Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002002
Parecer: I001462001
Nº do Documento: PIN000000000014600
Descritores: ONU
CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL
TRÁFICO DE SERES HUMANOS
TRÁFICO DE MULHERES
TRÁFICO DE CRIANÇAS
TRÁFICO DE MIGRANTES
DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO
LEI
NORMA CONSTITUCIONAL
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
ENTREGA CONTROLADA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO
PRINCÍPIO DA TERRITORIALIDADE DA LEI PENAL
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
CONCURSO DE INFRAÇÕES
SEGREDO BANCÁRIO
CORRUPÇÃO
PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
PRODUTO DO CRIME
APREENSÃO
DETENÇÃO
PERDA
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
EXTRADIÇÃO
TRANSFERÊNCIA DE PESSOA CONDENADA
TESTEMUNHA
PROTECÇÃO
Livro: 00
Numero Oficio: 3923
Data Oficio: 10/08/2001
Pedido: 10/10/2001
Data de Distribuição: 10/25/2001
Relator: MÁRIO SERRANO
Sessões: 00
Data Informação/Parecer: 05/16/2002
Sigla do Departamento 1: MJ
Entidades do Departamento 1: MIN DA JUSTIÇA
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOÃO CARVALHO
Área Temática:DIR CONST * DIR FUND / DIR INT PUBL * DIR PENAL INT * TRATADOS / DIR CRIM / DIR PROC PENAL
Legislação:EMP98 ART37 A; CONST76 ART1 ART3 ART5 ART7 N1 ART15 ART16 N2 ART25 ART33 ART74 N1 J; L 144/99 de 1999/08/31ART2 N1 ART3 N1 ART4 N1 ART6 N4 N5 ART16 ART20 ART21 ART22 ART23 N8 ART24 N2 ART26 ART31 N2 ART32 N3 N5 ART79 ART94 ART95 ART98 N1 A ART100 ART102 ART103 ART110 N4 ART145 N2 F N3 N5 N6 ART146 ART148 ART149 ART151 C ART152 N4 N6 ART152 N5 ART155 ART157 ART159 N3 N5 ART162 ART160 N1 N2 N3 ART160-A ART160-B ART160-C ART164; CP82 ART4 A ART5 N1 C ART7 ART8 ART11 ART12 ART22 ART23 N1 ART26 ART27 N1 ART30 N1 ART71 N1 E ART109 N1 ART110 ART111 ART112 ART130 ART131 ART132 2 B ART144 A ART145 ART146 N2 ART150 N2 ART154 ART155 N1 B ART156 N1 ART158 N2 E ART159 A B ART160 ART169 ART170 ART172 N3 C ART176 N2 N3 ART212 ART275 N1 N2 ART223 ART235 ART256 ART278 ART299 N4 ART300 ART301 ART347 ART360 ART363 ART367 N1 C ART372 N3 ART373 N3 ART374 N1 N2 ART375 ART376 ART377 ART386; DL 15/93 de 1993/01/22 ART21 ART23 ART24 ART28 N1 N3 N4 ART31 ART35 N1 ART36-A ART37 N1 N2 ART39 N4 ART51 N1 ART59 ART59-A N3 ART60 ART61; DL 244/98 de 1998/08/08 ART9 ART21 ART24 ART26 ART49 ART52 N3 ART88 ART134 N1 N2 N3 ART135 ART140 ART141 ; L 15/2001 de 2002/06/05 ART103 ART104 ; CPP87 ART1 N2 A B ART71 N2 E ART75 N3 ART83 N4 ART84 N4 ART100 ART133 ART134 ART135 ART138 N2 ART143 N4 ART174 N4 A ART177 ART178 N2 N7 ART181 ART182 ART191 ART352 N1 A B ; ART186 ART187 N2 A ART189 N1 A B E ART215 N2 N3; DL 325/95 de 1995/12/02 ART2 N1 N3 ART3 ART4 N1 A D E F ART5 N1 A B C ART6 N1 B C D ART7 ART8 N1 A B C ART8-A A B C ART8-B A B C ART8-D ART9 N1 ART10 N1 N2 N4 ART11 ART12 ART14 ART19 ART20; L 10/2002 de 2002/02/11 ; L 34/87 de 1987/07/16 ART16 ART18 ART19 N3 ART20 ART22 ART23; DL 28/84 de 1984/01/20 ART2 N3 ART36 ART38 ART41-A ART41-B N3 ART41-C N3 DL 390/91 de 1991/10/10 ART2 ART4; L 63/98 de 1998/09/01; L 10/2002 de 2002/02/11; DL 247/99 de 1999/07/22 ART20; L 104/2001 de 2001/08/25; DL 313/93 de 1993/09/15 ART10 N2 ART13 ART19; L 5/2002 de 2002/01/11 ART1 N1 ART2 ART4 ART5 ART7 N1 ART9 N1 N3 ART10 ART12 ART15 ; DL 298/92 de 1992/12/31 ART8 N5 ART79 N2 D ART89 N4; L 36/94 de 1994/09/29 ART1 N1 A ART5 ART6 ART19 ; L 108/2001 de 2001/11/28; L 13/2001 de 2001/06/04; L 101/2001 de 2001/08/25 ART2 ART4 N3 N4; L 93/99 de 1999/07/14 ART1 N1 N2 ART2 A ART4 ART5 N1 ART16 A ART19 ART20 ART21 A ART25 ART26 ART31 ART32 ART33 ; DL 423/91 de 1991/10/30; L 10/96 de 1996/03/23; L 15/98 de 1998/03/26 ART1 ART2 ART8 ART49 ART58
Direito Comunitário:Directiva 91/308/CEE, sobre branqueamento de capitais provenientes do tráfico de droga
Recomendação n.º R (91) 11 do Conselho da Europa de 1991/09/09
Direito Internacional:CONV CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL E PROTOC ADIC, de 2000/11/15 (ONU)
PROTOCOLO ADICIONAL RELATIVO AO FABRICO ILÍCITO E TRÁFICO DE ARMAS DE FOGO, DE SUAS PARTES E COMPONENTES E DE MUNIÇÕES, de 2000/05/31 (ONU)
CONV CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE ESTUPEFACIENTES E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS, de 1988/12/20 (ONU)
CONV RELATIVA AO BRANQUEAMENTO, DETENÇÃO, APREENSÃO E PERDA DOS PRODUTOS DO CRIME, de 1990/11/08 (CONSELHO DA EUROPA)
CONV PENAL SOBRE CORRUPÇÃO, de 1999/04/30 (CONSELHO DA EUROPA)
CONV RELATIVA À LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO EM QUE ESTEJAM IMPLICADOS FUNCIONÁRIOS DAS COMUNIDADES EUROPEIAS OU DOS ESTADOS MEMBROS DA UNIÃO EUROPEIA, de 1997/05/25
CONV RELATIVA AO AUXÍLIO JUDICIÁRIO MÚTUO EM MATÉRIA PENAL, de 2000/05/29
CONV SOBRE A LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO DE AGENTES PÚBLICOS ESTRANGEIROS NAS TRANSACÇÕES COMERCIAIS INTERNACIONAIS, de 1997/12/17
CONV EUROPEIA RELATIVA À TRANSMISSÃO DE PROCESSOS PENAIS de 1972/05/15
CONV ESTABELECIDA COM BASE NO ART K3 DO TRATADO DA UNIÃO EUROPEIA RELATIVA À EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA UNIÃO EUROPEIA, de 1996/09/27
CONV EUROPEIA RELATIVA À INDEMNIZAÇÃO DE VÍTIMAS DE INFRACÇÕES VIOLENTAS, de 1983/11/24 ART2 N1 A
CONV DE GENEBRA SOBRE A ESCRAVATURA, de 1926/09/25
CONV SUPL RELATIVA À ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA, DO TRÁFICO DE ESCRAVOS E DAS INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS ANÁLOGAS À ESCRVATURA, de 1956/09/07
ACORDO INTERNACIONAL PARA A SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE BRANCAS, de 1910/05/04
CONV INT P30ARA A SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS, de 1921/09/30
CONV INT PARA A SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES ADULTAS, de 1933/10/11
CONV PARA A SUPRESSÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS E DA EXPLORAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO DE OUTREM, de 1950/03/21
CONV SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, de 198911/20
TRATADO DA UNIÃO EUROPEIA
TRATADO DE AMESTERDÃO
CONV DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE O DIREITO DO MAR, de 1994/07/28
RESOL ONU 53/111 de 1998/12/09
RESOL ONU 54/126 de 1999/12/17
RESOL ONU 45/59 de 1994/12/23
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:PLANO DE ACÇÃO CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA (CONSELHO EUROPEU)
ACÇÃO COMUNITÁRIA N 98/699/JAI/CONSELHO
ACÇÃO COMUNITÁRIA N 98/733/JAI/CONSELHO
POSIÇÃO COMUM N 1999/235/JAI/CONSELHO
POSIÇÃO COMUM N 5/2001/CONSELHO
DECISÃO-QUADRO N 2001/500/JAI/CONSELHO
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª) A ratificação da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e dos seus dois primeiros Protocolos Adicionais, concretamente relativos à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, e ao Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea, abertos à assinatura na Conferência de Palermo de 12-15 de Dezembro de 2000, afigura-se compatível com as normas e princípios da Constituição da República Portuguesa;

2ª) Porém, os compromissos decorrentes daquela eventual ratificação reclamam algumas alterações legislativas e suscitam diversas observações, nos termos expressos no texto do parecer.

Texto Integral:
Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:



I


O Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro da Justiça remeteu ao Chefe de Gabinete de Vossa Excelência ([1]), para os “devidos efeitos”, cópia de um ofício ([2]) àquele enviado pelo Director do Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação (GRIEC) do Ministério da Justiça, no qual se sugeria a audição do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República no âmbito do aí denominado “processo de ratificação da Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e Protocolos Adicionais respectivamente contra o Tráfico de Seres Humanos particularmente Mulheres e Crianças e contra o Tráfico de Migrantes” ([3]).

A iniciativa do ofício oriundo do GRIEC vem justificada nestes termos: “Encontrando-se ultimadas as traduções dos instrumentos acima referidos, importa dar início ao processo de ratificação”. Juntamente com esse ofício foi enviada uma versão em português da Convenção e dos Protocolos Adicionais mencionados, cuja cópia acompanhou depois o ofício recebido nesta Procuradoria-Geral da República.

Vossa Excelência determinou que fosse prestado parecer pelo Conselho Consultivo.

Sendo pedida a intervenção da Procuradoria-Geral da República para os “devidos efeitos”, sem indicação específica de quaisquer parâmetros da apreciação a empreender, importa sublinhar que o parecer sempre estará sujeito às limitações decorrentes do estatuto do Conselho Consultivo, que, neste domínio, tem a sua competência confinada à matéria de legalidade [artigo 37º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público ([4])].

Nessa medida, o parecer relativo a uma convenção internacional visará, necessariamente, a avaliação da conformidade desta com os princípios e as normas constitucionais, bem como a aferição da compatibilidade da legislação ordinária com esse instrumento internacional, procurando detectar deficiências ou insuficiências, no plano da legalidade, que possam decorrer da recepção da convenção na ordem interna e que devam ser supridas.

Cumpre, pois, neste condicionalismo, emitir parecer.


II


1. Preliminarmente, refira-se que não foi prestada qualquer informação sobre o processo de tradução dos instrumentos internacionais em apreço, sendo certo que nele não teve qualquer participação a Procuradoria-Geral da República, tanto quanto nos foi possível indagar. A leitura da tradução remetida veio a revelar pontuais imprecisões ([5]). Em todo o caso, não poderá deixar de ser a versão portuguesa que nos foi enviada a servir de objecto da consulta ([6]).


2. Os três textos remetidos para apreciação vêm epigrafados com as seguintes designações:

- “Projecto de Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional”;
- “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças”; e,
- “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea”.

Sobre tais textos nada vem indicado, nem quanto às circunstâncias da sua produção, nem quanto à posição do Estado português em relação ao respectivo processo de negociação ou às opções político-legislativas daí decorrentes que tenham sido já ponderadas.

Ora, os instrumentos internacionais em causa são, concretamente, a Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional, adoptada pela Assembleia Geral da «Organização das Nações Unidas» (ONU) em 15 de Novembro de 2000 e aberta à assinatura numa Conferência que decorreu em Palermo (Itália), entre 12 e 15 de Dezembro de 2000, e os seus dois primeiros Protocolos Adicionais, igualmente adoptados e abertos às respectivas assinaturas nas mesmas datas e circunstâncias.

Afinal, aquilo que nos vem apresentado como ”Projecto de Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional” não é um projecto de convenção, mas já a própria Convenção, devidamente adoptada pela Resolução nº 55/25, de 15 de Novembro de 2000, da Assembleia Geral da ONU e aberta à assinatura na Conferência de Palermo de 12-15 de Dezembro de 2000 – e, curiosamente, logo assinada por Portugal em 12 de Dezembro de 2000 ([7]). Também os Protocolos relativos ao tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, e ao tráfico de migrantes, igualmente integrados na referida Resolução, foram assinados por Portugal na mesma data, por ocasião da Conferência de Palermo ([8]).

Assinale-se ainda a existência de um terceiro Protocolo Adicional, relativo ao fabrico ilícito e tráfico de armas de fogo, de suas partes e componentes e de munições, que foi adoptado pela Resolução nº 55/255, de 31 de Maio de 2001, da Assembleia Geral da ONU, mas ainda não assinado por Portugal ([9]).


3. Reveste algum interesse conhecer o circunstancialismo em que foi preparada a Convenção e os Protocolos em apreço. Diga-se, sumariamente, que a escalada da criminalidade internacional organizada no contexto mundial, associada ao fenómeno da globalização, gerou uma forte pressão na comunidade internacional no sentido da urgência na elaboração de uma convenção sobre crime organizado de amplo espectro e de vocação para-universal – e na concretização desse desiderato foi colocado um especial empenho por parte da ONU.

Assim, a Assembleia Geral da ONU, através da Resolução nº 53/111, de 9 de Dezembro de 1998, instituiu um “Comité Ad Hoc intergovernamental para a elaboração de uma Convenção contra o Crime Organizado”, desde logo determinando a negociação de três protocolos sobre as matérias de tráfico de mulheres e crianças, tráfico de migrantes e tráfico de armas de fogo.

Os trabalhos do “Comité Ad Hoc”, que integrava mais de 120 países membros da ONU, decorreram com particular celeridade, concluindo a elaboração da Convenção e dos dois primeiros Protocolos em menos de dois anos. Realizaram-se onze reuniões, sempre em Viena, nas seguintes datas sucessivas:

- 19 a 29 de Janeiro de 1999;
- 8 a 12 de Março de 1999;
- 28 de Abril a 3 de Maio de 1999;
- 28 de Junho a 9 de Julho de 1999;
- 4 a 15 de Outubro de 1999;
- 6 a 17 de Dezembro de 1999;
- 17 a 28 de Janeiro de 2000;
- 21 de Fevereiro a 3 de Março de 2000;
- 5 a 16 de Junho de 2000;
- 17 a 28 de Julho de 2000;
- 2 a 28 de Outubro de 2000.

Note-se que, enquanto decorria esse processo, a Assembleia Geral da ONU, por via da sua Resolução nº 54/126, de 17 de Dezembro de 1999, havia solicitado ao “Comité Ad Hoc” uma aceleração dos trabalhos, de modo a culminar a respectiva actividade durante o ano de 2000, o que foi alcançado ([10]).

Apesar dos esforços desenvolvidos para a rápida aprovação da Convenção e dos seus Protocolos Adicionais e do elevado número de assinaturas colhidas ([11]), verifica-se que até ao presente, decorrido já mais de um ano sobre a Conferência de Palermo, apenas dez países ([12]) ratificaram a Convenção e só oito ([13]) fizeram o mesmo em relação aos dois primeiros Protocolos ([14]) – quando é certo que a sua entrada em vigor só ocorrerá depois do depósito do 40º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão (artigo 38º da Convenção).


III


1. Uma melhor compreensão da Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional passa por uma contextualização da problemática do crime organizado.

1.1. O conceito de crime organizado ou de criminalidade organizada é algo que releva mais do campo da criminologia que do plano jurídico. É um conceito criminológico que não tem correspondência plena numa figura legal, embora uma adequada captação jurídica do fenómeno tenha sempre de passar pela incriminação da participação em associação criminosa. Mas a criminalidade organizada não se esgota na organização: exprime-se ainda num conjunto vasto de actividades delituosas (e mesmo não delituosas) desenvolvidas por essa estrutura.

Diremos, com IVES MAYAUD ([15]), que “o crime organizado não corresponde a uma noção jurídica precisa, a um conceito de direito penal geral ou a uma incriminação de direito penal especial”. Entre nós, também JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO assinala que esse conceito “não coincide com a noção (de direito penal) de «associação criminosa» ou com a noção (processual penal) de «terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada»” ([16]).

Variadíssimas definições têm sido propostas – umas mais, outras menos abrangentes. A título de exemplo, recorde-se a definição sociológica de crime organizado, razoavelmente consensual, constante do Relatório Geral do Colóquio de Alexandria, referente a este tema, realizado de 8 a 12 de Novembro de 1997: “conduta predadora perpetrada por organizações consagradas à delinquência, cuidadosamente estruturadas, frequentemente profissionais, cujos membros ou agentes podem não corresponder ao modelo tradicional de delinquente” ([17]).

Mas, mesmo do ponto de vista criminológico, não é um conceito seguro, havendo alguma imprecisão nos seus contornos. Trata-se daquilo que já foi designado como um umbrella term ([18]), ou seja, uma definição aberta, composta de elementos variáveis e não determinantes.

Até mesmo a identidade terminológica entre criminalidade organizada e crime organizado, aparentemente pacífica entre nós, tem sido posta em causa na doutrina estrangeira: por exemplo, NICOLAS QUELOZ cita um autor britânico (SIEGELS) que utiliza a expressão genérica organizational criminality para englobar duas grandes categorias, que seriam o white-collar crime e o organized crime, separando o domínio dos crimes económicos e de negócios do domínio do crime organizado, e o próprio QUELOZ – ainda que numa outra perspectiva – afirma considerar o termo criminalité organisée mais adequado que o de crime organisé, na medida em que este se refere mais a actos criminais individuais e aquele exprime melhor a noção de um conjunto de crimes inseridos numa dinâmica de confrontação colectiva entre actores das instâncias de controlo e actores delinquentes ([19]).

1.2. Por sua vez, várias teorias têm sido ensaiadas com vista à caracterização do crime organizado. Designadamente, o modelo de MALTZ, já clássico na matéria, identificava nove elementos essenciais: corrupção, violência, sofisticação, continuidade, estrutura, disciplina, actividades diversificadas, envolvimento em actividades empresariais legítimas e hierarquia – mas reconhecendo a não ocorrência, por vezes, de alguns desses elementos e a sua variabilidade em termos de grau ou intensidade ([20]).

Mas pode dizer-se que, praticamente, cada autor configura o seu próprio modelo. Vejamos alguns exemplos.

ANDRÉ BOSSARD ([21]) refere quatro características: permanência (o grupo é organizado de forma a sobreviver ao desaparecimento do chefe), organização estruturada (famílias), hierarquia (patrões, lugares- -tenentes, soldados) e segredo (lei do silêncio).

O já citado QUELOZ propõe uma “definição criminológica operatória” assente nos seguintes traços dominantes: agregação ou associação de delinquentes; vontade deliberada de cometer actos delituosos; organização rigorosa, estratégica e profissional; racionalização empresarial (indústria do crime); actuação nos grandes domínios da criminalidade organizada de violência (atentados, raptos, coacção), dos tráficos ilícitos (de pessoas, de droga, de armas, de viaturas, de obras de arte) e da criminalidade económica e de negócios (criminalidade de colarinho branco, como fraudes financeiras e fiscais, branqueamento de capitais, corrupção); procura de lucros significativos; e estruturação em rede, nos planos nacional e internacional ([22]).

Na doutrina portuguesa, mencione-se o elenco de características indicado por JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO: actuação em termos permanentes ou contínuos; busca de lucros; lógica empresarial ou de mercado; existência de estruturas organizacionais hierárquicas ou divisão do trabalho; carácter secreto da organização; existência de especiais códigos de conduta ou ritos iniciáticos; e actuação internacional ([23]).

Por sua vez, CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, sem aderir propriamente a um qualquer modelo, assinala a existência de um consenso relativamente alargado, entre os vários autores, quanto a três elementos: actividade permanente e racionalizada em moldes empresariais com intuito de obter lucro por meios ilícitos; utilização ou iminência de utilização de violência; e corrupção de funcionários – a que acrescerá, como consequência da globalização, a internacionalização ([24]).

1.3. Parece inevitável concluir pela impossibilidade de formular uma definição rigorosa e indiscutível de criminalidade organizada. Essa imprecisão do conceito levou mesmo ZAFFARONI ([25]) a classificá-lo de “categoria frustrada”.

Mas tal indefinição é compreensível, por estarmos perante uma realidade variável, que integra desde grupos pouco organizados a grupos altamente organizados, que abrange uma ampla diversidade de actividades criminosas e que pode ter carácter nacional ou internacional. E, do ponto de vista jurídico-penal, essa variabilidade decorre necessariamente daquilo que a própria lei estabelece como crime: como afirma JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, “o crime organizado não é uma realidade fixa pois depende antes de mais da definição que o legislador faça do lícito e do ilícito” ([26]).

1.4. Apesar do carácter difuso do conceito, a questão essencial está em saber se o mesmo ainda tem validade científica e utilidade no plano jurídico-penal. E a resposta não pode deixar de ser positiva.

Embora se trate de um conceito aberto, deve-se perseverar – até onde for possível – na tentativa de delimitação do que seja a criminalidade organizada, com fundamento na exigência de um tratamento diferenciado dessa realidade nos planos da prevenção e da repressão, por inadequação dos instrumentos clássicos de combate à criminalidade. Estamos perante um fenómeno que comporta perigos evidentes para o Estado de direito – e que impõe a necessidade de soluções específicas ([27]).

É unanimemente reconhecida a “perigosidade acrescida” – para usar as palavras de FIGUEIREDO DIAS ([28]) – “que para os bens jurídicos penalmente relevantes resulta em geral da criminalidade organizada”. Num texto de 1997, MARIA LEONOR ASSUNÇÃO ([29]) caracterizava a criminalidade organizada como “o mais perturbante problema que enfrenta o Direito Penal da viragem do século”. Com efeito, o crime organizado expandiu-se nos anos mais recentes duma forma tão intensa e profunda que hoje existe já a consciência de que aquele “corrói os alicerces do Estado de Direito democrático” ([30]): como diz MARIA LEONOR ASSUNÇÃO, de forma muito impressiva, “as organizações criminosas não se contentam, actualmente, em estabelecer canais de comunicação com o aparelho estadual, mediante a utilização de funcionários ou polícias corruptos. Querem ser o Estado.” ([31]).

Ora, uma criminalidade com estes contornos não pode ser confundida, em termos de resposta do sistema penal, com outras modalidades do acto criminoso. É essa motivação que leva, por exemplo, CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS a procurar estabelecer uma distinção entre crime organizado e crime de colarinho branco, que, não obstante as dificuldades e a “existência de espaços cinzentos” em que ambas as figuras se confundem, a autora entende dever empreender-se, na medida em que essas duas categorias merecem “distintos modelos de intervenção e controlo da criminalidade” e “diversos juízos de reprovação” ([32]). Na mesma linha, CUNHA RODRIGUES considera serem “indispensáveis critérios e instrumentos de mensuração que evitem que se confunda, em função duma igualdade meramente formal, a criminalidade de negócios com o negócio do crime” ([33]).

Neste contexto surge mais amplamente justificada uma intervenção político-criminal própria para a criminalidade organizada. A esta realidade deve corresponder um enquadramento penal particularmente severo e intransigente, porque mais ameaçadora para a estabilidade das sociedades democráticas e os valores e bens jurídicos em que se fundam.

Destas reflexões emerge, seguramente, a validade do conceito de crime organizado, a concretizar em alguns elementos estruturantes que permitam a construção de tipos legais específicos para determinadas manifestações do fenómeno – e que, por si, fundamentem certas soluções legislativas de eficácia reforçada ([34]).

Mas se a criminalidade organizada carece de mecanismos especiais de prevenção e repressão, isso não poderá implicar em caso algum uma derrogação dos princípios fundamentais que legitimam a intervenção penal e que definem o Estado de Direito.

Esta exigência conduz CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS a manifestar reservas a um “tratamento de excepção (...) fundante de significativos desvios ao garantismo penal” ([35]) e leva MARIA LEONOR ASSUNÇÃO a sustentar, para a ponderação dos valores em conflito (e que opõe direitos fundamentais do indivíduo à sociedade), a “criação de uma zona de convergência mínima, que permita a concordância prática desses valores” ([36]).


2. A criminalidade organizada comporta uma dimensão nacional e uma dimensão internacional.

2.1. Enquanto fenómeno interno, será um problema de cada Estado, mas é notória a sua vocação para a internacionalização ([37]). Um conjunto de circunstâncias tem propiciado essa expansão: maior liberdade de circulação de pessoas, mercadorias e capitais; incremento das trocas comerciais à escala mundial; progresso tecnológico no domínio da informática e das comunicações – e, na Europa, há que ter em conta o processo de integração europeia, com o esbatimento das fronteiras, e a queda da “cortina de ferro” ([38]). As diferenças entre os vários sistemas de justiça penal contribuem também para essa faceta transfronteiriça, ao permitirem vantagens para os delinquentes no próprio plano dos direitos.

2.2. Porém, o crime transnacional não é um fenómeno novo ou que só recentemente tenha passado a merecer a atenção da comunidade internacional.

2.2.1. Já nas conferências internacionais para unificação do direito penal de 1930 (Bruxelas), 1931 (Paris) e 1933 (Madrid) se apresentaram propostas de textos-tipo para inclusão nas legislações nacionais de crimes de dimensão internacional, como a pirataria, a falsificação de moeda, o tráfico de escravos, mulheres e crianças, o tráfico e estupefacientes e o tráfico de publicações obscenas, entre outros. Por sua vez, o III Congresso Internacional de Direito Penal de 1933 (Palermo) aprovou uma lista de delitos internacionais, que incluía os supra referidos e outros, como a rotura e deterioração de cabos submarinos ou os usos abusivos de comunicações radioeléctricas – alguns dos quais tinham já adquirido esse estatuto internacional através da celebração de convénios ([39]).

Porém, a aparição do crime organizado como tal, no plano do direito internacional, só surge com a introdução neste da figura da associação criminosa, enquanto expressão jurídica duma organização estruturada para o crime ([40]).

O conceito de organização criminosa foi tratado pela primeira vez, no âmbito do direito internacional penal, pelo Tribunal militar internacional de Nuremberga (1945), a propósito da actuação criminal de sete organizações nazis. O Tribunal teve de definir previamente o conceito de organização criminosa para, a partir da declaração do seu carácter criminoso (em função da sua actividade, fins e meios utilizados), poder sancionar individualmente os seus membros pela sua ligação à organização – ainda que recusando uma responsabilidade penal colectiva da própria organização ([41]).

Mas foi a crescente internacionalização das organizações criminosas que despertou a comunidade internacional para o problema, tendo sido no seio da ONU que se desenvolveram as primeiras iniciativas na luta contra a criminalidade organizada ([42]). São marcos essenciais desse percurso a Conferência de Milão de 1985, a Conferência de Nápoles de 1994, a Resolução nº 49/59 da Assembleia Geral da ONU, de 23 de Dezembro de 1994, e a elaboração da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena a 20 de Dezembro de 1988 ([43]).

2.2.2. Também o Conselho da Europa e a União Europeia ([44]) têm desenvolvido importante trabalho no combate à criminalidade organizada.

2.2.2.1. A primeira por via, designadamente, da adopção de convenções fundamentais, como a Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, de 8 de Novembro de 1990 ([45]), ou a Convenção Penal sobre a Corrupção, de 30 de Abril de 1999 ([46]).

2.2.2.2. A segunda através de iniciativas várias, de que se destacam:

- a Directiva nº 91/308/CEE ([47]), do Conselho, que obrigou os Estados-membros à “proibição” do branqueamento de capitais provenientes do tráfico de droga;
- o Plano de Acção contra a Criminalidade Organizada, aprovado pelo Conselho Europeu de Amesterdão, de 16 e 17 de Junho de 1997;
- o Plano de Acção contra a Criminalidade Organizada, aprovado pelo Conselho Europeu de Viena, de Dezembro de 1998;
- a Acção Comum nº 98/699/JAI ([48]), aprovada pelo Conselho, “relativa ao branqueamento de capitais, identificação, detecção, congelamento, apreensão e perda de instrumentos e produtos do crime”, que aponta no sentido da criminalização do branqueamento de capitais em termos genéricos, com referência a crimes precedentes ou infracções principais definidos em função da pena de prisão (ou da medida de segurança privativa da liberdade) aplicável, que será de máximo superior a um ano ([49]);
- a Acção Comum nº 98/733/JAI ([50]), adoptada pelo Conselho, “relativa à incriminação da participação numa organização criminosa nos Estados-membros da União Europeia”;
- a Posição Comum nº 1999/235/JAI ([51]), definida pelo Conselho, “relativa à proposta de convenção das Nações Unidas contra a criminalidade organizada” ([52]);
- a formulação, em 2000, de uma estratégia de prevenção e controlo da criminalidade organizada, consubstanciada num documento denominado “Prevenção e Controlo da Criminalidade Organizada: Estratégia da União Europeia para o Início do Novo Milénio” ([53]);
- a Posição Comum (CE) nº 5/2001 ([54]), adoptada pelo Conselho, “tendo em vista a adopção da Directiva nº 2000/.../CE do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Directiva nº 91/308/CEE do Conselho relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais”, que consiste numa proposta de directiva contendo alterações à Directiva de 1991;
- a Decisão-Quadro do Conselho nº 2001/500/JAI ([55]),“relativa ao branqueamento de capitais, à identificação, detecção, congelamento, apreensão e perda de instrumentos e produtos do crime”, que revoga determinadas disposições da Acção Comum nº 98/699/JAI e renova, de forma actualizada, as suas orientações, designadamente quanto ao limite máximo de pena exigível para as infracções principais.

Saliente-se ainda, na mesma linha, a celebração entre os Estados-Membros de convenções relevantes, como a Convenção relativa à Luta contra a Corrupção em que estejam implicados Funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros da União Europeia, de 26 de Maio de 1997 ([56]), ou a Convenção relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 29 de Maio de 2000 ([57]).

2.2.3. É de salientar ainda a actuação do «G7» ou «Grupo dos 7», ao instituir em 1989 o GAFI (Grupo de Acção Financeira Internacional), que consiste num grupo de trabalho intergovernamental cuja actividade se traduz na realização de avaliações do sistema bancário e elaboração de informações e propostas de acção com vista à prevenção do branqueamento de capitais, e que em 1990 (com posterior revisão em 1996) apresentou um conjunto de «40 Recomendações» dirigidas aos Estados, entre as quais avultava a de criminalização desse branqueamento ([58]).

2.3. Este breve bosquejo histórico permite alcançar uma mais clara percepção do contexto em que surge a Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional e da importância que a mesma reveste no plano do direito internacional.

Esta Convenção constitui o corolário de um longo processo de construção de uma resposta planetária aos perigos que a criminalidade organizada comporta para a paz social e para a existência individual de cada ser humano – e que é produto da consciência adquirida pela comunidade internacional de que só uma “federação de soberanias”, para usar a feliz expressão de MÁRIO PISANI ([59]), poderá alcançar resultados positivos na luta contra o crime organizado.


IV


1. A apreciação da conformidade constitucional e legal de qualquer convenção tem como pressuposto a resolução do problema da posição relativa do direito internacional público recebido na ordem interna em face das normas constitucionais e da lei ordinária.

1.1. No que tange à relação com o ordenamento constitucional, são conhecidas diferentes opiniões sobre a questão na doutrina portuguesa.

A posição de J. J. GOMES CANOTILHO e VI­TAL MOREIRA, que se pode já considerar clássica na matéria, vai no sentido da primazia da Constituição, quer quanto ao direito internacional geral ou comum, quer quanto ao direito internacional convencional ([60]).

Por sua vez, JORGE MIRANDA, no seu Ma­nual de Direito Constitucional ([61]), veio considerar terem valor constitucional os princípios, considerados de di­reito internacional geral ou comum, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, por via da recepção formal operada pelo artº 16º, nº 2, da Constituição. Posteriormente, o autor passa a sustentar o valor supracons­titucional do jus cogens, no qual inclui determinados princípios consagrados na referida Declaração Universal (sem prejuízo de continuar a atribuir valor constitucional aos demais princípios dessa Declaração não pertencentes ao jus cogens), ao mesmo tempo que admite hesitar quanto a reconhecer grau constitucional ou infraconstitucional aos restantes princípios de direito internacional geral ou comum. Em todo o caso, confere carácter infraconstitucional ao direito internacional convencional ([62]).

Na doutrina jusinternacionalista, posicionam-se em sentido algo diverso ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS ([63]), atribuindo grau supraconstitucional, quer ao direito internacional geral ou comum (i.e., costumeiro), quer ao direito inter­nacional convencional particular relativo à matéria de direitos humanos, pelo que apenas terá carácter infraconstitucional o restante direito internacional convencional particular.

Também EDUARDO CORREIA BAPTISTA ([64]) sus­tenta o valor supraconstitucional do direito internacional costumeiro, mas apenas quanto ao seu segmento imperativo (ou jus cogens), considerando ser já infraconstitu­cional o direito internacional costumeiro dispositivo.

1.2. Quanto à relação com a lei ordinária, tem prevalecido na nossa doutrina o entendimento de que o direito internacional (quer o comum, quer o de fonte convencional) se situa num plano supe­rior ao do direito de fonte interna ([65]).


2. Nesta conformidade, uma apreciação de legalidade lato sensu de uma convenção internacional defronta-se necessariamente com uma posição de superioridade da Constituição da República Portuguesa, que faz prevalecer esta sobre a fonte convencional, pelo que a existência de uma incompatibilidade é impeditiva da recepção daquela convenção na ordem interna.

Por outro lado, a primazia do direito internacional convencional sobre o direito ordinário interno impõe, em caso de desconformidade normativa entre esses dois planos, uma adaptação da legislação nacional às soluções do concreto direito internacional convencional em causa ([66]).

É dentro destes parâmetros que nos vamos movimentar.



V


A Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional é composta por 41 artigos, sem qualquer divisão por títulos ou capítulos.

Com vista a uma mais compreensiva análise das normas da Convenção, proceder-se-á, de seguida, à sua transcrição integral.

Na posterior apreciação dessas normas, seguiremos a respectiva apresentação sequencial dos artigos, concentrando maior atenção nas principais disposições, de que se destacam as que prevêem incriminações a concretizar pelos Estados Partes (artigos 5º, 6º, 8º e 23º) e a que estabelece os parâmetros conceptuais em que devem assentar esses tipos de crime (artigo 2º).


“CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A
CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL

Artigo 1º
Objectivo

O objectivo da presente Convenção consiste em promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional.


Artigo 2º
Terminologia

Para efeitos da presente Convenção entende-se por:
a) “Grupo criminoso organizado” – um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e actuando concertadamente com o propósito de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material;
b) “Crime grave” – um acto que constitua uma infracção punível com uma pena privativa de liberdade não inferior a quatro anos ou com pena superior;
c) “Grupo estruturado” – um grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infracção, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, não haja continuidade na sua composição nem disponha de uma estrutura elaborada;
d) “Bens” – os activos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, tangíveis ou intangíveis, e os documentos ou instrumentos jurídicos que atestem a propriedade ou outros direitos sobre os referidos activos;
e) “Produto do crime” – os bens de qualquer tipo, provenientes, directa ou indirectamente, da prática de um crime;
f) “Congelamento” ou “apreensão” – a proibição temporária de transferir, converter, dispor ou movimentar bens, ou a custódia ou controlo temporário de bens, por decisão de um tribunal ou de outra autoridade competente;
g) “Confisco” – a perda definitiva de bens, por decisão de um tribunal ou outra autoridade competente;
h) “Infracção principal” – qualquer infracção de que derive um produto que possa passar a constituir objecto de uma infracção definida no artigo 6º da presente Convenção;
i) “Entrega vigiada” – a técnica que consiste em permitir a passagem pelo território de um ou mais Estados de remessas ilícitas ou suspeitas, com o conhecimento e sob o controlo das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infracções e identificar as pessoas envolvidas na sua prática;
j) “Organização regional de integração económica” - uma organização constituída por Estados soberanos de uma região determinada, para a qual estes Estados tenham transferido competências nas questões reguladas pela presente Convenção e que tenha sido devidamente mandatada, em conformidade com os seus procedimentos internos, para assinar, ratificar, aceitar ou aprovar a Convenção ou a ela aderir; as referências aos “Estados Partes” constantes da presente Convenção são aplicáveis a estas organizações até ao limite da sua competência.

Artigo 3º
Âmbito de aplicação

1. Salvo disposição em contrário, a presente Convenção é aplicável à prevenção, à investigação e ao procedimento judicial de:
a) Infracções enunciadas nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º da presente Convenção; e
b) Infracções graves, na acepção do artigo 2º da presente Convenção;
sempre que, tais infracções sejam de carácter transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado;

2. Para efeitos do nº 1 do presente artigo, a infracção será de carácter transnacional se:
a) For cometida em mais de um Estado;
b) For cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, planeamento, direcção e controlo tenha lugar noutro Estado;
c) For cometida num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique actividades criminosas em mais de um Estado; ou
d) For cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais noutro Estado.

Artigo 4º
Protecção da soberania

1. Os Estados Partes cumprirão as suas obrigações decorrentes da presente Convenção no respeito pelos princípios da igualdade soberana e da integridade territorial dos Estados, bem como da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados.

2. O disposto na presente Convenção não autoriza qualquer Estado Parte a exercer, em território de outro Estado, jurisdição ou funções que o direito interno desse Estado reserve exclusivamente às suas autoridades.

Artigo 5º
Criminalização da participação num grupo criminoso organizado

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para caracterizar como infracção penal, quando praticado intencionalmente:
a) Um dos actos seguintes, ou ambos, enquanto infracções penais distintas das que impliquem a tentativa ou a consumação da actividade criminosa:
i) O entendimento com uma ou mais pessoas para a prática de uma infracção grave, com uma intenção directa ou indirectamente relacionada com a obtenção de um benefício económico ou outro benefício material e, quando assim prescrever o direito interno, envolvendo um acto praticado por um dos participantes para concretizar o que foi acordado ou envolvendo a participação de um grupo criminoso organizado;
ii) A conduta de qualquer pessoa que, conhecendo a finalidade e a actividade criminosa geral de um grupo criminoso organizado, ou a sua intenção de cometer as infracções em questão, participe activamente em:
a. Actividades ilícitas do grupo criminoso organizado;
b. Outras actividades do grupo criminoso organizado, sabendo que a sua participação contribuirá para a finalidade criminosa acima referida;
b) O acto de organizar, dirigir, ajudar, incitar, facilitar ou aconselhar a prática de uma infracção grave que envolva a participação de um grupo criminoso organizado.

2. O conhecimento, a intenção, a finalidade, a motivação ou o acordo a que se refere o nº 1 do presente artigo poderão inferir–se de circunstâncias factuais objectivas.

3. Os Estados Partes cujo direito interno condicione a incriminação pelas infracções referidas na subalínea i) da alínea a) do nº 1 do presente artigo ao envolvimento de um grupo criminoso organizado diligenciarão no sentido de que o seu direito interno abranja todas as infracções graves que envolvam a participação de grupos criminosos organizados. Estes Estados Partes, assim como os Estados Partes cujo direito interno condicione a incriminação pelas infracções definidas na subalínea i) da alínea a) do n º 1 do presente artigo à prática de um acto concertado, informarão deste facto o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, no momento da assinatura ou do depósito do seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão à presente Convenção.

Artigo 6º
Criminalização do branqueamento do produto do crime

1. Cada Estado Parte adoptará, em conformidade com os princípios fundamentais do seu direito interno, as medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para caracterizar como infracção penal, quando praticada intencionalmente:
a) i) A conversão ou transferência de bens, quando quem o faz tem conhecimento de que esses bens são produto do crime, com o propósito de ocultar ou dissimular a origem ilícita dos bens ou ajudar qualquer pessoa envolvida na prática da infracção principal a furtar–se às consequências jurídicas dos seus actos;
ii) A ocultação ou dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens ou direitos a eles relativos, sabendo o seu autor que os ditos bens são produto do crime;
b) e, sob reserva dos conceitos fundamentais do seu ordenamento jurídico:
i) A aquisição, posse ou utilização de bens, sabendo aquele que os adquire, possui ou utiliza, no momento da recepção, que são produto do crime;
ii) A participação na prática de uma das infracções enunciadas no presente artigo, assim como qualquer forma de associação, acordo, tentativa ou cumplicidade, pela prestação de assistência, ajuda ou aconselhamento no sentido da sua prática.

