pelas razões adiante sumariadas.

1. O presente parecer tem por objecto o problema de saber se são lícitos, se são ou não proibidos por lei, espectáculos de sexo-ao-vivo que vêm sendo realizados no velho Cinema Odeon, uma das salas tradicionais da arte cinematográfica da cidade.
Extrai-se com efeito do processo em breve relance que a Parisiana, Lda., sociedade por quotas proprietária do imóvel, requereu à Direcção-Geral dos Espectáculos o encerramento do Cinema, alegando precisamente que as referidas exibições, aí promovidas por outra sociedade comercial, a Exifilmes, Lda., «ofendem profundamente a moral de todos os sócios da Requerente, uma vez que o Cinema Odeon sempre se caracterizou ao longo de várias décadas por ser um cinema de cariz familiar, estando a sua reputação a ser destruída pela sociedade Exifilmes».
Tal a origem da consulta.
O conteúdo das exibições sub iudicio não vem factualmente descrito nos elementos enviados ao Conselho Consultivo, mas a Direcção-Geral refere tratar-se de um «tipo de espectáculos, em que, ao vivo e em directo, os espectadores assistem aos mesmos actos que podem ser visionados em filmes pornográficos», acrescentando: «Não nos restam dúvidas de que os espectáculos em causa, realizados ao vivo e em directo, chocam, ‘em grau elevado, os sentimentos gerais de moralidade sexual’, que vão no sentido da privacidade dos respectivos actos»[1].
O parecer conclui, porém, nuclearmente que os questionados «espectáculos de ‘sexo ao vivo’ não são, enquanto tais, ilegais»[2].

2. A solução a que assim se chegou funda-se, por um lado, no regime emergente da legislação referente aos espectáculos, analisada no ponto 6.
E, por outro lado, na liberdade das «pessoas maiores devidamente informadas» de escolherem «as formas de realização da sua vida sexual» bem como na «liberdade de expressão dos organizadores de espectáculos pornográficos.
Acerca do segundo fundamento já o meu Ex.mo Colega Dr. Henriques Gaspar sumariou ideias fundamentais que mostram não se tratar aqui de um problema de liberdade tal como o parecer a equaciona. Privilegiaria, por conseguinte, topicamente o primeiro aspecto da fundamentação.

3. Da análise dos diplomas respeitantes aos espectáculos extrai o parecer uma ilação: «os espectáculos de ‘sexo ao vivo’ não se encontram, enquanto tais, especificamente regulados» (ponto 9, primeiro parágrafo); «não existe qualquer norma que expressa e especificamente se lhes refira, em particular em termos de os proibir» (ponto 6.4, primeiro travessão).
Seja, todavia, em termos de proibição, seja de permissão, o certo, portanto, é que a legislação dos espectáculos não prevê nem regula especificamente os denominados espectáculos de sexo-ao-vivo.

