Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002105
Parecer: P000542002
Nº do Documento: PPA26092002005402
Descritores: DEFICIENTE DAS FORÇAS ARMADAS
POLÍCIA JUDICIÁRIA
ACIDENTE EM SERVIÇO
INCAPACIDADE GERAL DE GANHO
RISCO AGRAVADO
Livro: 00
Numero Oficio: 2129
Data Oficio: 05/28/2002
Pedido: 05/29/2002
Data de Distribuição: 06/12/2002
Relator: MÁRIO SERRANO
Sessões: 01
Data da Votação: 09/26/2002
Tipo de Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Sigla do Departamento 1: MJ
Entidades do Departamento 1: MIN DA JUSTIÇA
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 11/02/2002
Privacidade: [02]
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOSÉ RODRIGUES
Área Temática:DIR ADM* DEFIC FFAA
Ref. Pareceres:P001702001Parecer: P001702001
P001672001Parecer: P001672001
P001162001Parecer: P001162001
P000992001Parecer: P000992001
P005202000Parecer: P005202000
P002422000Parecer: P002422000
P000921998Parecer: P000921998
P000011997Parecer: P000011997
P000451989Parecer: P000451989
P000221988Parecer: P000221988
P000801987Parecer: P000801987
P000551987Parecer: P000551987
P000871978Parecer: P000871978
P001221976Parecer: P001221976
Legislação:DL 275-A DE 09/11/2000 ART2 ART89 N1 N2 N3; DL 43 DE 20/01/1976 ART1 N1 N2 ART2 N1 A B N2 N3 N4 ; L 46 DE 16/06/1999 ART1 N3; RECT DE 21/11/1977; DL 351 DE 13/05/1976 ART1 ; DL 295-A DE 21/09/1990 ART105 N1; DL 498 DE 09/12/1972 ART54 N3; RECT 16D DE 30/11/2000; DL 103 DE 25/08/2001; L 5 DE 27/01/1999 ART 2 B; DL 231 DE 26/06/1993 ART2 A)
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª) Um acidente sofrido por um funcionário da Polícia Judiciária no exercício das suas funções pode corresponder a uma actividade com risco agravado enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, ex vi do nº 1 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro, desde que as condições do caso permitam concluir que se verificou um circunstancialismo gerador de perigo concreto que ultrapasse claramente o risco geral que é próprio das funções policiais;

2ª) Tendo em conta os elementos de facto disponíveis no processo relativamente ao acidente de que foi vítima o requerente, (...), Inspector da Polícia Judiciária, em 27 de Abril de 1989, no lugar de Touguinha-Vila do Conde, não é possível afirmar a existência de um risco agravado equiparável às situações de serviço de campanha ou equivalente, tal como definido na conclusão anterior.

Texto Integral:

Senhora Ministra da Justiça,
Excelência:


I


Dignou-se Vossa Excelência solicitar à Procuradoria-Geral da República a emissão de parecer do Conselho Consultivo relativamente ao pedido de concessão do estatuto de equiparado a deficiente das Forças Armadas formulado por (...), Inspector da Polícia Judiciária, em serviço na Directoria do Porto, ao abrigo do nº 2 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro.

Cumpre emiti-lo.


II


1. Em requerimento de 13 de Março de 2002, (...) alegou, designadamente, o seguinte:

«1 – Em 27 de Abril de 1989, quando integrava um grupo de elementos da Secção de Homicídios da Directoria do Porto, no âmbito de uma investigação a cargo da mesma, num acampamento instalado no lugar da Touguinha-Vila do Conde, na detenção de um indivíduo suspeito de participação na prática de um crime de homicídio consumado, foi atingido com dois tiros de caçadeira de canos serrados, resultando ferimentos graves nos membros inferiores e cabeça, cujo inquérito decorreu no Tribunal Judicial de Vila do Conde (Inquérito nº 518/98-J).
2 – Em consequência foi-lhe atribuída, por Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, a incapacidade parcial permanente de 68%, nos termos da respectiva Tabela Nacional de Incapacidades.
(...)»