2. Para efeitos da aplicação do nº 1 do presente artigo:
a) Cada Estado Parte procurará aplicar o nº 1 do presente artigo à mais ampla gama possível de infracções principais;
b) Cada Estado Parte considerará como infracções principais todas as infracções graves na acepção do artigo 2º da presente Convenção e as infracções enunciadas nos seus artigos 5º, 8º e 23º. Os Estados Partes cuja legislação estabeleça uma lista de infracções principais específicas incluirá entre estas, pelo menos, uma gama completa de infracções relacionadas com grupos criminosos organizados;
c) Para efeitos da alínea b), as infracções principais incluirão as infracções cometidas tanto dentro como fora da jurisdição do Estado Parte interessado. No entanto, as infracções cometidas fora da jurisdição de um Estado Parte só constituirão infracção principal quando o acto correspondente constitua infracção penal à luz do direito interno do Estado em que tenha sido praticado e constitua infracção penal à luz do direito interno do Estado Parte que aplique o presente artigo se o crime aí tivesse sido cometido;
d) Cada Estado Parte fornecerá ao Secretário Geral das Nações Unidas uma cópia ou descrição das suas leis destinadas a dar aplicação ao presente artigo e de qualquer alteração posterior;
e) Se assim o exigirem os princípios fundamentais do direito interno de um Estado Parte, poderá estabelecer–se que as infracções enunciadas no nº 1 do presente artigo não sejam aplicáveis às pessoas que tenham cometido a infracção principal;
f) O conhecimento, a intenção ou a motivação, enquanto elementos constitutivos de uma infracção enunciada no nº 1 do presente artigo, poderão inferir–se de circunstâncias factuais objectivas.

Artigo 7º
Medidas para combater o branqueamento de dinheiro

1. Cada Estado Parte:
a) Instituirá um regime interno completo de regulamentação e controlo dos bancos e instituições financeiras não bancárias e, quando se justifique, de outros organismos especialmente susceptíveis de ser utilizados para o branqueamento de dinheiro, dentro dos limites da sua competência, a fim de prevenir e detectar qualquer forma de branqueamento de dinheiro, sendo nesse regime enfatizados os requisitos relativos à identificação do cliente, ao registo das operações e à denúncia de operações suspeitas;
b) Garantirá, sem prejuízo da aplicação dos artigos 8º e 27º da presente Convenção, que as autoridades responsáveis pela administração, regulamentação detecção e repressão e outras autoridades responsáveis pelo combate ao branqueamento de dinheiro (incluindo, quando tal esteja previsto no seu direito interno, as autoridades judiciais), tenham a capacidade de cooperar e trocar informações a nível nacional e internacional, em conformidade com as condições prescritas no direito interno, e, para esse fim, considerará a possibilidade de criar um serviço de informação financeira que funcione como centro nacional de recolha, análise e difusão de informação relativa a eventuais actividades de branqueamento de dinheiro.

2. Os Estados Partes considerarão a possibilidade de aplicar medidas viáveis para detectar e vigiar o movimento transfronteiriço de numerário e de títulos negociáveis, no respeito pelas garantias relativas à legítima utilização da informação e sem, por qualquer forma, restringir a circulação de capitais lícitos. Estas medidas poderão incluir a exigência de que os particulares e as entidades comerciais notifiquem as transferências transfronteiriças de quantias elevadas em numerário e títulos negociáveis.

3. Ao instituírem, nos termos do presente artigo, um regime interno de regulamentação e controlo, e sem prejuízo do disposto em qualquer outro artigo da presente Convenção, todos os Estados Partes são instados a utilizar como orientação as iniciativas pertinentes tomadas pelas organizações regionais, inter-regionais e multilaterais para combater o branqueamento de dinheiro.

4. Os Estados Partes diligenciarão no sentido de desenvolver e promover a cooperação à escala mundial, regional, sub-regional e bilateral entre as autoridades judiciais, os organismos de detecção e repressão e as autoridades de regulamentação financeira, a fim de combater o branqueamento de dinheiro.

Artigo 8º
Criminalização da corrupção

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas e outras que sejam necessárias para caracterizar como infracções penais os seguintes actos, quando intencionalmente cometidos:
a) Prometer, oferecer ou conceder a um agente público, directa ou indirectamente, um beneficio indevido, em seu proveito próprio ou de outra pessoa ou entidade, a fim de praticar ou se abster de praticar um acto no desempenho das suas funções oficiais;
b) Por um agente público, pedir ou aceitar, directa ou indirectamente, um benefício indevido, para si ou para outra pessoa ou entidade, a fim de praticar ou se abster de praticar um acto no desempenho das suas funções oficiais.

2. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adoptar as medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para conferir o carácter de infracção penal aos actos enunciados no nº 1 do presente artigo que envolvam um agente público estrangeiro ou um funcionário internacional. Do mesmo modo, cada Estado Parte considerará a possibilidade de conferir o carácter de infracção penal a outras formas de corrupção.

3. Cada Estado Parte adoptará igualmente as medidas necessárias para conferir o carácter de infracção penal à cumplicidade na prática de uma infracção enunciada no presente artigo.

4. Para efeitos do nº 1 do presente artigo e do artigo 9º, a expressão “agente público” designa, além do funcionário público, qualquer pessoa que preste um serviço público, tal como a expressão é definida no direito interno e aplicada no direito penal do Estado Parte onde a pessoa em questão exerce as suas funções.

Artigo 9º
Medidas contra a corrupção

1. Para além das medidas enunciadas no artigo 8º da presente Convenção, cada Estado Parte, na medida em que seja procedente e conforme ao seu ordenamento jurídico, adoptará medidas eficazes de ordem legislativa, administrativa ou outra para promover a integridade e prevenir, detectar e punir a corrupção dos agentes públicos.

2. Cada Estado Parte tomará medidas no sentido de se assegurar de que as suas autoridades actuam eficazmente em matéria de prevenção, detecção e repressão da corrupção de agentes públicos, inclusivamente conferindo a essas autoridades independência suficiente para impedir qualquer influência indevida sobre a sua actuação.

Artigo 10º
Responsabilidade das pessoas colectivas

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias, em conformidade com o seu ordenamento jurídico, para responsabilizar pessoas colectivas que participem em infracções graves envolvendo um grupo criminoso organizado e que cometam as infracções enunciadas nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º da presente Convenção.

2. No respeito pelo ordenamento jurídico do Estado Parte, a responsabilidade das pessoas colectivas poderá ser penal, civil ou administrativa.

3. A responsabilidade das pessoas colectivas não obstará à responsabilidade penal das pessoas singulares que tenham cometido as infracções.

4 . Cada Estado Parte diligenciará, em especial, no sentido de que as pessoas colectivas consideradas responsáveis em conformidade com o presente artigo sejam objecto de sanções eficazes, proporcionais e dissuasórias, de natureza penal e não penal, incluindo sanções pecuniárias.

Artigo 11º
Processos judiciais, julgamento e sanções

1. Cada Estado Parte tornará a prática de uma infracção enunciada nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º da presente Convenção passível de sanções que tenham em conta a gravidade dessa infracção.

2. Cada Estado Parte diligenciará para que qualquer poder judicial discricionário conferido pelo seu direito interno e relativo a processos judiciais contra indivíduos por infracções previstas na presente Convenção seja exercido de forma a optimizar a eficácia das medidas de detecção e de repressão destas infracções, tendo na devida conta a necessidade de exercer um efeito dissuasor da sua prática.

3. No caso de infracções como as enunciadas nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º da presente Convenção, cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas, em conformidade com o seu direito interno, e tendo na devida conta os direitos da defesa, para que as condições a que estão sujeitas as decisões de aguardar julgamento em liberdade ou relativas ao processo de recurso tenham em consideração a necessidade de assegurar a presença do arguido em todo o processo penal ulterior.

4. Cada Estado Parte providenciará para que os seus tribunais ou outras autoridades competentes tenham presente a gravidade das infracções previstas na presente Convenção quando considerarem a possibilidade de uma libertação antecipada ou condicional de pessoas reconhecidas como culpadas dessas infracções.

5. Sempre que as circunstâncias o justifiquem, cada Estado Parte determinará, no âmbito do seu direito interno, um prazo de prescrição prolongado, durante o qual poderá ter início o processo relativo a uma das infracções previstas na presente Convenção, devendo esse período ser mais longo quando o presumível autor da infracção se tenha subtraído à justiça.

6. Nenhuma das disposições da presente Convenção prejudica o princípio segundo o qual a definição das infracções nela enunciadas e dos meios jurídicos de defesa aplicáveis, bem como outros princípios jurídicos que rejam a legalidade das incriminações, são do foro exclusivo do direito interno desse Estado Parte, e segundo o qual as referidas infracções são objecto de procedimento judicial e punidas de acordo com o direito desse Estado Parte.

Artigo 12º
Confisco e apreensão

1. Os Estados Partes adoptarão, na medida em que o seu ordenamento jurídico interno o permita, as medidas necessárias para permitir o confisco:
a) Do produto das infracções previstas na presente Convenção ou de bens cujo valor corresponda ao desse produto;
b) Dos bens, equipamentos e outros instrumentos utilizados ou destinados a ser utilizados na prática das infracções previstas na presente Convenção.

2. Os Estados Partes tomarão as medidas necessárias para permitir a identificação, a localização, o embargo ou a apreensão dos bens referidos no nº 1 do presente artigo, para efeitos de eventual confisco.

3. Se o produto do crime tiver sido convertido, total ou parcialmente, noutros bens, estes últimos podem ser objecto das medidas previstas no presente artigo, em substituição do referido produto.

4. Se o produto do crime tiver sido misturado com bens adquiridos legalmente, estes bens poderão, sem prejuízo das competências de embargo ou apreensão, ser confiscados até ao valor calculado do produto com que foram misturados.

5. As receitas ou outros benefícios obtidos com o produto do crime, os bens nos quais o produto tenha sido transformado ou convertido ou os bens com que tenha sido misturado podem também ser objecto das medidas previstas no presente artigo, da mesma forma e na mesma medida que o produto do crime.

6. Para efeitos do presente artigo e do artigo 13º, cada Estado Parte habilitará os seus tribunais ou outras autoridades competentes para ordenarem a apresentação ou a apreensão de documentos bancários, financeiros ou comerciais. Os Estados Partes não poderão invocar o sigilo bancário para se recusarem a aplicar as disposições do presente número.

7. Os Estados Partes poderão considerar a possibilidade de exigir que o autor de uma infracção demonstre a proveniência lícita do presumido produto do crime ou de outros bens que possam ser objecto de confisco, na medida em que esta exigência esteja em conformidade com os princípios do seu direito interno e com a natureza do processo ou outros procedimentos judiciais.

8. As disposições do presente artigo não deverão, em circunstância alguma, ser interpretadas de modo a afectar os direitos de terceiros de boa fé.

9. Nenhuma das disposições do presente artigo prejudica o princípio segundo o qual as medidas nele previstas são definidas e aplicadas em conformidade com o direito interno de cada Estado Parte e segundo as disposições deste direito.

Artigo 13º
Cooperação internacional para efeitos de confisco

1. Na medida em que o seu ordenamento jurídico interno o permita, um Estado Parte que tenha recebido de outro Estado Parte, competente para conhecer de uma infracção prevista na presente Convenção, um pedido de confisco do produto do crime, bens, equipamentos ou outros instrumentos referidos no nº 1 do artigo 12º da presente Convenção que se encontrem no seu território, deverá:
a) Transmitir o pedido às suas autoridades competentes, a fim de obter uma ordem de confisco e, se essa ordem for emitida, executá-la; ou
b) Transmitir às suas autoridades competentes, para que seja executada conforme o solicitado, a decisão de confisco emitida por um tribunal situado no território do Estado Parte requerente, em conformidade com o nº 1 do artigo 12º da presente Convenção, em relação ao produto do crime, bens, equipamentos ou outros instrumentos referidos no nº 1 do artigo 12º que se encontrem no território do Estado Parte requerido.

2. Quando um pedido for feito por outro Estado Parte competente para conhecer de uma infracção prevista na presente Convenção, o Estado Parte requerido tomará medidas para identificar, localizar, embargar ou apreender o produto do crime, os bens, os equipamentos ou os outros instrumentos referidos no nº 1 do artigo 12º da presente Convenção, com vista a um eventual confisco que venha a ser ordenado, seja pelo Estado Parte requerente, seja, na sequência de um pedido formulado ao abrigo do nº 1 do presente artigo, pelo Estado Parte requerido.

3. As disposições do artigo 8º da presente Convenção aplicam–se mutatis mutandis ao presente artigo. Para além das informações referidas no nº 15 do artigo 18º, os pedidos feitos em conformidade com o presente artigo deverão conter:
a) Quando o pedido for feito ao abrigo da alínea a) do nº 1 do presente artigo, uma descrição dos bens a confiscar e uma exposição dos factos em que o Estado Parte requerente se baseia, que permita ao Estado Parte requerido obter uma decisão de confisco em conformidade com o seu direito interno;
b) Quando o pedido for feito ao abrigo da alínea b) do nº 1 do presente artigo, uma cópia legalmente admissível da decisão de confisco emitida pelo Estado Parte requerente em que se baseia o pedido, uma exposição dos factos e informações sobre os limites em que é pedida a execução da decisão;
c) Quando o pedido for feito ao abrigo do nº 2 do presente artigo, uma exposição dos factos em que se baseia o Estado Parte requerente e uma descrição das medidas pedidas.

4. As decisões ou medidas previstas nos nºs 1 e 2 do presente artigo são tomadas pelo Estado Parte requerido em conformidade com o seu direito interno e segundo as disposições do mesmo direito, e em conformidade com as suas regras processuais ou com qualquer tratado, acordo ou protocolo bilateral ou multilateral que o ligue ao Estado Parte requerente.

5. Cada Estado Parte enviará ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas uma cópia das suas leis e regulamentos destinados a dar aplicação ao presente artigo, bem como uma cópia de qualquer alteração ulteriormente introduzida a estas leis e regulamentos ou uma descrição destas leis, regulamentos e alterações ulteriores.

6. Se um Estado Parte decidir condicionar a adopção das medidas previstas nos nºs 1 e 2 do presente artigo à existência de um tratado na matéria, deverá considerar a presente Convenção como uma base jurídica necessária e suficiente para o efeito.

7. Um Estado Parte poderá recusar a cooperação que lhe é solicitada ao abrigo do presente artigo, caso a infracção a que se refere o pedido não seja abrangida pela presente Convenção.

8. As disposições do presente artigo não deverão, em circunstância alguma, ser interpretadas de modo a afectar os direitos de terceiros de boa fé.

9. Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar tratados, acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais com o objectivo de reforçar a eficácia da cooperação internacional desenvolvida para efeitos do presente artigo.

Artigo 14º
Disposição do produto do crime ou dos bens confiscados

1. Um Estado Parte que confisque o produto do crime ou bens, em aplicação do artigo 12º ou do nº 1 do artigo 13º da presente Convenção, disporá deles de acordo com o seu direito interno e os seus procedimentos administrativos.

2. Quando os Estados Partes agirem a pedido de outro Estado Parte em aplicação do artigo 13º da presente Convenção, deverão, na medida em que o permita o seu direito interno e se tal lhes for solicitado, considerar prioritariamente a restituição do produto do crime ou dos bens confiscados ao Estado Parte requerente, para que este último possa indemnizar as vítimas da infracção ou restituir este produto do crime ou estes bens aos seus legítimos proprietários.

3. Quando um Estado Parte actuar a pedido de um outro Estado Parte em aplicação dos artigos 12º e 13º da presente Convenção, poderá considerar especialmente a celebração de acordos ou protocolos que prevejam:
a) Destinar o valor deste produto ou destes bens, ou os fundos provenientes da sua venda, ou uma parte destes fundos, à conta criada em aplicação da alínea c) do nº 2 do artigo 30º da presente Convenção e a organismos intergovernamentais especializados na luta contra a criminalidade organizada;
b) Repartir com outros Estados Partes, sistemática ou casuisticamente, este produto ou estes bens, ou os fundos provenientes da respectiva venda, em conformidade com o seu direito interno ou os seus procedimentos administrativos.

Artigo 15º
Jurisdição

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias para estabelecer a sua competência jurisdicional em relação às infracções enunciadas nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º da presente Convenção, nos seguintes casos:
a) Quando a infracção for cometida no seu território; ou
b) Quando a infracção for cometida a bordo de um navio que arvore a sua bandeira ou a bordo de uma aeronave matriculada em conformidade com o seu direito interno no momento em que a referida infracção for cometida.

2. Sem prejuízo do disposto no artigo 4º da presente Convenção, um Estado Parte poderá igualmente estabelecer a sua competência jurisdicional em relação a qualquer destas infracções, nos seguintes casos:
a) Quando a infracção for cometida contra um dos seus cidadãos;
b) Quando a infracção for cometida por um dos seus cidadãos ou por uma pessoa apátrida residente habitualmente no seu território; ou
c) Quando a infracção for:
i) Uma das previstas no nº 1 do artigo 5º da presente Convenção e praticada fora do seu território, com a intenção de cometer uma infracção grave no seu território;
ii) Uma das previstas na subalínea ii) da alínea b) do nº 1 do artigo 6º da presente Convenção e praticada fora do seu território com a intenção de cometer, no seu território, uma das infracções enunciadas nas subalíneas i) ou ii) da alínea a) ou i) da alínea b) do nº 1 do artigo 6º da presente Convenção.

3. Para efeitos do nº 10 do artigo 16º da presente Convenção, cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias para estabelecer a sua competência jurisdicional em relação às infracções abrangidas pela presente Convenção quando o presumível autor se encontre no seu território e o Estado Parte não o extraditar pela única razão de se tratar de um seu cidadão.

4. Cada Estado Parte poderá igualmente adoptar as medidas necessárias para estabelecer a sua competência jurisdicional em relação às infracções abrangidas pela presente Convenção quando o presumível autor se encontre no seu território e o Estado Parte não o extraditar.

5. Se um Estado Parte que exerça a sua competência jurisdicional por força dos nºs 1 ou 2 do presente artigo tiver sido notificado, ou por qualquer outra forma tiver tomado conhecimento, de que um ou vários Estados Partes estão a efectuar uma investigação ou iniciaram diligências ou um processo judicial tendo por objecto o mesmo acto, as autoridades competentes destes Estados Partes deverão consultar–se, da forma que for mais conveniente, para coordenar as suas acções.

6. Sem prejuízo das normas do direito internacional geral, a presente Convenção não excluirá o exercício de qualquer competência jurisdicional penal estabelecida por um Estado Parte em conformidade com o seu direito interno.

Artigo 16º
Extradição

1. O presente artigo aplica–se às infracções abrangidas pela presente Convenção ou nos casos em que um grupo criminoso organizado esteja implicado numa infracção prevista nas alíneas a) ou b) do nº 1 do artigo 3º e em que a pessoa que é objecto do pedido de extradição se encontre no Estado Parte requerido, desde que a infracção pela qual é pedida a extradição seja punível pelo direito interno do Estado Parte requerente e do Estado Parte requerido.

2. Se o pedido de extradição for motivado por várias infracções graves distintas, algumas das quais não se encontrem previstas no presente artigo, o Estado Parte requerido pode igualmente aplicar o presente artigo às referidas infracções.

3. Cada uma das infracções às quais se aplica o presente artigo será considerada incluída, de pleno direito, entre as infracções que dão lugar a extradição em qualquer tratado de extradição em vigor entre os Estados Partes. Os Estados Partes comprometem-se a incluir estas infracções entre aquelas cujo autor pode ser extraditado em qualquer tratado de extradição que celebrem entre si.

4. Se um Estado Parte que condicione a extradição à existência de um tratado receber um pedido de extradição de um Estado Parte com o qual não celebrou tal tratado, poderá considerar a presente Convenção como fundamento jurídico da extradição quanto às infracções a que se aplique o presente artigo.

5. Os Estados Partes que condicionem a extradição à existência de um tratado:
a) No momento do depósito do seu instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão à presente Convenção, indicarão ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas se consideram a presente Convenção como fundamento jurídico para a cooperação com outros Estados Partes em matéria de extradição; e
b) Se não considerarem a presente Convenção como fundamento jurídico para cooperar em matéria de extradição, diligenciarão, se necessário, pela celebração de tratados de extradição com outros Estados Partes, a fim de darem aplicação ao presente artigo.

6. Os Estados Partes que não condicionem a extradição à existência de um tratado reconhecerão entre si, às infracções às quais se aplica o presente artigo, o carácter de infracção cujo autor pode ser extraditado.

7. A extradição estará sujeita às condições previstas no direito interno do Estado Parte requerido ou em tratados de extradição aplicáveis, incluindo, nomeadamente, condições relativas à pena mínima requerida para uma extradição e aos motivos pelos quais o Estado Parte requerido pode recusar a extradição.

8. Os Estados Partes procurarão, sem prejuízo do seu direito interno, acelerar os processos de extradição e simplificar os requisitos em matéria de prova com eles relacionados, no que se refere às infracções a que se aplica o presente artigo.

9. Sem prejuízo do disposto no seu direito interno e nos tratados de extradição que tenha celebrado, o Estado Parte requerido poderá, a pedido do Estado Parte requerente, se considerar que as circunstâncias o justificam e que existe urgência, colocar em detenção uma pessoa, presente no seu território, cuja extradição é pedida, ou adoptar a seu respeito quaisquer outras medidas apropriadas para assegurar a sua presença no processo de extradição.

10. Um Estado Parte em cujo território se encontre o presumível autor da infracção, se não extraditar esta pessoa a título de uma infracção à qual se aplica o presente artigo pelo único motivo de se tratar de um seu cidadão, deverá, a pedido do Estado Parte requerente da extradição, submeter o caso, sem demora excessiva às suas autoridades competentes para efeitos de procedimento judicial. Estas autoridades tomarão a sua decisão e seguirão os trâmites do processo da mesma forma que em relação a qualquer outra infracção grave, à luz do direito interno deste Estado Parte. Os Estados Partes interessados cooperarão entre si, nomeadamente em matéria processual e probatória, para assegurar a eficácia dos referidos actos judiciais.

11. Quando um Estado Parte, por força do seu direito interno, só estiver autorizado a extraditar ou, por qualquer outra forma, entregar um dos seus cidadãos na condição de que essa pessoa retorne seguidamente ao mesmo Estado Parte para cumprir a pena a que tenha sido condenada na sequência do processo ou do procedimento que originou o pedido de extradição ou de entrega, e quando este Estado Parte e o Estado Parte requerente concordarem em relação a essa opção e a outras condições que considerem apropriadas, a extradição ou entrega condicional será suficiente para dar cumprimento à obrigação enunciada no nº 10 do presente artigo.

12. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa que é objecto deste pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir, em conformidade com as prescrições deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao que dessa pena faltar cumprir.

13. Qualquer pessoa que seja objecto de um processo devido a qualquer das infracções às quais se aplica o presente artigo terá garantido um tratamento equitativo em todas as fases do processo, incluindo o gozo de todos os direitos e garantias previstos no direito interno do Estado Parte em cujo território se encontra.

14. Nenhuma disposição da presente Convenção deverá ser interpretada no sentido de que impõe uma obrigação de extraditar a um Estado Parte requerido, se existirem sérias razões para supor que o pedido foi apresentado com a finalidade de perseguir ou punir uma pessoa em razão do seu sexo, raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opiniões políticas, ou que a satisfação daquele pedido provocaria um prejuízo a essa pessoa por alguma destas razões.

15. Os Estados Partes não poderão recusar um pedido de extradição unicamente por considerarem que a infracção envolve também questões fiscais.

16. Antes de recusar a extradição, o Estado Parte requerido consultará, se for caso disso, o Estado Parte requerente, a fim de lhe dar a mais ampla possibilidade de apresentar as suas razões e de fornecer informações em apoio das suas alegações.

17. Os Estados Partes procurarão celebrar acordos ou protocolos bilaterais e multilaterais com o objectivo de permitir a extradição ou de aumentar a sua eficácia.

Artigo 17º
Transferência de pessoas condenadas

Os Estados Partes poderão considerar a celebração de acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais relativos à transferência para o seu território de pessoas condenadas a penas de prisão ou outras penas privativas de liberdade devido a infracções previstas na presente Convenção, para que aí possam cumprir o resto da pena.

Artigo 18º
Cooperação judiciária

1. Os Estados Partes prestarão reciprocamente toda a assistência judiciária possível no âmbito de investigações, processos e outros actos judiciais relativos às infracções previstas pela presente Convenção, nos termos do artigo 3º, e prestarão reciprocamente uma assistência similar quando o Estado Parte requerente tiver motivos razoáveis para suspeitar de que a infracção a que se referem as alíneas a) ou b) do nº 1 do artigo 3º é de carácter transnacional, inclusive quando as vítimas, as testemunhas, o produto, os instrumentos ou os elementos de prova destas infracções se encontrem no Estado Parte requerido e nelas esteja implicado um grupo criminoso organizado.

2. Será prestada toda a cooperação judiciária possível, tanto quanto o permitam as leis, tratados, acordos e protocolos pertinentes do Estado Parte requerido, no âmbito de investigações, processos e outros actos judiciais relativos a infracções pelas quais possa ser considerada responsável uma pessoa colectiva no Estado Parte requerente, em conformidade com o artigo 10º da presente Convenção.

3. A cooperação judiciária prestada em aplicação do presente artigo pode ser solicitada para os seguintes efeitos:
a) Recolher testemunhos ou depoimentos;
b) Notificar actos judiciais;
c) Efectuar buscas, apreensões e embargos;
d) Examinar objectos e locais;
e) Fornecer informações, elementos de prova e pareceres de peritos;
f) Fornecer originais ou cópias certificadas de documentos e processos pertinentes, incluindo documentos administrativos, bancários, financeiros ou comerciais e documentos de empresas;
g) Identificar ou localizar os produtos do crime, bens, instrumentos ou outros elementos para fins probatórios;
h) Facilitar a comparência voluntária de pessoas no Estado Parte requerente;
i) Prestar qualquer outro tipo de assistência compatível com o direito interno do Estado Parte requerido.

4. Sem prejuízo do seu direito interno, as autoridades competentes de um Estado Parte poderão, sem pedido prévio, comunicar informações relativas a questões penais a uma autoridade competente de outro Estado Parte, se considerarem que estas informações poderão ajudar a empreender ou concluir com êxito investigações e processos penais ou conduzir este último Estado Parte a formular um pedido ao abrigo da presente Convenção.

5. A comunicação de informações em conformidade com o nº 4 do presente artigo será efectuada sem prejuízo das investigações e dos processos penais no Estado cujas autoridades competentes fornecem as informações. As autoridades competentes que recebam estas informações deverão satisfazer qualquer pedido no sentido de manter confidenciais as referidas informações, mesmo se apenas temporariamente, ou de restringir a sua utilização. Todavia, tal não impedirá o Estado Parte que receba as informações de revelar, no decurso do processo judicial, informações que ilibem um arguido. Neste último caso, o Estado Parte que recebeu as informações avisará o Estado Parte que as comunicou antes de as revelar e, se lhe for pedido, consultará este último. Se, num caso excepcional, não for possível uma comunicação prévia, o Estado Parte que recebeu as informações dará conhecimento da revelação, prontamente, ao Estado Parte que as tenha comunicado.

6. As disposições do presente artigo em nada prejudicam as obrigações decorrentes de qualquer outro tratado bilateral ou multilateral que regule, ou deva regular, inteiramente ou em parte, a cooperação judiciária.

7. Os nºs 9 a 29 do presente artigo serão aplicáveis aos pedidos feitos em conformidade com o presente artigo, no caso de os Estados Partes em questão não estarem ligados por um tratado de cooperação judiciária. Se os referidos Estados Partes estiverem ligados por tal tratado, serão aplicáveis as disposições correspondentes desse tratado, a menos que os Estados Partes concordem em aplicar, em seu lugar, as disposições dos nºs 9 a 29 do presente artigo. Os Estados Partes são vivamente instados a aplicar estes números, se tal facilitar a cooperação.

8. Os Estados Partes não poderão invocar o sigilo bancário para recusar a cooperação judiciária prevista no presente artigo.

9. Os Estados Partes poderão invocar a ausência de dupla criminalização para recusar prestar a assistência judiciária prevista no presente artigo. O Estado Parte requerido poderá, não obstante, quando o considerar apropriado, prestar esta assistência, na medida em que o decida por si próprio, independentemente de o acto estar ou não tipificado como uma infracção no direito interno do Estado Parte requerido.

10. Qualquer pessoa detida ou a cumprir pena no território de um Estado Parte, cuja presença seja requerida num outro Estado Parte para efeitos de identificação, para testemunhar ou para contribuir por qualquer outra forma para a obtenção de provas no âmbito de investigações, processos ou outros actos judiciais relativos às infracções visadas na presente Convenção, pode ser objecto de uma transferência, se estiverem reunidas as seguintes condições:
a) Se a referida pessoa, devidamente informada, der o seu livre consentimento;
b) Se as autoridades competentes dos dois Estados Partes em questão derem o seu consentimento, sob reserva das condições que estes Estados Partes possam considerar convenientes.

11. Para efeitos do nº 10 do presente artigo:
a) O Estado Parte para o qual a transferência da pessoa em questão for efectuada terá o poder e a obrigação de a manter detida, salvo pedido ou autorização em contrário do Estado Parte do qual a pessoa foi transferida;
b) O Estado Parte para o qual a transferência for efectuada cumprirá prontamente a obrigação de entregar a pessoa à guarda do Estado Parte do qual foi transferida, em conformidade com o que tenha sido previamente acordado ou com o que as autoridades competentes dos dois Estados Partes tenham decidido;
c) O Estado Parte para o qual for efectuada a transferência não poderá exigir do Estado Parte do qual a transferência foi efectuada que abra um processo de extradição para que a pessoa lhe seja entregue;
d) O período que a pessoa em questão passe detida no Estado Parte para o qual for transferida é contado para o cumprimento da pena que lhe tenha sido aplicada no Estado Parte do qual for transferida;

12. A menos que o Estado Parte do qual a pessoa for transferida, ao abrigo dos nºs 10 e 11 do presente artigo, esteja de acordo, a pessoa em questão, seja qual for a sua nacionalidade, não será objecto de processo judicial, detida, punida ou sujeita a outras restrições à sua liberdade de movimentos, no território do Estado Parte para o qual seja transferida, devido a actos, omissões ou condenações anteriores à sua partida do território do Estado Parte do qual foi transferida.

13. Cada Estado Parte designará uma autoridade central que terá a responsabilidade e o poder de receber pedidos de cooperação judiciária e, quer de os executar, quer de os transmitir às autoridades competentes para execução. Se um Estado Parte possuir uma região ou um território especial dotado de um sistema de cooperação judiciária diferente, poderá designar uma autoridade central distinta, que terá a mesma função para a referida região ou território. As autoridades centrais asseguram a execução ou a transmissão rápida e em boa e devida forma dos pedidos recebidos. Quando a autoridade central transmitir o pedido a uma autoridade competente para execução, instará pela execução rápida e em boa e devida forma do pedido por parte da autoridade competente. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas será notificado da autoridade central designada para este efeito no momento em que cada Estado Parte depositar os seus instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão à presente Convenção. Os pedidos de cooperação judiciária e qualquer comunicação com eles relacionada serão transmitidos às autoridades centrais designadas pelos Estados Partes. A presente disposição não afectará o direito de qualquer Estado Parte a exigir que estes pedidos e comunicações lhe sejam remetidos por via diplomática e, em caso de urgência, e se os Estados Partes nisso acordarem, por intermédio da Organização Internacional de Polícia Criminal, se tal for possível.

14. Os pedidos são enviados por escrito ou, se possível, por qualquer outro meio que possa produzir um documento escrito, numa língua que seja aceite pelo Estado Parte requerido, em condições que permitam a este Estado Parte verificar a sua autenticidade. A língua ou as línguas aceites por cada Estado Parte são notificadas ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas no momento em que o Estado Parte em questão depositar os seus instrumentos de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão à presente Convenção. Em caso de urgência, e se os Estados Partes nisso acordarem, os pedidos poderão ser feitos oralmente, mas deverão ser imediatamente confirmados por escrito.

15. Um pedido de cooperação judiciária deverá conter as seguintes informações:
a) A designação da autoridade que emite o pedido;
b) O objecto e a natureza da investigação, dos processos ou dos outros actos judiciais a que se refere o pedido, bem como o nome e as funções da autoridade que os tenha a cargo;
c) Um resumo dos factos relevantes, salvo no caso dos pedidos efectuados para efeitos de notificação de actos judiciais;
d) Uma descrição da assistência pretendida e pormenores de qualquer procedimento específico que o Estado Parte requerente deseje ver aplicado;
e) Caso seja possível, a identidade, endereço e nacionalidade de qualquer pessoa visada; e
f) O fim para o qual são pedidos os elementos, informações ou medidas.

16. O Estado Parte requerido poderá solicitar informações adicionais, quando tal se afigure necessário à execução do pedido em conformidade com o seu direito interno, ou quando tal possa facilitar a execução do pedido.

17. Qualquer pedido será executado em conformidade com o direito interno do Estado Parte requerido e, na medida em que tal não contrarie este direito e seja possível, em conformidade com os procedimentos especificados no pedido.

18. Se for possível e em conformidade com os princípios fundamentais do direito interno, quando uma pessoa que se encontre no território de um Estado Parte deva ser ouvida como testemunha ou como perito pelas autoridades judiciais de outro Estado Parte, o primeiro Estado Parte poderá, a pedido do outro, autorizar a sua audição por videoconferência, se não for possível ou desejável que a pessoa compareça no território do Estado Parte requerente. Os Estados Partos poderão acordar em que a audição seja conduzida por uma autoridade judicial do Estado Parte requerente e que a ela assista uma autoridade judicial do Estado Parte requerido.

19. O Estado Parte requerente não comunicará nem utilizará as informações ou os elementos de prova fornecidos pelo Estado Parte requerido para efeitos de investigações, processos ou outros actos judiciais diferentes dos mencionados no pedido sem o consentimento prévio do Estado Parte requerido. O disposto neste número não impedirá o Estado Parte requerente de revelar, durante o processo, informações ou elementos de prova ilibatórios de um arguido. Neste último caso, o Estado Parte requerente avisará, antes da revelação, o Estado Parte requerido e, se tal lhe for pedido, consultará este último. Se, num caso excepcional, não for possível uma comunicação prévia, o Estado Parte requerente informará da revelação, prontamente, o Estado Parte requerido.

20. O Estado Parte requerente poderá exigir que o Estado Parte requerido guarde sigilo sobre o pedido e o seu conteúdo, salvo na medida do que seja necessário para o executar. Se o Estado Parte requerido não puder satisfazer esta exigência, informará prontamente o Estado Parte requerente.

21. A cooperação judiciária poderá ser recusada:
a) Se o pedido não for feito em conformidade com o disposto no presente artigo;
b) Se o Estado Parte requerido considerar que a execução do pedido é susceptível de pôr em causa a sua soberania, a sua segurança, a sua ordem pública ou outros interesses essenciais;
c) Se o direito interno do Estado Parte requerido proibisse as suas autoridades de executarem as providências solicitadas numa infracção análoga que fosse objecto de uma investigação ou de um procedimento judicial no âmbito da sua própria competência;
d) Se a aceitação do pedido contrariar o sistema jurídico do Estado Parte requerido no que se refere à cooperação judiciária.

22. Os Estados Partes não poderão recusar um pedido de cooperação judiciária unicamente por considerarem que a infracção envolve também questões fiscais.

23. Qualquer recusa de cooperação judiciária deverá ser fundamentada.

24. O Estado Parte requerido executará o pedido de cooperação judiciária tão prontamente quanto possível e terá em conta, na medida do possível, todos os prazos sugeridos pelo Estado Parte requerente para os quais sejam dadas justificações, de preferência no pedido. O Estado Parte requerido responderá aos pedidos razoáveis do Estado Parte requerente quanto ao andamento das diligências solicitadas. Quando a assistência pedida deixar de ser necessária, o Estado Parte requerente informará prontamente desse facto o Estado Parte requerido.

25. A cooperação judiciária poderá ser diferida pelo Estado Parte requerido por interferir com uma investigação, processos ou outros actos judiciais em curso.

26. Antes de recusar um pedido ao abrigo do nº 21 do presente artigo ou de diferir a sua execução ao abrigo do nº 25, o Estado Parte requerido estudará com o Estado Parte requerente a possibilidade de prestar a assistência sob reserva das condições que considere necessárias. Se o Estado Parte requerente aceitar a assistência sob reserva destas condições, deverá respeitá–las.

27. Sem prejuízo da aplicação do nº 12 do presente artigo, uma testemunha, um perito ou outra pessoa que, a pedido do Estado Parte, aceite depor num processo ou colaborar numa investigação, em processos ou outros actos judiciais no território do Estado Parte requerente, não será objecto de processo, detida, punida ou sujeita a outras restrições à sua liberdade pessoal neste território, devido a actos, omissões ou condenações anteriores à sua partida do território do Estado Parte requerido. Esta imunidade cessa quando a testemunha, o perito ou a referida pessoa, tendo tido, durante um período de quinze dias consecutivos ou qualquer outro período acordado pelos Estados Partes, a contar da data em que recebeu a comunicação oficial de que a sua presença já não era exigida pelas autoridades judiciais, a possibilidade de deixar o território do Estado Parte requerente, nele tenha voluntariamente permanecido ou, tendo–o deixado, a ele tenha regressado de livre vontade.

28. As despesas correntes com a execução de um pedido serão suportadas pelo Estado Parte requerido, salvo acordo noutro sentido dos Estados Partes interessados. Quando venham a revelar–se necessárias despesas significativas ou extraordinárias para executar o pedido, os Estados Partes consultar–se–ão para fixar as condições segundo as quais o pedido deverá ser executado, bem como o modo como as despesas serão assumidas.

29. O Estado Parte requerido:
a) Fornecerá ao Estado Parte requerente cópias dos processos, documentos ou informações administrativas que estejam em seu poder e que, por força do seu direito interno, estejam acessíveis ao público;
b) Poderá, se assim o entender, fornecer ao Estado Parte requerente, na íntegra ou nas condições que considere apropriadas, cópias de todos os processos, documentos ou informações que estejam na sua posse e que, por força do seu direito interno, não sejam acessíveis ao público.

30. Os Estados Partes considerarão, se necessário, a possibilidade de celebrarem acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais que sirvam os objectivos e as disposições do presente artigo, reforçando–as ou dando–lhes maior eficácia.
Na ausência de tais acordos ou protocolos, poderá ser decidida casuisticamente a realização de investigações conjuntas. Os Estados Partes envolvidos agirão de modo a que a soberania do Estado Parte em cujo território decorre a investigação seja plenamente respeitada.

Artigo 19º
Investigação conjunta

Os Estados Partes comprometem–se a celebrar acordos bilaterais ou multilaterais por força dos quais, relativamente às matérias que são objecto de investigações, de procedimentos criminais ou de processos judiciais num ou em vários Estados, as autoridades competentes envolvidas podem estabelecer equipas de investigações conjuntas.
Na ausência destes acordos, as investigações conjuntas podem ser decididas caso a caso. Os Estados Partes em causa velarão por que a soberania do Estado Parte no território do qual a investigação deve decorrer seja plenamente respeitada.

Artigo 20º
Técnicas especiais de investigação

1. Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adoptará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância electrónica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada.

2. Para efeitos de investigações sobre as infracções previstas na presente Convenção, os Estados Partes são instados a celebrar, se necessário, acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais apropriados para recorrer às técnicas especiais de investigação, no âmbito da cooperação internacional. Estes acordos ou protocolos serão celebrados e aplicados sem prejuízo do princípio da igualdade soberana dos Estados e serão executados em estrita conformidade com as disposições neles contidas.

3. Na ausência dos acordos ou protocolos referidos no nº 2 do presente artigo, as decisões de recorrer a técnicas especiais de investigação a nível internacional serão tomadas casuisticamente e poderão, se necessário, ter em conta acordos ou protocolos financeiros relativos ao exercício de jurisdição pelos Estados Partes interessados.

4. As entregas vigiadas a que se tenha decidido recorrer a nível internacional poderão incluir, com o consentimento dos Estados Partes envolvidos, métodos como a intercepção de mercadorias e a autorização de prosseguir o seu encaminhamento, sem alteração ou após subtracção ou substituição da totalidade ou de parte dessas mercadorias.

Artigo 21º
Transferência de processos penais

Os Estados Partes considerarão a possibilidade de transferirem mutuamente os processos relativos a uma infracção prevista na presente Convenção, nos casos em que esta transferência seja considerada necessária no interesse da boa administração da justiça e, em especial, quando estejam envolvidas várias jurisdições, a fim de centralizar a instrução dos processos.

Artigo 22º
Estabelecimento de antecedentes penais

Cada Estado Parte poderá adoptar as medidas legislativas ou outras que sejam necessárias para ter em consideração, nas condições e para os efeitos que entender apropriados, qualquer condenação de que o presumível autor de uma infracção tenha sido objecto noutro Estado, a fim de utilizar esta informação no âmbito de um processo penal relativo a uma infracção prevista na presente Convenção.

Artigo 23º
Criminalização da obstrução à justiça

Cada Estado Parte adoptará medidas legislativas e outras consideradas necessárias para conferir o carácter de infracção penal aos seguintes actos, quando cometidos intencionalmente:
a) O recurso à força física, a ameaças ou a intimidação, ou a promessa, oferta ou concessão de um beneficio indevido para obtenção de um falso testemunho ou para impedir um testemunho ou a apresentação de elementos de prova num processo relacionado com a prática de infracções previstas na presente Convenção;
b) O recurso à força física, a ameaças ou a intimidação para impedir um agente judicial ou policial de exercer os deveres inerentes à sua função relativamente à prática de infracções previstas na presente Convenção. O disposto na presente alínea não prejudica o direito dos Estados Partes de disporem de legislação destinada a proteger outras categorias de agentes públicos.

Artigo 24º
Protecção das testemunhas

1. Cada Estado Parte, dentro das suas possibilidades, adoptará medidas apropriadas para assegurar uma protecção eficaz contra eventuais actos de represália ou de intimidação das testemunhas que, no âmbito de processos penais, deponham sobre infracções previstas na presente Convenção e, quando necessário, aos seus familiares ou outras pessoas que lhes sejam próximas.