3.1. Apesar disso, o parecer logo os classifica no 1.º escalão dos espectáculos pornográficos tipificados em geral no n.º 1 do artigo 7.º da Portaria n.º 242/83, de 3 de Março (ponto 6.3).
E tanto basta para que o sexo-ao-vivo passe a dispor de um estatuto de legalidade que vem a compreender os diplomas de direito dos espectáculos sucessivamente editados, desde o Decreto-Lei n.º 106/92, de 1 de Junho, até ao Decreto-Lei n.º 315/95, de 28 de Novembro, e seus condicionalismos contra-ordenacionalmente sancionados.
Falta, contudo, demonstrar que aquela tipificação – como justamente observa o meu Ex.mo Colega Dr. Henriques Gaspar – foi concebida em termos de abranger também as próprias exibições de sexo-ao-vivo em presencial e actual imediação, com implicações qualitativas, consequentemente, de plano diferente e de grau muito diverso das descrições aludidas no citado artigo 7.º, veiculadas habitualmente através de suportes video.
Carece, pois, de justificação plausível a classificação das exibições sub iudicio em qualquer dos escalões do citado artigo 7.º.
Uma tal metodologia dá inclusivamente lugar a soluções inaceitáveis do mesmo ponto de vista do direito dos espectáculos que serviu de fundamento normativo à conclusão pela legalidade dessas exibições.
Com efeito, na lógica do parecer os espectáculos de sexo-ao-vivo, dentro dos «espectáculos e divertimentos públicos» provavelmente teriam que ser classificados como espectáculos de natureza teatral, uma das modalidades, por sua vez, dos espectáculos de natureza artística previstas no n.º 2 do artigo 4.º do referido Decreto-Lei n.º 315/95 [alínea d)], – diploma legal de espectáculos o mais recente trazido à colação pelo parecer, que, «para além de regular a instalação e funcionamento dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos, estabeleceu o regime jurídico geral dos espectáculos de natureza artística» (ponto 6.3).
E a ser assim os espectáculos em questão ficariam além do mais sujeitos à emissão pela DGESP de licença de representação, a qual, sublinhe-se, «tem por finalidade garantir a tutela dos direitos de autor e conexos devidos pela representação ou execução» (artigo 26.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Decreto-Lei).
No entanto, esses espectáculos consistem - segundo a classificação do parecer no 1.º escalão do artigo 7.º, n.º 1, da Portaria n.º 242/83 - na exibição «ostensiva e insistente de actos sexuais realmente praticados», «com o objectivo primordial de excitar o espectador» [artigo 6.º, alínea a)].
Será porventura aceitável qualificar tais exibições como «criações intelectuais do domínio literário, científico ou artístico» (cfr. os artigos 1.º e 2.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos) que possam ser consideradas «obras» protegidas por este Código?

3.2. Sem prescindir, abstraia-se por momentos destas consequências.
Como observa a Direcção-Geral dos Espectáculos no processo (cfr. o ponto 1. do parecer), a consulta versa sobre matéria sensível, que choca os sentimentos de privacidade e intimidade de cada um.
Daí não se segue, porém, que o seu tratamento jurídico possa ser um puro reflexo de sensibilidades pessoais, devendo a temática ser ponderada estritamente à luz do direito aplicável. E para assim atingir uma solução que seja jurídica não pode ademais o intérprete dispensar-se de um certo grau de exigência que lhe permita tomar em conta todas as normas fundamentais do ordenamento realmente convocadas.
Ora, se no macro-cosmos da legislação dos espectáculos não se encontra norma que contemple as exibições de sexo-ao-vivo enquanto tais, parece então que será caso de adoptar outro método. Um método que, observando analiticamente essas exibições, permita recortar o direito aplicável aos seus elementos componentes.
Nesta óptica, os espectáculos em questão são protagonizados por pessoas; dirigem-se imediatamente a um certo público constituído por pessoas; implicam o aluguer de instalações; contratação de pessoal; venda de ingressos.
Tudo elementos incindivelmente ligados às exibições, as quais se tornariam verdadeiramente impensáveis na falta deles.
Estão, pois, em causa os direitos de personalidade; a teoria e os requisitos do objecto do negócio jurídico; a incidência de valores axiais da ordem jurídica, tais como a dignidade da pessoa humana e a solidariedade social.
E todo este complexo de temas envolvidos nas exibições de que trata a consulta concita a aplicação de princípios e preceitos da Constituição e de preceitos e princípios que, se não possuem formalmente natureza constitucional, se apresentam com vocação de aplicabilidade à generalidade dos sectores do ordenamento.