Em conformidade, requereu o «reconhecimento do respectivo estatuto de equiparado a deficiente das Forças Armadas, nos termos do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000 (LOPJ), para os efeitos contidos no Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro».


2. Sobre esse requerimento recaiu a Informação de Serviço nº 44/DRH/SP/2002.04.01, subscrita por Chefe de Sector do Departamento de Recursos Humanos da Polícia Judiciária, em que se formularam os seguintes considerandos:

«1. O regime legal vigente para os deficientes das Forças Armadas e das forças de segurança é aplicável ao pessoal dirigente e demais funcionários da Polícia Judiciária, com as devidas adaptações, de acordo com o disposto no nº 1 do artº 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro.
2. O Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, estabelece no seu artigo 1º os pressupostos da caracterização de deficiente das Forças Armadas.
3. O referido funcionário integrava um grupo de elementos da Secção de Homicídios da Directoria do Porto que, em 27.04.1989, se deslocou a um acampamento, instalado no lugar de Touguinha, Vila do Conde, a fim de proceder à detenção de um indivíduo suspeito de participação na prática de um crime de homicídio consumado.
4. Nesta operação o Sr. Inspector (...) foi atingido por tiros de caçadeira nos dois membros inferiores e na cabeça.
5. O referido acidente foi caracterizado como ocorrido em serviço, por despacho do Ex.mo Sr. Director-Geral, de 89.5.16 (anexo I).
6. O circunstancialismo do acidente consta da informação de serviço de 89.04.27 (anexo II):
7. De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 do artº 2º do diploma legal atrás citado, é fixado em 30% o grau de incapacidade geral de ganho mínimo para o efeito da definição de deficiente das forças armadas e sua aplicação.
8. Tendo sido submetido a uma Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, foi-lhe atribuído o grau de desvalorização de 68%, comunicado a esta Polícia através do ofício nº 121JM6376571, de 1993.07.20 (anexo III).
9. Assim, parece-nos resultar inequivocamente que o acidente se deu em circunstâncias ou condições de que resultou risco agravado, conforme previsto no nº 4 do artº 2 do citado Decreto-Lei.
10. Nestes termos, caso assim seja entendido superiormente, parecem reunidos os requisitos legais para que o referido funcionário tenha direito a beneficiar do Estatuto de Equiparado a Deficiente das Forças Armadas, nos termos do artº 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro, devendo o presente expediente ser remetido a Sua Excelência o Ministro da Justiça, entidade com competência para o referido reconhecimento do estatuto.»

Esta informação de serviço mereceu a concordância da Directora do Departamento de Recursos Humanos da Polícia Judiciária, bem como do Director-Nacional Adjunto, que ordenou a remessa do expediente ao Ex.mo Ministro da Justiça.


3. Já no Ministério da Justiça, foi elaborada, por assessora da Auditoria Jurídica, Informação datada de 14 Maio de 2002, que obteve a concordância do respectivo Auditor Jurídico, na qual, depois de referenciada a legislação pertinente, se discorreu nestes termos:

«Não se nos suscita qualquer dúvida que a situação do requerente, dado o circunstancialismo do acidente, que se deu em condições de que resultou risco agravado, envolvendo um comportamento que ultrapassa manifestamente os padrões normais e mesmo os limites do dever funcional, e verificando-se uma incapacidade parcial permanente de 68%, satisfaz o condicionalismo para lhe ser reconhecido o Estatuto de Equiparado a Deficiente das Forças Armadas, nos termos do artº 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro, com todas as consequências legais.»

Concluiu-se com a afirmação de que «poderá ser ouvida a Procuradoria-Geral da República, especialmente habilitada para a qualificação destes casos».

Vossa Excelência acolheu a sugestão formulada.