2. Sem prejuízo dos direitos do arguido, incluindo o direito a um julgamento regular, as medidas referidas no nº 1 do presente artigo poderão incluir, entre outras:
a) Desenvolver, para a protecção física destas pessoas, procedimentos que visem, consoante as necessidades e na medida do possível, nomeadamente, fornecer–lhes um novo domicílio e impedir ou restringir a divulgação de informações relativas à sua identidade e paradeiro;
b) Estabelecer normas em matéria de prova que permitam às testemunhas depor de forma a garantir a sua segurança, nomeadamente autorizando-as a depor com recurso a meios técnicos de comunicação, como ligações de vídeo ou outros meios adequados.

3. Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos com outros Estados para facultar um novo domicílio às pessoas referidas no nº 1 do presente artigo.

4. As disposições do presente artigo aplicam–se igualmente às vítimas, quando forem testemunhas.

Artigo 25º
Assistência e protecção às vítimas

1. Cada Estado Parte adoptará, segundo as suas possibilidades, medidas apropriadas para prestar assistência e assegurar a protecção às vitimas de infracções previstas na presente Convenção, especialmente em caso de ameaça de represálias ou de intimidação.

2. Cada Estado Parte estabelecerá procedimentos adequados para que as vítimas de infracções previstas na presente Convenção possam obter reparação.

3. Cada Estado Parte, sem prejuízo do seu direito interno, assegurará que as opiniões e preocupações das vítimas sejam apresentadas e tomadas em consideração nas fases adequadas do processo penal aberto contra os autores de infracções, por forma que não prejudique os direitos da defesa.

Artigo 26º
Medidas para intensificar a cooperação com as autoridades competentes para a aplicação da lei

1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados:
a) A fornecerem informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente:
i) A identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou actividades dos grupos criminosos organizados;
ii) As ligações, incluindo à escala internacional, com outros grupos criminosos organizados;
iii) As infracções que os grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar;
b) A prestarem ajuda efectiva e concreta às autoridades competentes, susceptível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do produto do crime.

2. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de que é passível um arguido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infracção prevista na presente Convenção.

3. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder imunidade a uma pessoa que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infracção prevista na presente Convenção.

4. A protecção destas pessoas será assegurada nos termos do artigo 24º da presente Convenção.

5. Quando uma das pessoas referidas no nº 1 do presente artigo se encontre num Estado Parte e possa prestar uma cooperação substancial às autoridades competentes de outro Estado Parte, os Estados Partes em questão poderão considerar a celebração de acordos, em conformidade com o seu direito interno, relativos à eventual concessão, pelo outro Estado Parte, do tratamento descrito nos nºs 2 e 3 do presente artigo.

Artigo 27º
Cooperação entre as autoridades competentes para a aplicação da lei

1. Os Estados Partes cooperarão estreitamente, em conformidade com os seus respectivos ordenamentos jurídicos e administrativos, a fim de reforçar a eficácia das medidas de controlo do cumprimento da lei destinadas a combater as infracções previstas na presente Convenção. Especificamente, cada Estado Parte adoptará medidas eficazes para:
a) Reforçar ou, se necessário, criar canais de comunicação entre as suas autoridades, organismos e serviços competentes, para facilitar a rápida e segura troca de informações relativas a todos os aspectos das infracções previstas na presente Convenção, incluindo, se os Estados Partes envolvidos o considerarem apropriado, ligações com outras actividades criminosas;
b) Cooperar com outros Estados Partes, quando se trate de infracções previstas na presente Convenção, na condução de investigações relativas aos seguintes aspectos:
i) Identidade, localização e actividades de pessoas suspeitas de implicação nas referidas infracções, bem como localização de outras pessoas envolvidas;
ii) Movimentação do produto do crime ou dos bens provenientes da prática destas infracções;
iii) Movimentação de bens, equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados a ser utilizados na prática destas infracções;
c) Fornecer, quando for caso disso, os elementos ou as quantidades de substâncias necessárias para fins de análise ou de investigação;
d) Facilitar uma coordenação eficaz entre as autoridades, organismos e serviços competentes e promover o intercâmbio de pessoal e de peritos, incluindo, sob reserva da existência de acordos ou protocolos bilaterais entre os Estados Partes envolvidos, a designação de agentes de ligação;
e) Trocar informações com outros Estados Partes sobre os meios e métodos específicos utilizados pelos grupos criminosos organizados, incluindo, se for caso disso, sobre os itinerários e os meios de transporte, bem como o uso de identidades falsas, de documentos alterados ou falsificados ou outros meios de dissimulação das suas actividades;
f) Trocar informações e coordenar as medidas administrativas e outras tendo em vista detectar o mais rapidamente possível as infracções previstas na presente Convenção.

2. Para dar aplicação à presente Convenção, os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais que prevejam uma cooperação directa entre as suas autoridades competentes para a aplicação da lei e, quando tais acordos ou protocolos já existam, considerarão a possibilidade de os alterar. Na ausência de tais acordos entre os Estados Partes envolvidos, estes últimos poderão basear–se na presente Convenção para instituir uma cooperação em matéria de detecção e repressão das infracções previstas na presente Convenção. Sempre que tal se justifique, os Estados Partes utilizarão plenamente os acordos ou protocolos, incluindo as organizações internacionais ou regionais, para intensificar a cooperação entre as suas autoridades competentes para a aplicação da lei.

3. Os Estados Partes procurarão cooperar, na medida das suas possibilidades, para enfrentar o crime organizado transnacional praticado com recurso a meios tecnológicos modernos.

Artigo 28º
Recolha, intercâmbio e análise de informações sobre a natureza da criminalidade organizada

1. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de analisar, em consulta com os meios científicos e universitários, as tendências da criminalidade organizada no seu território, as circunstâncias em que opera e os grupos profissionais e tecnologias envolvidos.

2. Os Estados Partes considerarão a possibilidade de desenvolver as suas capacidades de análise das actividades criminosas organizadas e de as partilhar directamente entre si e por intermédio de organizações internacionais e regionais. Para este efeito, deverão ser elaboradas e aplicadas, quando for caso disso, definições, normas e metodologias comuns.

3. Cada Estado Parte considerará o estabelecimento de meios de acompanhamento das suas políticas e das medidas tomadas para combater o crime organizado, avaliando a sua aplicação e eficácia.

Artigo 29º
Formação e assistência técnica

1. Cada Estado Parte estabelecerá, desenvolverá ou melhorará, na medida das necessidades, programas de formação específicos destinados ao pessoal das autoridades competentes para a aplicação da lei, incluindo magistrados do ministério público, juízes de instrução e funcionários aduaneiros, bem como outro pessoal que tenha por função prevenir, detectar e reprimir as infracções previstas na presente Convenção. Estes programas, que poderão prever destacamentos e intercâmbio de pessoal, incidirão especificamente, na medida em que o direito interno o permita, nos seguintes aspectos:
a) Métodos utilizados para prevenir, detectar e combater as infracções previstas na presente Convenção;
b) Rotas e técnicas utilizadas pelas pessoas suspeitas de implicação em infracções previstas na presente Convenção, incluindo nos Estados de trânsito, e medidas de luta adequadas;
c) Vigilância das movimentações dos produtos de contrabando;
d) Detecção e vigilância das movimentações do produto do crime, de bens, equipamentos ou outros instrumentos, de métodos de transferência, dissimulação ou disfarce destes produtos, bens, equipamentos ou outros instrumentos, bem como métodos de luta contra o branqueamento de dinheiro e outras infracções financeiras;
e) Recolha de elementos de prova;
f) Técnicas de controlo nas zonas francas e nos portos francos;
g) Equipamentos e técnicas modernas de detecção e de repressão, incluindo a vigilância electrónica, as entregas vigiadas e as operações de infiltração;
h) Métodos. utilizados para combater o crime organizado transnacional cometido por meio de computadores, de redes de telecomunicações ou outras tecnologias modernas; e
i) Métodos utilizados para a protecção das vítimas e das testemunhas.

2. Os Estados Partes cooperarão no planeamento e execução de programas de investigação e de formação concebidos para o intercâmbio de conhecimentos especializados nos domínios referidos no nº 1 do presente artigo e, para este efeito, recorrerão também, quando for caso disso, a conferências e seminários regionais e internacionais para promover a cooperação e estimular as trocas de pontos de vista sobre problemas comuns, incluindo os problemas e necessidades específicos dos Estados de trânsito.

3. Os Estados Partes incentivarão as actividades de formação e de assistência técnica susceptíveis de facilitar a extradição e a cooperação judiciária. Estas actividades de cooperação e de assistência técnica poderão incluir formação linguística, destacamentos e intercâmbio do pessoal das autoridades centrais ou de organismos que tenham responsabilidades nos domínios em questão.

4. Sempre que se encontrem em vigor acordos bilaterais ou multilaterais, os Estados Partes reforçarão, tanto quanto for necessário, as medidas tomadas no sentido de optimizar as actividades operacionais e de formação no âmbito de organizações internacionais e regionais e no âmbito de outros acordos ou protocolos bilaterais e multilaterais na matéria.
Artigo 30º
Outras medidas: aplicação da Convenção através do desenvolvimento económico e da assistência técnica

1. Os Estados Partes tomarão as medidas adequadas para assegurar a melhor aplicação possível da presente Convenção através da cooperação internacional, tendo em conta os efeitos negativos da criminalidade organizada na sociedade em geral e no desenvolvimento sustentável em particular.

2. Os Estados Partes farão esforços concretos, na medida do possível, em coordenação entre si e com as organizações regionais e internacionais:
a) Para desenvolver a sua cooperação a vários níveis com os países em desenvolvimento, a fim de reforçar a capacidade destes para prevenir e combater a criminalidade organizada transnacional;
b) Para aumentar a assistência financeira e material aos países em desenvolvimento, a fim de apoiar os seus esforços para combater eficazmente a criminalidade organizada transnacional e ajudá–los a aplicar com êxito a presente Convenção;
c) Para fornecer uma assistência técnica aos países em desenvolvimento e aos países com uma economia de transição, a fim de ajudá–los a obter meios para a aplicação da presente Convenção. Para este efeito, os Estados Partes procurarão destinar voluntariamente contribuições adequadas e regulares a uma conta constituída especificamente para este fim no âmbito de um mecanismo de financiamento das Nações Unidas. Os Estados Partes poderão também considerar, especificamente, em conformidade com o seu direito interno e as disposições da presente Convenção, a possibilidade de destinarem à conta acima referida uma percentagem dos fundos ou do valor correspondente do produto do crime ou dos bens confiscados em aplicação das disposições da presente Convenção;
d) Para incentivar e persuadir outros Estados e instituições financeiras, quando tal se justifique, a associarem–se aos esforços desenvolvidos em conformidade com o presente artigo, nomeadamente fornecendo aos países em desenvolvimento mais programas de formação e material moderno, a fim de os ajudar a alcançar os objectivos da presente Convenção.

3. Tanto quanto possível, estas medidas serão tomadas sem prejuízo dos compromissos existentes em matéria de assistência externa ou de outros acordos de cooperação financeira a nível bilateral, regional ou internacional.

4. Os Estados Partes poderão celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou multilaterais relativos a assistência técnica e logística, tendo em conta os acordos financeiros necessários para assegurar a eficácia dos meios de cooperação internacional previstos na presente Convenção, e para prevenir, detectar e combater a criminalidade organizada transnacional.

Artigo 31º
Prevenção

1. Os Estados Partes procurarão elaborar e avaliar projectos nacionais, bem como estabelecer e promover as melhores práticas e políticas para prevenir a criminalidade organizada transnacional.

2. Em conformidade com os princípios fundamentais do seu direito interno, os Estados Partes procurarão reduzir, através de medidas legislativas, administrativas ou outras que sejam adequadas, as possibilidades actuais ou futuras de participação de grupos criminosos organizados em negócios lícitos utilizando o produto do crime. Estas medidas deverão incidir:
a) No reforço da cooperação entre as autoridades competentes para a aplicação da lei, os magistrados do ministério público e as entidades privadas envolvidas, incluindo empresas;
b) Na promoção da elaboração de normas e procedimentos destinados a preservar a integridade das entidades públicas e privadas envolvidas, bem como de códigos deontológicos para determinados profissionais, em particular juristas, notários, consultores fiscais e contabilistas;
c) Na prevenção da utilização indevida, por grupos criminosos organizados, de concursos públicos, bem como de subvenções e licenças concedidas por autoridades públicas para a realização de actividades comerciais;
d) Na prevenção da utilização indevida de pessoas colectivas por grupos criminosos organizados; estas medidas poderão incluir:
i) O estabelecimento de registos públicos de pessoas colectivas e singulares envolvidas na criação, gestão e financiamento de pessoas colectivas;
ii) A possibilidade de privar, por decisão judicial ou por qualquer outro meio adequado, as pessoas condenadas por infracções previstas na presente Convenção, por um período adequado, do direito de exercerem funções de direcção de pessoas colectivas estabelecidas no seu território;
iii) O estabelecimento de registos nacionais de pessoas que tenham sido privadas do direito de exercerem funções de direcção de pessoas colectivas; e
iv) O intercâmbio de informações contidas nos registos referidos nas subalíneas i) e iii) da presente alínea com as autoridades competentes dos outros Estados Partes.

3. Os Estados Partes procurarão promover a reinserção na sociedade das pessoas condenadas por infracções previstas na presente Convenção.

4. Os Estados Partes procurarão avaliar periodicamente os instrumentos jurídicos e as práticas administrativas aplicáveis, a fim de determinar se contêm lacunas que permitam aos grupos criminosos organizados fazerem deles utilização indevida.

5. Os Estados Partes procurarão sensibilizar melhor o público para a existência, as causas e a gravidade da criminalidade organizada transnacional e para a ameaça que representa. Poderão fazê–lo, quando for caso disso, por intermédio dos meios de comunicação social e adoptando medidas destinadas a promover a participação do público nas acções de prevenção e combate à criminalidade.

6. Cada Estado Parte comunicará ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas o nome e o endereço da(s) autoridade(s) que poderão assistir os outros Estados Partes na aplicação das medidas de prevenção da criminalidade organizada transnacional.

7. Quando tal se justifique, os Estados Partes colaborarão, entre si e com as organizações regionais e internacionais competentes, a fim de promover e aplicar as medidas referidas no presente artigo. A este título, participarão em projectos internacionais que visem prevenir a criminalidade organizada transnacional, actuando, por exemplo, sobre os factores que tomam os grupos socialmente marginalizados vulneráveis à sua acção.

Artigo 32º
Conferência das Partes na Convenção

1. Será instituída uma Conferência das Partes na Convenção, para melhorar a capacidade dos Estados Partes no combate à criminalidade organizada transnacional e para promover e analisar a aplicação da presente Convenção.

2. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas convocará a Conferência das Partes, o mais tardar, um ano após a entrada em vigor da presente Convenção. A Conferência das Partes adoptará um regulamento interno e regras relativas às actividades enunciadas nos nºs 3 e 4 do presente artigo (incluindo regras relativas ao financiamento das despesas decorrentes dessas actividades).

3. A Conferência das Partes acordará em mecanismos destinados a atingir os objectivos referidos no nº 1 do presente artigo, nomeadamente:
a) Facilitando as acções desenvolvidas pelos Estados Partes em aplicação dos artigos 29º, 30º e 31º da presente Convenção, inclusive incentivando a mobilização de contribuições voluntárias;
b) Facilitando o intercâmbio de informações entre Estados Partes sobre as características e tendências da criminalidade organizada transnacional e as práticas eficazes para a combater;
c) Cooperando com as organizações regionais e internacionais e as organizações não-governamentais competentes;
d) Avaliando, a intervalos regulares, a aplicação da presente Convenção;
e) Formulando recomendações a fim de melhorar a presente Convenção e a sua aplicação.

4. Para efeitos das alíneas d) e e) do nº 3 do presente artigo, a Conferência das Partes inteirar-se-á das medidas adoptadas e das dificuldades encontradas pelos Estados Partes na aplicação da presente Convenção, utilizando as informações que estes lhe comuniquem e os mecanismos complementares de análise que venha a criar.

5. Cada Estado Parte comunicará à Conferência das Partes, a solicitação desta, informações sobre os seus programas, planos e práticas, bem como sobre as suas medidas legislativas e administrativas destinadas a aplicar a presente Convenção.

Artigo 33º
Secretariado

1. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas fornecerá os serviços de secretariado necessários à Conferência das Partes na Convenção.

2. O secretariado:
a) Apoiará a Conferência das Partes na realização das actividades enunciadas no artigo 32º da presente Convenção, tomará as disposições e prestará os serviços necessários para as sessões da Conferência das Partes;
b) Assistirá os Estados Partes, a pedido destes, no fornecimento à Conferência das Partes das informações previstas no nº 5 do artigo 32º da presente Convenção; e
c) Assegurará a coordenação necessária com os secretariados das organizações regionais e internacionais.

Artigo 34º
Aplicação da Convenção

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias, incluindo legislativas e administrativas, em conformidade com os princípios fundamentais do seu direito interno, para assegurar o cumprimento das suas obrigações decorrentes da presente Convenção.

2. As infracções enunciadas nos artigos 5º, 6º, e 23º da presente Convenção serão incorporadas no direito interno de cada Estado Parte, independentemente da sua natureza transnacional ou da implicação de um grupo criminoso organizado nos termos do nº 1 do artigo 3º da presente Convenção, salvo na medida em que o artigo 5º da presente Convenção exija o envolvimento de um grupo criminoso organizado.

3. Cada Estado Parte poderá adoptar medidas mais estritas ou mais severas do que as previstas na presente Convenção a fim de prevenir e combater a criminalidade organizada transnacional.

Artigo 35º
Resolução de diferendos

1. Os Estados Partes procurarão resolver os diferendos relativos à interpretação ou aplicação da presente Convenção por via negocial.

2. Qualquer diferendo entre dois ou mais Estados Partes relativo à interpretação ou aplicação da presente Convenção que não possa ser resolvido por via negocial num prazo razoável será, a pedido de um destes Estados Partes, sujeito a arbitragem. Se, no prazo de seis meses a contar da data do pedido de arbitragem, os Estados Partes não chegarem a acordo sobre a organização da arbitragem, qualquer deles poderá submeter o diferendo ao Tribunal Internacional de Justiça, mediante requerimento em conformidade com o Estatuto do Tribunal.

3. Qualquer Estado Parte poderá, no momento da assinatura, da ratificação, da aceitação ou da aprovação da presente Convenção, ou da adesão a esta, declarar que não se considera vinculado pelo nº 2 do presente artigo. Os outros Estados Partes não estarão vinculados pelo nº 2 do presente artigo em relação a qualquer Estado Parte que tenha formulado esta reserva.

4. Um Estado Parte que tenha formulado uma reserva ao abrigo do nº 3 do presente artigo poderá retirá-Ia a qualquer momento, mediante notificação do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 36º
Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação e adesão

1. A presente Convenção será aberta à assinatura de todos os Estados entre 12 e 15 de Dezembro de 2000, em Palermo (Itália) e, seguidamente, na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque, até 12 de Dezembro de 2002.

2. A presente Convenção estará igualmente aberta à assinatura de organizações regionais de integração económica, desde que pelos menos um Estado Membro dessa organização tenha assinado a presente Convenção, em conformidade com o nº 1 do presente artigo.

3. A presente Convenção será submetida a ratificação, aceitação ou aprovação. Os instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação serão depositados junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas. Uma organização regional de integração económica poderá depositar os seus instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação se pelo menos um dos seus Estados Membros o tiver feito. Neste instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação, a organização declarará o âmbito da sua competência em relação às questões que são objecto da presente Convenção.
Informará igualmente o depositário de qualquer alteração relevante do âmbito da sua competência.

4. A presente Convenção estará aberta à adesão de qualquer Estado ou de qualquer organização regional de integração económica de que, pelo menos, um Estado membro seja parte na presente Convenção. Os instrumentos de adesão serão depositados junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas. No momento da sua adesão, uma organização regional de integração económica declarará o âmbito da sua competência em relação às questões que são objecto da presente Convenção. Informará igualmente o depositário de qualquer alteração relevante do âmbito dessa competência.

Artigo 37º
Relação com os protocolos

1. A presente Convenção poderá ser completada por um ou mais protocolos.

2. Para se tornar Parte num protocolo, um Estado ou uma organização regional de integração económica deverá igualmente ser Parte na presente Convenção.

3. Um Estado Parte na presente Convenção não estará vinculado por um protocolo, a menos que se torne Parte do mesmo protocolo, em conformidade com as disposições deste.

4. Qualquer protocolo à presente Convenção será interpretado conjuntamente com a presente Convenção, tendo em conta a finalidade do mesmo protocolo.

Artigo 38º
Entrada em vigor

1. A presente Convenção entrará em vigor no nonagésimo dia seguinte à data de depósito do quadragésimo instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão. Para efeitos do presente número, nenhum dos instrumentos depositados por uma organização regional de integração económica será somado aos instrumentos já depositados pelos Estados membros dessa organização.

2. Para cada Estado ou organização regional de integração económica que ratifique, aceite ou aprove a presente Convenção ou a ela adira após o depósito do quadragésimo instrumento pertinente, a presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia seguinte à data de depósito do instrumento pertinente do referido Estado ou organização.

Artigo 39º
Emendas

1. Quando tiverem decorrido cinco anos a contar da entrada em vigor da presente Convenção, um Estado Parte poderá propor uma emenda e depositar o respectivo texto junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, que em seguida comunicará a proposta de emenda aos Estados Partes e à Conferência das Partes na Convenção, para exame da proposta e adopção de uma decisão. A Conferência das Partes esforçar-se--á por chegar a um consenso sobre qualquer emenda. Se todos os esforços nesse sentido se tiverem esgotado sem que se tenha chegado a acordo, será necessário, como último recurso para que a emenda seja aprovada, uma votação por maioria de dois terços dos votos expressos dos Estados Partes presentes na Conferência das Partes.

2. Para exercerem, ao abrigo do presente artigo, o seu direito de voto nos domínios em que sejam competentes, as organizações regionais de integração económica disporão de um número de votos igual ao número dos seus Estados Membros que sejam Partes na presente Convenção. Não exercerão o seu direito de voto quando os seus Estados Membros exercerem os seus, e inversamente.

3. Uma emenda aprovada em conformidade com o nº 1 do presente artigo estará sujeita à ratificação, aceitação ou aprovação dos Estados Partes.

4. Uma emenda aprovada em conformidade com o nº 1 do presente artigo entrará em vigor para um Estado Parte noventa dias após a data de depósito pelo mesmo Estado Parte junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas de um instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação da referida emenda.

5. Uma emenda que tenha entrado em vigor será vinculativa para os Estados Partes que tenham declarado o seu consentimento em serem por ela vinculados. Os outros Estados Partes permanecerão vinculados pelas disposições da presente Convenção e por todas as emendas anteriores que tenham ratificado, aceite ou aprovado.

Artigo 40º
Denúncia

1. Um Estado Parte poderá denunciar a presente Convenção mediante notificação escrita dirigida ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas. A denúncia tornar-se-á efectiva um ano após a data da recepção da notificação pelo Secretário Geral.

2. Uma organização regional de integração económica cessará de ser Parte na presente Convenção quando todos os seus Estados Membros a tenham denunciado.

3. A denúncia da presente Convenção, em conformidade com o nº 1 do presente artigo, implica a denúncia de qualquer protocolo a ela associado.

Artigo 41º
Depositário e línguas

1. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas será o depositário da presente Convenção.
2. O original da presente Convenção, cujos textos em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e russo fazem igualmente fé, será depositado junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas.

EM FÉ DO QUE, os plenipotenciários abaixo assinados, devidamente mandatados para o efeito pelos respectivos Governos, assinaram a presente Convenção.”



1. O artigo 1º da Convenção coloca o acento tónico na cooperação. Como se assinalou, só uma cooperação estreita entre os Estados pode permitir aspirar a uma maior eficácia no combate ao crime organizado. A norma é expressão de um dos aspectos realçados no texto do Projecto de Resolução da Assembleia Geral da ONU, relativo à adopção da Convenção, em que aquela se mostrava “profundamente preocupada pelas incidências nefastas, nos planos económico e social, das actividades criminosas organizadas, e convencida da urgência em reforçar a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente essas actividades aos níveis nacional, regional e internacional” ([67]).

Esta disposição não coloca dúvidas de legalidade, sendo hoje a cooperação reconhecida como essencial na comunidade internacional, com franco acolhimento nos ordenamentos internos. Entre nós, tem assento constitucional o princípio da cooperação nas relações internacionais (artigo 7º, nº 1, da Constituição) e a lei interna criou em torno da ideia de cooperação um regime geral sobre cooperação judiciária penal, a denominada Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal [Lei nº 144/99, de 31 de Agosto ([68])], que se faz apoiar sobre o princípio da reciprocidade (artigo 4º, nº 1, da citada Lei).


2. O artigo 2º da Convenção contém o quadro conceptual essencial em que assenta todo o articulado, pelo que justifica uma análise mais circunstanciada.

2.1. O conceito de “grupo criminoso organizado” consagrado na alínea a) do artigo 2º da Convenção apela aos seguintes elementos: estruturação; composição por 3 ou mais pessoas; duração temporal; actuação concertada; intenção de cometer um ou mais crimes determinados; intenção de obter benefício económico ou outro benefício material. Por sua vez, o que seja essa estruturação resulta da definição de “grupo estruturado” constante da alínea c) do mesmo artigo.

2.1.1. Como se disse supra, a criminalidade organizada não coincide com o conceito de “associação criminosa”, embora esta constitua expressão jurídica essencial do fenómeno.

A organização criminosa, enquanto tipo legal de crime, tem, entre nós, múltiplas manifestações: no Código Penal, surge o crime de “associação criminosa” [artigo 299º ([69])] e, como tipo qualificado, o crime de organização terrorista [artigo 300º ([70])]; na legislação da droga [Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro ([71])], deparamos com o crime de “associação criminosa” para a prática de tráfico de estupefacientes ou de percursores (artigo 28º, nºs 1 a 3) ou para a prática de branqueamento de capitais provenientes de tráfico de estupefacientes ou de precursores (artigo 28º, nº 4) ([72]); em matéria de estrangeiros [Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto ([73])], prevê-se o crime de “associação de auxílio à imigração ilegal” [artigo 135º ([74])]; e, no domínio das infracções tributárias [Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho ([75])], encontramos o crime de “associação criminosa” para a prática de crimes tributários, nos quais se incluem os crimes aduaneiros ([76]), os crimes fiscais e os crimes contra a segurança social [artigo 89º do mencionado Regime Geral ([77])] – constituindo todos estes crimes contidos em legislação extravagante tipos especiais relativamente ao tipo-base do artigo 299º do Código Penal.

Por sua vez, no plano processual, o nosso legislador usa a noção de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada” [definida no artigo 1º, nº 2, do Código de Processo Penal ([78])] para identificar um conjunto de condutas típicas a que associa a possibilidade de adopção de medidas processuais de excepção na investigação dos respectivos ilícitos: determinação pelo Ministério Público da não-comunicação do arguido detido com pessoa alguma, salvo o defensor, antes do primeiro interrogatório judicial (artigo 143º, nº 4); realização de revistas e buscas por iniciativa de órgão de polícia criminal sem exigência de autorização prévia por autoridade judiciária, desde que haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa [artigo 174º, nº 4, alínea a)]; realização de buscas domiciliárias por ordem do Ministério Público ou por iniciativa de órgão de polícia criminal sem exigência de autorização prévia de um juiz, desde que verificado o mesmo condicionalismo previsto no artigo 174º, nº 4, alínea a) (artigo 177º, nº 2); determinação de escutas telefónicas para a sua investigação por juiz diferente do territorialmente competente [artigo 187º, nº 2, alínea a)]; prolongamento dos prazos de duração máxima da prisão preventiva, que podem ainda ter um acréscimo suplementar quando o processo se revelar de excepcional complexidade devido ao carácter altamente organizado do crime (artigo 215º, nºs 2 e 3).

Também essa noção processual de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada” não coincide com o conceito de crime organizado, na medida em que, designadamente, os crimes violentos não têm de ser perpetrados de forma necessariamente organizada, para além de que o legislador integra aí, a par dos crimes de “associação criminosa” ([79]), “organização terrorista” e “terrorismo” [artigo 1º, nº 2, alínea a)], todos os crimes dolosos contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas, que sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos [artigo 1º, nº 2, alínea b)].

Simultaneamente, a noção processual de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada” foi ainda ampliada com a equiparação operada pelo artigo 51º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 ([80]), de forma a nela integrar os crimes de tráfico de estupefacientes, tráfico de precursores, branqueamento de capitais provenientes de tráfico de estupefacientes ou de precursores (incluindo quanto a estes primeiros três tipos de crime a sua forma agravada), associação criminosa para a prática de tráfico de estupefacientes ou de percursores ou para a prática de branqueamento de capitais provenientes de tráfico de estupefacientes ou de precursores (artigos 21º a 24º e 28º) – sendo certo que esses três primeiros crimes não exigem necessariamente a intervenção duma estrutura organizada.

2.1.2. Sendo a ideia de crime organizado nuclearmente fundada na figura da organização criminosa, importa fixar os traços caracterizadores do conceito português de associação criminosa, tal como se revelam no conjunto das normas penais supra identificadas, com vista a um posterior confronto com o conceito convencional de “grupo criminoso organizado”.

Segundo FIGUEIREDO DIAS ([81]), para haver associação criminosa tem de ocorrer um “encontro de vontades dos participantes” que dê “origem a uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros”, donde resulta a exigência de verificação dos seguintes requisitos:

a) uma pluralidade de pessoas;
b) uma certa duração temporal (a adequada à realização do fim criminoso);
c) um mínimo de estrutura organizatória (a necessária a servir de substrato material à existência de algo que supere os simples agentes e que supõe uma certa estabilidade ou permanência das pessoas que compõem a organização);
d) um qualquer processo de formação da vontade colectiva (que não se confunde com a expressão da vontade individual do chefe de um grupo que actua em nome e no proveito exclusivos daquele);
e) um sentimento comum de ligação, por parte dos membros da associação (a algo que os transcende e que se apresenta como uma unidade diferente de qualquer uma das individualidades componentes).

Para o autor, o tipo objectivo do crime de “associação criminosa” exige igualmente que a actividade da organização seja dirigida à prática de crimes, ainda que a prática de crimes concretos não seja necessária à consumação do tipo, constituindo requisitos adicionais:

f) ser a prática de crimes um pressuposto essencial para que a associação atinja os seus fins;
g) ser a associação destinada à prática de vários crimes indeterminados ou só genericamente definidos [e não apenas um único crime ([82]) e não necessariamente crimes de diferente natureza].

Distinguem-se, assim, o crime de organização dos crimes da organização, existindo entre aquele e estes uma relação de concurso efectivo ou verdadeiro de infracções, nos termos do artigo 30º, nº 1, do Código Penal.

No plano subjectivo, o crime de associação criminosa é um tipo necessariamente doloso, que pode ser preenchido por qualquer das formas de dolo, incluindo o dolo eventual.

2.1.3. A construção doutrinária da figura da “associação criminosa” revela-se, assim, particularmente exigente, propondo a conjugação de vários requisitos, de difícil verificação simultânea – o que torna o tipo legal inaplicável a muitas situações tidas como de criminalidade organizada, quando vistas de uma perspectiva criminológica ou policial. Por sua vez, a jurisprudência nacional tem hesitado entre uma interpretação não tão estrita do tipo do artigo 299º, alegadamente em maior sintonia com a letra do preceito ([83]), e uma leitura mais próxima da perspectiva doutrinária referida ([84]).

Quando se acolha a concepção mais rigorosa de associação criminosa, o confronto dessa noção legal interna com o conceito convencional de “grupo criminoso organizado” evidencia alguma descontinuidade entre os respectivos requisitos: designadamente, em termos de interpretação declarativa do texto convencional ([85]), não se extrai dos elementos definidores do “grupo criminoso organizado” a ideia de uma realidade transcendente à vontade e interesses individuais dos seus membros, a qual corresponde à exigência doutrinal de um sentimento comum de ligação desses membros a essa realidade transcendente. Se analisada assim a questão, o conceito da lei interna ficaria aquém do conceito convencional, o que obrigaria a um alargamento do tipo previsto no artigo 299º do Código Penal.

Porém, é perfeitamente sustentável que se deva fazer aquela exigência também para o conceito estabelecido na Convenção, já que – na perspectiva doutrinária – se trata de um requisito conatural à noção de estrutura organizada, não dependente duma consagração expressa, que, aliás, também não existe na letra do artigo 299º.

Nesta medida, uma leitura harmonizada da Convenção e da lei interna sobre este ponto conceptual afigura-se mais coerente e permite dispensar uma intervenção legislativa, que sempre seria polémica no seu alcance, por contrária a uma orientação doutrinária dominante. E para a tese oposta, que não vê esse elemento transcendental no tipo do artigo 299º, também não se justificaria alterar a norma legal face a um conceito da Convenção que também não apela literalmente a esse elemento.

2.1.4. Mas ocorrem outras divergências entre os requisitos das noções em confronto: quanto ao número mínimo de membros; quanto ao número de crimes projectados; e quanto à intenção específica dos agentes.

2.1.4.1. Em relação ao número de membros, assinala-se nas «Notas interpretativas», integradas no Relatório do Comité Ad Hoc sobre os trabalhos preparatórios da Convenção ([86]), que o número indicado de “três ou mais pessoas” não prejudica o direito dos Estados de adoptarem “medidas mais estritas ou mais severas”, em conformidade com o artigo 34º, nº 3, da Convenção. É, assim, possível que a lei interna de qualquer Estado-parte defina o grupo criminoso organizado na base da conjugação de esforços de um mínimo de duas pessoas, sem que isso importe qualquer contrariedade à Convenção.

Recorde-se, a este propósito, a dúvida criada à volta do tipo legal de “associação criminosa” (actual artigo 299º, anterior artigo 287º do Código Penal): o preceito não menciona o número mínimo de membros, tendo FIGUEIREDO DIAS inicialmente admitido que pudessem bastar duas pessoas, por ser esse o número indicado no tipo legal de “organização terrorista” (actual artigo 300º, anterior artigo 288º), que constitui crime qualificado face ao do artigo 299º e que aqui teria um valor enunciativo do conteúdo do conceito de “associação criminosa” ([87]); mais recentemente, o mesmo autor revela a sua inclinação pela exigência de um mínimo de três pessoas, que se lhe afigura mais razoável e que considera poder extrair-se da omissão do legislador por contraponto à expressa indicação de duas pessoas para a “organização terrorista” ([88]).

Seja qual for a interpretação adoptada, qualquer delas é, como se deixou dito, compatível neste ponto com o conceito resultante da Convenção.

2.1.4.2. Por outro lado, verifica-se a inclusão no conceito convencional de um requisito que não tem equivalente na lei interna, o qual consiste num elemento subjectivo da ilicitude ou intenção específica, que se consubstancia na referida “intenção de obter benefício económico ou outro benefício material”.

Quanto a este segmento normativo, refere-se nas «Notas interpretativas» que o mesmo deve ser interpretado amplamente, podendo incluir uma “gratificação sexual”, como a recepção de materiais pornográficos por membros de círculos pedófilos, o “comércio” de crianças por membros desses círculos ou a repartição de despesas entre tais membros.

De qualquer modo, a não inclusão desse requisito na lei interna só significa que o nosso conceito legal tem, neste ponto, um carácter mais amplo que o conceito da Convenção. Tendo em conta a natureza própria deste tipo de normas convencionais, produto de um consenso em termos de mínimo denominador comum entre os Estados, e mais uma vez o disposto no artigo 34º, nº 3, da Convenção, nada obsta a que cada Estado estabeleça internamente tipos legais mais abrangentes, que sejam mais severos, na medida em que punam situações que estão para além dos limites fixados na própria Convenção.

2.1.4.3. No que respeita ao número de crimes que servem de escopo da associação, detecta-se uma evidente desconformidade entre a lei interna e a solução da Convenção. Com efeito, enquanto o artigo 299º do Código Penal fala da “prática de crimes”, fazendo uso do plural, o preceito convencional utiliza a expressão “cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção”.

Como se indicou supra, a posição doutrinária já referenciada considera que “não bastará nunca que o acordo colectivo se destine à prática de um único crime” ([89]), atribuindo significado relevante à letra da lei, ou seja, ao uso do plural, ainda que a par de razões históricas e político-criminais que imporão essa pluralidade criminosa, ressalvada apenas a situação de crime continuado composto por vários comportamentos autónomos. Para todas as restantes hipóteses de crime único projectado, estará afastada a possibilidade de serem enquadradas na figura de “associação criminosa”.

Daqui decorre que o conceito do direito interno é menos amplo que o consagrado na Convenção, o que exige uma alteração do texto do artigo 299º de forma a que ele se passe a referir a associação que tenha por escopo a prática de um ou mais crimes, em conformidade com a disposição internacional a que Portugal pretendeu vincular-se.

Refira-se, como contraponto, que a necessária ampliação da tipicidade não provocará aqui, atentos os valores e interesses envolvidos, qualquer ofensa ao princípio constitucional da intervenção mínima ou da subsidiariedade da tutela penal ([90]).

2.1.4.4. Quanto à natureza dos crimes projectados pelo “grupo criminoso organizado”, a noção convencional remete para os crimes estabelecidos na Convenção, concretamente nos artigos 5º, 6º, 8º e 23º, e para os crimes considerados “graves” pela Convenção, que se aferem por um determinado limite máximo de pena, como veremos infra.

Na definição interna de associação criminosa não existe, na letra da lei, qualquer limitação aos tipos de crimes visados pela organização, já que se utiliza, sem outra especificação, a expressão “prática de crimes” – pelo que, nessa leitura, não haveria qualquer incompatibilidade com a Convenção, uma vez que, como vimos acima, esta não impede qualquer solução dos direitos internos de carácter mais severo ou mais amplo.

Porém, no plano doutrinário, foi sustentada por FIGUEIREDO DIAS uma interpretação limitadora do alcance da expressão “prática de crimes”, em termos de esta não incluir crimes do denominado direito penal secundário, que concerne, por contraponto ao direito penal primário ou de justiça, às infracções respeitantes a valores supra-individuais ligados à actividade económica ou social ([91]). Assim estariam fora do escopo de actuação das associações criminosas os crimes do direito penal económico, fiscal ou aduaneiro, embora já não os do direito penal só formalmente secundário, como os referentes ao tráfico ilícito de estupefacientes. Mas, entretanto, o autor reformulou a sua posição, admitindo agora que o direito penal secundário, nomeadamente económico, possa integrar o escopo duma associação criminosa, em atenção a um invocado aumento da ressonância ética dos respectivos crimes, que reconhece serem hoje “campo por excelência de actuação da criminalidade organizada” ([92]).

Perante a evolução doutrinária descrita, não parece já justificar-se uma interpretação restritiva da expressão “prática de crimes”, mencionada no artigo 299º do Código Penal, que assim se conforma, por excesso, com o universo mais limitado de crimes estabelecido pela Convenção para caracterizar o “grupo criminoso organizado”.

2.2. O conceito de “crime grave” usado na alínea b) do artigo 2º da Convenção tem como parâmetro sancionatório uma pena de prisão de máximo igual ou superior a quatro anos. Como se compreende, esse conceito surge enquanto referência legitimadora da aplicação dos mecanismos de excepção previstos na própria Convenção.

No plano interno, o legislador usou uma técnica semelhante, ao integrar na noção processual de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada”, constante do artigo 1º, nº 2, do Código de Processo Penal, todos os crimes dolosos contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas, que sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos. Também aqui esta noção traduz uma ideia de criminalidade agravada e visa fundar a adopção de medidas processuais de excepção, como acima se assinalou.

Porém, no confronto da Convenção com essa noção processual interna, não há coincidência no que tange à quantificação do máximo da moldura penal relevante (mais elevada na lei interna), nem quanto ao universo de tipos de crime abrangidos (mais amplo na Convenção).

Entretanto, o legislador nacional voltou recentemente a utilizar a técnica da referência à moldura penal, a propósito do alargamento do âmbito de aplicação do crime de branqueamento de capitais, ao passar a delimitar o ilícito precedente em função da gravidade desse ilícito, concretamente através da menção a “crimes punidos por lei com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 5 anos” [artigo 2º, nº 1, proémio, do Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro, na redacção dada pela Lei nº 10/2002, de 11 de Fevereiro ([93])]. No entanto, não houve coerência sistemática na nova definição desse tipo legal, já que a formulação aí adoptada quanto ao limite da moldura penal (máximo superior a cinco anos) não é totalmente coincidente com a solução acolhida na noção processual de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada” (máximo igual ou superior a cinco anos).

Só uma análise específica dos concretos instrumentos de excepção consagrados na Convenção permitirá verificar a exacta dimensão dessa desconformidade entre os parâmetros sancionatórios da legislação interna e o do conceito convencional de “crime grave”. De qualquer modo, pode desde logo dizer-se que, por razões de congruência do sistema, será mais vantajosa e clarificadora uma harmonização entre o parâmetro convencional e os limites máximos de penalidades usados na lei interna para definir a criminalidade agravada susceptível de um tratamento penal ou processual penal reforçado ([94]).

2.3. Perante o carácter abrangente de conceitos da lei interna como “objectos” (artigos 109º e 110º do Código Penal), “instrumentos e produtos do crime” (artigo 109º do Código Penal), “coisas, direitos ou vantagens” (artigo 111º do Código Penal), “perda” (artigo 109º do Código Penal), “apreensão” de “objectos” e de “bens ou direitos” (artigo 178º do Código de Processo Penal), não se suscitam dúvidas de compatibilidade entre esses conceitos e as noções de “bens”, “produto do crime”, “congelamento ou apreensão” e “confisco” utilizadas nas alíneas d) a g) do artigo 2º da Convenção.