3.3. Assim, os direitos da personalidade, e a dignidade da pessoa humana, um dos pilares fundamentais da ordem jurídica cuja essência axiológica nas suas relações com a liberdade bem sintetiza a declaração de voto acima citada.
O frontispício da Constituição (artigo 1.º) institui o valor da dignidade humana em base fundamental do Estado e a doutrina constitucionalista densifica-o como «valor autónomo e específico inerente aos homens em virtude da sua simples pessoalidade», considerando fundamento da República o «homem como sujeito e não como objecto dos poderes e relações de domínio» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA).
Trata-se de «uma referência unificadora» dos direitos humanos que se concebe, numa perspectiva ética, «considerando sempre a pessoa do outro também um fim em si» (SOUTO DE MOURA).
Justamente nesta dimensão de solidária alteridade que define ético-existencialmente o género humano – e pela qual o homem sofre com as dores do seu semelhante e rejubila com as suas alegrias – se compreende a dignidade da pessoa como bem «fora do comércio e insusceptível de renúncias individuais» (cfr. a mesma declaração de voto), e a extensão da indisponibilidade a «manifestações fundamentais da essência do ser humano» no domínio íntimo da afectividade.
E por isso se compreende igualmente que a exploração comercial da sexualidade, coisificada nas exibições de sexo-ao-vivo, um tráfico iníquo de fragilidades humanas, constitua exercício de manifesto desrespeito pela dignidade da pessoa e pelos direitos de personalidade e chegue a chocar até quem se distancia do espectáculo - como de resto sucedeu na origem da consulta e pode acontecer a qualquer transeunte que tome conhecimento da sua natureza através das «respectivas afixações obrigatórias».
Observe-se precisamente que entre os direitos da personalidade tutelados pela ordem jurídica sobressaem no presente contexto: o corpo e o espírito, ou seja, a «integridade/personalidade física» e a «integridade/personalidade moral» de que falam o artigo 25.º, n.º 1, da Constituição e o artigo 70.º, n.º 1 do Código Civil; e a «intimidade da vida privada» plasmada respectivamente nos artigos 26.º, n.º1, e 80.º dos mesmos diplomas.
Direitos aos quais compete uma «área de reserva» que os coloca ao abrigo de intromissões de quem quer que seja e mesmo na «indisponibilidade» do próprio titular – «também aqui, como no drama de Antígona, a ética desses direitos não reside no consenso da colectividade» (LEITE DE CAMPOS).

3.4. Por fim, os preceitos da Parte Geral do Código Civil sobre o negócio jurídico dizem-nos que é nulo o negócio cujo objecto seja contrário à lei, e nulo o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (artigo 280.º).
São, pois, nulos, salvo melhor entendimento, todos os negócios há momentos exemplificados de tal forma ligados às exibições de sexo-ao-vivo que a realização destas não pode conceber-se sem eles.

3.5. Em resumo. O parecer extraiu da análise da legislação sobre espectáculos a ilação de que «os espectáculos de ‘sexo ao vivo’ não se encontram, enquanto tais, especificamente regulados».
Em face desta omissão impunha-se, contudo, ponderar a conformidade dessas exibições com os princípios e a normação que vêm de se sumariar.
Creio bem que dessa ponderação só poderia resultar uma conclusão de sentido oposto ao da conclusão 1.ª