4. Os documentos que acompanham o pedido de parecer fornecem os seguintes elementos de facto:

a) Em informação de serviço da Directoria do Porto da Polícia Judiciária, datada de 27 de Abril de 1989 e lavrada no processo com o nº 20761/89, relata-se que «esta manhã, no decurso de diligências levadas a cabo por funcionários desta Polícia, na comarca de Vila do Conde e junto de um acampamento de ciganos, o agente de 1ª classe Sr. (...) foi atingido por disparo de arma de fogo que lhe provocou graves ferimentos e que determinou o seu internamento no Hospital Geral de Santo António desta cidade»;

b) Essa ocorrência deu lugar ao levantamento de um auto de notícia, datado de 28 de Abril de 1989, no qual se dá conta de que Carlos da Conceição Baptista «foi vítima de um acidente de trabalho»;

c) No rosto desse auto de notícia a entidade dirigente apôs despacho, datado de 16 de Maio de 1989, do seguinte teor: «Considero o acidente em serviço»;

d) Em ofício da Direcção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de Depósitos, datado de 20 de Julho de 1993, comunicou-se à Polícia Judiciária, com referência ao Agente (...) que «o resultado da Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações realizada em 22 de Junho de 1993, foi o seguinte: confirmado o grau de desvalorização de 68% por desastre em serviço (...)».


5. Importa, pois, com estes elementos, averiguar se, no caso presente, se preenchem as condições para a pretendida equiparação a deficiente das Forças Armadas.


III


1. O Decreto-Lei nº 43/76 «reconhece o direito à reparação que assiste aos cidadãos portugueses que, sacrificando-se pela Pátria, se deficientaram ou se deficientem no cumprimento do serviço militar e institui as medidas e os meios que, assegurando as adequadas reabilitação e assistência, concorrem para a sua integração social» (artigo 1º, nº 1).

Em termos axiológicos, o respectivo regime legal funda-se no «reconhecimento do direito à plena reparação de consequências sobrevindas no cumprimento do dever militar aos que foram chamados a servir em situação de perigo ou perigosidade» e consagra «a materialização da obrigação de a Nação lhes prestar assistência económica e social, garantindo a sobrevivência digna, porque estão em jogo valores morais estabelecidos na sequência do reconhecimento e reparação àqueles que no cumprimento do dever militar se diminuíram, com consequências permanentes na sua capacidade geral de ganho, causando problemas familiares e sociais» ([1]).


2. Na delimitação do conceito de deficiente das forças armadas, o Decreto-Lei nº 43/76 estabelece, designadamente, o seguinte:

«Artigo 1º
Definição de deficiente das forças armadas

1. (...)
2. É considerado deficiente das forças armadas portuguesas o cidadão que:
No cumprimento do serviço militar e na defesa dos interesses da Pátria adquiriu uma diminuição na capacidade geral de ganho;
quando em resultado de acidente ocorrido:
Em serviço de campanha ou em circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha, ou como prisioneiro de guerra;
Na manutenção da ordem pública;
Na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública; ou
No exercício das suas funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores;
vem a sofrer, mesmo a posteriori, uma diminuição permanente, causada por lesão ou doença, adquirida ou agravada, consistindo em:
Perda anatómica; ou
Prejuízo ou perda de qualquer órgão ou função;
tendo sido, em consequência, declarado, nos termos da legislação em vigor:
Apto para o desempenho de cargos ou funções que dispensem plena validez; ou
Incapaz do serviço activo; ou
Incapaz de todo o serviço militar.
3. (...) ([2])
4. Não é considerado DFA o militar que contrair ou sofrer doenças ou acidentes intencionalmente provocados pelo próprio, provenientes de acções ou omissões por ele cometidas contra ordens expressas superiores ou em desrespeito das condições de segurança determinadas por autoridades competentes, desde que não justificadas.»