2.4. A definição de “infracção principal” para a Convenção surge, na alínea h) do artigo 2º, como muito ampla, já que aí se faz incluir toda e qualquer infracção que produza bens que possam ser objecto de um crime de branqueamento de capitais, previsto no artigo 6º da Convenção.

2.4.1. Porém, esta última disposição acaba por delimitar melhor o conceito ao estabelecer que “cada Estado Parte considerará como infracções principais todas as infracções graves na acepção do artigo 2º da presente Convenção e as infracções enunciadas nos seus artigos 5º, 8º e 23º”, sem prejuízo de cada Estado Parte poder aplicar o tipo de branqueamento “à mais ampla gama possível de infracções principais” [artigo 6º, nº 2, alíneas a) e b)]. Ou seja, a exigência convencional mínima – aqui dependente de execução legislativa interna – é a de tratar como “infracção principal” qualquer infracção punível com uma pena de prisão de máximo igual ou superior a quatro anos, para além dos crimes de “participação em grupo criminoso organizado”, “corrupção” e “obstrução à justiça”.

2.4.2. No plano interno, o crime de branqueamento de capitais (estes em sentido lato, aí incluindo quaisquer bens ou produtos) surgiu no domínio da legislação da droga. O artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93 começou por contemplar este tipo de crime confinado à conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos provenientes da prática de tráfico de estupefacientes ou de precursores, incluindo as suas formas agravada e privilegiada ([95]).

Com o já mencionado Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro ([96]), o crime de branqueamento foi alargado a outras actividades ilícitas, passando também a poder ser reputado como “infracção principal” qualquer um dos seguintes crimes [artigo 2º do diploma ([97])]:

a) terrorismo (artigo 301º do Código Penal);
b) tráfico de armas (artigo 275º, nºs 1 e 3, do Código Penal);
c) extorsão de fundos (artigo 223º do Código Penal);
d) rapto (artigo 160º do Código Penal);
e) lenocínio (artigo 170º do Código Penal);
f) corrupção [artigos 372º a 374º do Código Penal, 16º a 18º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho ([98]), 41º-A a 41º-C do Decreto- -Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro ([99]), e 2º a 4º do Decreto-Lei nº 390/91, de 10 de Outubro ([100])];
g) peculato (artigos 375º e 376º do Código Penal e 20º a 22º da Lei nº 34/87);
h) participação económica em negócio (artigo 377º do Código Penal e 23º da Lei nº 34/87);
i) administração danosa em unidade económica do sector público (artigo 235º do Código Penal);
j) fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito (artigos 36º a 38º do Decreto-Lei nº 28/84);
l) infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática;
m) infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional ([101]).

Este catálogo legal foi ampliado pela Lei nº 65/98, que alterou o proémio do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95 e lhe aditou os crimes de:

n) lenocínio e tráfico de menores (artigo 176º do Código Penal);
o) tráfico de pessoas (artigo 169º do Código Penal).

E voltou a ser alargado pela Lei nº 10/2002, mediante nova alteração ao proémio do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, que acrescentou os seguintes crimes:

p) tráfico de produtos nucleares (artigo 275º, nºs 1 e 2, do Código Penal);
q) tráfico de órgãos ou tecidos humanos (artigo 20º do Decreto- -Lei nº 274/99, de 22 de Julho);
r) pornografia envolvendo menores [artigo 172º, nº 3, alínea c), do Código Penal];
s) tráfico de espécies protegidas (tutela penal mediata decorrente do artigo 278º do Código Penal);
t) fraude fiscal (artigos 103º e 104º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001);
u) outros crimes punidos por lei com pena de prisão cujo limite máximo seja superior a cinco anos.

2.4.3. Não obstante esta vasta listagem de crimes, a mesma não satisfaz completamente a exigência convencional mínima acima apontada. Com efeito, e mesmo sem considerar as infracções enunciadas nos artigos 5º, 8º e 23º da Convenção (cuja correspondência com a lei interna a seu tempo se apurará), ocorre uma desconformidade em função do conceito de “crime grave”, que tem como parâmetro definidor uma penalidade de máximo igual ou superior a quatro anos de prisão, enquanto o legislador nacional delimitou quantitativamente o delito prévio ao crime de branqueamento por referência a crimes com pena de máximo superior a cinco anos de prisão ([102]).

Esta disfunção já antes evidenciada, a propósito da análise do conceito convencional de “crime grave”, tem aqui uma clara concretização em termos de incompatibilidade entre a Convenção e a lei interna. Pelo que se mostra de toda a conveniência uma adequação legislativa no texto do proémio, in fine, do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, que deverá fazer menção, pelo menos, a crimes punidos com pena de prisão de máximo igual ou superior a quatro anos.

2.5. A “entrega vigiada”, definida na alínea i) do artigo 2º da Convenção, consubstancia uma técnica de investigação que se traduz numa omissão de intervenção imediata das autoridades competentes para a investigação criminal, permitindo o trânsito por um ou mais países de substâncias ou bens, com vista a proporcionar uma melhor e mais completa investigação do crime e a identificação dos seus autores.

Esta figura corresponde ao instituto da lei interna originariamente designado por “entrega controlada” ([103]). Primeiramente previsto no artigo 61º do Decreto-Lei nº 15/93, com referência a “operações de tráfico e distribuição” de “substâncias estupefacientes ou psicotrópicas em trânsito por Portugal”, foi depois alargado – pelo artigo 20º do Decreto-Lei nº 325/95 – a qualquer crime de branqueamento de capitais, quer o previsto no artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93, quer aqueles cuja infracção principal constava do catálogo estabelecido no artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95.

Entretanto, os artigos 61º do Decreto-Lei nº 15/93 e 20º do Decreto-Lei nº 325/95 foram revogados pelo artigo 3º da já citada Lei nº 104/2001. Ao mesmo tempo, este diploma veio criar uma figura unitária de “entrega controlada ou vigiada”, como tal designada, aplicável a “investigações criminais transfronteiriças”, que foi vertida num novo preceito – concretamente o artigo 160º-A – aditado à Lei nº 144/99, a supra identificada Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.

Este novo artigo 160º-A volta a alargar o instituto, que passa a reportar-se a “infracções que admitam extradição”, o que, como é sabido, corresponde a crimes puníveis, em ambos os Estados, “com pena ou medida privativas da liberdade de duração máxima não inferior a um ano” (artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99).

Do ponto de vista conceptual, não se vislumbra divergência sensível entre a definição convencional de “entrega vigiada” e a conformação da figura no plano interno. Apenas importará verificar oportunamente, a propósito do artigo 20º, a dinâmica do instituto na Convenção para confirmar a compatibilidade entre esses domínios normativos.


3. O artigo 3º da Convenção sublinha o carácter internacional do seu objecto: a Convenção rege sobre a criminalidade organizada transnacional, pelo que está fora do seu âmbito qualquer criminalidade desenvolvida por organização criminosa de dimensão nacional. E dessa criminalidade organizada transnacional apenas interessam à Convenção os crimes de “participação em grupo criminoso organizado”, “branqueamento do produto do crime”, “corrupção” e “obstrução à justiça”, especificadamente previstos na Convenção, bem como todas as ditas “infracções graves”, ou seja, puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a quatro anos.

Em todo o caso, esses crimes especialmente regulados na Convenção devem ser incorporados nos direitos nacionais, independentemente da sua natureza transnacional ou do envolvimento de grupo criminoso organizado (salvo quanto ao crime do artigo 5º, na medida em que exija esse envolvimento), conforme o disposto no seu artigo 34º, nº 2 – o que, na prática, alarga o campo de aplicação da Convenção, ao mesmo tempo que, por coerência, faz valer os conceitos de “crime grave” e de “infracção principal” [do artigo 2º, alíneas b) e h)], quando transpostos para o direito interno, para além do domínio estrito da criminalidade organizada transnacional.

3.1. A transnacionalidade é definida com base na existência de elementos de conexão dos factos a dois ou mais Estados, embora seja irrelevante que a actuação principal tenha decorrido num só Estado.

O critério adoptado na Convenção coloca uma questão de conformidade com as regras de aplicação da lei no espaço do direito interno. Assim, por exemplo, do ponto de vista da pretendida criminalização, pelo direito de cada Estado Parte, das referidas condutas de “participação em grupo criminoso organizado”, “branqueamento do produto do crime”, “corrupção” e “obstrução à justiça”, importa averiguar se as leis penais internas ainda serão aplicáveis a esses factos quando eles decorram parcialmente em país estrangeiro, não obstante terem algum elemento de conexão com os respectivos territórios nacionais. Quando o não sejam, haverá uma incompatibilidade entre o regime interno de aplicação da lei penal no espaço e o critério convencional de aferição da transnacionalidade.

3.2. No direito nacional, o princípio da territorialidade constitui princípio-regra do regime de aplicação da lei penal no espaço: segundo o artigo 4º, al. a), do Código Penal, “a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados (...) em território português”. Mas aquilo que deva ser considerado facto praticado em território português é estabelecido pelo artigo 7º do mesmo diploma, que consagra o critério da ubiquidade ou solução plurilateral: “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, (...) como naquele em que o resultado típico (...) se tiver produzido.”

Tendo o crime um qualquer elemento de conexão com o território nacional, seja pelo lado da acção seja pelo lado do resultado, será considerado como praticado em Portugal, ainda que pelo critério da ubiquidade se deva também ter por praticado no estrangeiro. Prevalece, assim, o princípio da territorialidade ([104]).

Ao dizer a lei interna que releva para considerar o facto como praticado em território português o ter-se nele actuado parcialmente, resulta claro que o carácter transnacional do facto criminoso não obsta à sua criminalização pela lei interna ([105]) – o que revela a conformidade desta com o critério de transnacionalidade usado pela Convenção.


4. No artigo 4º da Convenção são consagrados princípios claramente conformes com princípios fundamentais da nossa ordem constitucional: soberania, independência nacional, integridade territorial e não-ingerência (artigos 1º, 3º, 5º e 7º da Constituição).

Não ocorre, assim, neste ponto, qualquer incompatibilidade da Convenção com o nosso texto constitucional.


5. Eis a primeira das quatro infracções enunciadas na Convenção ([106]). Note-se que não estamos aqui perante uma tipificação de crimes directamente aplicáveis ([107]), que se sobreponham de imediato aos correspondentes tipos legais da lei interna ([108]), mas antes face a uma modelação de infracções que devem ser transpostas, nesses termos, para os direitos nacionais, como claramente demonstra o texto normativo, ao dizer que “cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas (...) que sejam necessárias para caracterizar como infracção penal” os comportamentos que são descritos ([109]).

5.1. A previsão convencional da “participação em grupo criminoso organizado” convoca, para cotejo, o tipo legal do artigo 299º do Código Penal, sob a epígrafe de “Associação criminosa”, anteriormente analisado do ponto de vista conceptual.

Já vimos como a ordem jurídica portuguesa satisfaz, genericamente, a criminalização das associações criminosas pretendida pela Convenção, embora se mostrem necessários ajustamentos ao nível dos elementos do conceito. Importa agora aferir a adequação da nossa lei interna no plano da acção típica.

5.2. Uma primeira nota específica prende-se com o elemento subjectivo referido na Convenção. Fala-se em acto “praticado intencionalmente”, pelo que apenas é exigida a previsão do crime como doloso.

Também o crime previsto no citado artigo 299º é apenas de natureza dolosa, como vimos acima, estando aqui assegurada compatibilidade de disposições.

5.3. O proémio da alínea a) do nº 1 postula a distinção entre o crime autónomo de “participação em grupo criminoso organizado” e “a tentativa ou a consumação da actividade criminosa”. Distingue-se, pois, o crime de organização dos crimes da organização, o que também é conforme com a legislação interna.

5.4. Na parte que não é deixada à livre opção dos Estados Partes, os actos descritos no artigo 5º mostram-se contemplados no artigo 299º do Código Penal.

Dos elementos enunciados nesse artigo 5º, para além dos que já constavam da definição do artigo 2º, alínea a), e já anteriormente apreciados, relevam fundamentalmente os respeitantes às diferentes actividades desenvolvidas pelos agentes.

No tipo objectivo de associação criminosa as modalidades de acção vêm enunciadas de forma muito abrangente e consistem nas actividades de promover ou fundar, ser membro, apoiar e chefiar ou dirigir.

O promotor exerce actividade idónea à fundação da associação. O fundador é responsável pela criação da concreta associação criminosa. O membro é aquele que se incorpora na organização, subordinado à vontade colectiva e desenvolvendo actividade dirigida ao fim prosseguido pela associação. A figura do apoiante abrange aqueles que realizam as actividades de suporte descritas, de forma exemplificativa, na segunda parte do nº 2 do artigo 299º (fornecer armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões) e os que auxiliem no recrutamento de novos membros. O chefe ou dirigente é o membro da associação responsável pela formação da vontade colectiva ou o pivot essencial da sua execução ([110]).

Do lado da Convenção, o entendimento para a prática de crimes [nº 1, alínea a), subalínea i)], ou a participação em actividades do grupo criminoso organizado [nº 1, alínea a), subalínea ii)], parece corresponderem, respectivamente, aos papéis de fundador ou de apoiante. E quando na alínea b) do nº 1 se fala dos actos de “organizar, dirigir, ajudar, incitar, facilitar ou aconselhar” a prática de crimes por um grupo criminoso organizado, vemos aí claros pontos de contacto com as figuras, sucessivamente, do membro, do chefe ou dirigente, do apoiante, do promotor, novamente do apoiante, e, finalmente, do cúmplice ([111]).

5.5. O nº 2 do artigo 5º prevê que determinados elementos subjectivos, como a intenção ou a motivação, possam ser inferidos de elementos factuais objectivos. Uma fórmula semelhante já havia sido utilizada no artigo 3º, nº 3, da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988, aplicada genericamente às diversas infracções penais previstas nessa Convenção ([112]).

Afigura-se-nos, face à própria letra do preceito, estar aqui em causa apenas a explicitação de um critério de apreciação da prova, que, nessa perspectiva, nada acrescenta a um normal procedimento judicial, baseado no uso das regras da experiência ([113]) – e não a consagração de uma qualquer presunção de culpa ou de uma responsabilidade objectiva, que seria inaceitável no contexto da moderna doutrina penal, à escala internacional, e perante a generalidade dos ordenamentos jurídicos mais avançados.

Se disto se tratasse, haveria uma clara e intolerável violação do princípio da culpa, acolhido no nosso texto constitucional ([114]). Mas, lido o preceito de forma adequada, não é esse, manifestamente, o caso: assim, não se vislumbra desconformidade entre os planos constitucional e convencional.


6. O nº 1 do artigo 6º da Convenção define os elementos que devem integrar o tipo de crime de “branqueamento” a consagrar nos ordenamentos internos dos Estados Partes.

6.1. Como vimos supra, Portugal já acolheu na sua ordem jurídica uma tal incriminação, repartida pelos artigos 23º do Decreto-Lei nº 15/93 e 2º do Decreto-Lei nº 325/95. Porém, ficou evidente a necessidade de introduzir afinações no catálogo de infracções principais. Cabe agora conferir a sua compatibilidade ao nível dos elementos típicos.

6.2. Se bem atentarmos, o artigo 6º, nº 1, da Convenção teve por fontes o artigo 3º, nº 1, alínea b), subalíneas i) e ii), e alínea c), subalíneas i) e iv), da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas ([115]) e o artigo 6º, nº 1, alíneas a) a d), da Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime ([116]) – havendo praticamente uma sobreposição das fórmulas utilizadas, ainda que na Convenção de Viena de 1988 a incriminação seja apenas reportada a delitos prévios relacionados com o tráfico de estupefacientes.

Ora, foram esses preceitos internacionais que o legislador interno procurou transpor para os tipos legais delineados nos artigos 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 e 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 325/95, seguindo-os muito proximamente na sua redacção – sem que a doutrina nacional assinalasse qualquer disparidade entre esses preceitos da lei interna e as respectivas fontes ([117]). Por sua vez, essas duas disposições da lei interna apresentam notórias semelhanças, designadamente na descrição típica, só se distinguindo na indicação das infracções principais.

Apenas não houve uma transposição directa, nos preceitos internos, do teor da subalínea iv) da alínea c) do nº 1 do artigo 3º da Convenção de Viena de 1988 e da alínea d) do nº 1 do artigo 6º da Convenção do Branqueamento de 1990 – semelhante ao da subalínea ii) da alínea b) do nº 1 do artigo 6º da presente Convenção –, respeitante à incriminação das várias modalidades de comparticipação e da tentativa no crime de branqueamento de capitais. O que se explica pela desnecessidade de tal concretização à luz das regras gerais insertas no Código Penal sobre autoria e participação (artigos 26º e 27º) e sobre punição da tentativa [artigos 22º e 23º ([118])], que contemplam todas as situações relatadas naquelas disposições internacionais.

Cada uma das três alíneas dos artigos 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 e 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 325/95 configura um autónomo tipo legal de crime, com os seus elementos próprios, nos planos objectivo e subjectivo ([119]). Na expressiva síntese de OLIVEIRA ASCENSÃO ([120]), distinguem-se as seguintes três figuras:

- a conversão de bens ou produtos;
- a ocultação de bens ou produtos;
- a recepção de bens ou produtos.

Esses três tipos legais são, reconhecidamente, muito abrangentes, dada a profusão de verbos utilizados nos textos normativos, alguns parcialmente sobreponíveis – com o que legislador visou, por um lado, corresponder ao modelo recebido do direito internacional, e, por outro, não deixar sem regulação situações equiparáveis ([121]).

Todo o exposto permite, pois, afirmar a substancial conformidade dos tipos legais internos com a formulação convencional da incriminação.

6.3. Algumas particularidades merecem breve referência.

6.3.1. As expressões “sabendo que os bens ou produtos são provenientes da prática” das infracções especificadas, usadas nos proémios dos artigos 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 e 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 325/95, têm permitido sustentar a exclusão da punição a título de negligência, o que era possível à luz das normas convencionais que lhes serviram de fontes ([122]), assim como continuará a ser aceitável no confronto com a Convenção em apreço. Mas essas mesmas expressões têm também servido para alguma doutrina excluir a punição a título de dolo eventual ([123]). Em todo o caso, o artigo 6º da Convenção apenas se refere à infracção em causa “quando praticada intencionalmente”, o que não é esclarecedor sobre se se pretendeu ou não incluir a punição do dolo eventual – pelo que a questão continuará em aberto, sendo aceitável a persistência da referida polémica em torno do elemento subjectivo do tipo.

6.3.2. Problema igualmente suscitado na doutrina é o do eventual concurso de crimes entre a infracção principal e o crime de “branqueamento”, relativamente àquele que comparticipa em ambos.

A posição a tomar passa, em grande medida, pela solução encontrada para a questão da natureza dos bens jurídicos envolvidos.

Quem admite o concurso efectivo vê nas duas incriminações em presença a protecção de bens jurídicos diversos. Por exemplo, estando em causa como crime precedente o tráfico de estupefacientes, quem veja na incriminação do tráfico a protecção da saúde pública e na punição do “branqueamento” dos bens produzidos por esse crime prévio a protecção da economia, de forma a preservar a confiança dos cidadãos no normal funcionamento das estruturas financeiras, tenderá a considerar punível pelos dois crimes o infractor que incorre em ambos ([124]).

De qualquer modo, há quem entenda que, neste caso, o pós- -delito, na linha da resposta genericamente traçada na lei e na doutrina, deve ser tratado como facto posterior não punível ([125]). E quem considere que são substancialmente idênticos os bens jurídicos tutelados pelas duas incriminações será conduzido a uma solução de concurso aparente ([126]).

Sobre esta matéria, a Convenção em apreço segue a orientação já assumida pela Convenção do Branqueamento de 1990: concede-se aos Estados Partes a possibilidade de preverem nas suas leis internas que pelas infracções de branqueamento não sejam também responsáveis os autores da infracção principal. Com efeito, a presente Convenção das Nações Unidas adopta, no seu artigo 6º, nº 2, alínea e), um texto muito próximo do constante do artigo 6º, nº 2, alínea b), da referida Convenção do Conselho da Europa ([127]). Perante essa permissão dirigida aos Estados Partes, qualquer solução interna será possível – e quando o legislador não opte claramente, como no caso do ordenamento nacional, sempre será deixada por conta da doutrina a dilucidação da questão.

6.3.3. A alínea c) do nº 2 do artigo 6º da Convenção em apreço estabelece que os crimes de branqueamento de capitais deverão ser incriminados pelas leis internas ainda que as infracções principais sejam cometidas fora da jurisdição dos Estados Partes.

Trata-se de norma semelhante à ínsita no artigo 6º, nº 2, alínea a), da referida Convenção do Branqueamento de 1990 ([128]) e que já havia sido transposta para o nº 3 do artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93 e para o nº 3 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95.

Portanto, nada há aqui a alterar na lei interna. Aliás, essa norma nem sequer constitui qualquer excepção ao regime geral de aplicação de leis no espaço, decorrente do artigo 4º do Código Penal, já que o crime de “branqueamento” – o que ora importa considerar – sempre será praticado, neste caso, em território nacional ([129]).

6.3.4. Tal como vimos em relação ao nº 2 do artigo 5º, também a alínea f) do nº 2 do artigo 6º da presente Convenção prevê que determinados elementos subjectivos, como a intenção ou a motivação, possam ser inferidos de elementos factuais objectivos.

Seguiu-se um modelo idêntico ao já utilizado, igualmente a propósito de incriminações do “branqueamento”, no artigo 6º, nº 2, alínea c), da Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime ([130]) e no artigo 1º da Directiva nº 91/308/CEE ([131]).

Mais uma vez, sustentamos o entendimento de que não está aqui implícita a exigência de consagração duma presunção de culpa ou de responsabilidade objectiva – que, aliás, sempre violaria o princípio constitucional da culpa ([132]).


7. O artigo 7º, nº 1, alínea a), da presente Convenção determina que cada Estado Parte “instituirá um regime interno completo de regulamentação e controlo de bancos e instituições financeiras não bancárias”, que pode ser estendido a outros organismos susceptíveis de utilização no branqueamento de capitais.

7.1. Também aqui Portugal está já dotado do necessário dispositivo legal. Trata-se de regime já exigido pela Directiva nº 91/308/CEE, que foi transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº 313/93, de 15 de Setembro ([133]), relativamente a entidades financeiras ([134]). Entretanto, regime semelhante foi aplicado, pelo já citado Decreto- -Lei nº 325/95, a entidades não financeiras, cujo elenco foi posteriormente ampliado pela Lei nº 10/2002 ([135]).

Esses regimes estabelecem um conjunto de obrigações para tais entidades, que funcionam como mecanismos de prevenção e detecção dos respectivos crimes de “branqueamento”. Inicialmente, com o Decreto-Lei nº 313/93, esse controlo era confinado ao branqueamento de capitais provenientes dos crimes de “tráfico de droga”, mas foi ampliado, com o Decreto-Lei nº 325/95, às infracções principais constantes do catálogo do artigo 2º deste diploma, quer quanto a entidades financeiras (artigo 3º), quer quanto a entidades não financeiras (artigo 9º, nº 1).

Sinteticamente, as obrigações das entidades financeiras são as seguintes:

- dever de identificação de clientes (artigos 3º, 5º, 6º e 7º);
- dever de conservação de documentos (artigo 9º);
- dever especial de diligência no exame de operações (artigo 8º);
- dever de denúncia (artigos 10º, nºs 1 e 4, e 12º);
- dever de abstenção de executar operações suspeitas (artigo 11º);
- dever de colaboração (prestação de informações e apresentação de documentos – artigo 10º, nº 2, que remete para o artigo 60º do Decreto-Lei nº 15/93);
- dever de criação de mecanismos de controlo interno e de comunicação (artigo 14º).

Para as entidades não financeiras, são consagradas as seguintes obrigações ([136]):

- dever de identificação de clientes ou contratantes [artigos 4º, nº 1, alíneas a) e d), 5º, nº 1, alínea a), 6º, nº 1, alínea b), 7º, 8º, nº 1, alínea a), 8º-A, alínea a), e 8º-B, alínea a), com a extensão constante do artigo 8º-D];
- dever de conservação de documentos [artigos 4º, nº 1, alínea e), 5º, nº 1, alínea b), 6º, nº 1, alínea c), 7º, 8º, nº 1, alínea b), 8º-A, alínea b), e 8º-B, alínea b)];
- dever de denúncia [artigos 4º, nº 1, alínea f), 5º, nº 1, alínea c), 6º, nº 1, alínea d), 8º, nº 1, alínea c), 8º-A, alínea c), e 8º-B, alínea c)];
- dever de colaboração [anteriormente previsto pelo artigo 19º, de teor semelhante ao artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 313/93, e actualmente regulado de forma ampla nos artigos 2º a 4º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro ([137]), cujo artigo 15º, alínea b), revogou aquela primeira disposição].

7.2. Paralelamente, foram sendo introduzidas especialidades em matéria de sigilo bancário.

7.2.1. Como princípio geral, o sigilo bancário encontra-se consagrado, sob a forma de dever de segredo, no artigo 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ([138]), aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro ([139]). Esse mesmo diploma previu excepções ao dever de segredo, “nos termos previstos na lei penal e de processo penal” [artigo 79º, nº 2, alínea d)] ([140]). Por sua vez, os artigos 135º, 181º e 182º do Código de Processo Penal contém o regime geral de derrogação do sigilo bancário, para fins de investigação criminal, que se traduz num conjunto complexo de procedimentos.

7.2.2. Em atenção à especificidade e gravidade dos crimes de tráfico de droga, de branqueamento de capitais provenientes desse tráfico e de associação criminosa para a prática dessas infracções, foi instituído um primeiro regime especial de derrogação do sigilo bancário no artigo 60º do Decreto-Lei nº 15/93 ([141]), que previu um mecanismo simplificado de obtenção de informações e documentos sob segredo. Esse regime foi reiterado, em matéria de “branqueamento”, pelo artigo 10º, nº 2, do Decreto-Lei nº 313/93, ficando claro que a prestação de tais informações não constitui violação do dever de segredo (artigo 13º deste diploma).

Seguiu-se-lhe o regime especial do artigo 5º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro ([142]), que estabeleceu igualmente um regime simplificado de quebra do segredo profissional, aplicável à corrupção e à criminalidade económico-financeira ([143]). Depois, o mesmo objectivo de simplificação de procedimentos, em matéria de sigilo, foi concretizado pelo Decreto-Lei nº 325/95, para os crimes de branqueamento de capitais, qualquer que fosse, de entre as infracções enunciadas no catálogo do artigo 2º, o delito prévio em causa (artigo 19º do diploma).

7.2.3. Recentemente, o legislador veio instituir, com a já mencionada Lei nº 5/2002, um regime global que pretende “agilizar e tornar operativo um regime de derrogação do sigilo bancário e fiscal”, para efeitos de investigação do “crime organizado e económico-financeiro” ([144]). Nesse diploma, para além de regras especiais sobre recolha de prova e perda de bens a favor do Estado, contém-se um regime próprio de “quebra do segredo profissional” (artigos 2º a 5º) relativamente a um conjunto vasto de crimes (artigo 1º):

a) tráfico de estupefacientes;
b) terrorismo e organização terrorista;
c) tráfico de armas;
d) corrupção passiva;
e) peculato;
f) branqueamento de capitais;
g) associação criminosa;
h) contrabando (quando praticado de forma organizada – artigo 1º, nº 2);
i) tráfico e viciação de veículos furtados (quando praticado de forma organizada – idem);
j) lenocínio (quando praticado de forma organizada – idem);
l) lenocínio e tráfico de menores (quando praticado de forma organizada – idem);
m) contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda (quando praticado de forma organizada – idem);
n) restantes crimes do artigo 1º, nº 1, da Lei nº 36/94: participação económica em negócio; administração danosa em unidade económica do sector público; fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito; infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática; e infracções económico- -financeiras de dimensão internacional ou transnacional.

Consequentemente, este novo regime implicou a revogação dos aludidos artigos 5º da Lei nº 36/94 e 19º do Decreto-Lei nº 325/95 (artigo 15º da Lei nº 5/2002).

7.2.4. Procedendo ao cotejo da descrita legislação interna sobre as matérias da prevenção do branqueamento e da quebra do segredo bancário com aquilo que consta do artigo 7º da presente Convenção acerca dessas matérias, forçoso é concluir pela plena adequação do ordenamento interno às exigências convencionais. Até porque a Convenção, neste domínio, não é imperativa em determinados aspectos ([145]), para além de que as suas indicações são de carácter muito genérico, carecendo de integração a efectuar pelos Estados Partes ou mesmo acautelando as prescrições já existentes dos direitos internos ([146]).


8. O artigo 8º da Convenção define os elementos que devem integrar o tipo de crime de “corrupção” a consagrar nos ordenamentos internos dos Estados Partes.

8.1. Identificámos acima as incriminações do nosso direito interno em matéria de corrupção.

A matriz do regime consta dos artigos 372º a 374º do Código Penal, em que se tipificam, sucessivamente, três crimes respeitantes a “funcionário”, na acepção do artigo 386º do mesmo Código: corrupção passiva para acto ilícito, corrupção passiva para acto lícito e corrupção activa. Paralelamente, existe um regime específico para os titulares de cargos políticos, estabelecido nos artigos 16º a 18º da Lei nº 34/87 e que consagra tipos legais equivalentes. O mesmo se diga relativamente a agentes envolvidos no fenómeno desportivo, para os quais regem os artigos 2º a 4º do Decreto-Lei nº 390/91.

Recentemente, foi alargado, pela Lei nº 108/2001 ([147]), o conceito de “funcionário” expresso no artigo 386º do Código Penal, de forma a incluir nele determinados agentes públicos estrangeiros e funcionários internacionais, em concretização das já referidas Convenção relativa à Luta contra a Corrupção em que estejam implicados Funcionários das Comunidades Europeias ou dos Estados-Membros da União Europeia e Convenção Penal sobre a Corrupção, do Conselho da Europa ([148]).

Antes, pela também referenciada Lei nº 13/2001, havia sido introduzido um novo tipo legal, por aditamento do artigo 41º-A ao Decreto--Lei nº 28/84, dirigido a funcionários e titulares de cargos políticos, nacionais ou estrangeiros, incluindo funcionários de organizações internacionais ou supranacionais, e relativo à corrupção activa com prejuízo do comércio internacional, em execução da Convenção sobre a Luta contra a Corrupção de Agentes Públicos Estrangeiros nas Transacções Comerciais Internacionais, aprovada em Paris, a 17 de Dezembro de 1997, sob a égide da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico (OCDE) ([149]).

Ainda a Lei nº 108/2001 procedeu à criminalização da corrupção passiva e activa no sector privado, também em conformidade com a mencionada Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho da Europa, aditando os artigos 41º-B e 41º-C ao Decreto-Lei nº 28/84.

8.2. A actual concepção do crime de corrupção no direito português começou com a versão originária do Código Penal de 1982, que veio afastar a sua tradicional configuração como crime de participação necessária ou crime bilateral, não obstante a oposição de alguma jurisprudência ([150]).

A corrupção passiva e activa, as condutas de corrompido e corruptor, são crimes autónomos, não estando o preenchimento de um dependente da consumação do outro: por exemplo, o crime de corrupção passiva consuma-se com a solicitação de vantagem pelo funcionário independentemente de o particular corresponder ou não ao pedido, ou seja, incorra ou não no crime de corrupção activa.

O âmbito de aplicação dos tipos legais de corrupção é, na nossa lei, muito amplo, estando hoje contemplada a punição da corrupção própria e imprópria ([151]), tanto no quadro da corrupção passiva como no da corrupção activa ([152]), e de forma a abranger quer a corrupção antecedente quer a corrupção subsequente ([153]) ([154]).

Perante este panorama legal, cabe agora aferir da compatibilidade com o modelo estabelecido na presente Convenção.

8.3. O artigo 8º da Convenção identifica o elemento subjectivo dos crimes de corrupção pela expressão “intencionalmente cometidos”, que remete para a previsão do crime como doloso, no que coincide com os tipos de corrupção consagrados na nossa lei interna.

8.4. A alínea a) do nº 1 do artigo 8º da Convenção refere-se à corrupção activa. Os elementos típicos podem-se desdobrar assim:

a) prometer, oferecer ou conceder...
b) a um agente público, em seu proveito próprio ou de outra pessoa ou entidade...
c) directa ou indirectamente...
d) um benefício indevido...
e) a fim de praticar ou se abster de praticar um acto...
f) no desempenho das suas funções oficiais.

Também aqui encontramos uma significativa similitude com a descrição típica respectiva apresentada na Convenção Penal sobre a Corrupção (v. artigo 2º). Olhando aos crimes de corrupção activa do artigo 374º, nºs 1 e 2, do Código Penal, e apesar das diferenças semânticas, detectamos uma óbvia coincidência típica:

a) quem der ou prometer...
b) a funcionário ou a terceiro com conhecimento daquele...
c) por si ou por interposta pessoa...
d) vantagem patrimonial ou não patrimonial que não seja devida...
e) para acto ou omissão...
f) contrários (ou não) aos deveres do cargo.

A legislação nacional vai mais longe que a disposição convencional, já que naquela se prevê a entrega directa da vantagem a terceiro, que não está pressuposta na Convenção, para além de que nesta não é clara a exigência de punição da corrupção imprópria, sendo omissa quanto à corrupção subsequente.

Quanto ao conceito de “agente público”, a definição do nº 4 da disposição convencional é abrangente, já que significa “funcionário público” e ainda “qualquer pessoa que preste um serviço público”, embora remeta a delimitação deste para os direitos internos. Porém, a noção de “funcionário” do artigo 386º do Código Penal é ainda mais ampla, excedendo o conceito administrativo, e a ela são equiparadas várias outras funções, pelo que não há seguramente deficit do conceito interno.

8.5. Por sua vez , a corrupção passiva é contemplada na alínea b) do nº 1 do artigo 8º da Convenção. Os elementos típicos repetem-se, por referência à conduta activa, com a diferença de aqui ser o “agente público” que trata de “pedir ou aceitar”.

Novamente, há quase coincidência com o enunciado do artigo 3º da Convenção Penal sobre a Corrupção. E a actuação descrita na presente Convenção equivale plenamente ao “solicitar ou aceitar” do artigo 372º do Código Penal, havendo correspondência nos demais elementos. Apenas a lei interna refere ainda como elemento típico alternativo a aceitação de promessa de vantagem, à imagem do que consta do artigo 3º da Convenção Penal sobre a Corrupção, mas omitido na Convenção das Nações Unidas.

Além disso, as disposições nacionais punem inequivocamente a corrupção imprópria (artigo 373º) e a corrupção subsequente (menção ao acto ou omissão anteriores à solicitação ou aceitação, nos artigos 372º e 373º), às quais a Convenção não se refere de forma expressa.

Existe, portanto, compatibilidade, neste domínio, entre os planos convencional e legislativo.

8.6. De forma já não imperativa, a Convenção convida os Estados Partes a considerar a possibilidade de conferir o carácter de infracção penal aos actos descritos que envolvam “um agente público estrangeiro ou um funcionário internacional” (artigo 8º, nº 2).

Como vimos, a legislação nacional cuidou de ampliar o âmbito subjectivo do crime de corrupção, através da recente Lei nº 108/2001, ao alargar o conceito de “funcionário” expresso no artigo 386º do Código Penal, incluindo aí magistrados, funcionários e agentes da União Europeia, funcionários nacionais de outros Estados-membros da União Europeia e funcionários de organização internacional de direito público de que Portugal seja membro. Além disso, o artigo 41º-A do Decreto-Lei nº 28/84, novo tipo legal de corrupção, também abrange funcionários e titulares de cargos políticos, nacionais ou estrangeiros, e funcionários de organizações internacionais ou supranacionais.

Evidentemente, o Estado português atendeu já à pretensão convencional.

8.7. O nº 3 do artigo 8º da Convenção estabelece que cada Estado conferirá carácter penal à cumplicidade no crime de corrupção. Portugal não terá de desenvolver qualquer iniciativa neste aspecto, uma vez que as regras gerais sobre comparticipação (artigos 26º e 27º do Código Penal) acautelam suficientemente a exigência convencional.


9. O artigo 9º da Convenção reporta-se a “medidas contra a corrupção”, mas limita-se a enunciados muito genéricos, como os de adoptar “medidas eficazes (...) para promover a integridade e prevenir, detectar e punir a corrupção” ou actuar “eficazmente em matéria de prevenção, detecção e repressão da corrupção”.

9.1. Neste ponto, a legislação nacional procura, de há muito, estabelecer mecanismos de eficácia.

9.1.1. Nessa linha se inseriu a já citada Lei nº 36/94 ([155]), que veio instituir, como o seu próprio título indica, várias “medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira”, nomeadamente “acções de prevenção” (artigo 1º), “quebra do segredo profissional” [artigo 5º ([156])], e “actos de colaboração ou instrumentais”, que correspondem a actuações de agente infiltrado [artigo 6º ([157])] – todas aplicáveis ao crime de corrupção [artigo 1º, nº 1, alínea a)].

9.1.2. Entretanto, foi criado um regime unitário das “acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal”, através da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, a qual revogou expressamente o artigo 6º da Lei nº 36/94 ([158]), na medida em que incluiu a corrupção entre os crimes a que se aplica ([159]). Considera-se actuação de agente infiltrado ou encoberto a que é desenvolvida por funcionário de investigação criminal ou por terceiro sob controlo policial, com ocultação da sua qualidade e identidade, para prevenção ou repressão dos crimes abrangidos, mediante autorização prévia de autoridade judiciária. Prevê esse diploma um regime de protecção do agente encoberto, que assenta na atribuição de identidade fictícia, isenção de responsabilidade penal e na utilização em certas condições da prova recolhida pela acção do infiltrado.

Por sua vez, com a introdução do artigo 160º-B à Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, operada pela já referida Lei nº 104/2001, passou a ser prevista a possibilidade de realização de acção encoberta no contexto da cooperação internacional, mediante a actuação de funcionário de investigação criminal de Estado estrangeiro.

9.1.3. Posteriormente, a já referenciada Lei nº 5/2002 veio estabelecer um “regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado” em relação a vários crimes, entre os quais a corrupção passiva, o que motivou, quanto ao sigilo profissional, a revogação do artigo 5º da Lei nº 36/94.

9.2. Perante este quadro legislativo descrito, afigura-se que o mesmo cumpre, mais que amplamente, a pretensão convencional.


10. O artigo 10º da Convenção determina que cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias a responsabilizar pessoas colectivas por infracções graves, na acepção do artigo 2º, ou pelos crimes dos artigos 5º, 6º, 8º e 23º, ainda que “em conformidade com o seu ordenamento jurídico”. Essa responsabilização poderá ser por via penal, civil ou administrativa, sem prejuízo da respeitante às pessoas singulares que actuem nesse âmbito.

10.1. Acerca da responsabilidade penal das pessoas colectivas, é sabido que a nossa lei penal geral não aceita, como regra, tal imputação. A regra geral é a da responsabilidade individual das pessoas singulares, nos termos do artigo 11º do Código Penal, embora essa norma admita “disposição em contrário”. Em todo o caso, prevê-se a punibilidade pela actuação em nome de outrem, o que abrange a acção em representação de pessoa colectiva, de acordo com o disposto no artigo 12º do mesmo Código, mas que ainda é uma responsabilidade individual e não constitui uma verdadeira e própria responsabilidade penal da pessoa colectiva ([160]).

Está, assim, excluída da legislação nacional, como regra, uma responsabilidade penal de pessoas colectivas quanto aos crimes de associação criminosa, branqueamento de capitais ([161]) e corrupção, mencionados na Convenção e já analisados.

No quadro legislativo respeitante aos crimes em análise, apenas se acolhe tal responsabilidade no âmbito dos crimes económicos e dos crimes tributários: os artigos 3º do Decreto-Lei nº 28/84 e 7º do Regime Geral das Infracções Tributárias consagram expressamente a responsabilidade penal das pessoas colectivas. O que se repercutirá nos crimes de corrupção dos artigos 41º-A a 41º-C do Decreto-Lei nº 28/84 e no crime de associação criminosa para a prática de crimes tributários do artigo 89º do referido Regime Geral das Infracções Tributárias.

No entanto, afigura-se escasso o âmbito de incidência dessa responsabilidade institucional face à genérica pretensão convencional. Mas, na medida em que a Convenção salvaguarda o direito interno, trata- -se de matéria em que só uma futura opção de política legislativa pode alterar o actual estado de coisas.

10.2. No mesmo contexto, é de assinalar, na nossa legislação, a previsão de responsabilidade contra-ordenacional de pessoas colectivas que não cumpram certas obrigações impostas pelos Decretos-Leis nºs 313/93 e 325/95, no domínio da prevenção e repressão do branqueamento de capitais, ainda que aqui não surjam como autoras dos crimes.

Salienta-se igualmente a expressa previsão de responsabilidade civil de pessoas colectivas, com referência a situações de actuação em nome de outrem, por multas, coimas e indemnizações, no artigo 2º, nº 3, do Decreto-Lei nº 28/84, e por multas e coimas, no artigo 8º, nº 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias.


11. O artigo 11º da Convenção refere um conjunto de regras gerais a considerar em sede de julgamento, mas, em regra, acautelando os princípios do direito interno ou a iniciativa própria dos Estados Partes: aplicação de sanções graves às infracções dos artigos 5º, 6º, 8º e 23º; optimização da eficácia das medidas de detecção e repressão; atenção à gravidade dos actos nas decisões sobre liberdade condicional; garantia dos direitos de defesa e de presença do arguido; fixação de prazo de prescrição prolongado.