4. Também nesta óptica não se trata, pois, de uma questão de liberdade e de limitação da liberdade na vertente da sexualidade, tal como vem equacionada nos pontos 7.1 a 7.4, sendo a liberdade um posterius dependente do problema prévio de saber se o sistema jurídico admite as questionadas exibições.
A propósito, é, aliás, pertinente a interrogação: como poderia estar em equação a «liberdade de expressão dos organizadores de espectáculos pornográficos» que o parecer afirma no ponto 7.4 ?
Recorde-se apenas que os espectáculos de sexo-ao-vivo que suscitaram muito legitimamente as dúvidas da consulta são organizados e levados a efeito por uma sociedade comercial por quotas.
Ora, não penso que uma sociedade comercial possa ter por objecto social a exploração de semelhantes exibições ou de qualquer modo dedicar-se a essa prática.
Em primeiro lugar, porque tal liberdade, entendida como uma espécie de liberdade de expressão sexual, seria algo específico da personalidade singular, como tal desconsiderada pela Constituição (artigo 12.º, nº 2) e em sintonia excluída da capacidade de gozo das sociedades comerciais (artigo 6.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais).
Segundo, porque os requisitos do objecto do negócio jurídico definidos no artigo 280.º do Código Civil – e no caso, em especial, a (des)conformidade com a ordem pública e os bons costumes das exibições de sexo-ao-vivo – valem evidentemente para o contrato de sociedade civil e, por aplicação subsidiária imposta pelo artigo 2.º daquele outro Código, para as sociedades comerciais.
Finalmente, admitindo como provável que a realização de semelhantes exibições não constitui objecto estatutário da sociedade, aspecto que dificilmente escaparia ao crivo notarial de legalidade, o certo é que a sua prossecução reiterada tem como consequência a extinção da sociedade nos termos do artigo 182.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil – relativo às associações de fim não lucrativo, mas aplicável às sociedades por força do artigo 157.º, do mesmo diploma –, segundo a qual as associações se extinguem por decisão judicial «quando o seu fim seja sistematicamente prosseguido por meios ilícitos ou imorais».



[1] A Direcção-Geral dos Espectáculos pondera ainda, a propósito, a eventual qualificação dos mesmos espectáculos como crime, questão tratada pelo parecer autonomamente muito em sintonia com as teses acolhidas no parecer n.º 20/99, das quais discordei, e que por isso me dispenso de aqui abordar.
[2] «Desde que essa sua natureza se encontre claramente anunciada nas respectivas afixações obrigatórias», precisa a conclusão 1.ª .




(António Silva Henriques Gaspar) - Votei o parecer, com a seguinte declaração:
1. Aceito que a solução encontrada no domínio da estrita conjugação (positivista) das regulamentações disponíveis, constitua uma solução plausível da questão colocada.
Todavia, no espaço de alguma indeterminação com que o intérprete igualmente se defronta, outras perspectivas seriam aceitáveis, e com elas, diversa solução poderia igualmente ser possível.
Tal perspectiva, se outras consequências não tiver, pode, pelo menos, suscitar a necessidade ou conveniência de uma intervenção legislativa esclarecedora.
Limitar-me-ei apenas a umas breves notas, impostas pela natureza de uma declaração de voto, necessariamente tópica.
A primeira é a de que o tipo de actuação cuja legalidade vem questionada (sobretudo quanto à intervenção da Administração no procedimento de licenciamento enquanto "espectáculo") poderá, também numa interpretação igualmente aceitável, não ter sido pensado pelo legislador quando interveio sobre a regulamentação das condições de apresentação e exibição dos espectáculos qualificados como 'pornográficos'. Estes, com efeito, pela leitura histórica e evolutiva das intervenções legislativas, sempre foram considerados enquanto constantes de suportes cinematográficos, e, por outro lado, não assumirão, fora deste suporte, a dimensão que permita integrá-los no conceito (que é necessariamente importado do mundo da respectiva actividade e há-de ter o sentido que aí lhe for próprio) de espectáculos de teatro, que são, a par dos divertimentos públicos, as categorias às quais se refere a previsão legal.