«Artigo 2º
Interpretação de conceitos contidos no artigo 1º

1. Para efeitos de definição constante do nº 2 do artigo 1º deste decreto-lei, considera-se que:
a) A diminuição das possibilidades de trabalho para angariar meios de subsistência, designada por “incapacidade geral de ganho”, deve ser calculada segundo a natureza ou gravidade da lesão ou doença, a profissão, o salário, a idade do deficiente, o grau de reabilitação à mesma ou outra profissão, de harmonia com o critério das juntas de saúde de cada ramo das forças armadas, considerada a tabela nacional de incapacidade;
b) É fixado em 30% o grau de incapacidade geral de ganho mínimo para o efeito da definição de deficiente das forças armadas e aplicação do presente decreto-lei.
2. O “serviço de campanha ou campanha” tem lugar no teatro de operações onde se verifiquem operações de guerra, de guerrilha ou de contraguerrilha e envolve as acções directas do inimigo, os eventos decorrentes de actividade indirecta de inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade terrestre, naval ou aérea de natureza operacional.
3. As “circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha” têm lugar no teatro de operações onde ocorram operações de guerra, guerrilha ou de contraguerrilha e envolvem os eventos directamente relacionados com a actividade operacional que pelas suas características impliquem perigo em circunstâncias de contacto possível com o inimigo e os eventos determinados no decurso de qualquer outra actividade de natureza operacional, ou em actividade directamente relacionada, que pelas suas características próprias possam implicar perigosidade.
4. “O exercício de funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores”, engloba aqueles casos especiais, aí não previstos, que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito desta lei.
A qualificação destes casos compete ao Ministro da Defesa Nacional, após parecer da Procuradoria-Geral da República.» ([3])


3. Este regime foi tornado aplicável «aos militares da Guarda Nacional Republicana, da Guarda Fiscal e da Polícia de Segurança Pública, e bem assim aos comissários e agentes desta Polícia» pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 351/76, de 13 de Maio, situação mantida em posteriores diplomas orgânicos ou estatutários da PSP ou da GNR ([4]).

Quanto à Polícia Judiciária, essa extensão ([5]) teve lugar com o Decreto-Lei nº 295-A/90, de 21 de Setembro, a anterior Lei Orgânica da Polícia Judiciária, em cujo artigo 105º, nº 1, se lia o seguinte: «É extensivo ao pessoal dirigente e aos funcionários da Polícia Judiciária o regime legal em vigor para os deficientes das forças armadas e das forças de segurança.» E o Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro ([6]), que contém a actual Lei Orgânica da Polícia Judiciária, segue a mesma solução, desenvolvendo o respectivo regime de equiparação nos nºs 1 a 3 do seu artigo 89º:

«Artigo 89º
Incapacidade física

1 - O regime legal em vigor para os deficientes das Forças Armadas e das forças de segurança é aplicável ao pessoal dirigente e demais funcionários da Polícia Judiciária, com as devidas adaptações.
2 - O estatuto de equiparado a deficiente das Forças Armadas (DFA) é reconhecido pelo Ministro da Justiça, competência esta delegável, nos termos gerais, podendo ser ouvida a Procuradoria-Geral da República quanto à qualificação e caracterização dos casos e das circunstâncias que causaram a deficiência.
3 - A incapacidade para o serviço ou a percentagem de desvalorização é fixada pela junta médica da Caixa Geral de Aposentações.
(...)»


É, pois, ao abrigo destes normativos que vem colocada a este Conselho Consultivo a questão da qualificação do requerente como «equiparado a deficiente das Forças Armadas».


IV


1. Atento o disposto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, aplicável ex vi do nº 1 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, haverá que ponderar qual das situações típicas ali descritas se adequa ao caso em apreço.

Como se referiu, a situação de facto reporta-se a um agente da Polícia Judiciária que foi vítima de disparo de arma de fogo no decurso de uma diligência realizada em serviço, no âmbito de um procedimento criminal, daí resultando ferimentos que vieram a determinar uma desvalorização de 68%.

Perante estes dados de facto, parece não oferecer dúvidas que o acidente em causa não ocorreu em serviço de campanha, nem em circunstâncias com ele directamente relacionadas, nem enquanto prisioneiro de guerra, nem na prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública – situações que correspondem aos primeiro e terceiro itens do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76.