O carácter vago e genérico desta disposição dispensa-nos de comparações mais exaustivas, tendo presente a particular exigência de princípios nucleares do nosso sistema penal e processual penal, designadamente os de consagração constitucional, como os relativos à culpa, à proporcionalidade das penas, às garantias de defesa.


12. Os artigos 12º a 14º contêm várias regras sobre detecção, apreensão, perda e repartição dos produtos do crime.

12.1. No artigo 12º determina-se que os Estados Partes adoptem medidas para permitir o confisco ([162]) do produto dos crimes especialmente previstos na Convenção ou dos bens equivalentes ou dos instrumentos desses crimes, mas apenas “na medida em que o seu ordenamento jurídico o permita” (nº 1).

Não há, pois, uma estrita vinculação na transposição das orientações convencionais, incumbindo, no essencial, aos Estados Partes instituir um sistema global de perda de coisas ou direitos relacionados com os crimes da Convenção. Ora, Portugal dispõe já de um tal sistema.

12.1.1. O nosso sistema de “perda de instrumentos, produtos e vantagens” tem a sua sede geral nos artigos 109º a 112º do Código Penal. Paralelamente, existe um regime especial para as infracções relacionadas com a droga, constante dos artigos 35º a 39º do Decreto-Lei nº 15/93.

Note-se que esse regime geral se aplica aos crimes tipificados em legislação extravagante, que não disponham de regime especial: é assim que a perda dos produtos do crime de branqueamento de capitais provenientes do tráfico de estupefacientes é regulada pelas citadas disposições do Decreto-Lei nº 15/93, enquanto o regime para os outros crimes de branqueamento de capitais, previstos pelo artigo 2º do Decreto--Lei nº 325/95, é o do Código Penal.

No plano adjectivo, para todos esses crimes, e enquanto os bens com eles relacionados sejam susceptíveis de apreensão, regem os artigos 178º a 186º do Código de Processo Penal.

Recentemente, a já mencionada Lei nº 5/2002 veio criar um regime complementar especial de perda de bens a favor do Estado (artigos 7º a 12º) para os crimes identificados no seu artigo 1º, nº 1: tráfico de estupefacientes; terrorismo e organização terrorista; tráfico de armas; corrupção passiva; peculato; branqueamento de capitais; associação criminosa; contrabando; tráfico e viciação de veículos furtados; lenocínio; lenocínio e tráfico de menores; contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda (os cinco últimos só quando praticados de forma organizada).

Neste regime especial avulta a consagração da presunção de constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e o que seja congruente com o seu rendimento lícito (artigo 7º, nº 1) – sendo declarado perdido a favor do Estado esse excesso, em caso de condenação do arguido, transitada em julgado, por um daqueles crimes ([163]). Ao mesmo tempo, permite-se ao arguido a ilisão dessa presunção pela prova da origem lícita dos seus bens (artigo 9º, nºs 1 a 3). Prevê-se ainda o arresto preventivo de bens do arguido, na pendência do processo e para garantia do pagamento do valor que venha a ser declarado perdido (artigo 10º).

12.1.2. As situações descritas no nº 1 do artigo 12º da Convenção têm correspondência no teor dos artigos 109º, nº 1, do Código Penal e 35º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93.

Apenas isso não ocorre quanto à possibilidade de perda de bens de valor equivalente ao do produto do crime, mencionado na parte final da alínea a) do nº 1 do preceito em análise. Mas apesar de não ser viável a declaração de perda de tais bens, ainda assim o património do arguido pode ser atingido por via indirecta: quando as vantagens decorrentes do facto ilícito não possam ser apropriadas em espécie, inviabilizando a sua perda, esta é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor (artigo 111º, nº 4). Esta substituição concretiza-se através da condenação civil do arguido no pagamento de quantia equivalente, dívida pela qual respondem os bens do arguido, a que se seguirá, em caso de incumprimento, um processo executivo em que podem ser apreendidos esses bens.

Com este enquadramento, afigura-se que tal mecanismo legal corresponde satisfatoriamente à pretensão expressa no referido segmento da Convenção.

12.1.3. As fórmulas utilizadas nos nºs 3 e 4 do artigo 12º da Convenção têm evidente similitude com os nºs 1 e 2 do artigo 37º do Decreto-Lei nº 15/93, os quais se inspiraram, de forma muito próxima, nas alíneas a) e b) do nº 6 do artigo 5º da Convenção das Nações Unidas sobre estupefacientes.

Porém, esses preceitos da lei interna valem apenas no domínio das infracções da legislação da droga, sendo inaplicáveis quando estão em causa os crimes de branqueamento de capitais previstos no artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, os de associação criminosa previstos fora do Decreto-Lei nº 15/93 ou os de corrupção. Não existem, assim, normas internas com o alcance mais geral visado pela Convenção.

No entanto, estamos em domínio não imperativo da Convenção, pelo que o legislador nacional terá de ponderar a extensão da solução do artigo 37º do Decreto-Lei nº 15/93 a outros crimes, exclusivamente por razões de harmonização do sistema.

12.1.4. No nº 6 do artigo 12º salvaguarda-se a possibilidade de apresentação e apreensão de documento bancários, sem embargo do sigilo bancário.

Sobre este ponto, remetemos para o que acima ficou dito acerca do regime interno de derrogação do segredo bancário ([164]), que satisfaz plenamente o desígnio convencional.

12.1.5. O nº 7 do artigo 12º contempla a possibilidade, que já figurava no artigo 5º, nº 7, da Convenção de Viena de 1988, de inversão do ónus da prova da origem lícita dos produtos do crime, ainda que usando terminologia algo diferente. A adopção desse critério fica na disponibilidade dos Estados Partes.

Como indicámos supra, a Lei nº 5/2002 acabou por acolher tal solução, criando uma presunção de origem ilícita de património e conferindo ao arguido o poder de demonstrar a sua proveniência lícita. Neste aspecto, a proposta convencional tem plena correspondência na lei interna.

12.1.6. O nº 8 do artigo 12º exige que se acautelem os direitos dos terceiros de boa fé. Também aqui a lei interna garante já suficientemente esses direitos, como resulta do regime constante dos artigos 110º do Código Penal, 178º, nº 7, do Código de Processo Penal e 36º-A do Decreto-Lei nº 15/93.

12.2. O artigo 13º da Convenção reporta-se à cooperação internacional em matéria de perda de bens. Neste domínio, importa referir que Portugal se encontra já vinculado pela Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime, do Conselho da Europa, que prevalecerá sobre a lei interna nas relações com os respectivos Estados Partes. Tendo em conta o universo potencialmente mais vasto dos países que ficarão obrigados pela presente Convenção das Nações Unidas, cuidaremos essencialmente da sua conformidade com a legislação ordinária nacional.

12.2.1. Pretende-se que cada Estado Parte se habilite a dar execução, através das suas autoridades competentes, a pedido de cooperação de outro Estado para concretizar a perda de produtos, objectos e instrumentos do crime – numa formulação próxima da do artigo 4º, alínea a), da Convenção de Viena de 1988.

Ora, o pedido de concretização de perda formulado por Estado estrangeiro, traduz-se formalmente, nos termos do artigo 160º, nº 3, da nossa Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, num pedido de execução de sentença penal estrangeira (na qual a perda foi declarada), o que determina a aplicação do regime de execução de sentenças penais previsto no Título IV do diploma (artigos 95º a 103º).

Essa execução pressupõe que seja conferida força executiva à sentença estrangeira através de prévia revisão e confirmação decretada por tribunal português, segundo o disposto nos artigos 234º a 240º do Código de Processo Penal (artigo 100º da Lei nº 144/99).

12.2.2. O nº 2 do artigo 13º pretende assegurar mecanismos de detecção e apreensão de bens, no âmbito de um pedido de cooperação, com vista a uma futura declaração de perda.

Quanto à detecção, rege o artigo 160º, nºs 1 e 2, da Lei nº 144/99, que concede ampla margem de actuação às autoridades nacionais, sem prejuízo das restrições que possam resultar da interferência com espaços de reserva, relacionados com os sigilos ou a protecção da vida privada, em função da concreta localização dos bens ou da sua natureza – casos em que será obrigatória a intervenção da autoridade judiciária competente.

Quanto à apreensão, já vimos que regem os artigos 178º a 186º do Código de Processo Penal, os quais acautelam plenamente a futura declaração de perda.

12.2.3. Do artigo 13º da Convenção apenas merecem ainda destaque as disposições sobre os requisitos do pedido de cooperação (nº 3), que têm cabal paralelo no artigo 23º da Lei nº 144/99, e sobre a protecção de terceiros de boa fé (nº 8), que convocam novamente as normas já antes indicadas ([165]).

12.3. O artigo 14º da Convenção trata do destino dos bens declarados perdidos e sua repartição entre os Estados da condenação e da execução.

12.3.1. Sobre esta matéria, diz o artigo 5º, nº 5, alínea a), da Convenção de Viena de 1988 que o Estado da execução “disporá dos mesmos de acordo com o seu direito interno e procedimentos administrativos”, sem prejuízo de acordo em sentido diverso. Por sua vez, a Convenção do Branqueamento de 1990 adopta idêntica solução, ao determinar, no seu artigo 15º, que “a Parte requerida pode dispor, segundo o seu direito interno, de todos os bens por ela declarados perdidos, salvo se de outro modo for acordado pelas Partes interessadas”.

12.3.2. A solução da lei geral interna segue a orientação dos mencionados instrumentos internacionais, conforme resulta do nº 4 do artigo 110º da Lei nº 144/99: “As coisas apreendidas em resultado de decisão que decrete a sua perda rever­tem para o Estado da execução, mas podem ser entregues ao Estado da conde­nação, a seu pedido, se para este revestirem particular interesse e estiver garantida a reciprocidade.”

Porém, existe norma especial na legislação da droga – o nº 4 do artigo 39º do Decreto-Lei nº 15/93 –, que, nesse âmbito, prevalece sobre o regime geral da Lei nº 144/99. Consagra-se aí uma regra própria, sem apoio nos citados instrumentos internacionais, segundo a qual “na falta de convenção internacional, os bens ou produtos apreendidos a solicitação de autoridades de Estado estrangeiro ou os fundos provenientes da sua venda são repartidos entre o Estado requerente e o Estado requerido na proporção de metade” – e isto sem qualquer exigência de reciprocidade.

12.3.3. A regra primária da Convenção, neste ponto, é também a de conferir ao Estado da execução o poder de disposição sobre os produtos ou bens (nº 1), prevendo-se igualmente a possibilidade de acordo em sentido diverso, conforme resulta do nº 3, que se apresenta com uma redacção muito próxima da do artigo 5º, nº 5, alínea b), da Convenção de Viena de 1988.

Mas é introduzida uma inovação, que consiste na possibilidade – que se aponta como prioritária – de o Estado da execução, a pedido do Estado requerente, proceder à restituição a este dos produtos ou bens, com vista a indemnizar as vítimas da infracção ou entregá-los aos legítimos proprietários (nº 2).

Será solução, aliás muito pertinente, a ponderar pelo legislador em futuros ajustamentos legislativos, que porventura visem corrigir a opção do Decreto-Lei nº 15/93 ou acolher mais amplamente o espírito da presente Convenção.


13. O artigo 15º da Convenção contém disposições sobre a atribuição de competência às jurisdições internas, em relação aos crimes enunciados especificamente no texto convencional.

13.1. O nº 1 do artigo 15º da Convenção obrigará os Estados Partes a consagrar nos seus sistemas penais os princípios da territorialidade e do pavilhão como regras gerais em matéria de aplicação da lei penal no espaço.

No caso português não haverá dificuldades, na medida em que esses princípios são já genericamente acolhidos na legislação interna, como evidencia o artigo 4º do Código Penal.

13.2. Facultativamente, o nº 2 do preceito em análise permite aos Estados Partes que estendam a sua jurisdição para os crimes referidos a factos praticados em certas condições no estrangeiro, designadamente quando forem cometidos por cidadãos nacionais ou contra cidadãos nacionais, num afloramento do princípio da nacionalidade, a que a nossa lei interna também atende no artigo 5º.

13.3. Algumas especialidades se sugerem na alínea c) do nº 2 relativamente aos crimes de “participação em grupo criminoso organizado” e de “branqueamento do produto do crime”, em parte já contidas no dispositivo interno.

13.4. O nº 3 impõe a consagração da competência da jurisdição nacional nos casos de recusa de extradição com o fundamento de estarem em causa cidadãos do Estado requerido.

Trata-se de solução recebida no artigo 5º, nº 1, alínea c), do Código Penal, na parte respeitante aos factos cometidos por portugueses.

13.5. O nº 4 já não é imperativo e prevê a possibilidade de idêntica consagração para as outras situações de recusa de extradição.

No caso português, essa solução não é novidade, porque utilizada nas alíneas c) e e) do nº 1 do artigo 5º do Código Penal, quanto a factos praticados por estrangeiros, seja ou não contra portugueses.

13.6. O nº 5 refere-se à eventualidade de um conflito positivo de competência no plano internacional. Com efeito, devido às respectivas leis internas (através das suas normas de aplicação da lei penal no espaço), podem vários Estados reclamar competência jurisdicional relativamente a um mesmo facto.

Essa situação de concorrência de competências originárias entre dois ou mais Estados é objecto dos artigos 30º a 34º da Convenção Europeia Relativa à Transmissão de Processos Penais. Esta é uma convenção celebrada sob a égide do Conselho da Europa, aberta à assinatura em Estrasburgo, a 15 de Maio de 1972, e assinada por Portugal a 10 de Maio de 1979. Segundo essa Convenção, pretende-se que prossiga apenas um só procedimento criminal, pelo que se estabelece um processo de consulta entre os vários Estados, com vista a determinar, de entre eles, qual continua com um processo único.

Porém, tal Convenção não foi aprovada para ratificação, nem ratificada pelo nosso país. E a nossa lei interna de cooperação internacional penal (actualmente a Lei nº 144/99) nunca contemplou a hipótese suscitada.

Vem agora a Convenção em análise suprir parcialmente essa lacuna. Não se trata de consagrar uma regulamentação tão pormenorizada como a do texto da Convenção do Conselho da Europa, mas, tal como nesta, estabelece-se um dever de consulta entre os Estados – embora na presente Convenção apenas com o objectivo genérico de “coordenar as suas acções”.


14. Os artigos 16º a 22º da Convenção reportam-se ao tema da cooperação judiciária internacional em matéria penal, a qual merece tratamento reconhecidamente completo e adequado na Lei nº 144/99, que exprime, em vários planos, a recepção no direito interno de vários compromissos convencionais assumidos por Portugal.

Como veremos, consistindo a presente Convenção num mínimo denominador comum entre os Estados, seria inevitável ficar a sua regulamentação, em regra, aquém do regime mais avançado e exaustivo da nossa legislação interna.

14.1. Quanto à extradição, constitui temática com assento constitucional, conforme o disposto no artigo 33º da Constituição ([166]). Porém, refira-se, desde já, que a regulamentação da Convenção não interfere com qualquer dos princípios e regras que se considerou merecerem dignidade constitucional.

14.1.1. O artigo 16º da Convenção começa por prever, no seu nº 1, a exigência de dupla incriminação, que constitui uma regra clássica na matéria, igualmente vertida na lei interna, como evidencia o artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99. Embora, no plano do direito internacional convencional, esteja actualmente a entrar em crise esse princípio geral, com a consciência da necessidade de prever excepções no quadro do reforço do combate internacional à criminalidade grave, de que é já exemplo o artigo 3º, nº 1, da Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa à Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, cele­brada em Dublin a 27 de Setembro de 1996, e vinculativa para Portugal ([167]).

14.1.2. O nº 3 determina que os Estados Partes, de entre as infracções que dão lugar a extradição, considerem incluídos (em tratados entre si em vigor) ou incluam (em futuros tratados a celebrar entre si), os crimes de “participação em grupo criminoso organizado”, “branqueamento do produto do crime”, “corrupção” e “obstrução à justiça”, bem assim como os crimes considerados graves pela Convenção (ou seja, puníveis com uma pena de prisão de máximo igual ou superior a quatro anos).

Tendo em conta que a nossa lei interna prevê a extradição para crimes a que sejam aplicáveis penas ou medidas de segurança privativas da liberdade de máximo igual ou su­perior a 1 ano, nos termos do artigo 31º, nº 2, da Lei nº 144/99, verifica-se que existe plena compatibilidade dos planos normativos convencional e nacional.

14.1.3. Os nºs 4 e 5 referem-se aos Estados que condicionem a extradição à existência de um tratado, o que não é o caso português, dada a forma como é consagrado o princípio da reciprocidade no artigo 4º da Lei nº 144/99. Permite-se a extradição mesmo na falta de tratado, com base no funcionamento da reciprocidade, podendo o Ministério da Justiça solicitar “uma garantia de reciprocidade se as circunstâncias o exigirem” (artigo 4º, nº 2), sem prejuízo de algumas excepções em função de interesses relevantes (artigo 4º, nº 3).

Para os Estados que não condicionam a extradição à existência de um tratado, como sucede com o sistema português, rege o nº 6, que impõe a consagração da possibilidade de extradição para as infracções indicadas no tópico anterior – o que, como vimos, é já viável à luz do actual regime interno.

14.1.4. Nos nºs 7 a 9 encontramos, nomeadamente, a proposta de mecanismos que já têm acolhimento no nosso sistema: fixação de pena mínima para a extradição e causas de recusa; simplificação de procedimentos; possibilidade de detenção provisória.

14.1.5. O nº 10 completa o artigo 15º, nº 3, da Convenção, com o objectivo de criar uma obrigação de julgar o extraditando no Estado requerido, no caso de recusa com fundamento na sua condição de cidadão nacional. É um afloramento do clássico princípio aut dedere aut punire, que constitui regra básica do nosso sistema, expressa nos artigos 6º, nº 5, e 32º, nº 5, da Lei nº 144/99.

O nº 11 surge na sequência do anterior, como alternativa ao cumprimento da obrigação estabelecida no nº 10. Contempla a possibilidade de extradição de nacionais condicionada pela devolução para cumprimento de pena, que está também prevista no artigo 32º, nº 3, da Lei nº 144/99.

14.1.6. O nº 12 refere-se à extradição para cumprimento de pena, recusada por ser relativa a cidadão nacional, e determina que os Estados Partes considerem a possibilidade de execução dessa pena no Estado requerido.

A esta situação não se aplicará o nº 5 do artigo 32º da Lei nº 144/99, que, ao prever a instauração de procedimento penal na sequência da recusa de extradição, pressupõe estar em causa pedido de extradição para efeitos de procedimento criminal. Mas afigura-se responder à pretensão convencional a consagração da possibilidade de execução dessa pena, aplicada no Estado requerente a cidadão português, através do instituto da execução de sentenças penais, o qual abrange a execução de penas, como decorre dos artigos 98º, nº 1, alínea a), e 102º do citado diploma.

14.1.7. Os nºs 13 a 15 aludem, também sem novidade, e de forma muito genérica, a regras aceites ou não contraditadas pelo nosso sistema: garantia de tratamento equitativo do extraditando; recusa de extradição fundada em razões de discriminação social, religiosa, étnica ou política; proibição de recusa de extradição com fundamento na natureza fiscal dos crimes.

14.2. O artigo 17º da Convenção é igualmente genérico a consagrar a possibilidade de os Estados Partes considerarem a celebração de tratados para concretizar a transferência de pessoas condenadas ([168]).

Entre nós, o instituto está já estabelecido na lei interna, de forma completa, nos artigos 114º a 125º da Lei nº 144/99, sendo aplicável mesmo na falta de tratado, desde que respeitado o princípio da reciprocidade (artigo 4º da mesma Lei).

14.3. O artigo 18º da Convenção enuncia vários princípios e regras essenciais da cooperação judiciária, aqui entendida num sentido mais restrito, próximo do conceito nacional de auxílio judiciário mútuo (artigos 145º a 164º da Lei nº 144/99). Também aqui não encontramos desconformidades significativas entre os planos normativos interno e convencional.

Note-se apenas que a Convenção rege para os crimes nela implicados, enquanto a Lei nº 144/99 tem um carácter geral, para além de que esta constitui legislação subsidiária face ao direito internacional convencional (artigo 3º, nº 1) – o que logo descaracterizaria como contradição insanável uma qualquer divergência entre a solução convencional e a solução legal.

14.3.1. Depois de nos nºs 1 e 2 se formularem os desígnios de uma mais estreita cooperação judiciária entre os Estados Partes, o nº 3 vem enunciar um conjunto de diligências ou actos em que se traduzirá essa cooperação. A lista apresentada harmoniza-se facilmente com a constante do artigo 145º, nº 2, da Lei nº 144/99.

Os nºs 4 e 5 referem-se ao fornecimento espontâneo de informações, admissíveis à luz do nosso sistema. O nº 6 salvaguarda tratados existentes entre os Estados Partes, o que é aceitável. E o nº 8 obsta a que o sigilo bancário sirva de fundamento de recusa, o que não coloca dificuldades às autoridades portuguesas, na medida em que lhes é possível obter (para depois fornecer às autoridades requerentes) informações e documentação bancárias nas condições já acima descritas.

14.3.2. O núcleo essencial do preceito consta dos nºs 9 a 29, que o nº 7 insta os Estados Partes a aplicar, na falta de tratados entre estes – ou em vez desses tratados, se assim for acordado.

O nº 9 concede aos Estados Partes a faculdade de recusar cooperação por falta de dupla incriminação, aspecto já antes tratado.

Os nºs 10 a 12 abordam a possibilidade de entrega temporária de detidos ou presos para comparência no âmbito de processo estrangeiro, com vista à sua intervenção, designadamente como testemunha. A questão está regulada no artigo 155º da Lei nº 144/99, em termos que se aproximam do modelo convencional. E a protecção prevista no nº 12, que aflora novamente no nº 27, fundada no princípio da especialidade, tem correspondência nos artigos 16º e 157º da Lei nº 144/99 – embora haja diferenças no prazo de imunidade, que é de 15 dias na Convenção e de 45 dias na lei interna, os quais poderão perfeitamente coexistir, dado o carácter mais específico e a prevalência normativa do prazo convencional.

O nº 13 impõe a designação de uma Autoridade Central, cuja identificação deverá ser comunicada ao Secretário Geral das Nações Unidas no momento do depósito dos instrumentos de ratificação. A lei interna designou genericamente a Procuradoria-Geral da República como Autoridade Central (artigo 21º da Lei nº 144/99). Caberá ao Estado português decidir se retoma essa designação para efeitos da presente Convenção e informar pelas vias convencionalmente estabelecidas.

Os nºs 14 e 15 tratam das questões de forma de transmissão dos pedidos, línguas aplicáveis, requisitos dos pedidos – de modo compatível com o regime emergente dos artigos 20º, 22º e 23º da Lei nº 144/99. Apenas terá o Estado português de decidir que língua ou línguas irá aceitar para efeitos da presente Convenção e informar nos mesmos termos referidos no nº 13.

O nº 16 prevê a possibilidade de completamento do pedido, tal como já o faz o nº 3 do artigo 23º da Lei nº 144/99.

O nº 17 estabelece a regra de que o pedido de cooperação é cumprido em conformidade com o direito interno do Estado requerido. Essa é uma solução clássica na matéria, que se exprime no princípio locus regit actum. Foi também essa a opção do legislador nacional, vertida – sem prejuízo de excepções – no artigo 146º da Lei nº 144/99, embora hoje esteja em crise no direito internacional convencional, de que é exemplo o artigo 4º da recente Convenção relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal.

O nº 18 prevê a audição de pessoas por videoconferência, que é método já aceite no nº 3 do artigo 145º da Lei nº 144/99. Os nºs 19 e 20 estabelecem a proibição de utilização de informações obtidas pelo Estado requerente e a confidencialidade do pedido de auxílio, em termos que não se opõem à regulamentação dos artigos 148º e 149º da Lei nº 144/99.

O nº 21 menciona causas possíveis de recusa da cooperação, sendo que as suas alíneas b) a d) entroncam em princípios ou valores como os da soberania, segurança, ordem pública ou reciprocidade. Também aqui estamos perante fundamentos com correspondência na lei interna, enquanto esta apela à protecção da soberania, segurança e ordem pública no nº 1 do artigo 2º e nos nºs 4 e 6 do artigo 152º, à reciprocidade no nº 4 do artigo 6º, à ordem pública e à não contrariedade à lei no artigo 146º.

O nº 22 obsta à recusa do pedido com fundamento na natureza fiscal dos crimes, que também não constitui causa de recusa face à lei portuguesa. O nº 23 impõe a fundamentação da recusa, o que tem paralelo no nº 2 do artigo 24º da Lei nº 144/99.

Os nºs 24 e 25 estabelecem regras quanto ao tempo de cumprimento dos pedidos de cooperação, o primeiro impondo uma execução célere do pedido, segundo as indicações de prazo apresentadas e justificadas pelo Estado requerente, e o segundo permitindo um diferimento para protecção de eventuais processos internos. Trata-se de regras sem equivalente directo na Lei nº 144/99, mas, quanto à celeridade, prevê a alínea c) do artigo 151º que o Estado requerente possa sugerir prazos de cumprimento, o que deixa implícita uma obrigação de corresponder, em princípio, a essa pretensão. De todo o modo, as disposições em apreço terão relevância, pela novidade, em relação ao nosso sistema, sem entrarem com ele em contradição.

O nº 28 regula a matéria das despesas com a execução do pedido de cooperação de modo algo diverso do que consta do artigo 26º da Lei nº 144/99. Mas nada obriga a uma alteração desta disposição interna, dada a prevalência da Convenção no domínio específico a que se aplicará, permanecendo válida a solução legal para todas as outras situações.

Só a alínea a) do nº 29 é obrigatória, tendo a sua imposição de fornecimento de documentos e informações ao Estado requerente alguma correspondência nos nºs 3 e 5 do artigo 159º da Lei nº 144/99, mas a norma convencional pode ter, como vimos, um âmbito de aplicação diverso, neste caso mais vasto.

14.3.3. No nº 30 refere-se a possibilidade de celebração de acordos entre Estados Partes com vista a um especial reforço da cooperação judiciária nas respectivas relações – o que se afigura normal e razoável.

Surge, no entanto, na versão portuguesa um segundo parágrafo, em que se alude inopinadamente à realização de investigações conjuntas. Verifica-se depois ter esse parágrafo (que não deixámos de transcrever) um texto semelhante, mas formalmente diverso, ao do segundo parágrafo do artigo subsequente, que se reporta precisamente às investigações conjuntas. E, cotejando com as versões francesa e inglesa da Convenção, constata-se que inexiste nelas o tal segundo parágrafo do nº 30 do artigo 18º.

Trata-se de mais um lapso da versão portuguesa, em que não só se adiciona texto inexistente ao artigo 18º, como se apresentam duas diferentes traduções do mesmo texto original. Haverá, pois, que corrigir a versão portuguesa em conformidade, em vista da sua eventual futura ratificação.

14.4. O artigo 19º suscita, pois, a possibilidade de acordo entre Estados Partes para a realização de investigações conjuntas, seja por via da celebração de tratado, seja por via de entendimento casuístico.

No caso português, a figura da equipa de investigação criminal conjunta apenas está prevista na lei interna desde a alteração introduzida à versão originária da lei de cooperação internacional penal pela Lei nº 104/2001, que incluiu a menção a essa nova entidade na redacção dada aos nºs 5 e 6 do artigo 145º, com o objectivo de adequar o preceito, por antecipação, ao artigo 13º da novel Convenção relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal.

Nesta circunstância, a legislação portuguesa mostra-se já preparada para viabilizar os acordos casuísticos previstos no artigo 19º da presente Convenção.

14.5. O artigo 20º da Convenção estabelece a obrigação de os Estados Partes adoptarem medidas para permitir na sua lei interna o recurso a técnicas especiais de investigação, como sejam as entregas vigiadas, a vigilância electrónica ou outras formas de vigilância, as operações de infiltração, “a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada”. De todo o modo, condiciona essa obrigação ao respeito dos “princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico”, às “possibilidades” dos Estados Partes e às “condições prescritas no seu direito interno”.

Esclarece-se nas já citadas «Notas interpretativas» que daí não resulta uma obrigação de utilizar todas as técnicas especiais mencionadas. De todo o modo, diremos que qualquer delas é possível à luz do nosso direito interno.

14.5.1. Quanto às entregas controladas ou vigiadas, já analisámos antes ([169]) a consagração do instituto no plano interno. Importa agora verificar se a conformação dinâmica da figura na Convenção e na lei interna apresenta divergências.

Segundo o nº 4 desta disposição, a entrega vigiada pode incluir “a intercepção de mercadorias e a autorização de prosseguir o seu encaminhamento, sem alteração ou após subtracção ou substituição da totalidade ou de parte dessas mercadorias”. Cotejando com o teor do artigo 160º-A da Lei nº 144/99, verifica-se que, no seu nº 5, se prevê que as “substâncias proibidas ou perigosas em trânsito” possam ser “substituídas parcialmente por outras inócuas”. Daqui se infere que a lei interna não permite a subtracção (total ou parcial) ou a substituição total de substâncias ou produtos, contrariamente ao que prevê o texto convencional.

Perante essa desarmonia normativa, é possível sustentar, a partir da primazia do direito internacional e da natureza específica da Convenção, dirigida apenas a certos crimes, que nada obsta à aplicação da solução convencional a essas infracções, em caso de futura ratificação, enquanto para as demais valeria a disposição da lei interna, dado o seu carácter geral e abrangente, já que se estende muito para além dos crimes da Convenção, atento o referenciado limite mínimo de um ano do respectivo parâmetro sancionatório.

Cabe, no entanto, ao legislador nacional avaliar da vantagem em manter um regime dicotómico em matéria de entregas vigiadas, consoante estas estejam sob a alçada da presente Convenção ou a elas se aplique directamente o artigo 160º-A da Lei nº 144/99. Dessa ponderação poderá decorrer uma alteração legislativa, no sentido da harmonização da disposição interna com o texto convencional, o que se conseguirá passando a prever-se naquela a subtracção e a substituição integral de substâncias ou produtos.

14.5.2. No que toca à vigilância electrónica ou outras formas de vigilância, diremos que esta expressão é susceptível de abranger “a intercepção e gravação de conversações e comunicações telefónicas”, reguladas internamente pelos artigos 187º a 189º do Código de Processo Penal, bem como as “conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática”, a que se aplicam as mesmas disposições por remissão da norma de extensão do artigo 190º do mesmo Código – cabendo todas essas modalidades sob a nova designação de “intercepção de telecomunicações”, que é regida, no plano da cooperação internacional penal, pelo artigo 160º-C da Lei nº 144/99 –, e ainda a “intercepção das comunicações entre presentes”, também prevista no mesmo artigo 190º.

Das mencionadas referências legais decorre que estas técnicas de investigação, caracterizadas como vigilância, encontram já acolhimento na legislação nacional.

Em todo o caso, verifica-se que as aludidas técnicas de vigilância, fundadas no regime das escutas telefónicas, apenas são possíveis quanto a certos tipos de crime, identificados nas alíneas b) a e) do nº 1 do artigo 187º, e, genericamente, quanto a crimes a que corresponda pena de prisão de máximo superior a 3 anos [alínea a) do nº 1 do referido artigo]. Ora, esta possibilidade não abrange todos os crimes previstos na Convenção (ainda que estes se mostrem limitados à criminalidade organizada transnacional), já que a alguns correspondem na lei interna penalidades de máximo inferior ao indicado, pelo que se poderá justificar uma alteração legislativa para adequar, nessa parte, a lei processual à pretensão convencional – embora a ressalva feita em relação ao direito interno não torne a disposição da Convenção absolutamente imperativa.

14.5.3. Finalmente, as operações de infiltração correspondem àquilo que, na lei interna, é designado por acções encobertas.

Trata-se igualmente de instituto consagrado no direito interno, conforme já antes referido ([170]). Encontra-se genericamente regulado pela Lei nº 101/2001, na sua dimensão nacional, enquanto no plano da cooperação internacional penal rege o artigo 160º-B da Lei nº 144/99.

Porém, verifica-se que o catálogo de crimes em relação aos quais se pode desenvolver uma acção encoberta, constante do artigo 2º da Lei nº 101/2001, não cobre todos os crimes previstos na Convenção, ainda que estes se limitem ao domínio da criminalidade organizada transnacional.

Também aqui podemos afirmar, como fizemos a propósito das técnicas de vigilância, que se poderá justificar uma alteração legislativa para adequar, nessa parte, a Lei nº 101/2001 ao texto da Convenção. Seja como for, a disposição da Convenção não será absolutamente imperativa, face à ressalva respeitante ao direito interno, embora revele uma pretensão a atender pelos Estados Partes, na medida do possível.

14.6. O artigo 21º da Convenção determina que os Estados Partes considerarão a possibilidade de transferência de processos penais, subordinada a um critério de “interesse da boa administração da justiça”.

Mais uma vez, o instituto mostra-se já regulado de forma ampla na lei interna, sob a designação de “transmissão de processos penais”, nos artigos 79º a 94º da Lei nº 144/99, sendo aplicável mesmo na falta de tratado, com respeito do princípio da reciprocidade (artigo 4º da mesma Lei).

14.7. O texto convencional, no seu artigo 22º, prevê a possibilidade de cada Estado Parte adoptar medidas para levar em conta, nos seus processos penais por crimes mencionados na Convenção, condenações dos arguidos ocorridas nos outros Estados.

No plano interno, pode-se afirmar que a nossa legislação permite atender a antecedentes criminais fixados no estrangeiro. De forma expressa referem tal possibilidade os artigos 75º, nº 3 (sobre reincidência), e 83º, nº 4, e 84º, nº 4 (sobre pena relativamente indeterminada), cabendo ainda na menção genérica à “conduta anterior ao facto”, enquanto factor da medida da pena, enunciado no artigo 71º, nº 2, alínea e), todos do Código Penal.

Com vista à obtenção desses elementos, está prevista a formulação de pedidos de auxílio mútuo para obtenção de informações sobre antecedentes penais, na alínea f) do nº 2 do artigo 145º da Lei nº 144/99, os quais têm tramitação específica inserida nos artigos 152º, nº 5, e 162º do mesmo diploma.


15. O artigo 23º da Convenção define os elementos que devem integrar o último tipo de crime especificadamente indicado na Convenção, denominado de “obstrução à justiça”, o qual se pretende seja consagrado nos ordenamentos internos dos Estados Partes.

15.1. Uma primeira observação a fazer é a de que, contrariamente aos outros tipos de crime enunciados na Convenção, não encontramos a este propósito, na nossa legislação, uma previsão unitária desta infracção, nem sequer se pode aqui afirmar, de forma directa e imediata, que a factualidade descrita na Convenção integra este ou aquele tipo legal. Só uma análise mais minuciosa nos permitirá encontrar pontos de identificação com alguns crimes previstos no nosso ordenamento – e nem todos integrados no capítulo do Código Penal dedicado aos “crimes contra a realização da justiça” (artigos 359º a 371º).

Uma segunda observação prende-se com o carácter mais restrito que sempre terá o crime imposto pelo artigo 23º da Convenção face às infracções paralelas que detectemos no tecido penal interno, na medida em que as respectivas acções descritas no texto convencional se reportam à ocultação perante a justiça das outras condutas tipificadas na Convenção e, consequentemente, só relevam enquanto digam respeito a essas específicas infracções. Ainda que a sua consagração no plano interno não deva ser condicionada à intervenção de grupo criminoso organizado ou à transnacionalidade da conduta, conforme dispõe o nº 2 do artigo 34º da Convenção.

15.2. O crime de “obstrução à justiça” surge na Convenção sob duas formas diversas, cada uma em sua alínea da disposição em apreço.

No caso da alínea a) o sujeito passivo da acção é qualquer pessoa e no caso da alínea b) esse sujeito passivo é um funcionário, que concretamente se especifica como sendo “um agente judicial ou policial”.

15.2.1. Os elementos típicos da alínea a) podem-se desdobrar deste modo:

a) o recurso à força física, a ameaças ou a intimidação...
b) ou a promessa, oferta ou concessão de um benefício indevido...
c) para obtenção de um falso testemunho ou para impedir um testemunho...
d) ou para impedir a apresentação de elementos de prova...
e) num processo relacionado com a prática de infracções previstas na presente Convenção.

Os elementos sob a) e b) são alternativos, bem como os elementos sob c) e d), o que permite – cruzando-os – conceber quatro acções típicas diferentes.

15.2.1.1. A acção de recorrer a força física, ameaças ou intimidação para obter um falso testemunho ou impedir um testemunho enquadra-se no crime de coacção, previsto pelo artigo 154º do Código Penal ([171]).

O uso da força física, ameaças ou intimidação cabe no conceito de “violência ou ameaça com mal importante” daquele preceito, até porque este abrange reconhecidamente a violência física e psicológica ([172]). E, quanto à violência física, pode mesmo haver concurso efectivo com o crime de ofensa à integridade física grave do artigo 144º do Código Penal, na medida em que a previsão do artigo 154º apenas pressupõe um mínimo de violência, traduzido nas ofensas corporais simples do artigo 143º, que são consumidas pelo tipo de coacção ([173]).

Quanto ao fim da acção, que no crime da Convenção se traduz na obtenção de um falso testemunho ou no impedimento de um testemunho, é também evidente que o artigo 154º, ao admitir qualquer finalidade como objecto da coacção, incluirá necessariamente o escopo fixado no texto convencional.

Além disso, se o crime objecto da coacção for um facto punível, poderá mesmo haver, para o coactor, um concurso efectivo de crimes: do crime de coacção, como autor material, e do crime praticado pelo coagido, como autor mediato ou instigador ([174]). É o que sucede no caso em análise, em que o agente coage outrem a cometer o crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360º do Código Penal ([175]).

Note-se que, na lei portuguesa, o falso testemunho é integrado tanto pela narração positiva (ou facto declarado) como pelo silêncio (ou facto omitido) ([176]). Ou seja, quando na alínea a) do artigo 23º da Convenção se indica como finalidade da conduta típica a “obtenção de falso testemunho” ou “impedir um testemunho”, parece utilizar-se um conceito de falso testemunho mais restrito que o do nº 1 do artigo 360º, mas ao mesmo tempo propõe-se a figura do testemunho impedido, que abarcará quer o testemunho omisso, que ainda cabe no conceito legal de falso testemunho, quer a pura e simples recusa em depor, prevista no nº 2 do artigo 360º.

Assim, podemos concluir que a primeira conduta destacável da alínea a) do artigo 23º da Convenção está tipificada na lei portuguesa. E que o próprio fim visado por essa conduta – ou seja, o facto que se pretendia ver realizado – constitui um facto punível, com um completo enquadramento penal na lei portuguesa.

15.2.1.2. Também a acção de recorrer a força física, ameaças ou intimidação para impedir a apresentação de elementos de prova se enquadra no crime do artigo 154º do Código Penal, na medida em que este – como vimos – admite qualquer finalidade como objecto da coacção. Pelo que, igualmente neste caso, a conduta a punir, segundo a Convenção, está já contemplada na legislação penal nacional.

Questão que ainda se coloca é a de saber que infracção é aqui cometida pelo coagido, quando deixa de apresentar elementos de prova em processo penal. E isto com vista a apurar se o coactor pratica esse crime a título de autor mediato ou de instigador, em concurso efectivo com o crime de coacção.

Quanto à actuação do coagido, verifica-se que a mesma integra o crime de favorecimento pessoal, na modalidade prevista no nº 1 do artigo 367º do Código Penal ([177]).

Quanto ao coactor, as regras gerais sobre comparticipação (artigos 26º e 27º do Código Penal) sugerem a viabilidade da punição do coactor como instigador ou autor mediato do crime de favorecimento pessoal. Mas há aqui que distinguir: se o coactor actua para obter o encobrimento do seu próprio crime (ou seja, se ele é o beneficiário da acção de ocultação), tem-se entendido que não é possível punir o agente do crime pressuposto como comparticipante da infracção que consubstancia o encobrimento, o que se deduziria da não previsão do auto-favorecimento como conduta típica ([178]).

Seguindo tal entendimento, fica arredada para essa hipótese a solução do concurso, mas subsiste, neste segmento, a tutela penal pretendida pela Convenção.

15.2.1.3. A acção de prometer, oferecer ou conceder um benefício indevido para obtenção de um falso testemunho ou para impedir um testemunho tem cabimento – desde que a falsidade não ocorra – na descrição típica do suborno, previsto no artigo 363º do Código Penal ([179]).

Esta norma tipifica apenas o suborno activo, deixando de fora o subornado, ainda que este aceite a dádiva ou vantagem, sem prejuízo da sua punição pela falsidade, se a vier a cometer. E é essencial para a aplicação do tipo de suborno que a falsidade não se concretize, porque se esta tiver lugar, já não haverá suborno, sendo antes o subornador punido como comparticipante no crime de falso testemunho, designadamente como instigador deste crime ([180]).

De todo o modo, efective-se ou não a falsidade, sempre será punível, por uma via ou por outra, a conduta de quem actua no sentido de induzir à prestação da declaração falsa.

15.2.1.4. Resta avaliar a quarta e última hipótese típica enunciada na alínea a) do artigo 23º da Convenção. Está em causa a acção de prometer, oferecer ou conceder um benefício indevido para impedir a apresentação de elementos de prova.

Não está já aqui implicada uma actuação de violência ou ameaça, em que inequivocamente o meio usado para compelir outrem à ocultação de provas desfavoráveis ao agente é penalmente ilícito (coacção, ofensas corporais). Facultar a alguém um benefício ou uma vantagem não é, em si, um acto criminoso – o que o pode tornar ilícito ou indevido será o fim a que se destina.