2. Mas também uma outra perspectiva de abordagem mereceria, a meu juízo, ter sido ponderada.
A Constituição da República considera, no seu artigo 1º, como princípio fundador e estruturante da República, a dignidade da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana, noção central e princípio material que integra o bloco de constitucionalidade, apresenta hoje, enquanto conceito com o seu próprio espaço, a sua história e a sua ordem fundadora, uma radical novidade, num espaço conceptual que se situa num lugar e num plano diversos dos direitos do homem e da concepção centrada sobre o indivíduo. A dignidade da pessoa humana, enquanto apenas ínsita nos direitos do homem, não é já suficiente para compreender toda a dimensão (a nova dimensão, ou melhor, a dimensão redescoberta) do conceito: a dignidade exige a liberdade, mas a liberdade não é toda a dignidade. (Cfr., v. g., Bernard EDELMAN, "La dignité de la personne humaine, un concept nouveau", in "La Dignité de la Personne Humaine", sob a direcção de Marie-Luce Pavia e Thierry Revet, ed. Economica, pág 25 e segs.).
A dignidade da pessoa humana situa-se, pois, num outro plano, perspectivando de outra maneira os princípios matriciais dos direitos do homem, sejam a liberdade ou as várias formas de expressão e livre desenvolvimento da personalidade de cada um.
A dignidade da pessoa humana, enquanto centrada no paradigma da Humanidade (do género humano) e não já no plano da liberdade de cada um (do indivíduo), introduz uma matriz radicalmente diferente, não se referindo já ao indivíduo enquanto ser livre, mas ao indivíduo enquanto pertencente ao género humano.
Esta perspectiva, saindo do plano individual e atomístico da liberdade, para atender à consideração do homem e da mulher enquanto pertencentes ao género humano, coloca a dignidade como valor fundador e federador do todos os valores, fora do comércio e insusceptível de renúncias individuais (cfr., v. g., a decisão de referência do Conselho de Estado francês, de 27 de Outubro de 1995, que considerou o respeito da dignidade humana como uma componente essencial da ordem pública, entendendo legítima, com este fundamento, a proibição de um divertimento público que consistia no lançamento, como projéctil, de um anão, a curta distância sobre um colchão pneumático).
Beàtrice MAURER (Le principe de respect de la dignité humaine et la Convention europènne des droits de l´homme”, ed. La documentation française, 1999, pág. 464 e segs.) aponta, por exemplo, um critério, físico e de autohumilhação perversa quando alguém se reifica no sentido de fazer de si mesmo uma coisa, um objecto. “Le droit de disposer de soi-même n’éxiste donc pas quand il s’agit de disposer de sa dignité fondamentale. La dignité marque à la fois la singularité de chaque être et son appartenance à la communauté humaine.”

3. O tipo de actuação, que vem referido como espectáculo ou divertimento público, não corresponde, por si, a qualquer manifestação da livre expressão de um conteúdo próprio do desenvolvimento livre da natureza e da personalidade do homem.
Diversamente, ao colocar no plano de um suposto espectáculo ou divertimento público uma das manifestações fundamentais da essência do ser humano, pode afectar de modo determinante a consideração e o sentido do homem e da mulher, não como indivíduos (aqueles concretos seres humanos), mas enquanto portadores de elementos essenciais ao género humano, e assim afectar o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Poder-se-á dizer, porém, que a lei aceita (tolera) e integra na ordenação administrativa, qualificando-os e classificando-os em regulamento, os espectáculos pornográficos.
Todavia, entre a "descrição" que a lei refere - o meter em cena - e o caso concreto, há uma diferença evidente de grau, que pode ser susceptível de transferir o essencial do plano das liberdades para a plano do respeito, constitucionalmente imposto, pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Numa perspectiva crítica, construída sobre concepções indivíduocêntricas, dir-se-á que assim se afecta a liberdade de cada um, ou que se pretende proteger o indivíduo contra si próprio, numa visão ancorada, por detrás das fórmulas, em concepções moralistas ou tributárias do political correctness.
Semelhante crítica coloca-se, porém, naquela perspectiva que fica aquém do entendimento do conceito de dignidade humana como conceito operacional, e - o que mais é - como federador de todos os direitos, constitucionalmente fundador e susceptível de juridicização, possibilitando a síntese, como Grundprinzip, entre ordem pública e liberdades individuais.
Nesta base de compreensão das coisas, a Administração poderia (deveria?) encontrar fundamento para recusar a autorização, como espectáculos públicos, de actividades como a que vem referida.