Quanto ao segundo item – manutenção da ordem pública –, importa ter presente que à Polícia Judiciária não incumbem funções desse tipo ([7])([8]), antes constituem suas atribuições «coadjuvar as autoridades judiciárias na investigação» e «desenvolver e promover as acções de prevenção e investigação da sua competência ou que lhe sejam cometidas pelas autoridades judiciárias competentes» (artigo 2º do Decreto-Lei nº 275-A/2000).

Resta, pois, considerar a verificação do último item, pelo que a questão se reconduz, «com as devidas adaptações» ([9]), a apurar se o acidente de que foi vítima o requerente terá ocorrido no exercício das suas funções e deveres policiais e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores.


2. Esta averiguação impõe a necessidade de precisar o alcance que se tem conferido ao correspondente segmento normativo do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76.

2.1. O Conselho Consultivo tem, de há muito, interpretado as disposições conjugadas dos artigos 1º, nº 2, e 2º, nº 4, do Decreto- -Lei nº 43/76 no sentido de que o regime jurídico dos deficientes das forças armadas, para além das situações expressamente contempladas no primeiro preceito – de serviço de campanha ou em circunstâncias com ele relacionadas, de prisioneiro de guerra, de manutenção da ordem pública e de prática de acto humanitário ou de dedicação à causa pública –, só é aplicável aos casos que, «pelo seu circunstancialismo, justifiquem uma equiparação, em termos objectivos, àquelas situações de facto, dado corresponderem a actividades próprias da função militar ou inerentes à defesa de altos interesses públicos, importando sujeição a um risco que, excedendo significativamente o que é próprio do comum das actividades castrenses, se mostra agravado em termos de se poder equiparar ao que caracteriza aquelas situações paradigmáticas» ([10]).

Nessa linha, tem-se ainda afirmado que «implica esse regime não só que o acidente tenha ocorrido em serviço, mas também que a actividade militar que o gera envolva, por sua natureza, objectiva e necessariamente, um risco agravado em termos de poder equiparar-se ao que decorre em situações de campanha ou a elas por lei igualadas» ([11]).

2.2. Estando em causa a ocorrência de risco agravado, a qualificação como deficiente das Forças Armadas, a par de um juízo positivo sobre aquela ocorrência, exige ainda a verificação de outros dois pressupostos ([12]):

a) a existência de uma relação de causalidade adequada entre a actividade em cuja prática se produziu o acidente e a incapacidade sofrida, ou seja, «entre o acto (acontecimento, situação) e o acidente (lesão ou doença), e entre este e a incapacidade, deve existir um duplo nexo causal» ([13]), sendo indispensável apurar «no domínio da matéria de facto – estranho à competência deste corpo consultivo – que o acidente, ocorrido em situação de risco agravado», se encontra nessa dupla relação de causalidade ([14]);

b) a verificação de um grau de incapacidade geral de ganho mínimo de 30% [conforme o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76].

O Conselho tem procedido ao tratamento jurídico separado de cada um dos três mencionados requisitos, o que se fundamentou, designadamente quanto a dois deles, nos seguintes termos:

«Com efeito, crê-se não serem legítimas dúvidas de que o juízo sobre o risco agravado deve manter-se independente da avaliação, nomeadamente, sobre a existência do duplo nexo causal entre o acidente e a actividade que o gera, por um lado, e a incapacidade originada, por outro.

«Elementares razões metódicas radicando na recíproca autonomia dos dois requisitos e na intencionalidade finalística, inclusive, de possibilitar a apreciação da sua convergência na prática fundamentada do acto administrativo de qualificação DFA pela entidade competente, tudo isso exige a sua caracterização e elaboração jurídica separada.» ([15])

De igual modo, nos casos em que o coeficiente de incapacidade é inferior ao mínimo legal, também aí o Conselho não tem deixado de caracterizar a actividade causadora do acidente como portadora ou não de risco agravado, independentemente de vir a ser emitido parecer desfavorável à qualificação como deficiente das Forças Armadas por insuficiência daquele coeficiente ([16]).

2.3. Do ponto de vista da aferição do risco agravado, este Conselho tem ponderado que tal risco, necessariamente superior ao risco genérico da actividade militar, não se compagina com o que resulta de circunstâncias meramente ocasionais ou imprevisíveis.