É certo que a ocultação de provas em favor de outrem merece censura penal na nossa lei, conforme decorre do artigo 367º, nº 1, do Código Penal, pelo qual será punido o agente da ocultação, mas a norma prescinde da valoração dos meios que convenceram o autor a agir desse modo: para a incriminação deste é indiferente se foi ou não condicionado por dádiva ou promessa de vantagem, designadamente se prestadas pelo beneficiário da acção. Assim, a questão está em saber se esse fim de ocultação de provas, ilícito do ponto de vista do agente da ocultação, torna ilícito o acto prévio de promessa ou concessão de benefício dirigido a esse fim, quando praticado pelo beneficiário da ocultação.

A resposta positiva que nos dariam as regras gerais da comparticipação, que permitiriam imputar a autoria mediata ou a instigação do crime de favorecimento pessoal ao agente desse acto prévio de prometer ou dar vantagem, não é indiscutível quando este seja o próprio autor do crime pressuposto ou beneficiário da acção de ocultação.

Como vimos supra ([181]), considera-se na doutrina que não é punível a instigação do crime de favorecimento pessoal quando o instigador é o agente do crime pressuposto ou o beneficiário da acção – e a mesma argumentação valerá para a autoria mediata.

Acolhendo este entendimento, verifica-se aqui uma omissão de previsão penal, dentro do ordenamento jurídico português, em relação a uma das condutas que a Convenção pretende ver tipificada.

Resta ao legislador colmatar essa omissão a partir dos elementos típicos indicados no texto convencional, assim criando um tipo legal que incrimine a acção de prometer, oferecer ou conceder um benefício indevido para impedir a apresentação de elementos de prova em processo penal, quando o autor da dádiva ou promessa seja o próprio beneficiário da ocultação de provas.

O legislador nacional deverá também ponderar, nesse ensejo, da utilidade de criar um tipo legal mais amplo, que possa congregar todas ou algumas das condutas que o artigo 23º da Convenção trata de forma unitária – tipo esse que sempre se relacionaria com as várias incriminações avulsas e parcelares que já hoje cobrem as descrições típicas desse preceito convencional segundo as regras do concurso de normas.

15.2.2. Na alínea b) encontramos os seguintes elementos típicos:

a) o recurso à força física, a ameaças ou a intimidação...
b) para impedir um agente judicial ou policial de...
c) de exercer os deveres inerentes à sua função...
d) relativamente à prática de infracções previstas na presente Convenção.

Este enunciado típico tem evidentes afinidades com o crime de “resistência e coacção sobre funcionário” do artigo 347º do Código Penal ([182]).

Os meios aqui indicados – “violência ou ameaça grave” – devem ser interpretados da mesma forma que o conceito de “violência ou ameaça com mal importante” do crime de coacção do artigo 154º ([183]), havendo assim equivalência com o uso da força física, ameaças ou intimidação a que alude o texto convencional.

O tipo do artigo 347º é, quanto ao sujeito passivo, mais amplo que o exigido pela alínea b) do artigo 23º, já que o primeiro fala de “funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança”, enquanto este apenas se refere a “agente judicial ou policial”, estando estes manifestamente abrangidos pelo conceito legal. Aliás, o preceito convencional até acrescenta a possibilidade de os direitos internos dos Estados Partes estenderem a tutela penal a “outras categorias de agentes públicos”, o que a lei nacional já concretizou.

Há também identidade dos fins: impedir o exercício dos deveres da função é o que visa a acção constrangedora do agente do crime de coacção de funcionário, ou seja, levar o sujeito passivo a agir ou a deixar de agir, contra o dever.

Conclui-se, pois, neste ponto, que a conduta cuja punição é pretendida pela Convenção se encontra já tipificada na lei interna.

15.3. Uma última referência é devida ao elemento subjectivo das condutas típicas descritas no artigo 23º da Convenção.

Aí se identifica o elemento subjectivo do crime de “obstrução à justiça” pela expressão “cometidos intencionalmente”, o que é um claro sinal da caracterização do crime como doloso. Importa também aqui referir que todos os tipos de crime da lei portuguesa mencionados a propósito do artigo 23º se encontram previstos como dolosos ([184]), devendo ser também dolosa a respectiva comparticipação (artigo 27º, nº 1, do Código Penal).


16. O artigo 24º da Convenção estabelece a obrigação de os Estados Partes – mas condicionada às “suas possibilidades” – adoptarem medidas de “protecção eficaz contra eventuais actos de represália ou de intimidação” de testemunhas que deponham em processos penais relativos aos crimes previstos na Convenção, extensíveis a seus familiares ou pessoas próximas. Sugerem-se – sempre “sem prejuízo dos direitos do arguido” – algumas medidas, como sejam o fornecimento de novo domicílio, ocultação de identidade e de paradeiro, prestação de depoimento por meios que garantam segurança (v.g., videoconferência).

16.1. Portugal instituiu já um regime de protecção de testemunhas em processo penal, que consta da Lei nº 93/99, de 14 de Julho.

Esse diploma “regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo” (artigo 1º, nº 1). E as medidas nele previstas “podem abranger os familiares das testemunhas e outras pessoas que lhes sejam próximas” (artigo 1º, nº 2). O conceito de testemunha é, para este efeito, muito amplo, sendo qualquer pessoa que disponha de conhecimento sobre os factos do processo, independentemente do seu estatuto processual, o que inclui as vítimas constituídas assistentes, as partes civis ou os co-arguidos [artigo 2º, alínea a)].

Entre as medidas contempladas salientam-se:

- “ocultação da testemunha”, em que o depoimento em acto processual pode decorrer com ocultação da imagem ou com distorção da voz (artigo 4º);
- recurso à “teleconferência”, que também pode decorrer com ocultação da imagem ou da voz (artigo 5º);
- “não revelação da identidade da testemunha”, em que serão ocultados os seus elementos de identificação, e que pode ocorrer concomitantemente com as medidas anteriores (artigos 16º a 19º);
- “medidas pontuais de segurança”, v.g. indicação no processo de residência diferente ou protecção policial, extensiva a familiares e pessoas próximas (artigo 20º);
- “programa especial de segurança”, que inclui a aplicação de uma ou várias medidas de protecção e apoio, v.g. fornecimento de documentos oficiais com elementos de identificação diferentes, alteração do aspecto fisionómico ou concessão de nova habitação, no país ou no estrangeiro (artigos 21º a 25º).

Podem ainda ser adoptadas providências específicas, para actos processuais concretos, em relação a “testemunhas especialmente vulneráveis” (artigos 26º a 31º).

Para haver lugar ao uso da teleconferência ou às medidas especiais de segurança, exige-se que esteja em causa crime a ser julgado pelo tribunal colectivo ou pelo júri, ou seja, a que caiba, por regra, pena de prisão de máximo superior a cinco anos (artigos 5º, nº 1, e 20º, nº 1, da Lei nº 93/99 e artigos 13º e 14º do Código de Processo Penal).

Quando se trate da não revelação da identidade ou de programa especial de segurança, já os crimes envolvidos terão de ser, nos termos dos artigos 16º, alínea a), e 21º, alínea a), da Lei nº 93/99, os de tráfico de pessoas (artigo 169º do Código Penal), associação criminosa (artigo 299º), organização terrorista (artigo 300º), terrorismo (artigo 301º), associação criminosa para a prática de tráfico de estupefacientes ou de percursores ou para a prática de branqueamento de capitais provenientes de tráfico de estupefacientes ou de precursores (artigo 28º do Decreto-Lei nº 15/93) ou crimes puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a oito anos, cometidos no quadro de associação criminosa.

A Lei nº 93/99 ainda carece de regulamentação (artigo 32º), mas a sua entrada em vigor não ficou dela dependente (artigo 33º), pelo que algumas das medidas previstas poderão já ser aplicadas.

16.2. À data da entrada em vigor da Lei nº 93/99, já alguma protecção a testemunhas resultava do nosso sistema.

Por um lado, destacam-se regras do Código de Processo Penal destinadas a evitar o confronto directo das testemunhas com o arguido, como sejam as do artigo 352º, nº 1, alíneas a) e b), podendo ainda ser vistos como mecanismos de protecção a aplicação de medidas de coacção ao arguido (artigos 191º e ss.), a proibição de formular perguntas sugestivas ou impertinentes à testemunha (artigo 138º, nº 2), os impedimentos a depor (artigo 133º) ou o poder de recusa a depor de familiares e afins (artigo 134º).

Por outro lado, havia já um regime especial de protecção dos agentes infiltrados, enquanto testemunhas, no âmbito do tráfico de estupefacientes, que decorria dos artigos 59º e 59º-A do Decreto-Lei nº 15/93. Desse regime resultava, ao abrigo do nº 3 do artigo 59º-A, a possibilidade de ser dispensada a comparência do infiltrado para depor na audiência de julgamento, com vista a preservar o seu anonimato e possíveis retaliações – e, se fosse considerado indispensável o seu depoimento, o juiz poderia determinar restrições à livre assistência do público ou a exclusão de publicidade.

Com a revogação desses artigos operada pela Lei nº 101/2001 [artigo 7º, alínea a)], o novo regime geral das acções encobertas constante desse diploma, aplicável às infracções enunciadas no seu artigo 2º, passou a prever um mais amplo conjunto de instrumentos de protecção dos agentes encobertos. Não só se manteve o poder do tribunal decidir a não inquirição do infiltrado ou a sua inquirição com restrições à publicidade da audiência (artigo 4º, nº 4), como passou a ser possível o seu depoimento sob a identidade fictícia com que actuou enquanto agente infiltrado (artigo 4º, nº 3), para além de poder beneficiar das medidas de protecção de testemunhas previstas na Lei nº 93/99 (artigo 4º, nº 4, in fine).

16.3. Perante o texto da Convenção, afigura-se satisfatório o regime interno de protecção de testemunhas. Aliás, apenas tem natureza imperativa o nº 1 do preceito convencional, ao determinar a adopção de um tal regime.

A mera existência de um regime protectivo cumpre essa obrigação. Já as medidas concretas indicadas no nº 2 são facultativas, embora se encontrem todas previstas na legislação nacional.

Apenas importa ter presente que esse regime terá de se reportar às infracções previstas na Convenção, que apenas são integralmente abrangidas, no caso português, pela medida de “ocultação da testemunha”, atentos os catálogos de crimes ou os mínimos de penalidade estabelecidos na Lei nº 93/99 para as outras medidas. Pela sua insuficiente cobertura de alguns dos crimes da Convenção, deixando de fora várias modalidades de corrupção ou alguns crimes enquadráveis na “obstrução à justiça”, será, pois, de ponderar pelo legislador uma eventual ampliação do regime de protecção de testemunhas.


17. O artigo 25º da Convenção determina a adopção pelos Estados Partes de medidas de assistência, bem como de protecção contra represálias ou intimidação, relativamente às vítimas de infracções, as quais, aliás, já beneficiam da protecção conferida às testemunhas, quando o sejam (nº 4 do artigo 24º).

Essa disposição impõe ainda a existência de procedimentos adequados à obtenção de reparação e a possibilidade de intervenção das vítimas nos processos penais para sustentarem as suas posições, mas sempre com respeito dos direitos de defesa do arguido.

17.1. Como vimos, as vítimas enquanto potenciais declarantes como assistentes ou testemunhas, gozam, entre nós, da protecção contra represálias ou intimidação conferida pela Lei nº 93/99.

Quanto à assistência às vítimas (nº 1 do preceito convencional) e à sua reparação (nº 2), prevêem-se mecanismos de reparação civil dos danos sofridos em consequência do crime, no artigo 130º do Código Penal, e está instituído um regime que visa assegurar a indemnização do lesado devida pela prática de crimes quando não possa ser satisfeita pelo agente, previsto pelo Decreto-Lei nº 423/91, de 30 de Outubro ([185]).

O referido regime confere apoio às vítimas de lesões corporais graves, cometidas dolosamente, contemplando também casos de morte, aqui em benefício dos respectivos titulares do direito a alimentos. Entretanto, a Lei nº 10/96, de 23 de Março, tornou aplicável esse regime ao crime de terrorismo.

Paralelamente, Portugal vinculou-se à Convenção Europeia Relativa à Indemnização de Vítimas de Infracções Violentas, aberta à assinatura dos Estados membros do Conselho da Europa, em Estrasburgo, a 24 de Novembro de 1983 ([186]), que propugna a reparação, designadamente com o contributo do Estado, das vítimas de “lesões graves no corpo ou na saúde como resultado directo de uma infracção violenta intencional” [artigo 2º, nº 1, alínea a)].

17.2. O carácter genérico da obrigação de adoptar medidas de assistência e de reparação às vítimas poderá já satisfazer-se com a existência de um direito de indemnização dos lesados pelos danos decorrentes do crime.

Mas provavelmente o espírito do preceito vai mais longe, visando a instituição de um regime de apoio semelhante ao previsto na nossa lei interna, mas aplicável às infracções previstas na Convenção. Só que o regime nacional é de alcance limitado, não cobrindo qualquer destes crimes, pelo que caberá ao legislador ponderar o alargamento do regime fixado no Decreto-Lei nº 423/91 às vítimas dessas infracções.

18. O artigo 26º da Convenção estabelece, no seu nº 1, que cada Estado parte tomará medidas para encorajar elementos dos grupos criminosos organizados a colaborar com as autoridades competentes para a aplicação da lei, fornecendo informações úteis para efeitos de investigação e produção de provas ou afectando a actividade desses grupos.

Além disso, deixa-se à consideração dos Estados a possibilidade de redução da pena ou de concessão de “imunidade” ao colaborador (nºs 2 e 3). No que vai implicada a eventual consagração da figura do, assim comummente designado, “arrependido”.

Desde logo, o nosso sistema punitivo sempre imporia que actuações de colaboração com a justiça, como as descritas no preceito convencional, fossem consideradas como um factor com valor atenuativo da pena, no quadro das regras gerais de determinação da sua medida concreta [cfr. artigo 71º, nº 1, alínea e), in fine] – o que, só por si, já cumpriria a obrigação imposta pela Convenção.

Em todo o caso, a nossa lei interna vai mais longe, dando corpo a possibilidades de atenuação especial da pena e de dispensa de pena ou isenção de pena, que correspondem, sucessivamente a primeira e as segundas, às facultativas “redução” e “imunidade” a que a Convenção se refere.

Com efeito, estão previstos na lei interna, relativamente a alguns dos crimes a que se reporta a Convenção, benefícios em termos de pena quando o agente auxilia decisivamente na recolha de provas e na erradicação da actividade criminosa ou na captura de outros responsáveis. É o que sucede nas seguintes infracções e nos termos que se indicam:

- associação criminosa (artigo 299º do Código Penal): eventual atenuação especial da pena ou isenção de pena (nº 4 do preceito);
- associação criminosa para a prática de tráfico de estupefacientes ou de percursores ou para a prática de branqueamento de capitais provenientes de tráfico de estupefacientes ou de precursores (artigo 28º do Decreto-Lei nº 15/93): eventual atenuação especial da pena ou dispensa de pena (artigo 31º do diploma);
- associação criminosa para a prática de crimes tributários (artigo 89º do Regime Geral das Infracções Tributárias): eventual atenuação especial da pena ou isenção de pena (nº 4 do preceito);
- branqueamento de capitais provenientes do tráfico de estupefacientes ou de precursores (artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93): eventual atenuação especial da pena ou dispensa de pena (artigo 31º do diploma);
- corrupção passiva para acto ilícito (artigo 372º do Código Penal): eventual atenuação especial da pena (nº 3 do preceito);
- corrupção passiva para acto lícito (artigo 373º do Código Penal): eventual atenuação especial da pena (nº 3 do preceito);
- corrupção activa para acto ilícito ou lícito (artigo 374º do Código Penal): eventual atenuação especial da pena [artigo 8º, com referência ao artigo 1º, nº 1, alínea a), da Lei nº 36/94];
- corrupção passiva para acto ilícito de titular de cargo político (artigo 16º da Lei nº 34/87): eventual atenuação especial da pena (artigo 19º, nº 3, do diploma);
- corrupção passiva para acto lícito de titular de cargo político (artigo 17º da Lei nº 34/87): eventual atenuação especial da pena (artigo 19º, nº 3, do diploma);
- corrupção activa para acto ilícito ou lícito (artigo 18º da Lei nº 34/87): eventual atenuação especial da pena (artigo 19º, nº 3, do diploma);
- corrupção passiva no sector privado (artigo 41º-B do Decreto-Lei nº 28/84): eventual atenuação especial da pena (nº 3 do preceito);
- corrupção activa no sector privado (artigo 41º-C do Decreto-Lei nº 28/84): eventual atenuação especial da pena (nº 3 do preceito).

Embora sem abranger a totalidade dos crimes previstos na Convenção, verifica-se que a lei portuguesa contempla já numa dimensão razoável a figura do “arrependido”, em significativa consonância com a pretensão convencional.


19. Os artigos 27º a 31º enunciam um conjunto de directrizes a considerar pelos governantes nacionais, em matérias como a “cooperação entre as autoridades competentes para a aplicação da lei”, a ”recolha, intercâmbio e análise de informações sobre a natureza da criminalidade organizada”, a “formação e assistência técnica”, a “aplicação da Convenção através do desenvolvimento económico e da assistência técnica” e a “prevenção”.

Não estão aqui em causa regras rígidas e precisas, mas a definição de objectivos, a ser alcançados por várias formas, não necessariamente de índole legislativa, sendo sugeridas algumas em termos de quadros de acção, mas deixando à iniciativa política dos Estados Partes a sua concretização.

É assim que se fala, e a mero título de exemplo:

- no artigo 27º: em cooperar “para reforçar a eficácia de medidas de controlo do cumprimento da lei destinadas a combater as infracções previstas na presente Convenção”;
- no artigo 28º: em os Estados Partes considerarem a “possibilidade de desenvolver as suas capacidades de análise das actividades criminosas organizadas e de as partilhar”;
- no artigo 29º: em cada Estado Parte estabelecer “programas de formação específicos destinados ao pessoal das autoridades competentes para a aplicação da lei, incluindo magistrados do ministério público, juízes de instrução e funcionários aduaneiros”;
- no artigo 30º: em os Estados Partes tomarem medidas para “assegurar a melhor aplicação possível da presente Convenção através da cooperação internacional” ([187]);
- no artigo 31º: em os Estados Partes procurarem reduzir “as possibilidades actuais ou futuras de participação de grupos criminosos organizados em negócios lícitos”.

Como obrigação específica apenas a de cada Estado Parte informar o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas acerca das autoridades “que poderão assistir os outros Estados Partes na aplicação das medidas de prevenção da criminalidade organizada transnacional” (artigo 31º, nº 6).

Tudo isto será seguramente ponderado pelos competentes órgãos legislativos e de governação.


20. Os artigos 32º a 41º da Convenção contêm regras de estilo. Trata-se de disposições comuns em instrumentos internacionais, de conteúdo mais ou menos tabelar, que se prendem com aspectos formais da execução da Convenção, como indiciam as respectivas epígrafes: “Conferência das Partes na Convenção”; “Secretariado”; “Aplicação da Convenção”; “Resolução de diferendos”; “Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação e adesão”; “Relação com os protocolos”; “Entrada em vigor”; “Emendas”; “Denúncia”; “Depositário e línguas”.

Essas disposições – para além do que já foi dito acerca do artigo 34º – não revestem especiais particularidades, pelo que nos dispensamos de quaisquer comentários adicionais.


21. A título de referência final global, cumpre sublinhar que não se vislumbrou qualquer incompatibilidade entre a Constituição e o texto da Convenção, tanto em matérias com assento constitucional próprio, como em domínios que poderiam ser sensíveis a princípios constitucionais fundamentais.


VI


Passemos agora à análise do “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças”.

Este Protocolo é composto por 20 artigos, dividido em quatro partes, sob os títulos “Disposições gerais” (artigos 1º a 5º), “Protecção de vítimas de tráfico de pessoas” (artigos 6º a 8º), “Prevenção, cooperação e outras medidas” (artigos 9º a 13º) e “Disposições finais” (artigos 14º a 20º).

Para um melhor enquadramento das questões que o Protocolo suscita, comecemos pela sua integral transcrição.


“PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL RELATIVO À PREVENÇÃO, REPRESSÃO E PUNIÇÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS, EM ESPECIAL MULHERES E CRIANÇAS

Preâmbulo

Os Estados Partes no presente Protocolo,

Declarando que uma acção eficaz para prevenir e combater o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, exige por parte dos países de origem, de trânsito e de destino uma abordagem global e internacional, que inclua medidas destinadas a prevenir esse tráfico, punir os traficantes e proteger as vítimas desse tráfico, designadamente protegendo os seus direitos fundamentais, reconhecidos internacionalmente,

Tendo em conta que, apesar da existência de uma variedade de instrumentos internacionais que contêm normas e medidas práticas para combater a exploração de pessoas, especialmente mulheres e crianças, não existe nenhum instrumento universal que trate de todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas,

Preocupados com o facto de na ausência desse instrumento, as pessoas vulneráveis ao tráfico não estarem suficientemente protegidas,

Relembrando a Resolução 53/111 da Assembleia Geral, de 9 de Dezembro de 1998, na qual a Assembleia decidiu criar um comité intergovernamental especial, de composição aberta, para elaborar uma convenção internacional global contra a criminalidade organizada transnacional e examinar a possibilidade de elaborar, designadamente, um instrumento internacional de luta contra o tráfico de mulheres e de crianças,

Convencidos de que para prevenir e combater esse tipo de criminalidade será útil completar a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional com um instrumento internacional destinado a prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças,

Acordaram no seguinte:


I. Disposições gerais

Artigo 1º
Relação com a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional

1. O presente Protocolo completa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional. O mesmo será interpretado em conjunto com a Convenção.

2. As disposições da Convenção aplicar–se–ão mutatis mutandis ao presente Protocolo, salvo se no mesmo se dispuser o contrário.

3. As infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 5º do presente Protocolo serão consideradas como infracções estabelecidas em conformidade com a Convenção.

Artigo 2º
Objectivo

Os objectivos do presente Protocolo são os seguintes:
a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma atenção especial às mulheres e às crianças;
b) Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos; e
c) Promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir esses objectivos.

Artigo 3º
Definições

Para efeitos do presente Protocolo:
a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coacção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);
c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados "tráfico de pessoas" mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos na alínea a) do presente artigo;
d) O termo "criança" significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

Artigo 4º
Âmbito de aplicação

O presente Protocolo aplica–se, salvo disposição em contrário, à prevenção, investigação e repressão das infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 5º do presente Protocolo, quando essas infracções são de natureza transnacional e envolvem um grupo criminoso organizado, bem como à protecção das vitimas dessas infracções.

Artigo 5º
Criminalização

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas e outras que considere necessárias de forma a estabelecer como infracções penais os actos descritos no artigo 3º do presente Protocolo, quando tenham sido praticados intencionalmente.

2. Cada Estado Parte adoptará igualmente as medidas legislativas e outras que considere necessárias para estabelecer como infracções penais:
a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a tentativa de cometer uma infracção estabelecida em conformidade com o nº 1 do presente artigo;
b) A participação como cúmplice numa infracção estabelecida em conformidade com o nº 1 do presente artigo; e
c) Organizar a prática de uma infracção estabelecida em conformidade com o nº 1 do presente artigo ou dar instruções a outras pessoas para que a pratiquem.


II - Protecção de vítimas de tráfico de pessoas

Artigo 6º
Assistência e protecção às vítimas de tráfico de pessoas

1. Nos casos em que se considere apropriado e na medida em que seja permitido pelo seu direito interno, cada Estado Parte protegerá a privacidade e a identidade das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, nomeadamente a confidencialidade dos procedimentos judiciais relativos a esse tráfico.

2. Cada Estado Parte assegurará que o seu sistema jurídico ou administrativo contenha medidas que forneçam às vítimas de tráfico de pessoas, quando necessário:
a) Informação sobre procedimentos judiciais e administrativos aplicáveis;
b) Assistência para permitir que as suas opiniões e preocupações sejam apresentadas e tomadas em conta em fases adequadas do processo penal instaurado contra os autores das infracções, sem prejuízo dos direitos da defesa.

3. Cada Estado Parte terá em consideração a aplicação de medidas que permitam a recuperação física, psicológica e social das vitimas de tráfico de pessoas, incluindo, se for caso disso, em cooperação com organizações não governamentais, outras organizações competentes e outros elementos de sociedade civil e, em especial, o fornecimento de:
a) Alojamento adequado;
b) Aconselhamento e informação, especialmente quanto aos direitos que a lei lhes reconhece, numa língua que compreendam;
c) Assistência médica, psicológica e material; e
d) Oportunidades de emprego, educação e formação.

4. Cada Estado Parte terá em conta, ao aplicar as disposições do presente artigo, a idade, o sexo e as necessidades específicas das vítimas de tráfico de pessoas, designadamente as necessidades específicas das crianças, incluindo o alojamento, a educação e cuidados adequados.

5. Cada Estado Parte envidará esforços para garantir a segurança física das vítimas de tráfico de pessoas enquanto estas se encontrarem no seu território.

6. Cada Estado Parte assegurará que o seu sistema jurídico contenha medidas que ofereçam às vítimas de tráfico de pessoas a possibilidade de obterem indemnização pelos danos sofridos.

Artigo 7º
Estatuto das vítimas de tráfico de pessoas nos Estados de acolhimento

1. Além de adoptar as medidas em conformidade com o artigo 6º do presente Protocolo, cada Estado Parte considerará a possibilidade de adoptar medidas legislativas ou outras medidas adequadas que permitam às vítimas de tráfico de pessoas permanecerem no seu território a título temporário ou permanente, se for caso disso.

2. Ao executar o disposto no nº 1 do presente artigo, cada Estado Parte terá devidamente em conta factores humanitários e pessoais.

Artigo 8º
Repatriamento das vítimas de tráfico de pessoas

1. O Estado Parte do qual a vítima de tráfico de pessoas é nacional ou no qual a pessoa tinha direito de residência permanente, no momento de entrada no território do Estado Parte de acolhimento, facilitará e aceitará, sem demora indevida ou injustificada, o regresso dessa pessoa, tendo devidamente em conta a segurança da mesma.

2. Quando um Estado Parte reenvia uma vítima de tráfico de pessoas para um Estado Parte do qual essa pessoa é nacional ou no qual a mesma, no momento de entrada no território do Estado Parte de acolhimento, tinha direito de residência permanente, assegurará esse regresso, tendo devidamente em conta a segurança da pessoa bem como a situação de qualquer processo judicial relacionado com o facto de ela ser uma vítima de tráfico, preferencialmente de forma voluntária.

3. A pedido do Estado Parte de acolhimento, um Estado Parte requerido verificará, sem demora indevida ou injustificada, se uma vítima de tráfico de pessoas é sua nacional ou se tinha direito de residência permanente no seu território no momento de entrada no território do Estado Parte de acolhimento.

4. De forma a facilitar o regresso de uma vítima de tráfico de pessoas que não possua os documentos devidos, o Estado Parte do qual essa pessoa é nacional ou no qual a mesma tinha direito de residência permanente no momento de entrada no território do Estado Parte de acolhimento aceitará emitir, a pedido do Estado Parte de acolhimento, os documentos de viagem ou outro tipo de autorização necessária que permita à pessoa viajar e ser readmitida no seu território.

5. O presente artigo não prejudica os direitos reconhecidos às vítimas de tráfico de pessoas por força de qualquer disposição do direito interno do Estado Parte de acolhimento.

6. O presente artigo não prejudica qualquer acordo ou compromisso bilateral ou multilateral aplicável que regule, no todo ou em parte, o regresso de vítimas de tráfico de pessoas.


III - Prevenção, cooperação e outras medidas

Artigo 9º
Prevenção do tráfico de pessoas

1. Os Estados Partes estabelecerão políticas abrangentes, programas e outras medidas para:
a) Prevenir e combater tráfico de pessoas; e
b) Proteger as vítimas de tráfico de pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, de nova vitimação.

2. Os Estados Partes envidarão esforços para tomarem medidas tais como pesquisas, campanhas de informação e de difusão através dos órgãos de comunicação, bem como iniciativas sociais e económicas de forma a prevenir e combater o tráfico de pessoas.

3. As políticas, programas e outras medidas estabelecidas em conformidade com o presente artigo incluirão, se necessário, a cooperação com organizações não governamentais, outras organizações relevantes e outros elementos da sociedade civil.

4. Os Estados Partes tomarão ou reforçarão as medidas, designadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, para reduzir os factores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades que tornam as pessoas, especialmente as mulheres e as crianças, vulneráveis ao tráfico.

5. Os Estados Partes adoptarão ou reforçarão as medidas legislativas ou outras, tais como medidas educacionais, sociais ou culturais, nomeadamente através da cooperação bilateral ou multilateral, a fim de desencorajar a procura que fomenta todo o tipo de exploração de pessoas, especialmente de mulheres e crianças, que leva ao tráfico.

Artigo 10º
Intercâmbio de informações e formação

1. As autoridades competentes para a aplicação da lei, os serviços de imigração ou outros serviços competentes dos Estados Partes, cooperarão entre si, na medida do possível, através da troca de informações em conformidade com o respectivo direito interno, a fim de poderem determinar:
a) Se as pessoas que atravessam ou tentam atravessar uma fronteira internacional com documentos de viagem pertencentes a terceiros ou sem documentos de, viagem são autores ou vítimas de tráfico de pessoas;
b) Os tipos de documentos de viagem que as pessoas têm utilizado ou tentado utilizar para atravessar uma fronteira internacional com o objectivo de tráfico de pessoas; e
c) Os meios e métodos utilizados por grupos criminosos organizados com o objectivo de tráfico de pessoas, incluindo o recrutamento e o transporte de vítimas, os itinerários e as ligações entre as pessoas e os grupos envolvidos no referido tráfico, bem como as medidas adequadas à sua detecção.

2. Os Estados Partes assegurarão ou reforçarão a formação dos agentes dos serviços competentes para a aplicação da lei, dos serviços de imigração ou de outros serviços competentes na prevenção do tráfico de pessoas. A formação deve incidir sobre os métodos utilizados na prevenção do referido tráfico, na acção penal contra os traficantes e na protecção das vítimas, nomeadamente protegendo-as dos traficantes. A formação deverá também ter em conta a necessidade de considerar os direitos humanos e os problemas específicos das mulheres e das crianças bem como encorajar a cooperação com organizações não governamentais, outras organizações relevantes e outros elementos da sociedade civil.

3. Um Estado Parte que recebe informações respeitará qualquer pedido do Estado Parte que transmitiu essas informações, no sentido de restringir a sua utilização.

Artigo 11º
Medidas nas fronteiras

1. Sem prejuízo dos compromissos internacionais relativos à livre circulação de pessoas, os Estados Partes reforçarão, na medida do possível, os controlos fronteiriços necessários para prevenir e detectar o tráfico de pessoas.

2. Cada Estado Parte adoptará medidas legislativas ou outras medidas apropriadas para prevenir, na medida do possível, a utilização de meios de transporte explorados por transportadores comerciais na prática de infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 5º do presente Protocolo.

3. Quando se considere apropriado e sem prejuízo das convenções internacionais aplicáveis, tais medidas consistirão, nomeadamente, em estabelecer a obrigação para os transportadores comerciais, incluindo qualquer empresa de transportes, proprietário ou operador de qualquer meio de transporte, de verificar que todos os passageiros sejam portadores dos documentos de viagem exigidos para a entrada no Estado de acolhimento.

4. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias em conformidade com o seu direito interno para prever sanções em caso de incumprimento da obrigação constante do nº 3 do presente artigo.

5. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de tomar medidas que permitam, em conformidade com o direito interno, recusar a entrada ou anular os vistos de pessoas envolvidas na prática de infracções estabelecidas em conformidade com o presente Protocolo.

6. Sem prejuízo do disposto no artigo 27º da Convenção, os Estados Partes procurarão intensificar a cooperação entre os serviços de controlo de fronteiras, designadamente criando e mantendo canais de comunicação directos.

Artigo 12º
Segurança e controlo dos documentos

Cada Estado Parte adoptará as medidas necessárias, de acordo com os meios disponíveis, para:
a) Assegurar a qualidade dos documentos de viagem ou de identidade que emitir, de forma a que não sejam indevidamente utilizados nem facilmente falsificados ou modificados, reproduzidos ou emitidos de forma ilícita; e
b) Assegurar a integridade e segurança dos documentos de viagem ou de identidade por si ou em seu nome emitidos e impedir a sua criação, emissão e utilização ilícitas.

Artigo 13º
Legitimidade e validade dos documentos

A pedido de outro Estado Parte, um Estado Parte verificará, em conformidade com o seu direito interno e dentro de um prazo razoável, a legitimidade e validade dos documentos de viagem ou de identidade emitidos ou supostamente emitidos em seu nome e de que se suspeita terem sido utilizados para o tráfico de pessoas.


IV. Disposições finais

Artigo 14º
Cláusula de salvaguarda

1. Nenhuma disposição do presente Protocolo prejudicará os direitos, obrigações e responsabilidades dos Estados e das pessoas por força do direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos direitos humanos e, especificamente, na medida em que sejam aplicáveis, a Convenção (x) de 1951 e o Protocolo (x1) de 1967 relativos ao estatuto do refugiado e ao princípio do non- -refoulement neles enunciado.

2. As medidas constantes do presente Protocolo serão interpretadas e aplicadas de forma a que as pessoas que foram vítimas de tráfico não sejam discriminadas. A interpretação e aplicação das referidas medidas estarão em conformidade com os princípios de não discriminação internacionalmente reconhecidos.

Artigo 15º
Resolução de diferendos

1. Os Estados Partes envidarão esforços para resolver os diferendos relativos à interpretação ou aplicação do presente Protocolo por via negocial.

2. Os diferendos entre dois ou mais Estados Partes relativamente à aplicação ou interpretação do presente Protocolo que não possam ser resolvidos por via negocial, dentro de um prazo razoável, serão submetidos, a pedido de um desses Estados Partes, a arbitragem. Se, no prazo de seis meses após a data do pedido de arbitragem, esses Estados Partes não chegarem a um acordo sobre a organização da arbitragem, qualquer desses Estados Partes poderá submeter o diferendo ao Tribunal Internacional de Justiça mediante requerimento, em conformidade com o Estatuto do Tribunal.

3. Cada Estado Parte pode, no momento da assinatura, da ratificação, da aceitação ou da aprovação do presente Protocolo ou da adesão ao mesmo, declarar que não se considera vinculado ao nº 2 do presente artigo. Os outros Estados Partes não ficarão vinculados ao nº 2 do presente artigo em relação a qualquer outro Estado Parte que tenha feito essa reserva.

4. Qualquer Estado Parte que tenha feito uma reserva em conformidade com o nº 3 do presente artigo pode, a qualquer momento, retirar essa reserva através de notificação ao Secretário Geral das Nações Unidas.

Artigo 16º
Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação e adesão

1. O presente Protocolo será aberto à assinatura de todos os Estados de 12 a 15 de Dezembro de 2000 em Palermo, Itália, e seguidamente na sede da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque até 12 de Dezembro de 2002.

2. O presente Protocolo será igualmente aberto à assinatura de organizações regionais de integração económica na condição de que pelo menos um Estado membro dessa organização tenha assinado o presente Protocolo em conformidade com o nº 1 do presente artigo.

3. O presente Protocolo está sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Os instrumentos de ratificação, de aceitação ou de aprovação serão depositados junto do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas. Uma organização regional de integração económica pode depositar o seu instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação se pelo menos um dos seus Estados membros o tiver feito. Nesse instrumento de ratificação, de aceitação e de aprovação essa organização declarará o âmbito da sua competência relativamente às matérias reguladas pelo presente Protocolo. Informará igualmente o depositário de qualquer modificação relevante do âmbito da sua competência.

4. O presente Protocolo está aberto à adesão de qualquer Estado ou de qualquer organização regional de integração económica da qual pelo menos um Estado membro seja Parte do presente Protocolo. Os instrumentos de adesão serão depositados junto do Secretário Geral das Nações Unidas. No momento da sua adesão uma organização regional de integração económica declarará o âmbito da sua competência relativamente às matérias reguladas pelo presente Protocolo. Informará igualmente o depositário de qualquer modificação relevante do âmbito da sua competência.

Artigo 17º
Entrada em vigor

1. O presente Protocolo entrará em vigor no nonagésimo dia seguinte à data do depósito do quadragésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão mas não antes da entrada em vigor da Convenção. Para efeitos do presente número, nenhum instrumento depositado por uma organização regional de integração económica será somado aos instrumentos depositados por Estados membros dessa organização.

2. Para cada Estado ou organização regional de integração económica que ratifique, aceite, aprove ou adira ao presente Protocolo após o depósito do quadragésimo instrumento pertinente, o presente Protocolo entrará em vigor no trigésimo dia seguinte à data de depósito desse instrumento por parte do Estado ou organização ou na data de entrada em vigor do presente Protocolo, em conformidade com o nº 1 do presente artigo, se esta for posterior.

Artigo 18º
Alterações

1. Cinco anos após a entrada em vigor do presente Protocolo, um Estado Parte no Protocolo pode propor uma alteração e depositar o texto junto do Secretário Geral das Nações Unidas, que em seguida comunicará a alteração proposta aos Estados Partes e à Conferência das Partes na Convenção para analisarem a proposta e tomarem uma decisão. Os Estados Partes no presente Protocolo reunidos na Conferência das Partes farão todos os esforços para chegarem a um consenso sobre qualquer alteração. Se todos os esforços para chegarem a um consenso forem esgotados e não se chegar a um acordo, será necessário, em último caso, para que a alteração seja aprovada, uma maioria de dois terços dos Estados Partes no presente Protocolo, que estejam presentes e expressem o seu voto na Conferência das Partes.

2. As organizações regionais de integração económica, em matérias da sua competência, exercerão o seu direito de voto nos termos do presente artigo com um número de votos igual ao número dos seus Estados membros que são Partes no presente Protocolo. Essas organizações não exercerão o seu direito de voto se os seus Estados membros exercerem o seu e vice-versa.

3. Uma alteração adoptada em conformidade com o nº 1 do presente artigo está sujeita a ratificação, aceitação ou aprovação dos Estados Partes.

4. Uma alteração adoptada em conformidade com o nº 1 do presente Protocolo entrará em vigor em relação a um Estado Parte noventa dias após a data do depósito do instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação da referida alteração junto do Secretário Geral das Nações Unidas.

5. A entrada em vigor de uma alteração vincula as Partes que manifestaram o seu consentimento em ficar vinculados por essa alteração. Os outros Estados Partes permanecerão vinculados pelas disposições do presente Protocolo, bem como por qualquer alteração anterior que tenham ratificado, aceite ou aprovado.

Artigo 19º
Denúncia

1. Um Estado Parte pode denunciar o presente Protocolo mediante notificação por escrito dirigida ao Secretário Geral das Nações Unidas. A denúncia tornar-se–á efectiva um ano após a data de recepção da notificação pelo Secretário Geral.

2. Uma organização regional de integração económica deixará de ser Parte no presente Protocolo quando todos os seus Estados membros o tiverem denunciado.

Artigo 20º
Depositário e línguas

1. O Secretário Geral das Nações Unidas é o depositário do presente Protocolo.

2. O original do presente Protocolo, cujos textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo fazem igualmente fé, será depositado junto do Secretário Geral das Nações Unidas.

EM FÉ DO QUE, os plenipotenciários abaixo assinados, devidamente autorizados pelos seus respectivos Governos, assinaram o presente Protocolo.”



1. Este Protocolo completa a dita Convenção de Palermo, anteriormente analisada, devendo aquele ser interpretado em conjunto com esta, como resulta dos artigos 37º, nºs 1 e 4, da Convenção e 1º, nº 1, do Protocolo.

O seu principal fundamento – de que dá conta o respectivo Preâmbulo – reside na inexistência, até aqui, de um instrumento universal que trate de todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas, do que resulta uma insuficiente protecção das pessoas vulneráveis ao tráfico.

O seu objectivo central é a criminalização do tráfico de mulheres e crianças, cuja conexão com a criminalidade organizada transnacional é notória, sendo essa a realidade visada pelo Protocolo, de acordo com o disposto no seu artigo 4º ([188]). Foi declarado no Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças para fins comerciais, realizado em Estocolmo, de 27 a 31 de Agosto de 1996, que o tráfico de mulheres e crianças constitui o terceiro maior negócio ilícito a nível mundial, a seguir aos tráficos de droga e de armas ([189]), sendo hoje reconhecido o envolvimento de poderosas redes internacionais naquele tráfico, que assim obtêm elevados proventos, os quais dão origem, muitas vezes, a actividades de branqueamento de capitais ([190]).

Porém, tendo em conta o conceito de “tráfico de pessoas” utilizado na alínea a) do artigo 3º do Protocolo, para que remete o nº 1 do artigo 5º, pretende-se não só a criminalização do tráfico dirigido à exploração sexual de mulheres e crianças, mas também a de outros tráficos de pessoas, que se podem sintetizar em dois núcleos: aquilo que podemos designar de tráfico para sujeição de pessoas (que inclui diferentes formas de servidão, como a exploração de trabalho forçado ou práticas de escravatura) e o tráfico para remoção de órgãos.


2. Os diferentes tráficos de seres humanos vêm, de há muito, preocupando a comunidade internacional, o que deu origem a vários instrumentos internacionais contra a escravatura e os tráficos de mulheres e crianças ([191]).

Em matéria de escravatura, são especialmente significativas a Convenção de Genebra sobre a Escravatura, assinada em 25 de Setembro de 1926 ([192]), e a Convenção Suplementar relativa à abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas análogas à Escravatura, de 7 de Setembro de 1956 ([193]).