NOTAS


[1]) Informação nº 65-GA/DGESP, de 25 de Agosto de 1995.
[2]) Publicado mediante autorização legislativa conferida pela Lei nº 35/94, de 15 de Setembro.
[3]) A alteração introduzida pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio, não releva para o objecto deste parecer.
[4]) Neste sentido Maia Gonçalves, "Código Penal Português - Anotado e comentado", 8ª edição, Coimbra, 1995, pág. 642, que opina que "cometerá este crime quem pratica a cópula ou outro acto sexual de relevo perante quem fica importunado com tais actos".
[5]) Diversamente do anterior Código Penal de 1886, cujo artigo 420º punia o ultraje à moral pública nos termos seguintes:
"Artigo 420º
O ultraje à moral pública, cometido publicamente por palavras, será punido com prisão até três meses e multa até um mês.
§ único – Se for cometido este crime por escrito ou desenho publicado, ou por outro qualquer meio de publicação, a pena será a de prisão até seis meses e multa até um ano."
[6]) Coimbra, 1995, pág. 5.
[7]) "Notas sobre os crimes sexuais no projecto de revisão do Código Penal de 1982 e na Proposta de Lei nº 92/VI", "Revista do Ministério Público", ano 15, nº 59, Lisboa,1994, pág. 30.
[8]) "Comentário Conimbricense ao Código Penal", Parte Especial, Tomo I, págs. 541, 542.
[9]) "Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal", 2ª edição, Coimbra, 1998, pág. 81
[10]) "Espectáculo" está correlacionado, como é sabido, com o latim "spectare" ("olhar, observar, contemplar" – V. Dicionário da Língua Portuguesa de José Pedro Machado).
[11]) Op. cit., págs. 546-547.
[12]) "Código Penal Anotado", 3ª edição, Lisboa, 2000, II volume, pág. 439.
[13]) Em boa verdade, parece que a valoração subjacente ao artigo 172º do Código Penal português também deveria ter levado a incluir nele os actos praticados perante incapazes. Admite-se que o nosso legislador não tenha optado por essa solução, tendo em conta a dificuldade de consciência de tal situação por parte do agente.
[14]) "Le sexe et la loi", Paris, 1996, pág. 134.
[15]) Aliás só revogado, totalmente, em 1995 – apesar de entretanto derrogado quanto a vários dos seus aspectos, nomeadamente o que releva para o presente parecer.
[16]) Antecedida pela Comissão de Censura aos Espectáculos.
[17]) Bem como as de Recurso e de Leitura e Espectáculos para Menores.
[18]) Entretanto criada pelo Decreto-Lei nº 652/76, de 31 de Julho.
[19]) Mencionam-se, em particular: Decreto-Lei nº 653/76, de 31 de Julho; Portaria nº 467/76, da mesma data; Decreto-Lei nº 94/79, de 20 de Abril; Decreto Regulamentar nº 15/80, de 21 de Maio; Decreto Regulamentar nº 32/80, de 29 de Julho; Decreto Regulamentar nº 11/82, de 5 de Março.
[20]) Alterado parcialmente pelo Decreto-Lei nº 116/83, de 24 de Fevereiro, mas sem interesse directo para o objecto deste parecer.
[21]) Alterado, sem incidência nas questões em apreciação, pelo Decreto–Lei nº 6/94, de 12 de Janeiro.
[22]) Esta na redacção dada pelo Decreto–Lei nº 315/95, de 28 de Novembro.
[23]) Nessa medida revogando, totalmente (artigo 51º), a vetusta regulamentação constante dos Decretos-Leis nºs 42660, 42661, 42663 e 42664, todas de 20 de Novembro de 1959.
[24]) Vejam-se, nomeadamente, os pareceres nºs 27/82, 23/86, 24/87 e 23/95 (in "Pareceres da Procuradoria-Geral da República", volume I, págs. 330-331).
[25]) Aprovado para ratificação pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho.
[26]) Rigorosamente: Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, aprovada para ratificação pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro.
[27]) Na redacção dada pelo Protocolo nº 11, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 21/97, de 3 de Maio, e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 20/97, da mesma data.
[28]) V., a propósito, os comentários de Velu e Ergec, "La Convention Europeénne des Droits de L'Homme", Bruxelas 1990, págs. 620-622; e Pettiti e outros, "La Convention Européene des Droits de L'Homme", Paris, 1995, págs. 394-397.