Conforme se disse no parecer nº 242/00, «desde cedo se considerou risco agravado “um risco que em alguma medida se possa acrescentar àquele que decorre da actividade militar normal”, um risco “de grau equivalente aos das actividades operacionais expressamente contempladas” nos itens do nº 2 do artigo 1º (-) e actividade de risco agravado “uma actividade arriscada por sua própria natureza e não por efeito de circunstâncias imprevisíveis e ocasionais” (-)».

No aprofundamento do critério de aferição do risco agravado, previsto no nº 4 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/76, é de salientar o parecer nº 92/98 ([17]), em que se pode ler o seguinte:

«Nos termos do nº 4 do acima citado artigo, “o exercício de funções e deveres militares e por motivo do seu desempenho, em condições de que resulte, necessariamente, risco agravado equiparável ao definido nas situações previstas nos itens anteriores”, engloba casos especiais, aí não previstos, que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito da lei e, por isso, justificando o alargamento do regime jurídico dos DFA aos casos que, embora não relacionados com campanha ou equivalente, mereçam, pelo seu circunstancialismo, o mesmo critério de qualificação.
O apelo à índole dos casos, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, afasta uma presunção de perigo, requerendo que no caso concreto se tenha produzido um perigo real, um perigo concreto, no sentido de um risco adequado de lesão.
Na apreciação de situações específicas, os casos concretos têm de ser analisados e ponderados e só pela consideração das circunstâncias em que os acidentes ocorreram, se poderá proceder à sua qualificação como envolvendo risco agravado equiparável ao risco do serviço de campanha.
Na verdade, “toda a actividade militar comporta, pelos fins que prossegue e pelos meios que emprega, um risco específico que pode ir, por vezes, até ao sacrifício da própria vida. Mas esse é um risco próprio da função militar, inerente ao desenvolvimento do respectivo serviço.
Excede, naturalmente, os limites dos riscos comuns aos demais cidadãos ou de outras actividades profissionais, mas para os militares não deixa de, em princípio, considerar-se um risco generalizado dentro da instituição.
Mas a qualificação de deficiente exige um risco agravado, isto é, um risco que em alguma medida se possa acrescentar àquele que decorre da actividade militar normal.
Esse acréscimo de risco deve ser avaliado face ao condicionalismo de cada caso, pelas circunstâncias determinadas e envolventes de natureza excepcionalmente perigosa mesmo no âmbito da vida militar, de grau equivalente ao das actividades operacionais expressamente contempladas no aludido preceito” (x).
As exigências legais apontam para este entendimento. Na verdade, o alargamento do regime jurídico dos deficientes das forças armadas aos casos que, embora não relacionados com campanha ou equivalente, justifiquem, pelo seu circunstancialismo, o mesmo critério de qualificação, supõe o exercício de funções militares “que, pela sua índole, considerado o quadro de causalidade, circunstâncias e agentes em que se desenrole, seja identificável com o espírito” do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro. E, como já se referiu, o espírito da lei é o de compensar os que se sacrifiquem pela Pátria, concedendo um estatuto especial àqueles que tiveram de enfrentar situações de particular risco para a sua segurança pessoal e mesmo para a sua vida.»


3. Estas considerações são de aplicar, mutatis mutandis, ao exercício de funções e deveres policiais.

Revertendo ao caso concreto, cumpriria, pois, apurar se ocorreu alteração qualitativa do risco a que esteve sujeito o requerente, tendo em conta a factualidade apurada.

Porém, o grau de exigência que o Conselho tem colocado na integração do conceito de risco agravado, evidenciado pelas antecedentes referências, torna necessária uma descrição de factos rigorosa e precisa que habilite a uma pronúncia indiscutível.

Ora, no presente caso os elementos de facto disponíveis são manifestamente insuficientes. Apenas se alcança que o requerente foi vítima de acidente de serviço, consistente em disparo de arma de fogo que provocou lesões determinantes de uma incapacidade geral de ganho de 68% ([18]). Nada se relata sobre as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, de forma a aferir da existência do duplo nexo de causalidade e de uma efectiva agravação do risco ([19]).