No domínio do tráfico de mulheres e crianças, são de assinalar um relevante conjunto de instrumentos internacionais:

- Acordo Internacional para a Supressão do Tráfico de Brancas, celebrado em 18 de Maio de 1904 ([194]);
- Convenção Internacional relativa à Supressão do Tráfico de Brancas, celebrada em 4 de Maio de 1910 ([195]);
- Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, celebrada em 30 de Setembro de 1921 ([196]), alterada pelo Protocolo de Emenda, aberto à assinatura em 12 de Novembro de 1947 ([197]);
- Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Mulheres Adultas, celebrada em 11 de Outubro de 1933 ([198]), alterada pelo mesmo Protocolo de Emenda acima mencionado;
- Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, aberta à assinatura em 21 de Março de 1950 ([199]);
- Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 ([200]).

No âmbito do Conselho da Europa, destaca-se a Recomendação nº R (91) 11, adoptada pelo Conselho de Ministros de 9 de Setembro de 1991, referente às matérias da exploração sexual, pornografia, prostituição e tráfico de crianças e jovens adultos.

Também a União Europeia vem dando especial atenção ao tema, sendo sintomático que o Tratado de Amesterdão, na nova redacção que conferiu ao Tratado da União Europeia ([201]), tenha erigido como condição para a construção do espaço de liberdade, segurança e justiça, o combate a crimes como, entre outros, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças (artigo 29º). Entre as iniciativas adoptadas têm especial relevo a Acção Comum de 24 de Fevereiro de 1997 ([202]), relativa à luta contra o tráfico de seres humanos e a exploração sexual de crianças, e que visa, em especial, o reforço da cooperação judiciária penal e a aproximação de das legislações nacionais em matéria de tráfico de pessoas, bem como o Plano de Acção de Viena, de 7 de Dezembro de 1998, que pretende calendarizar a concretização dos novos objectivos apontados pelo Tratado de Amesterdão ([203]).

No contexto internacional, e acerca do tema da exploração sexual de crianças, constitui ainda um marco importante o mencionado Congresso de Estocolmo e as resoluções dele emergentes.


3. Como se referiu, visa o presente Protocolo a criminalização do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças (cfr. artigo 2º).

Estamos, pois, num domínio em que se jogam valores tão essenciais como os da dignidade da pessoa humana e da integridade física e moral, de importância nuclear no nosso ordenamento constitucional (artigos 1º e 25º da Constituição).

3.1. O nº 1 do artigo 5º impõe aos Estados Partes que adoptem as medidas adequadas a fixar como infracções penais os actos descritos no artigo 3º, quando intencionais, os quais se enquadram na expressão “tráfico de pessoas”, subsequentemente explicitada. Aí se desenha um conjunto de actuações direccionadas à exploração de uma pessoa, podendo desdobrar-se assim os respectivos elementos:

a) recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas...
b) recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coacção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra...
c) para fins de exploração, aqui se incluindo:
- exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual;
- trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, servidão; ou
- remoção de órgãos.

Prevê-se ainda o crime de “tráfico de crianças”, para cujo preenchimento releva a conduta descrita em a) e c), sendo de dispensar o uso dos meios referidos em b). Para o efeito, considera-se “criança” o menor de 18 anos, conforme estabelece a alínea d) do artigo 3º do Protocolo.

3.2. Na lei interna encontramos dois tipos de crime formalmente próximos do enunciado no Protocolo, que surgem classificados como “tráfico de pessoas” (artigo 169º do Código Penal) e “tráfico de menores” (artigo 176º do mesmo Código).

Da sua leitura ressalta imediatamente a noção de que se trata de tipos de crime aplicáveis a situações de exploração sexual.

3.2.1. O “tráfico de pessoas” interno, na sua versão actual ([204]), analisa-se nos seguintes elementos:

a) quem, por meio de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando qualquer situação de especial vulnerabilidade...
b) aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de pessoa, ou propiciar as condições...
c) para a prática, por essa pessoa, em país estrangeiro, de prostituição ou de actos sexuais de relevo ([205]).

3.2.1.1. Apesar de algumas diferenças semânticas, afigura-se haver concordância substancial, quanto à acção e quanto aos meios, entre os elementos típicos das previsões internacional e nacional.

Quanto ao fim da conduta, verifica-se que o “tráfico de pessoas” do Código Penal se reporta apenas ao tráfico internacional (ainda que independentemente do seu carácter organizado), o que tem equivalência com a pretensão criminalizadora do Protocolo, já que o âmbito de aplicação deste respeita a actuações de natureza transnacional, nos termos do artigo 4º do Protocolo. No entanto, refira-se que o tráfico interno não deixa de ser também punido pela lei nacional, na medida em que é abrangido pelo tipo de “lenocínio” do artigo 170º do Código Penal.

Ainda no âmbito do fim da conduta, constata-se que o tipo legal interno apenas contempla o tráfico para fins sexuais, indo a disposição do Protocolo mais além do que o preceito do Código Penal, na medida em que integra no conceito de “tráfico de pessoas” o tráfico para sujeição de pessoas e o tráfico para remoção de órgãos – pelo que se mostra necessário recorrer a outras figuras típicas para encontrar tutela penal para as restantes situações que o Protocolo pretende ver criminalizadas.

3.2.1.2. No que tange às diferentes formas de sujeição de pessoas que o Protocolo descreve, considera-se suficientemente abrangente o tipo de “escravidão” contemplado no artigo 159º do Código Penal. Note-se que este abarca a redução de uma pessoa ao estado ou à condição de escravo [alínea a)] e a alienação, cedência, aquisição ou apossamento de uma pessoa, com a intenção de a manter na situação de escravo [alínea b)].

Está aqui em causa o comportamento de quem trata uma pessoa como sua propriedade, colocando-a num estado de sujeição total ([206]). Esse é, aliás, o sentido da noção que já constava do artigo 1º, nº 1, da Convenção sobre a Escravatura de 1926, segundo a qual “a escravatura é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exerce todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade” ([207]).

O tipo legal interno tem, pois, a virtualidade de se aplicar a todas as actuações que reduzam a pessoa à categoria de objecto ou mercadoria, o que vale para a escravatura e para quaisquer práticas análogas à escravatura, como será o caso do trabalho forçado e de outras formas de servidão ([208]).

3.2.1.3. Já o tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos merece, na nossa legislação, uma atenção muito mitigada. Apesar de a Lei nº 10/2002 ter passado a reputar como infracção principal, para efeitos do crime de branqueamento de capitais, o “tráfico de órgãos ou tecidos humanos”, conforme referimos supra, o certo é que não existe uma incriminação ampla e directa desse tráfico.

Só o artigo 20º do Decreto-Lei nº 274/99 prevê expressamente a punição de actos de comércio relativos a “cadáver ou partes dele, ou peças, tecidos ou órgãos”, mas apenas “para os fins previstos no artigo 1º do diploma”, ou seja, “para fins de ensino e de investigação científica” ([209]). No preâmbulo do diploma justifica-se a incriminação com “as preocupações que têm vindo a ser demonstradas ao nível das diversas instâncias internacionais face a novas formas de criminalidade organizada envolvendo o tráfico de órgãos”.

Trata-se, porém, de uma previsão de alcance limitado, que deixa de fora a colheita de órgãos ou tecidos de origem humana “para fins terapêuticos e de transplantação” ([210]), cuja comercialização não é objecto de qualquer disposição específica de natureza penal ([211]).

De qualquer modo, importa ter presente que o Protocolo visa a criminalização do tráfico internacional de pessoas para remoção de órgãos, o que inculca a ideia de que se pretende atingir circuitos clandestinos de deslocação transnacional de pessoas para comercialização de órgãos, cujo destino final será, em regra, a sua aplicação em transplantes.

Nesta perspectiva, é de admitir que se alcança uma protecção indirecta em relação a esse tráfico, através de tipos legais que penalizam, em primeira linha, a recolha não consentida de órgãos.

Procurando na legislação interna sinais dessa tutela penal da remoção de órgãos para transplantes, verifica-se que podem estar aqui implicadas, quer condutas que integrem, em relação ao receptor do transplante, o conceito jurídico-penal de intervenção ou tratamento médico-cirúrgico, a que se reportam os artigos 150º e 156º do Código Penal (e que envolve a actuação de “médico ou outra pessoa legalmente autorizada”, no âmbito do exercício de um direito profissional reconhecido), quer actos cirúrgicos, respeitantes ao dador ou ao receptor do transplante, fora de qualquer enquadramento legal e institucional, ainda que realizados por médico ([212]).

No primeiro caso, os problemas de ilicitude situam-se essencialmente no plano da falta de consentimento para a recolha de órgãos a partir de cadáveres ou de dadores vivos ([213]) – quanto aos cadáveres, abre-se a possibilidade de a colheita de órgãos não consentida integrar o crime de dano do artigo 212º do Código Penal ou o crime de profanação de cadáver do artigo 254º do mesmo Código, e, quanto aos dadores vivos, haverá crime de ofensa à integridade física ([214]), que preencherá um qualquer dos artigos 144º [nomeadamente, a alínea a)], 145º ou 146º daquele Código. Mas se a remoção do órgão ocorrer em vida do dador e provocar a sua morte, designadamente se se tratar de órgão vital, poderá ser mesmo de imputar o crime de homicídio (artigos 131º ou 132º). Acresce que o transplante, quando deva ser considerado uma intervenção médico-cirúrgica, pode implicar, se violadora das leges artis ou se arbitrária por não consentida pelo receptor, a aplicação dos tipos legais previstos, respectivamente, nos artigos 150º, nº 2, ou 156º, nº 1, do Código Penal, desde que verificados os demais requisitos.

No segundo caso, para além dos crimes acabados de mencionar que se referem ao dador do transplante, será de considerar ainda o crime de ofensas corporais na pessoa do respectivo receptor ([215]).

Mas se todos os tipos legais indicados conferem tutela penal à remoção não consentida de órgãos, nenhum deles atende directamente ao próprio tráfico internacional de pessoas com essa finalidade, ou seja, ao tráfico de dadores forçados.

É possível que se colha alguma protecção reflexa contra essa situação através dos tipos legais de coacção (artigos 154º ou 155º) ou de sequestro (artigo 158º) e ainda por via da punibilidade da tentativa dos crimes de homicídio ou de ofensas corporais a cometer na pessoa dos potenciais dadores de órgãos – mas as condicionantes da aplicação daqueles tipos legais ou desta forma especial dos respectivos crimes deixam fundadas dúvidas sobre a eficácia dessa tutela penal.

É, assim, manifesta a insuficiência da legislação nacional para corresponder plenamente à pretendida criminalização do tráfico de pessoas para remoção de órgãos – pelo que este é mais um domínio em que se justifica uma intervenção legislativa conformadora.

3.2.2. Quanto à análise do “tráfico de menores”, importará ter presente o facto de o texto constitucional português conferir especial protecção à infância, a que expressamente se dedica o seu artigo 69º.

3.2.2.1. O “tráfico de menores” da lei interna (artigo 176º, nºs 2 e 3, do Código Penal) só passou a ser previsto autonomamente com a revisão de 1998 ([216]).

No seu confronto com o tipo paralelo de “tráfico de pessoas” do artigo 169º, constata-se que no crime de tráfico de menores se prescindiu da exigência típica de certos meios implicados na acção, cuja ocorrência integra agora o tipo qualificado do nº 3.

Para além disso, definiu-se que as vítimas deste crime seriam apenas os menores de 16 anos, embora com agravação da pena no caso de se tratar de menores de 14 anos. Mas se estiverem em causa menores entre 16 e 18 anos de idade, já não funciona a protecção incondicional ([217]) conferida pelo artigo 176º, pelo que se lhes aplica, nesse caso, o tipo legal do artigo 169º, sendo então necessário, para poderem ser considerados vítimas do crime de tráfico de pessoas, que o agente actue por um dos meios previstos no artigo 169º ([218]).

3.2.2.2. O tipo legal de tráfico de menores, na sua configuração actual ([219]), desdobra-se nos seguintes elementos (artigo 176º, nº 2, do Código Penal):

a) quem aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menor de 16 anos, ou propiciar as condições...
b) para a prática, por este, em país estrangeiro, de prostituição ou de actos sexuais de relevo.

Por sua vez, a pena será agravada se ocorrer alguma das seguintes situações (artigo 176º, nº 3, do Código Penal):

c) o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho...
d) actuar profissionalmente ou com intenção lucrativa...
e) aproveitar-se de incapacidade psíquica da vítima...
f) aproveitar-se de qualquer situação de especial vulnerabilidade da vítima...
g) ser a vítima menor de 14 anos.

Como se disse, o tipo fundamental de tráfico de menores preenche-se mesmo que o agente não use dos meios tipicamente exigidos no crime de tráfico de pessoas, correspondentes aos enunciados antecedentemente em c) e f). Este formato legal está assim conforme com o disposto nos artigos 3º, alínea c), e 5º, nº 1, do Protocolo, na medida em que estes visam a criminalização do recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de crianças, enquanto estas condutas se reportam a fins de exploração sexual, independentemente de envolverem os meios referidos na alínea a) do artigo 3º e previstos para a caracterização do tráfico de outras pessoas.

3.2.2.3. Contudo, a compatibilidade entre a norma convencional e o regime legal interno falha ao nível da delimitação subjectiva das vítimas, em função da idade. Segundo o Protocolo, o conceito de “criança”, para efeitos da construção específica do crime de tráfico de menores, aplica-se aos menores de 18 anos. E, como vimos, a lei interna fixa em 16 anos o respectivo máximo etário.

Há, pois, uma manifesta desconformidade neste ponto, que exige uma alteração legislativa no sentido de alargar o âmbito subjectivo do crime do artigo 176º, nº 2, quanto às vítimas, aos menores entre 16 e 18 anos de idade. Aliás, essa obrigação, agora imposta pelo presente Protocolo, já emergia para Portugal do artigo 1º da supra referida Convenção sobre os Direitos da Criança ([220]), sem que o legislador a tivesse até hoje atendido ([221]).

3.2.2.4. Ainda acerca da consagração do “tráfico de menores” na lei interna, cumpre sublinhar, tal como se fez a propósito do tipo legal comum de tráfico de pessoas, que o artigo 176º, nº 2, apenas contempla o tráfico de menores para fins sexuais, deixando de fora os tráficos para sujeição de menores e para remoção de órgãos de menores, incluídos também no conceito de tráfico de menores do Protocolo.

Ora, valem aqui as mesmas considerações já acima expendidas sobre a protecção interna contra esses tráficos em relação a vítimas adultas.

3.2.2.4.1. Quanto às diferentes formas de sujeição a que a alínea a) do artigo 3º do Protocolo se refere, mais uma vez se considera o crime de “escravidão” do artigo 159º do Código Penal apto a corresponder à pretensão de criminalização da disposição convencional.

Por força da alínea c) desse artigo 3º, o tráfico de crianças para esses fins de servidão deve ser punido independentemente do uso pelo agente dos meios descritos naquela alínea a) – e o certo é que o preenchimento do tipo legal de escravidão não está condicionado à verificação do uso de determinados meios, sendo identicamente aplicável a vítimas maiores e menores ([222]).

3.2.2.4.2. No que concerne ao tráfico de menores para fins de remoção de órgãos, as carências legislativas são as mesmas anteriormente assinaladas.

As formas de tutela indirecta então vislumbradas não variam em função da idade das vítimas, salvo na medida em que possam merecer uma correspondente agravação das molduras penais devido à condição de pessoa particularmente indefesa, em razão da idade que caiba à vítima – e que é levada em conta nos crimes de homicídio qualificado [artigo 132º, nº 2, alínea b)], de ofensa à integridade física qualificada (artigo 146º, nº 2), de coacção grave [artigo 155º, nº 1, alínea b)] ou de sequestro qualificado [artigo 158º, nº 2, alínea e)].

Mas falta uma tutela penal expressa, ampla e eficaz: impõe-se uma intervenção legislativa, que deverá acautelar, ao nível da pena, a especial vulnerabilidade das crianças vítimas desse tráfico.

3.3. O nº 2 do artigo 5º do Protocolo pretende a criminalização da tentativa, da cumplicidade e de outras modalidades de autoria [alíneas a) a c), respectivamente] do “tráfico de pessoas” em geral, incluindo crianças.

Na medida em que os tipos legais internos de tráfico de pessoas, tráfico de menores, escravidão e comercialização de cadáver, que correspondem mais directamente à incriminação pretendida pelo Protocolo, não contêm normas que excepcionem a aplicação das regras gerais sobre autoria e participação e sobre tentativa, sendo que as penalidades previstas superam o limite mínimo para a punibilidade desta constante do artigo 23º, nº 1, do Código Penal, mostram-se contempladas no direito interno as situações a que se refere o Protocolo.


4. Das outras disposições do Protocolo cumpre também salientar alguns tópicos.

4.1. Os capítulos II e III, respeitantes à “Protecção de vítimas de tráfico de pessoas” e à “Prevenção, cooperação e outras medidas”, contêm essencialmente um conjunto de directivas genéricas – em alguns casos até condicionadas aos regimes internos ou às possibilidades de cada Estado Parte – com vista a uma concretização de dimensão política, cuja realização não terá necessariamente de assentar em iniciativas de natureza legislativa ou, quando apoiada em lei, carecerá ainda, para a sua eficácia, de medidas de tipo administrativo.

4.1.1. Estão aí em causa aspectos relativos à situação das vítimas de tráfico de pessoas (artigos 6º a 8º) como os seguintes:

- protecção da sua privacidade e identidade, com confidencialidade dos respectivos procedimentos judiciais;
- informação sobre os procedimentos judiciais e administrativos aplicáveis;
- assistência para a apresentação em processo penal das suas opiniões e preocupações;
- apoio à sua recuperação física, psicológica e social;
- garantias da sua segurança física;
- possibilidade de obterem indemnização pelos danos sofridos;
- possibilidade da sua permanência no Estado de acolhimento, a título temporário ou permanente;
- aceitação do seu repatriamento pelo Estado de origem e responsabilização do Estado de reenvio pelo seu regresso, com emissão por aquele dos documentos de viagem ou de qualquer outra autorização necessária.

4.1.1.1. Para algumas dessas situações, colhe-se já hoje resposta no ordenamento interno. É o caso do regime de protecção de testemunhas, do regime de apoio à vítima ou do estatuto do assistente ou do lesado em processo penal, nas condições referenciadas supra, a propósito dos artigos 24º e 25º da Convenção. Como será o caso do regime do segredo de justiça em processo penal, emergente dos artigos 86º a 90º do Código de Processo Penal, quanto à referida confidencialidade dos procedimentos judiciais.

4.1.1.2. No que respeita à permanência das vítimas de tráfico de pessoas no país de acolhimento ou ao seu repatriamento pelo país de reenvio, enquanto envolvendo Portugal em qualquer dessas posições, serão de considerar os regimes constantes do Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto ([223]), que “regula as condições de entrada, permanência e saída de estrangeiros do território português” ([224]), e da Lei nº 15/98, de 26 de Março, que estabelece o regime jurídico em matéria de asilo e de refugiados.

Ainda que não prevendo especificamente a condição de vítima de tráfico de pessoas, o Decreto-Lei nº 244/98 permite atender a casos de estrangeiros em situação particularmente difícil, na medida em que contempla, designadamente:

- a assistência de intérprete, médio ou advogado, quanto a estrangeiros que não sejam admitidos (artigo 24º);
- a emissão de visto especial para entrada e permanência temporária no país, por razões humanitárias ou de interesse nacional, reconhecidas por despacho do Ministro da Administração Interna (artigo 49º);
- a prorrogação de permanência, em casos fundamentados e desde que se mantenham os motivos da admissão (artigo 52º, nº 3);
- a concessão de autorização de residência, que pode ser permanente ou temporária, pelo Ministro da Administração Interna, em situações extraordinárias, por razões de interesse nacional (artigo 88º).

Podem igualmente as vítimas de tráfico de pessoas beneficiar do estatuto de refugiados, o que o próprio Protocolo salvaguarda, conforme resulta do seu artigo 14º. Por sua vez, a Lei nº 15/98 garante o direito de asilo (artigo 1º), cuja concessão confere o estatuto de refugiado (artigo 2º), que merece protecção nos termos do artigo 8º do diploma.

Nesse quadro, está prevista a prestação de diferentes formas de apoio social ao requerente de asilo e ao refugiado: acolhimento, informação, intérprete, apoio jurídico, assistência médica e medicamentosa, apoio para alojamento e alimentação, acesso de menores ao ensino e acompanhamento especial para vítimas de tortura, violação e outros abusos de natureza física e sexual (artigos 49º a 58º).

Acresce que esta Lei nº 15/98 prevê, em especial, a concessão de uma autorização de residência a estrangeiros e apátridas que não possam beneficiar de asilo, por razões humanitárias, relacionadas com dificuldades no país de origem, que se traduzam em insegurança associada a conflitos armados ou em violação sistemática dos direitos humanos (artigo 8º).

4.1.1.3. Para o conjunto dos aspectos a considerar, quer as disposições acabadas de enunciar, quer decisões político-administrativas adequadas, permitirão corresponder ao ideário do texto convencional. Mas sempre importará que os competentes órgãos legislativos e de governação avaliem da necessidade de consagrar em letra de lei um verdadeiro estatuto da vítima de tráfico de pessoas.

4.1.2. Em matéria de prevenção e cooperação, os artigos 9º a 13º estabelecem parâmetros de actuação coerentes com o sentido geral da Convenção e do Protocolo e de que são incumbidos os Estados Partes, de que se destacam os seguintes:

- estabelecer políticas abrangentes de prevenção e combate ao tráfico de pessoas e de protecção das vítimas de nova vitimação;
- adoptar medidas de redução de factores como a pobreza, o subdesenvolvimento e a desigualdade de oportunidades;
- adoptar medidas educacionais, sociais e culturais para contrariar a exploração de pessoas;
- trocar informações sobre o fenómeno do tráfico de pessoas;
- assegurar formação dos agentes dos serviços competentes;
- reforço dos controlos fronteiriços para prevenir e detectar tráfico;
- adoptar medidas para prevenir utilização no tráfico de meios de transporte explorados por transportadores comerciais, que serão obrigados a verificar regularidade dos documentos de viagem dos passageiros, mediante sanções;
- criação de canais de comunicação entre serviços de controlo de fronteiras;
- assegurar qualidade, integridade e segurança dos documentos de viagem e de identidade e prestar entre si informações sobre a sua legitimidade e validade.

Perante esta enunciação de parâmetros é manifesto o forte carácter político ou político-administrativo das medidas necessárias à sua execução, que postulam a adopção de programas globais de acção ou concretizações casuísticas conformes ao espírito do Protocolo – pelo que não se colocam aqui questões de desconformidade ou carência legislativa face ao Protocolo.

Para além disso, importa assinalar o que já se encontra estabelecido em termos de controlos fronteiriços, no quadro do regime interno de entrada, permanência e saída de estrangeiros do território português (artigos 9º a 26º). E merece ser sublinhado o facto de estar já criado, no Decreto-Lei nº 244/98, um mecanismo de responsabilização dos transportadores de cidadãos estrangeiros para o território nacional, por via aérea ou marítima, que põe a cargo daqueles a promoção do seu retorno e as despesas relacionadas com a estada, o reembarque e o regresso (artigo 21º), para além de incorrerem numa contra-ordenação (artigo 141º).

4.2. Por último, os artigos 15º a 20º contêm regras de estilo, respeitantes a “Resolução de diferendos”, “Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação e adesão”, “Entrada em vigor”, “Alterações”, “Denúncia” e “Depositário e línguas”, as quais não suscitam comentários particulares.

5. A concluir, refira-se a ausência de sinais de qualquer inconstitucionalidade no Protocolo sub judicio.

O seu carácter progressivo, fundado numa ideia de protecção das vítimas de tráfico, no respeito dos seus direitos humanos [cfr. artigos 2º, alínea b), e 14º, nº 1], harmoniza-se perfeitamente com uma Constituição que recebe formalmente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 16º, nº 2, que confere aos estrangeiros um estatuto forjado no princípio da equiparação, acolhido no artigo 15º, e que tem da admissão de estrangeiros no território nacional uma perspectiva de integração, de que constitui afloramento o disposto no artigo 74º, nº 1, alínea j), da nossa Lei Fundamental.


VII


Finalmente, vamos centrar a nossa atenção no “Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea”.

Este Protocolo é composto por 25 artigos, dividido em quatro partes, sob os títulos “Disposições gerais” (artigos 1º a 6º), “Tráfico ilícito de migrantes por via marítima” (artigos 7º a 9º), “Prevenção, cooperação e outras medidas” (artigos 10º a 18º) e “Disposições finais” (artigos 19º a 25º).

Tal como em relação aos outros instrumentos, passemos à transcrição integral do Protocolo.


“PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL, CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE MIGRANTES POR VIA TERRESTRE, MARÍTIMA E AÉREA

Preâmbulo

Os Estados Partes no presente Protocolo,

Declarando que uma acção eficaz para prevenir e combater o tráfico ilícito de migrantes por via terrestre, marítima e aérea exige uma abordagem global e internacional, incluindo a cooperação, a troca de informações e outras medidas apropriadas, especialmente medidas sócio- -económicas a nível nacional, regional e internacional,

Relembrando a Resolução 54/212 da Assembleia Geral, de 22 de Dezembro de 1999, na qual a Assembleia instou os Estados Membros e os organismos das Nações Unidas a reforçarem a cooperação internacional no domínio das migrações internacionais e do desenvolvimento, de forma a combater as causas profundas das migrações, designadamente as que estão ligadas à pobreza e a optimizar os benefícios que as migrações internacionais proporcionam aos interessados e a incentivar, se necessário, os mecanismos inter-regionais, regionais e sub-regionais a continuarem a tratar da questão das migrações e do desenvolvimento,

Convencidos da necessidade de tratar os migrantes com humanidade e proteger plenamente os seus direitos,

Tendo em conta que, apesar do trabalho efectuado noutras instâncias internacionais, não existe um instrumento universal que trate de todos os aspectos do tráfico ilícito de migrantes e de outras questões conexas,

Preocupados com o aumento significativo das actividades dos grupos criminosos organizados relacionadas com tráfico ilícito de migrantes e outras actividades criminosas conexas, enunciadas no presente Protocolo, que causam grandes prejuízos aos Estados afectados,

Preocupados também pelo facto de o tráfico ilícito de migrantes poder pôr em risco, as vidas ou a segurança dos migrantes envolvidos,

Recordando a Resolução 53/111 da Assembleia Geral, de 9 de Dezembro de 1998, na qual a Assembleia decidiu criar um comité intergovernamental especial, de composição aberta, encarregado de elaborar uma convenção internacional global contra a criminalidade organizada transnacional e de examinar a possibilidade de elaborar, designadamente, um instrumento internacional de luta contra o tráfico e o transporte ilícito de migrantes, incluindo por via marítima,

Convencidos de que o facto de completar a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional com um instrumento internacional contra o tráfico ilícito de migrantes por via terrestre, aérea e marítima ajudará a prevenir e a combater esse tipo de criminalidade,

Acordaram no seguinte:


I. Disposições gerais

Artigo 1º
Relação com a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional

1. O presente Protocolo completa a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional. O mesmo será interpretado em conjunto com a Convenção.

2. As disposições da Convenção aplicar–se–ão mutatis mutandis ao presente Protocolo, salvo disposição em contrário.

3. As infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 6º do presente Protocolo serão consideradas como infracções estabelecidas em conformidade com a Convenção.

Artigo 2º
Objectivo

O objectivo do presente Protocolo é prevenir e combater o tráfico ilícito de migrantes, bem como promover a cooperação entre os Estados Partes com esse fim, protegendo ao mesmo tempo os direitos dos migrantes objecto desse tráfico.

Artigo 3º
Definições

Para efeitos do presente Protocolo:
a) A expressão “tráfico ilícito de migrantes” significa facilitar a entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não é nacional ou residente permanente com o objectivo de obter, directa ou indirectamente, um beneficio financeiro ou outro beneficio material;
b) A expressão “entrada ilegal” significa a passagem de fronteiras sem preencher os requisitos necessários para a entrada legal no Estado de acolhimento;
c) A expressão “documento de viagem ou de identidade fraudulento” significa qualquer documento de viagem ou de identificação:
i) Que tenha sido falsificado ou alterado de forma substancial por uma pessoa ou uma entidade que não esteja legalmente autorizada a fazer ou emitir documentos de viagem ou de identidade em nome de um Estado; ou
ii) Que tenha sido emitido ou obtido de forma irregular, através de falsas declarações, corrupção ou coacção ou qualquer outro meio ilícito; ou
iii) Que seja utilizado por uma pessoa que não é o seu titular legítimo;
d) O termo “navio” significa todo o tipo de embarcação, incluindo embarcações sem calado e hidroaviões, utilizados ou que possam ser utilizados como meio de transporte sobre a água, com excepção dos vasos de guerra, navios auxiliares da armada ou outras embarcações pertencentes a um Governo ou por ele exploradas, desde que sejam utilizadas exclusivamente por um serviço público não comercial.

Artigo 4º
Âmbito de aplicação

O presente Protocolo aplicar–se–á, salvo disposição em contrário, à prevenção, investigação e repressão das infracções estabelecidas em conformidade com o artigo 6º do presente Protocolo, quando essas infracções forem de natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado, bem como à protecção dos direitos das pessoas que foram objecto dessas infracções.

Artigo 5º
Responsabilidade penal dos migrantes

Os migrantes não estarão sujeitos a procedimentos criminais nos termos do presente Protocolo, pelo facto de terem sido objecto dos actos enunciados no seu artigo 6º.

Artigo 6º
Criminalização

1. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas e outras que considere necessárias para caracterizar como infracção penal, quando praticada intencionalmente e de forma a obter, directa ou indirectamente, um benefício financeiro ou outro benefício material:
a) O tráfico ilícito de migrantes;
b) Os seguintes actos quando praticados com o objectivo de possibilitar o tráfico ilícito de migrantes:
i) Elaboração de um documento de viagem ou de identidade fraudulento;
ii) Obtenção, fornecimento ou posse de tal documento;
c) Permitir que uma pessoa, que não é nacional ou residente permanente, permaneça no Estado em causa, sem preencher as condições necessárias para permanecer legalmente no Estado, através dos meios referidos na alínea b) do presente número ou de qualquer outro meio ilegal.

2. Cada Estado Parte adoptará também medidas legislativas e outras que considere necessárias para caracterizar como infracção penal:
a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a tentativa de praticar um infracção estabelecida em conformidade com o nº 1 do presente artigo;
b) A participação como cúmplice numa infracção estabelecida em conformidade com a alínea a), a alínea b) i) ou a alínea c) do nº 1 do presente artigo e, sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a participação como cúmplice numa infracção estabelecida em conformidade com a alínea b) ii) do nº 1 do presente artigo;
c) Organizar a prática de uma infracção estabelecida em conformidade com o nº 1 do presente artigo ou dar instruções a outras pessoas para que a pratiquem.

3. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas e outras que entenda necessárias, para considerar como circunstâncias agravantes das infracções estabelecidas em conformidade com as alíneas a), b) i) e c) do nº 1 do presente artigo e, sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, das infracções estabelecidas em conformidade com as alíneas b) e c) do nº 2 do presente artigo:
a) Pôr em perigo ou ameaçar pôr em perigo as vidas e segurança dos migrantes em causa; ou
b) O tratamento desumano ou degradante desses migrantes, incluindo a sua exploração.

4. Nenhuma disposição do presente Protocolo impedirá um Estado Parte de tomar medidas contra uma pessoa cuja conduta constitua uma infracção nos termos do seu direito interno.


II. Tráfico ilícito de migrantes por via marítima

Artigo 7º
Cooperação

Os Estados Partes cooperarão na medida do possível para prevenir e reprimir o tráfico ilícito de migrantes por via marítima, em conformidade com o direito internacional do mar.

Artigo 8º
Medidas contra o tráfico ilícito de migrantes por via marítima

1. Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio que arvora o seu pavilhão ou que invoca o registo da matrícula neste Estado, sem nacionalidade, ou que apesar de arvorar um pavilhão estrangeiro ou recusar mostrar o seu pavilhão, tem na verdade a nacionalidade do Estado Parte em questão, se encontra envolvido no tráfico ilícito de migrantes por via marítima, pode pedir o auxílio de outros Estados Partes para pôr termo à utilização do referido navio para esse fim. Os Estados Partes aos quais foi solicitado o auxílio prestá–lo–ão na medida do possível tendo em conta os meios disponíveis.

2. Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio que exerce a liberdade de navegação em conformidade com o direito internacional e arvora o pavilhão ou exibe sinais de matrícula de outro Estado Parte se encontra envolvido no tráfico ilícito de migrantes por via marítima pode notificar o Estado do pavilhão, solicitar a confirmação do registo da matrícula e, se este se confirmar, solicitar autorização a esse Estado para tomar as medidas apropriadas relativamente ao navio. O Estado do pavilhão pode, designadamente, autorizar o Estado requerente a:
a) Entrar a bordo do navio;
b) Revistar o navio; e
c) Se forem encontradas provas de que o navio se encontra envolvido no tráfico ilícito de migrantes por via marítima, tomar as medidas que considere apropriadas relativamente ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo, nos termos em que foi autorizado pelo Estado do pavilhão.

3. Um Estado Parte que tenha tomado qualquer medida em conformidade com o nº 2 do presente artigo, informará imediatamente o Estado do pavilhão em causa sobre os resultados das referidas medidas.

4. Um Estado Parte responderá imediatamente a qualquer pedido de outro Estado Parte com vista a determinar se um navio que invoca o registo da matrícula neste Estado ou arvore o seu pavilhão está autorizada a fazê-lo, bem como a um pedido de autorização efectuado em conformidade com o nº 2 do presente artigo.

5. O Estado do pavilhão pode, em conformidade com o artigo 7º do presente Protocolo, fazer depender a sua autorização de condições a acordar entre ele e o Estado requerente, nomeadamente condições relativas à responsabilidade e ao alcance das medidas efectivas a tomar. Um Estado Parte não tomará medidas adicionais sem a autorização expressa do Estado do pavilhão, excepto aquelas que se considerem necessárias para afastar um perigo iminente para a vida das pessoas ou aquelas que resultam de acordos bilaterais ou multilaterais pertinentes.

6. Cada Estado Parte designa uma ou mais autoridades, se necessário, para receber e responder a pedidos de auxílio de confirmação de registo de matrícula ou do direito de uma embarcação arvorar o seu pavilhão e a pedidos de autorização para tomar as medidas apropriadas. Essa designação será notificada pelo Secretário Geral a todos os outros Estados Partes no prazo de um mês após a designação.

7. Um Estado Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio se encontra envolvido no tráfico ilícito de migrantes por via marítima e não tem nacionalidade ou é equiparado a um navio sem nacionalidade pode abordá–lo e revistá-lo. Se forem encontradas provas que confirmem a suspeita, esse Estado Parte tomará as medidas apropriadas em conformidade com o direito interno e internacional aplicáveis.

Artigo 9º
Cláusulas de protecção

1. Quando um Estado Parte tomar medidas contra um navio em conformidade com o artigo 8º do presente Protocolo:
a) Velará pela segurança e pelo tratamento humano das pessoas a bordo;
b) Terá devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança do navio ou da sua carga;
c) Terá devidamente em conta a necessidade de não prejudicar os interesses comerciais ou os direitos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado;
d) Velará para que, consoante os meios disponíveis, quaisquer medidas tomadas em relação ao navio sejam ecologicamente razoáveis.

2. Se os motivos das medidas tomadas em conformidade com o artigo 8º do presente Protocolo se revelarem infundados, o navio será indemnizado por qualquer eventual prejuízo ou dano, desde que o navio não tenha praticado nenhum acto que tenha justificado a medida tomada.

3. Qualquer medida tomada, adoptada ou aplicada em conformidade com o presente capítulo, terá devidamente em conta a necessidade de não prejudicar ou afectar:
a) Os direitos e obrigações dos Estados costeiros e o exercício da sua jurisdição em conformidade com o direito internacional do mar; ou
b) O poder do Estado do pavilhão de exercer jurisdição e controlo relativamente às questões administrativas, técnicas e sociais relacionadas com o navio.

4. Qualquer medida tomada no mar, em conformidade com o disposto no presente capítulo, será executada apenas por navios de guerra ou aeronaves militares ou por outros navios ou aeronaves devidamente autorizados para esse efeito, que ostentem sinais claros e identificáveis como estando ao serviço do Estado.


III. Prevenção, cooperação e outras medidas

Artigo 10º
Informação

1. Sem prejuízo do disposto nos artigos 27º e 28º da Convenção, os Estados Partes, em especial aqueles com fronteiras comuns ou situados em itinerários utilizados para o tráfico ilícito de migrantes, trocarão entre si, para atingirem os objectivos do presente Protocolo, e em conformidade com os respectivos sistemas jurídicos e administrativos internos, informações relevantes, designadamente sobre:
a) Os pontos de embarque e de destino, bem como os itinerários, os transportadores e os meios de transporte, dos quais se tem conhecimento ou suspeita de serem utilizados por um grupo criminoso organizado que pratica actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo;
b) A identidade e os métodos de organizações ou grupos criminosos organizados dos quais se tem conhecimento ou suspeita de envolvimento na prática de actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo;
c) A autenticidade e as características dos documentos de viagem emitidos por um Estado Parte e o furto ou a utilização indevida de documentos de viagem ou de identidade em branco;
d) Os meios e métodos de dissimulação e transporte de pessoas, a modificação, a reprodução ou a aquisição ilícitas ou outra utilização indevida de documentos de viagem ou de identidade utilizados nos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo e formas de detectá-los;
e) Elementos da experiência legislativa, bem como práticas e medidas para prevenir e combater os actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo; e
f) Questões científicas e tecnológicas úteis para a investigação e a repressão, a fim de reforçar mutuamente a capacidade de prevenir e detectar os actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo, conduzir investigações sobre esses actos e processar os seus autores.

2. Um Estado Parte que recebe informações respeitará qualquer pedido do Estado Parte que transmitiu essas informações, no sentido de restringir a sua utilização.

Artigo 11º
Medidas nas fronteiras

1. Sem prejuízo dos compromissos internacionais relativos à livre circulação de pessoas, os Estados Partes reforçarão, na medida do possível, os controlos fronteiriços que considerem necessários para prevenir e detectar o tráfico ilícito de migrantes.

2. Cada Estado Parte adoptará as medidas legislativas ou outras medidas apropriadas para prevenir, na medida do possível, a utilização de meios de transporte explorados por transportadores comerciais para a prática da infracção estabelecida em conformidade com a alínea a) do nº 1 do artigo 6º do presente Protocolo.

3. Quando se considere apropriado, e sem prejuízo das convenções internacionais aplicáveis, essas medidas consistirão, nomeadamente, na obrigação dos transportadores comerciais, incluindo as empresas de transportes, os proprietários ou os operadores de qualquer meio de transporte, verificarem que todos os passageiros são portadores dos documentos de viagem exigidos para a entrada no Estado de acolhimento.

4. Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias, em conformidade com o seu direito interno, para prever sanções nos casos de violação da obrigação constante do nº 3 do presente artigo.

5. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de tomar medidas que permitam, em conformidade com o seu direito interno, recusar a entrada ou anular os vistos de pessoas envolvidas na prática de infracções estabelecidas em conformidade com o presente Protocolo.

6. Sem prejuízo do disposto no artigo 27º da Convenção, os Estados Partes considerarão a possibilidade de reforçar a cooperação entre os serviços de controlo de fronteiras, designadamente criando e mantendo canais de comunicação directos.

Artigo 12º
Segurança e controlo de documentos

Cada Estado Parte tomará as medidas necessárias, de acordo com os meios disponíveis para:
a) Assegurar a qualidade dos documentos de viagem ou de identidade que emitir, de forma a que não sejam indevidamente utilizados nem facilmente falsificados ou modificados, reproduzidos ou emitidos de forma ilícita; e
b) Assegurar a integridade e a segurança dos documentos de viagem ou de identidade emitidos pelo Estado Parte ou em seu nome e impedir a sua criação, emissão e utilização ilícitas.

Artigo 13º
Legitimidade e validade dos documentos

A pedido de outro Estado Parte, um Estado Parte verificará, em conformidade com o seu direito interno e dentro de um prazo razoável, a legitimidade e validade dos documentos de viagem ou de identidade emitidos ou presumidamente emitidos em seu nome e que suspeite terem sido utilizados para a prática dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo.

Artigo 14º
Formação e cooperação técnica

1. Os Estados Partes assegurarão ou reforçarão a formação especializada dos agentes dos serviços de imigração e de outros agentes competentes para a prevenção dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo e o tratamento humano dos migrantes que foram objecto desses actos, respeitando os direitos que lhes são reconhecidos no presente Protocolo.

2. Os Estados Partes cooperarão entre si e com organizações internacionais, organizações não governamentais, outras organizações competentes e outros elementos da sociedade civil, na medida do possível, para assegurar uma formação adequada do pessoal nos respectivos territórios com vista a prevenir, combater e erradicar os actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo e proteger os direitos dos migrantes que foram objecto desses actos. Essa formação incidirá, nomeadamente, sobre:
a) A melhoria da segurança e da qualidade dos documentos de viagem;
b) O reconhecimento e detecção de documentos de viagem e de identidade fraudulentos;
c) A recolha de informações de carácter criminal, especialmente relacionada com a identificação de grupos criminosos organizados dos quais se tem conhecimento ou suspeita de envolvimento na prática dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo, os métodos utilizados no transporte de migrantes objecto de tráfico ilícito, a utilização indevida de documentos de viagem ou de identidade para a prática dos actos estabelecidos no artigo 6º e os meios de dissimulação utilizados no tráfico ilícito de migrantes;
d) A melhoria de procedimentos para a detecção de pessoas vítimas de tráfico ilícito nos pontos de entrada e de saída tradicionais e não tradicionais; e
e) O tratamento humano de migrantes e a protecção dos direitos que lhes são reconhecidos no presente Protocolo.