[29]) Embora alguns possam, porventura, pretender sustentá-lo, dificilmente se poderá aceitar que aqui esteja em causa - designadamente no concernente aos espectáculos de "sexo ao vivo" - a liberdade de criação artística ou cultural consagrada no artigo 42º da Constituição.
[30]) Diversamente, aliás, do que sucede noutros países, nomeadamente os de cultura anglo-–saxónica. V., a confirmá-lo, por todos: Saunders, "Violence and obscenity", Londres, 1996; Hawkins e outro, "Pornography in a free society", Cambridge, 1988; C.Gane, "Sexual offenses", Edinburgh, 1992; Williams, "The meaning of indecency", in "Legal Studies", vol. 12, nº 1, 1992.
[31]) "Acerca de la pornografia", in "Revista del Centro de Estudios Constitucionales", nº 11, 1992, págs. 234-236: "Lo que interesa aqui sobremanera es determinar qué actitud debe adoptar el Estado en una democracia respecto de la pornografía. La solución a esta cuestión há oscilado historicamente entre dos versiones extremas. Una que sostiene que la pornografía no debe ser limitada en absoluto y que, en consecuencia, no estaría justificada ninguna censura o regulación. Y outra que afirma que lo éticamente ordenado es la prohibición o censura total del material pornográfico. La primera versión adolece de dos inconvenientes fundamentales. Primero, no da respuesta adecuada al problema de la vinculación entre los niños y la pornografía. Segundo, no toma en consideración la situación de las "audiencias cautivas".
El caso de las "audiencias cautivas" plantea un problema similar – aunque el deber del Estado respecto de los niños sea muchísimo mayor que respecto de los adultos –. Una falta de regulación total de la pornografía provocaría la comisión de una ofensa innecesaria hacia quienes voluntariamente no desean verse vinculados a materiales pornografícos, pero que se vem "atrapados" por ellos dado su manifiesta esposición en lugares públicos. El respeto por la autonomía de las personas exige el respeto de los planes de vida de cada cual y, por lo tanto, la no imposición de lo indeseado.
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La función del derecho es, en cambio, según la tradición liberal, crear las condiciones necesarias para el florecimiento de la individualidad. Esto se hace posible, en el ámbito político, deseñando instituciones que garanticen el orden público, prohíban ataques a la vida o bienes de las personas o impidiendo acciones que generen estados mentales como, por ejemplo, el de un temor permaniente. La noción de daño en este contexto há de ser entendida por referencia a la necesidad de preservar estas condiciones para alcanzar aquel objetivo. Nada más puede ser jurídicamente prohibido. Al prohibir totalmente la pornografía, el Estado restringe ilegítimamente la autonomía de las personas reduciendo las alternativas de elección posibles y, por lo tanto, su próprio plan de vida. Si en el caso anterior el Estado actuaba inmoralmente por defecto, en este caso su comportamiento es éticamente inadmisible al intervenir en exceso."
[32]) "Political Theory", 2ª ed., Londres, 1999, págs. 265-267: “Permissiveness refers to a social attitude in which permission in given for people to act as they think best. To 'permit' means simply to allow, and in that sense it is morally neutral since no judgement is being made about the behaviour in question. For example, to give permission for a speech to be made, a meeting to be held or a demonstration to take place, implies neither approval nor disapproval of what is to be said or done; the speech, meeting or demonstration are neither "good" nor "bad".Toleration resembles permissiveness in that it is a refusal to interfere with, constrain or chek the behaviour or beliefs of others. However, it differs from permissiveness in that non-interference exists in spite of the fact that the behaviour and beliefs in question are dispproved of, or simply disliked".