Não se trata, obviamente, de pôr em dúvida aquilo que alega o requerente, mas tão-só constatar a carência de elementos factuais para um juízo fundado sobre a pretendida concessão do estatuto de equiparado a deficiente das Forças Armadas.

Conclui-se, assim, que perante os elementos de facto disponíveis sobre o acidente sofrido pelo requerente, não é possível afirmar a existência de um risco agravado equiparável às situações de serviço de campanha ou equivalente, enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76, ex vi do nº 1 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000.


V


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1ª) Um acidente sofrido por um funcionário da Polícia Judiciária no exercício das suas funções pode corresponder a uma actividade com risco agravado enquadrável no nº 4 do artigo 2º, com referência ao nº 2 do artigo 1º, ambos do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, ex vi do nº 1 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000, de 9 de Novembro, desde que as condições do caso permitam concluir que se verificou um circunstancialismo gerador de perigo concreto que ultrapasse claramente o risco geral que é próprio das funções policiais;

2ª) Tendo em conta os elementos de facto disponíveis no processo relativamente ao acidente de que foi vítima o requerente, (...) Inspector da Polícia Judiciária, em 27 de Abril de 1989, no lugar de Touguinha-Vila do Conde, não é possível afirmar a existência de um risco agravado equiparável às situações de serviço de campanha ou equivalente, tal como definido na conclusão anterior.

VOTO


Eduardo de Melo Lucas Coelho – Votei o parecer com a seguinte declaração quanto à fundamentação, nos dois aspectos subsequentemente sumariados.

1. Em primeiro lugar, a divergência que me permito exprimir tem a ver com passos do parecer nº 92/98 – no qual votei vencido em termos para que remeto –, transcritos no ponto IV, 2.3., com reflexos na conclusão 1ª.

Venho na verdade salientando, em sintonia com aquele voto, que a ideia de «perigo concreto» originária desse parecer – e já não falo da «presunção de perigo», um tópico a que é absolutamente alheia a doutrina do Conselho Consultivo revista no parecer nº 92/98 – ultrapassa de longe a necessidade, que sempre se impõe, de avaliação das circunstâncias de facto de cada caso, e vai até ao ponto de negar as tipicidades de risco agravado elaboradas ao longo do tempo a partir de situações concretas assaz diferentes, o que, salvo melhor opinião, é metodologicamente inaceitável.


2. O segundo aspecto concerne à transposição com adaptações do nº 4 do artigo 2º do Decreto–Lei nº 43/76 para o domínio da Polícia Judiciária.

Tema aflorado no ponto IV, 3., e na conclusão 2ª, nele avulta a definição de parâmetros referenciais da noção de risco agravado nesse outro domínio estrutural e funcionalmente estranho ao cosmos específico das Forças Armadas, que aufere no Decreto–Lei nº 43/76 unitária, vocacional normativização.

Por isto mesmo que a enxertia ultimamente operada pelo artigo 89º do Decreto–Lei nº 275-A/2000 no seio do diploma regulador dos deficientes das Forças Armadas dê lugar a dificuldades de tomo.

Ora, por minha parte não creio que seja este o ensejo favorável à assunção de posições compromissórias na problemática em causa, quando é certo inexistirem elementos factuais suficientes para uma pronúncia acerca do mérito da pretensão, sentido em que o parecer, aliás, certeiramente conclui.





([1]) Do preâmbulo do Decreto-Lei nº 43/76.
([2]) O actual nº 3, cujo conteúdo não releva para a questão em apreço, foi introduzido pelo artigo 1º da Lei nº 46/99, de 16 de Junho, passando o anterior nº 3 a constituir o nº 4 ora transcrito.
([3]) A redacção do nº 4 resulta da Declaração de rectificação publicada no Diário da República, I Série, de 21 de Novembro de 1977 (2º Suplemento).
([4]) Para um caso de aplicação do regime dos deficientes das forças armadas a um soldado da Guarda Fiscal, v. parecer nº 22/88, de 9 de Março de 1989. Como exemplo dessa aplicação a agente da PSP, v. parecer nº 1/97, de 6 de Março de 1997.
([5]) Já no parecer nº 87/78, de 19 de Abril de 1979, que teve por objecto a definição do «projecto de um esquema especial de previdência para os agentes da Polícia Judiciária», se assinalava que «a Polícia Judiciária pretende a aplicação do regime dos deficientes das Forças Armadas» e se considerava que «não se compreende a sua aplicação exclusivamente às forças armadas e militarizadas, quando outras funções públicas supõem riscos pelo menos tão graves (é [o caso] das da Polícia Judiciária, mas há outras)» e que «dele deveriam beneficiar todos os que se tornassem inválidos em resultado de uma actividade especialmente perigosa em benefício do Estado». E uma das conclusões do parecer rezava assim: «Não há razão para o regime dos deficientes das forças armadas não abranger a Polícia Judiciária e justifica-se uma alteração do disposto no artigo 54º, nº 3, do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro (Estatuto da Aposentação), de modo a equiparar os acidentes ocorridos em confronto violento durante o exercício de funções de prevenção ou de repressão da criminalidade às situações nesse preceito mencionadas.»
([6]) Rectificado pela Declaração de Rectificação nº 16-D/2000, de 30 de Novembro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 103/2001, de 25 de Agosto.
([7]) É essencialmente à PSP e à GNR que estão cometidas funções de manutenção da ordem pública, como decorre do artigo 2º, alínea b), da Lei de Organização e Funcionamento da Polícia de Segurança Pública, aprovada pela Lei nº 5/99, de 27 de Janeiro, e do artigo 2º, alínea a), da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, de 26 de Junho.
([8]) Aliás, no já citado parecer nº 87/78 também se observava que «a actuação dos agentes da Polícia Judiciária na luta contra a criminalidade se não pode considerar em princípio como actuação na manutenção da ordem pública».
([9]) Do nº 1 do artigo 89º do Decreto-Lei nº 275-A/2000.
([10]) Orientação já expressa nos pareceres nºs 55/87, de 29 de Julho de 1987, e 80/87, de 19 de Novembro de 1987, e uniformente reiterada, o que voltou a ocorrer nos pareceres nºs 99/01, de 11 de Outubro de 2001, 167/01, de 6 de Dezembro de 2001, 116/01, de 20 de Dezembro de 2001, e 170/2001, de 31 de Janeiro de 2002, que se referem a título de mero exemplo.
([11]) Idem.
([12]) Sublinhando estes aspectos, v., por todos, o parecer nº 45/89, de 12 de Julho de 1989, e, mais recentemente, o parecer nº 242/00, de 17 de Maio de 2001.
([13]) Cfr. o parecer nº 45/89 citado.
([14]) Idem. Também assim o citado parecer nº 99/01.
([15]) Do parecer nº 242/00 citado.
([16]) Como informa aquele parecer nº 242/00. Referindo este entendimento, v. o mencionado parecer nº 99/01. E, em concretização desse critério, cfr., a título meramente exemplificativo, o parecer nº 520/2000, de 6 de Dezembro de 2001.
([17]) De 2 de Dezembro de 1998.
(x) Cfr. Parecer nº 122/76, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, 267, pág. 40.
([18])Incapacidade que se admite ser permanente (como exige o nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76), tendo em conta o que declara o requerente, apesar de nem isso ser referido no ofício que informa o «resultado da junta médica».
([19]) Considerando que a actividade de investigação criminal que incumbe à Polícia Judiciária – e implicada no caso – não pressupõe uma permanente sujeição ao risco da própria vida, é perfeitamente concebível a ocorrência de situações em que, objectivamente, se verifique um agravamento relevante do risco genérico inerente ao exercício da concreta função policial, que permita afirmar a existência de um risco agravado equiparável a serviço de campanha ou equivalente. Em aplicação deste critério, v. citado parecer nº 1/97.