3. Os Estados Partes que tenham conhecimentos especializados relevantes considerarão a possibilidade de prestar assistência técnica aos Estados que são frequentemente países de origem ou de trânsito de pessoas que foram objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo. Os Estados Partes envidarão esforços para fornecerem os recursos necessários, tais como veículos, sistemas de informática e leitores de documentos, para combater os actos estabelecidos no artigo 6º.

Artigo 15º
Outras medidas de prevenção

1. Cada Estado Parte tomará medidas destinadas a instituir ou a reforçar programas de informação para sensibilizar o público para o facto de os actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo constituírem uma actividade criminosa frequentemente perpetrada por grupos criminosos organizados com fins lucrativos e que apresentam grande risco para os migrantes em questão.

2. Em conformidade com o disposto no artigo 31º da Convenção, os Estados Partes cooperarão no domínio da informação a fim de impedir que potenciais migrantes se tornem vítimas de grupos criminosos organizados.

3. Cada Estado Parte promoverá ou reforçará, de forma apropriada, programas de desenvolvimento e cooperação a nível nacional, regional e internacional, tendo em conta as realidades sócio–económicas das migrações e prestando especial atenção a zonas económica e socialmente desfavorecidas, de forma a combater as causas profundas do tráfico ilícito de migrantes, tais como a pobreza e o subdesenvolvimento.

Artigo 16º
Medidas de protecção e de assistência

1. Ao aplicar o presente Protocolo, cada Estado Parte adoptará, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem nos termos do direito internacional, todas as medidas apropriadas, incluindo as medidas legislativas que considere necessárias, a fim de preservar e proteger os direitos das pessoas que foram objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo, que lhes são reconhecidos pelo direito internacional aplicável, especialmente o direito à vida e o direito a não ser submetido a tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

2. Cada Estado Parte tomará as medidas apropriadas para conceder aos migrantes uma protecção adequada contra a violência que lhes possa ser infligida tanto por pessoas como por grupos, pelo facto de terem sido objecto dos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo.

3. Cada Estado Parte concederá uma assistência adequada aos migrantes, cuja vida ou segurança tenham sido postas em perigo pelo facto de terem sido objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo.

4. Ao aplicar as disposições do presente artigo, os Estados Partes terão em conta as necessidades específicas das mulheres e das crianças.

5. No caso de detenção de uma pessoa que foi objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo, cada Estado Parte dará cumprimento às obrigações que lhe incumbem nos termos da Convenção de Viena sobre as Relações Consulares (x2), quando aplicável, incluindo a obrigação de informar sem demora. a pessoa em causa sobre as disposições relativas à notificação e comunicação aos funcionários consulares.

Artigo 17º
Acordos

Os Estados Partes considerarão a possibilidade de celebrar acordos bilaterais ou regionais, acordos operacionais ou outras plataformas de entendimento com o objectivo de:
a) Estabelecer as medidas mais apropriadas e eficazes para prevenir e combater os actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo; ou
b) Desenvolver entre si as disposições constantes do presente Protocolo.

Artigo 18º
Regresso de migrantes objecto de tráfico ilícito

1. Cada Estado Parte acorda em facilitar e aceitar, sem demora indevida ou injustificada, o regresso de uma pessoa que foi objecto dos actos estabelecido no artigo 6º do presente Protocolo e que é seu nacional ou que tem o direito de residência permanente no seu território no momento do regresso.

2. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de facilitar e aceitar, em conformidade com o seu direito interno, o regresso de uma pessoa que tenha sido objecto de um acto estabelecido no artigo 6º do presente Protocolo e que tinha o direito de residência permanente no território do Estado Parte no momento da sua entrada no Estado de acolhimento.

3. A pedido do Estado Parte de acolhimento, um Estado Parte requerido verificará, sem demora indevida ou injustificada, se uma pessoa que foi objecto dos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo é nacional desse Estado Parte ou se tem o direito de residência permanente no seu território.

4. A fim de facilitar o regresso de uma pessoa que tenha sido objecto dos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo e não possui os documentos devidos, o Estado Parte do qual essa pessoa é nacional ou no qual tem direito de residência permanente aceitará emitir, a pedido do Estado Parte de acolhimento, os documentos de viagem ou qualquer outra autorização que considere necessária para permitir à pessoa viajar e ser readmitida no seu território.

5. Cada Estado Parte envolvido no regresso de uma pessoa que tenha sido objecto dos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo adoptará todas as medidas apropriadas para organizar esse regresso de forma ordenada e tendo devidamente em conta a segurança e a dignidade da pessoa.

6. Os Estados Partes podem cooperar com organizações internacionais competentes na execução do presente artigo.

7. O disposto no presente artigo não prejudica qualquer direito reconhecido às pessoas, nos termos da legislação do Estado Parte de acolhimento, que tenham sido objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo.

8. O presente artigo não prejudica as obrigações decorrentes de qualquer outro tratado bilateral ou multilateral aplicável ou qualquer outro acordo operacional que regule, no todo ou em parte, o regresso das pessoas que tenham sido objecto dos actos estabelecidos no artigo 6º do presente Protocolo.


IV. Disposições finais

Artigo 19º
Cláusula de salvaguarda

1. Nenhuma disposição do presente Protocolo prejudicará outras direitos, obrigações e responsabilidades dos Estados e dos particulares nos termos do direito internacional, incluindo o direito internacional humanitário e o direito internacional relativo aos direitos humanos e, designadamente, na medida em que sejam aplicáveis, a Convenção (x3) de 1951 e o Protocolo (x4) de 1967 relativos ao Estatuto do Refugiado e ao princípio do non-refoulement neles enunciado.

2. As medidas constantes do presente Protocolo serão interpretadas e aplicadas de forma a que as pessoas que foram objecto dos actos enunciados no artigo 6º do presente Protocolo não sejam discriminadas. A interpretação e aplicação das referidas medidas serão efectuadas em conformidade com os princípios da não discriminação internacionalmente reconhecidos.

Artigo 20º
Resolução de diferendos

1. Os Estados Partes envidarão esforços para resolver os diferendos relativos à interpretação e à aplicação do presente Protocolo por via negocial.

2. Qualquer diferendo entre dois ou mais Estados Partes relativamente à aplicação ou interpretação do presente Protocolo que não possa ser resolvido pela via negocial dentro de um prazo razoável será submetido, a pedido de um desses Estados Partes, a arbitragem. Se, no prazo de seis meses após a data do pedido de arbitragem, esses Estados Partes não chegarem a um acordo sobre a organização da arbitragem, qualquer desses Estados Partes poderá submeter o litígio ao Tribunal Internacional de Justiça, mediante requerimento, em conformidade com o Estatuto do Tribunal.

3. Cada Estado Parte pode, no momento da assinatura, da ratificação, da aceitação ou da aprovação do presente Protocolo ou adesão ao mesmo, declarar que não se considera vinculado ao nº 2 do presente artigo. Os outros Estados Partes não ficarão vinculados ao nº 2 do presente artigo em relação a qualquer outro Estado Parte que tenha formulado essa reserva.

4. Qualquer Estado Parte que tenha formulado uma reserva nos termos do nº 3 do presente artigo pode, a qualquer momento, retirar essa reserva através de notificação ao Secretário Geral das Nações Unidas.

Artigo 21º
Assinatura, ratificação, aceitação, aprovação e adesão

1. O presente Protocolo será aberto à assinatura de todos os Estados de 12 a 15 de Dezembro de 2000 em Palermo, Itália, e, posteriormente, na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, até 12 de Dezembro de 2002.

2. O presente Protocolo será igualmente aberto à assinatura de organizações regionais de integração económica, desde que pelo menos um Estado membro dessa organização tenha assinado o presente Protocolo em conformidade com o nº 1 do presente artigo.

3. O presente Protocolo está sujeito a ratificação, aceitação ou aprovação. Os instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação serão depositados junto do Secretário Geral das Nações Unidas. Uma organização regional de integração económica pode depositar o seu instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação se pelo menos um dos seus Estados membros o tiver feito. Nesse instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação essa organização declarará o âmbito da sua competência relativamente às matérias reguladas pejo presente Protocolo. Informará igualmente o depositário de qualquer modificação relevante no âmbito da sua competência.

4. O presente Protocolo está aberto à adesão de qualquer Estado ou de qualquer organização regional de integração económica da qual pelo menos um Estado membro seja Parte do presente Protocolo. Os instrumentos de adesão serão depositados junto do Secretário Geral das Nações Unidas. No momento da sua adesão uma organização regional de integração económica declarará o âmbito da sua competência relativamente às questões reguladas pelo presente Protocolo. Informará igualmente o depositário de qualquer modificação relevante do âmbito da sua competência.

Artigo 22º
Entrada em vigor

1. O presente Protocolo entrará em vigor no nonagésimo dia seguinte à data do depósito do quadragésimo instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão, mas não entrará em vigor antes da entrada em vigor da Convenção. Para efeitos do presente número, nenhum instrumento depositado por uma organização regional de integração económica será somado aos que foram depositados pelos Estados membros dessa organização.

2. Em relação a cada Estado ou organização regional de integração económica que ratifique, aceite, aprove ou adira ao presente Protocolo após o depósito do quadragésimo instrumento pertinente, o presente Protocolo entrará em vigor no trigésimo dia seguinte ao depósito desse instrumento por parte do referido Estado ou organização ou na data de entrada em vigor do presente Protocolo, em conformidade com o nº 1 do presente artigo, se esta for posterior.

Artigo 23º
Alterações

1. Cinco anos após a entrada em vigor do presente Protocolo, um Estado Parte pode propor uma alteração e depositar o texto junto do Secretário Geral das Nações Unidas que, em seguida, comunicará a alteração proposta aos Estados Partes e à Conferência das Partes na Convenção, para analisarem a proposta e tomarem uma decisão. Os Estados Partes no presente Protocolo reunidos em Conferência das Partes farão todos os esforços para chegarem a um consenso sobre qualquer alteração. Se forem esgotados todos os esforços sem que se tenha chegado a um acordo, será necessário, em último caso, para que a alteração seja adoptada, uma maioria de dois terços dos votos expressos dos Estados Partes no presente Protocolo presentes na Conferência das Partes.

2. As organizações regionais de integração económica, em matérias da sua competência, exercerão o seu direito de voto nos termos do presente artigo com um número de votos igual ao número dos seus Estados membros que são Partes no presente Protocolo. Essas organizações não exercerão o seu direito de voto se os seus Estados membros exercerem o seu e vice-versa.

3. Uma alteração adoptada em conformidade com o nº 1 do presente artigo está sujeita a ratificação, aceitação ou aprovação dos Estados Partes.

4. Uma alteração adoptada em conformidade com o nº 1 do presente Protocolo entrará em vigor em relação a um Estado Parte noventa dias após a data do depósito do instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação da referida alteração junto do Secretário Geral das Nações Unidas.

5. A entrada em vigor de uma alteração vincula todos os Estados Partes que manifestaram o seu consentimento em ficar vinculados por essa alteração. Os outros Estados Partes permanecerão vinculados pelas disposições do presente Protocolo bem como por qualquer alteração anterior que tenham ratificado, aceite ou aprovado.

Artigo 24º
Denúncia

1. Um Estado Parte pode denunciar o presente Protocolo mediante notificação por escrito dirigida ao Secretário Geral das Nações Unidas. A denúncia tornar-se-á efectiva um ano após a data de recepção da notificação pelo Secretário Geral.

2. Uma organização regional de integração económica deixará de ser Parte no presente Protocolo quando todos os seus Estados membros o tiverem denunciado.

Artigo 25º
Depositário e línguas

1. O Secretário Geral das Nações Unidas é o depositário do presente Protocolo.

2. O original do presente Protocolo, cujos textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo fazem igualmente fé, será depositado junto do Secretário Geral das Nações Unidas.

EM FÉ DO QUE, os plenipotenciários abaixo assinados, devidamente autorizados pelos respectivos governos, assinaram o presente Protocolo.”



1. Tal como o Protocolo relativo ao tráfico de pessoas, também o Protocolo que passamos agora a apreciar completa a Convenção de Palermo, pelo que devem ser interpretados em conjunto, conforme dispõem os artigos 37º, nºs 1 e 4, da Convenção e 1º, nº 1, do Protocolo.

Segundo o Preâmbulo, o fundamento essencial do Protocolo está na inexistência de um instrumento universal que trate de todos os aspectos relativos ao tráfico ilícito de migrantes, sendo certo que este tem aumentado significativamente e pode pôr em risco as vidas ou a segurança desses migrantes.

Apesar disso, não constitui matéria anteriormente esquecida pela comunidade internacional, na medida em que a imigração clandestina por mar já vem colhendo alguma regulamentação na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 28 de Julho de 1994 ([225]). O seu artigo 21º prevê a adopção por Estados costeiros, com referência à passagem pelo respectivo mar territorial, de legislação sobre prevenção de infracções a leis de imigração, sendo admitida a fiscalização do cumprimento dessas leis na zona contígua ao mar territorial, nos termos do artigo 33º. Por sua vez, tem-se entendido que esses Estados podem exercer a sua jurisdição penal a bordo de navio estrangeiro que transporte imigrantes clandestinos, durante a sua passagem no mar territorial, ao abrigo do artigo 27º dessa Convenção, dispondo igualmente do direito de perseguição reconhecido pelo artigo 111º, embora em condições limitadas, que impedem uma mais ampla intervenção na luta contra o tráfico de migrantes ([226]).

O objectivo nuclear do Protocolo é a criminalização do tráfico ilícito de migrantes (cfr. artigo 2º), que constitui actualmente um dos domínios relevantes da actuação dos grupos criminosos organizados de âmbito transnacional, a cuja realidade aquele se pretende aplicar, conforme o disposto no artigo 4º ([227]).

1.1. O nº 1 do artigo 6º determina que os Estados Partes adoptem as medidas adequadas a caracterizar como infracções penais, quando praticados com intenção e para obter benefício material, actos que integram três modalidades diferentes daquilo que poderemos designar de “tráfico ilícito de migrantes” em sentido lato.

Em primeiro lugar, trata-se de criminalizar um “tráfico ilícito de migrantes”, que diríamos stricto sensu, significando este – de acordo com a definição constante das alíneas a) e b) do artigo 3º – uma actuação conducente à entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte de que não é nacional ou residente permanente, o que implica a passagem de fronteiras sem se preencherem os requisitos necessários a uma entrada legal.

Deverão, de igual modo, ser criminalizados actos preliminares desse tráfico de migrantes, como sejam a elaboração, obtenção, fornecimento ou posse de um documento de viagem ou de identidade fraudulento, i.e., falsificado ou alterado por entidade não autorizada, emitido ou obtido de forma irregular ou utilizado ilegitimamente – conforme a definição da alínea c) do artigo 3º –, quando praticados com o objectivo de possibilitar o tráfico ilícito de migrantes.

Por último, deverá ser ainda crime a actuação tendente à manutenção, já no Estado de acolhimento, de uma pessoa que não é nacional ou residente permanente e sem condições de permanência legal, conseguida através da elaboração, obtenção, fornecimento ou posse de um documento de viagem ou de identidade fraudulento ou por outro meio ilegal.

Pretende-se igualmente, no nº 2 do preceito, a criminalização da tentativa, da cumplicidade e de outras modalidades de autoria [alíneas a) a c), respectivamente] das condutas anteriormente descritas, que poderemos designar por “tráfico ilícito de migrantes” em sentido lato.

Segundo o nº 3 da disposição convencional, devem ainda ser previstas como circunstâncias agravantes daquelas condutas os seguintes comportamentos: pôr (ou ameaçar pôr) em perigo as vidas e segurança dos migrantes e tratá-los de forma desumana ou degradante.

1.2. Perante este longo enunciado, cabe dizer que a lei interna prevê expressamente o denominado crime de “auxílio à imigração ilegal”, no artigo 134º do referido Decreto-Lei nº 244/98 (este independentemente do carácter organizado da actuação), e o crime de “associação de auxílio à imigração ilegal”, no artigo subsequente.

O primeiro preceito incrimina “quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada irregular de cidadão estrangeiro em território nacional” (nº 1). Prevê-se uma agravação em função da “intenção lucrativa” do agente (nº 2). O segundo preceito estabelece diferentes penalidades para diversos níveis de participação em associação criminosa destinada à prática do crime de auxílio à imigração ilegal.

O confronto da previsão legal interna do auxílio à imigração ilegal com o enunciado da primeira modalidade típica indicada no nº 1 do artigo 6º do Protocolo não deixa dúvidas quanto à sua compatibilidade.

Já no que toca à segunda modalidade, na medida em que a descrição típica do Protocolo corresponda a actos integradores da tentativa do crime de auxílio à imigração ilegal, também haverá consonância da lei interna com o texto convencional, porquanto a tentativa é punível (artigo 134º, nº 3). Mas ainda que devam ser considerados actos preparatórios daquele crime ([228]), o que até pode depender em concreto do estádio do iter criminis, sempre esses actos constituirão autonomamente crimes de falsificação do artigo 256º do Código Penal, o qual contempla suficientemente as diferentes formas de actuação em relação a documentos indicadas no artigo 6º, nº 1, alínea b), completado pelo artigo 3º, alínea c), do Protocolo ([229]). Ocorrerá aqui, nesse caso, uma protecção reflexa do interesse que a incriminação pretendida pelo Protocolo visa acautelar.

Quanto à terceira modalidade mencionada, na parte em que a mesma pressupõe o uso dos meios de actuação sobre documentos previstos no artigo 6º, nº 1, alínea b), do Protocolo, verificar-se-á novamente a comissão de crimes de falsificação e a tutela indirecta antes assinalada. A referência a “outro meio ilegal” é vaga, mas enquanto interpretada como penalmente ilícito segundo a lei interna ([230]), também estará necessariamente prevenido no plano criminal.

Acerca da criminalização da tentativa, da cumplicidade e de outras modalidades de autoria propugnada no nº 2 do artigo 6º do Protocolo, retoma-se a afirmação feita em anteriores ocasiões de que a aplicação das regras gerais sobre autoria e participação e sobre tentativa satisfazem o pretendido, mesmo que só reportada aos tipos legais de crime que se vislumbrou como aplicáveis em função das modalidades descritas no Protocolo.

Apesar de tudo, resta a evidência de que os tipos legais dos artigos 134º e 135º do Decreto-Lei nº 244/98 não atendem directamente ao tráfico ilícito de migrantes na acepção que lhe conferem as modalidades típicas identificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 6º do Protocolo. Por outro lado, também não estão minimamente contempladas as agravações pretendidas pelo nº 3 do artigo em apreço.

Caberá, pois, ao legislador nacional, mais uma vez, ajuizar da dimensão da carência e emitir normação em conformidade.

1.3. Na construção do modelo típico, será ainda essencial que se respeite o princípio da não responsabilização penal dos próprios migrantes, em conformidade com o artigo 5º do Protocolo, o que a lei interna actual já acolhe, na medida em que apenas constitui contra- -ordenação, em certas condições, a permanência ilegal de estrangeiro em território nacional, sujeita a coima pela qual este é responsável (artigo 140º do Decreto-Lei nº 244/98).

2. As restantes disposições do Protocolo apenas demandam breves considerações.

2.1. O capítulo II trata, em especial, do “Tráfico ilícito de migrantes por via marítima”.

Depois de eleger como regra fundamental a ideia de cooperação entre os Estados Partes na prevenção e repressão do aludido tráfico (artigo 7º), os artigos 8º e 9º concretizam, por um lado, as medidas que podem ser levadas a cabo no mar em relação a navios suspeitos de estarem envolvidos no tráfico ilícito de migrantes, e, por outro, as condições de protecção de pessoas e bens a ser respeitadas na execução daquelas medidas.

Manifestamente, não se colocam aqui questões de inadequação ou insuficiência legislativa face ao Protocolo.

Destaca-se tão-só uma obrigação específica emergente do nº 6 do artigo 8º, que é a de cada Estado Parte designar a autoridade ou as autoridades que devam “receber e responder a pedidos de auxílio de confirmação de registo de matrícula ou do direito de uma embarcação arvorar o seu pavilhão e a pedidos de autorização para tomar as medidas apropriadas”, do que será informado o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, a fim de notificar essa designação aos demais Estados Partes.

2.2. O capítulo III é dedicado a aspectos de prevenção e cooperação.

2.2.1. Os seus artigos 11º a 13º apresentam conteúdo idêntico aos preceitos de numeração equivalente do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas, evidenciando as afinidades entre os dois instrumentos – pelo que se remete para o que ficou dito supra sobre essas disposições.

2.2.2. Quanto aos restantes artigos, verifica-se, tal como no Protocolo anterior, a enunciação de linhas gerais de actuação, sem exigências directas de intervenção legislativa.

2.2.2.1. É o que ocorre em domínios como a troca de informações entre os Estados Partes (artigo 10º), a formação e a cooperação técnica (artigo 14º) ou a prevenção por via da informação e do combate à pobreza e ao subdesenvolvimento (artigo 15º) – em moldes muito próximos dos artigos 9º e 10º do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas.

O mesmo se diga do artigo 17º, que incentiva os Estados Partes à celebração de acordos bilaterais ou regionais, com vista a incrementar as finalidades do Protocolo.

2.2.2.2. Por sua vez, o artigo 16º – num registo algo semelhante ao do artigo 6º do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas – incumbe os Estados Partes de adoptarem medidas de protecção e de assistência aos migrantes, se necessário por via legislativa, a fim de preservar os seus direitos reconhecidos pelo direito internacional.

E o artigo 18º estabelece regras respeitantes ao regresso de migrantes objecto do tráfico ilícito, numa lógica favorável a esse retorno – que têm algum paralelo no artigo 8º do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas.

Valem aqui as considerações acima expendidas sobre protecção e repatriamento de vítimas no anterior Protocolo, as quais convocam, no plano do ordenamento interno, as normas do Decreto-Lei nº 244/98 que protegem estrangeiros em situação difícil, por razões humanitárias, bem assim como o regime dos refugiados, que o próprio Protocolo salvaguarda, nos termos do seu artigo 19º.

2.3. Como se viu, o presente Protocolo segue de muito perto o modelo adoptado pelo Protocolo relativo ao tráfico de pessoas, por vezes com total identidade dos preceitos. Isso volta a suceder com os artigos 19º a 25º, que preenchem o capítulo IV, dedicado às “disposições finais”, os quais correspondem integralmente aos artigos 14º a 20º do anterior Protocolo – pelo que nada de novo haverá a acrescentar ao então referido a seu respeito.


3. À semelhança do que se afirmou a terminar a apreciação do Protocolo sobre tráfico de pessoas, também aqui se salienta a inexistência de sintomas de inconstitucionalidade no Protocolo sub judicio.

O espírito deste é o da protecção dos migrantes, no respeito dos seus direitos humanos (cfr. artigos 2º e 19º, nº 1), o que se conforma plenamente com os princípios constitucionais relevantes nesta matéria.



VIII

Em conclusão:

1ª) A ratificação da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e dos seus dois primeiros Protocolos Adicionais, concretamente relativos à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, e ao Tráfico Ilícito de Migrantes por via terrestre, marítima e aérea, abertos à assinatura na Conferência de Palermo de 12-15 de Dezembro de 2000, afigura-se compatível com as normas e princípios da Constituição da República Portuguesa;

2ª) Porém, os compromissos decorrentes daquela eventual ratificação reclamam algumas alterações legislativas e suscitam diversas observações, nos termos expressos no texto do parecer.


Lisboa, 16 de Maio de 2002

O Procurador-Geral Adjunto,


(Mário António Mendes Serrano)






([1]) Através do ofício nº 3923, de 8 de Outubro de 2001.
([2]) Com o nº 2264, datado de 2 de Outubro de 2001.
([3]) Sic.
([4]) Lei nº 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto (que introduziu a designação de Estatuto do Ministério Público), esta rectificada pela Declaração de Rectificação nº 20/98, de 2 de Novembro, e 143/99, de 21 de Agosto.
([5]) A título de mero exemplo, o artigo 2º, alínea b), do ali designado “Projecto de Convenção”, na definição de “crime grave”, apresenta o seguinte texto: “um acto que constitua uma infracção punível com uma pena de privativa de liberdade...”.
([6]) Nessa conformidade, atendeu-se também, na elaboração do parecer, mas apenas para a correcção dos meros lapsos de escrita, às versões inglesa e francesa originais dos instrumentos internacionais em causa, disponíveis no site da Organização das Nações Unidas (ONU) na Internet, com o endereço www.un.org (documento A/55/383).
([7]) Conforme informação colhida no site do United Nations Office for Drug Control and Crime Prevention, com o endereço www.odccp.org.
([8]) Como na nota anterior.
([9]) Como na nota 6.
([10]) Sobre o processo de elaboração da Convenção, v. discurso do Secretário do “Comité Ad Hoc”, o Embaixador Luigi Lauriola, à Assembleia Geral da ONU, em 15 de Novembro de 2000, disponível na Internet, e ainda, quanto à primeira fase dos trabalhos, as observações de JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, Do Crime de Branqueamento de Capitais. Introdução e Tipicidade, Almedina, Coimbra, 2001, p. 85.
([11]) Até ao momento, a Convenção foi assinada por 141 Estados, o Protocolo sobre tráfico de pessoas recolheu 106 assinaturas e o Protocolo sobre tráfico de migrantes atingiu as 101.
([12]) Concretamente, o Mónaco (em 5 de Junho de 2001), a Nigéria (em 28 de Junho de 2001), a Jugoslávia (em 6 de Setembro de 2001), a Polónia (em 12 de Novembro de 2001), a Bulgária (em 5 de Dezembro de 2001), a Letónia (em 7 de Dezembro de 2001), o Peru (em 23 de Janeiro de 2002), a Espanha (em 1 de Março de 2002), o Mali (em 12 de Abril de 2002) e a Bósnia-Herzegovina (em 24 de Abril de 2002).
([13]) Concretamente, os mesmos referidos na nota anterior, com excepção da Letónia e da Polónia.
([14]) O Protocolo relativo ao fabrico ilícito e tráfico de armas de fogo, de suas partes e componentes e de munições, que Portugal não assinou até ao momento, ainda só obteve uma ratificação (do Mali, em 3 de Maio de 2002), mostrando-se assinado apenas por 28 países.
([15]) Apud JACQUES BORRICAND, «La criminalité organisée transfrontière: aspects juridiques», in MARCEL LECLERC (dir.), La Criminalité Organisée, La Documentation Française, Paris, 1996, pp. 153-179, concretamente p. 154.
([16]) Ob. cit., p. 32.
([17]) Cfr. «Rapport Général» do referido Colóquio da Associação Internacional de Direito Penal subordinado ao tema «Les Systémes Pénaux à l´Épreuve du Crime Organisée», relatado por CHRISTOPHER L. BLAKESLEY, in Revue Internationale de Droit Pénal, 69ème année, 1ère et 2ème trimestres/1998, pp. 35-68, concretamente p. 36.
([18]) Por PIETH-FREIBURGHAUS, apud NICOLAS QUELOZ, «Les actions internationales de lutte contre la criminalité organisée: le cas de l´Europe», Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, nº 4, octobre-decémbre/1997, pp. 765-788, concretamente p. 769.
([19]) Idem, pp. 766-767.
([20]) Cfr. CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, O Crime de Colarinho Branco, Stvdia Ivridica nº 56, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 85-86.
([21]) «La criminalité transfrontière multidisciplinaire», Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, nº 4, octobre-decémbre/1988, pp. 756-765, concretamente p. 761.
([22]) Ob. cit., pp. 771-772. Bem mais restritiva seria uma definição como a proposta por WINFRIED HASSEMER, segundo o qual “um conceito útil de criminalidade organizada precisa isolar um potencial de ameaça qualitativamente novo: este potencial eu vejo no assalto, usurpação ou infiltração de instâncias centrais da ordem estatal, procedido por organizações criminosas” («Segurança pública no Estado de direito», Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, nº 5, Janeiro-Março/1994, pp.55-69, concretamente p. 59). Mas um conceito delimitado em função da ocorrência de corrupção estatal afigura-se demasiado estreito e inoperativo perante a afinidade entre essa situação e um diversificado conjunto de manifestações criminosas com igual potencial de ameaça.
([23]) Ob. cit., p. 34.
([24]) Ob. cit., pp. 86-87.
([25]) Apud CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, ob. cit., p. 84.
([26]) Ob. cit., p. 35, nota 53.
([27]) Criando, assim, aquilo que alguns já designaram de sistema de “dupla via”, com uma disciplina para a criminalidade comum e outra diversa para a criminalidade organizada (nesta linha, v. MARIO CHIAVARIO, «Direitos humanos, processo penal e criminalidade organizada», Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, nº 5, Janeiro-Março/1994, pp.25-36, concretamente p. 33).
([28]) In Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p.1156, em anotação ao artigo 299º (Associação Criminosa).
([29]) «A criminalidade organizada e o Direito Penal», Boletim da Associação dos Advogados de Macau, Ano II, nº 4, 1º trimestre/1997, pp. 25-31, concretamente p. 25.
([30]) Assim CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, ob. cit., p. 91. Em registo próximo, v. NICOLAS QUELOZ, ob. cit., p. 775.
([31]) Ob. cit., p. 31.
([32]) Ob. cit., p. 91.
([33]) «Os senhores do crime», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, fasc. 1º (Janeiro-Março/1999), pp. 7-29, concretamente p. 29.
([34]) São conhecidos em alguns ordenamentos nacionais e internacionais institutos de excepção no domínio do crime organizado, como sejam a admissibilidade de meios de prova normalmente proibidos, presunções de culpa, inversão do ónus da prova, limites à actuação do defensor, regimes particulares quanto a medidas de coacção e prazos de detenção, tratamento de favor de arrependidos. Sendo algumas dessas medidas minimamente aceitáveis e outras mais discutíveis, a seu tempo – e quando necessário – serão ponderadas no quadro da análise da Convenção em apreço.
([35]) Ob. cit., p. 91. Aliás, a este propósito a autora cita um texto de HASSEMER, no qual se invoca o princípio da proporcionalidade como instrumento para aferir da adequação de medidas como as referidas na nota anterior, que ali se designam por “meios de prevenção normativa”, e que só devem ser usados quando sejam insuficientes os chamados “meios técnicos de prevenção”, de que são exemplo a criação de normas organizatórias da Administração ou a cooperação internacional (idem, p. 92).
([36]) Ob. cit., p. 26.
([37]) Sobre este ponto, v. ANNE WEYEMBERGH, «Vers un réseau judiciaire européen contre la criminalité organisée», Revue de Droit Pénal et de Criminologie, 77ème année, septembre-octobre/1997, pp. 868-900, concretamente p. 868. A autora sustenta que mesmo a criminalidade organizada de tipo nacional constitui um risco ou uma ameaça para os outros Estados, pela sua tendência para a internacionalização, pelo que ela merece sempre uma abordagem ao nível internacional, que passa por uma cooperação judiciária e policial mais estreita.
([38]) Desenvolvendo este tópico, v. JACQUES BORRICAND, ob. cit., pp. 153-154, e NICOLAS QUELOZ, ob. cit., pp. 765-766.

([39]) Por exemplo, as Convenções de 1902, 1910 e 1921 contra o tráfico de mulheres e menores, as Convenções de 1910 e 1923 contra a publicação e tráfico de publicações obscenas, os Acordos de 1925, 1931 e 1936 contra o tráfico de estupefacientes, a Convenção de 1926 contra o tráfico de escravos e a Convenção de 1929 contra a falsificação de moeda. Cfr., sobre esta vertente histórica, LUÍS JIMENEZ DE ASUA, «Los delitos internacionales. Medidas para combatirlos», Revista de Derecho e Ciencias Politicas, Año XVI, nºs I-II-III (1952), pp. 203-210, concretamente pp. 203-207.
([40]) Tratava-se de figura já conhecida de alguns direitos internos. Nomeadamente, o direito francês conhecia desde o Código Penal napoleónico de 1810 a incriminação do complot e da pilhagem por bandos armados, especificamente concebida para a delinquência de grupo (assim informa JACQUES BORRICAND, ob. cit., p. 153), que inspirou a consagração no Código Penal português de 1852 do crime de “associação de malfeitores” (cfr. FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 1155). Mas aí ainda não se tratava de crime organizado, na moderna acepção do conceito: vários autores situam o aparecimento como tal dessa realidade (ainda num plano interno) nos Estados Unidos da América dos anos 20 e 30, na sequência da proibição do álcool (lei seca, em vigor de 1919 a 1933) e em virtude do seu tráfico ilícito por associações de tipo mafioso (cfr. NICOLAS QUELOZ, ob. cit., p. 765, e CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, ob. cit., p. 85).
([41]) Neste sentido, e sobre esta matéria, SOFIÈNE BOUIFFROR e CLAIRE DERYCKE, «Les organisations criminelles», in HERVÉ ASCENSIO, EMMANUEL DECAUX e ALAIN PELLET (dir.), Droit International Pénal, Éditions A. Pedone, Paris, 2000, pp. 167-179, concretamente pp. 169-171.
([42]) Idem, pp. 175-179.
([43]) Aprovada, entre nós, pela Resolução da AR nº 29/91, de 20 de Junho de 1991 (publicada no Diário da República, I, de 6 de Setembro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 45/91, de 12 de Agosto de 1991 (publicado no DR, I, de 6 de Setembro), tendo o Aviso do depósito do instrumento de ratificação sido publicado sob o nº 23/92, no DR, I, de 5 de Março.
([44]) Esta quer já sob esta forma, quer sob a anterior forma de Comunidades Europeias.
([45]) Aprovada pela Resolução da AR nº 70/97, de 9 de Outubro de 1997 (publicada no DR, I, de 13 de Dezembro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 73/97, de 27 de Novembro de 1997 (publicado no DR, I, de 13 de Dezembro). O Aviso do depósito do instrumento de ratificação foi publicado sob o nº 17/99, no DR, I, de 1 de Fevereiro.
([46]) Aprovada pela Resolução da AR nº 68/2001, de 30 de Setembro de 2001 (publicada no DR, I, de 26 de Outubro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 56/2001, de 16 de Outubro de 2001 (publicado no DR, I, de 26 de Outubro).
([47]) JO nº L 166, de 28 de Junho de 1991, p. 77.
([48]) JO nº L 333, de 9 de Dezembro de 1998, p. 1.
([49]) Esta indicação é realizada de forma indirecta, através do estabelecimento da condição de não serem feitas ou mantidas reservas a artigos da Convenção do Conselho da Europa relativa ao Branqueamento de 1990, concretamente ao seu artigo 6º. Refira-se, a este propósito, que Portugal formulou, ao aprovar e ratificar essa Convenção, uma tal reserva [alíneas a) dos artigos 2º do Decreto do PR nº 73/97 e da Resolução da AR nº 70/97, referidos na nota 45], limitando a aplicação daquele artigo 6º a um catálogo de crimes prévios ao branqueamento correspondente ao fixado pelo Decreto-Lei nº 325/95, de 2 de Dezembro, na versão originária então em vigor (a analisar infra, em V.2.5.).
([50]) JO nº L 351, de 29 de Dezembro de 1998, p. 1.
([51]) JO nº L 87, de 31 de Março de 1999, p. 1.
([52]) Aqui se estabelece o apoio dos Estados-membros à elaboração da que veio a ser a Convenção objecto do presente parecer, numa perspectiva de coordenação das posições desses Estados-membros nas negociações (artigo 2º) e com o objectivo de as disposições da convenção não virem a ser incompatíveis com as mencionadas Acções Comuns nºs 98/699/JAI e 98/733/JAI (artigo 1º, nºs 2 e 6).
([53]) JO nº C 124, de 3 de Maio de 2000, p. 1.
([54]) JO nº C 36, de 2 de Fevereiro de 2001, p. 24.
([55]) JO nº L 182, de 5 de Julho de 2001, p. 1.
([56]) Aprovada pela Resolução da AR nº 72/2001, de 20 de Setembro de 2001 (publicada no DR, I, de 15 de Novembro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 58/2001, de 24 de Outubro de 2001 (publicado no DR, I, de 15 de Novembro).
([57]) Aprovada pela Resolução da AR nº 63/2001, de 21 de Junho de 2001 (publicada no DR, I, de 16 de Outubro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 53/2001, de 8 de Outubro de 2001 (publicado no DR, I, de 16 de Outubro).
([58]) Acerca do processo de criação do GAFI e actuação desta entidade, v. JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., pp. 74-79.
([59]) «Criminalità organizzata e cooperazione internazionale», Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Anno XLI, fasc. 3, Luglio-Settembre/1998, pp. 703-725, concretamente p. 705.
([60]) Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 85, sendo certo que essa opinião já vem a ser sustentada desde a 1ª edição da obra: cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, p. 44.
([61]) Ma­nual de Direito Constitucional, tomo II, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, pp. 37-40.
([62]) Cfr. «As Relações entre Ordem Internacional e Ordem Interna na actual Constituição Portuguesa», in Ab Vno ad Omnes-75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 275-301, concretamente pp. 284-291.
([63]) Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição (reim­pressão), Almedina, Coimbra, 1997, pp. 116-124.
([64]) Direito Internacional Público-Conceito e Fon­tes, vol. I, Lex, Lisboa, 1998, pp. 430-437.
([65]) Assim GOMES CANOTILHO-VITAL MOREIRA, ob. cit., 3ª edição, pp. 86-87, e JORGE MIRANDA, As Relações…cit., pp. 291-293. Do mesmo modo, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA-FAUSTO DE QUADROS, ob. cit., p. 121, e EDUARDO CORREIA BAPTISTA, ob. cit., pp. 438-442, defendem o valor supralegal do direito internacional, em particular daquele cuja posição relativa poderia ser mais controversa, o direito internacional convencio­nal.
([66]) Discute-se na doutrina portuguesa acerca das consequências dessa desconformidade entre a norma legal e a norma convencional (quando não seja reparada). Para GOMES CANOTILHO-VITAL MOREIRA trata-se de uma ilegalidade equiparada à decorrente de violação de leis dotadas de supremacia sobre outras leis e sujeita a um regime especial de fiscalização pelo Tribunal Constitucional (ob. cit., 3ª edição, pp. 87-88). Segundo JORGE MIRANDA, essa desconformidade, que se reconduz a uma ilegalidade sui generis, determina a ineficácia jurídica da norma legal, não produzindo esta os seus efeitos típicos enquanto a convenção vincular internacionalmente o Estado português (As Relações…cit., pp. 291-293). Por sua vez, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA-FAUSTO DE QUADROS aderem igualmente à solução da ineficácia ou inaplicabilidade da lei interna que viole uma convenção internacional (ob. cit., p. 123). Já EDUARDO CORREIA BAPTISTA sustenta a invalidade ou revogação do direito interno contrário a direito internacional convencional (ob. cit., p. 442).
([67]) Do Projecto de Resolução que acompanha as versões francesa e inglesa da Convenção disponíveis na Internet, sendo nossa a tradução, tal como em relação a outros textos estrangeiros citados. No Sumário da Convenção, também disponível em www.odccp.org, refere-se igualmente que “o primeiro e principal propósito da Convenção é a cooperação internacional”.
([68]) Alterada pela Lei nº 104/2001, de 25 de Agosto.
([69])O artigo 299º do Código Penal (este aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro), sob a epígrafe “Associação criminosa”, tem a seguinte redacção, dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março:
“1 - Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - Na mesma pena incorre quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações ou quem os apoiar, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões, ou qualquer auxílio para que se recrutem novos elementos.
3 - Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos.
4 - As penas referidas podem ser especialmente atenuadas ou não ter lugar a punição se o agente impedir ou se esforçar seriamente por impedir a continuação dos grupos, organizações ou associações, ou comunicar à autoridade a sua existência de modo a esta poder evitar a prática de crimes.”
([70]) Este artigo 300º do Código Penal tem a epígrafe “Organizações terroristas” e, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, reza assim:
“1 - Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação terrorista, a eles aderir ou os apoiar, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
2 - Considera-se grupo, organização ou associação terrorista, todo o agrupamento de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, visem prejudicar a integridade ou a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupo de pessoas ou a população em geral, mediante a prática de crimes:
a) Contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas;
b) Contra a segurança dos transportes e das comunicações, incluindo as telegráficas, telefónicas, de rádio ou de televisão;
c) De produção dolosa de perigo comum, através de incêndio, libertação de substâncias radioactivas ou de gases tóxicos ou asfixiantes, de inundação ou avalanche, desmoronamento de construção, contaminação de alimentos e águas destinadas a consumo humano ou difusão de doença, praga, planta ou animal nocivos;
d) De sabotagem;
e) Que impliquem o emprego de energia nuclear, armas de fogo, substâncias ou engenhos explosivos, meios incendiários de qualquer natureza, encomendas ou cartas armadilhadas.
3 - Quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação terrorista é punido com pena de prisão de 10 a 15 anos.
4 - Quando um grupo, organização ou associação terrorista, ou as pessoas referidas nos nºs 1 ou 3, possuírem qualquer dos meios indicados na alínea e) do n° 2, a pena é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
5 - Quem praticar actos preparatórios da constituição de grupo, organização ou associação terrorista é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto no n° 4 do artigo 299°.”
([71]) Rectificado pela Declaração de Rectificação nº 20/93, de 20 de Fevereiro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 81/95, de 22 de Abril, pelas Leis nºs 45/96, de 3 de Setembro, 30/2000, de 29 de Novembro, e 104/2001, de 25 de Agosto, e pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro.
([72]) O artigo 28º do Decreto-Lei nº 15/93, com a epígrafe “Associações criminosas”, tem, após a alteração introduzida pela Lei nº 45/96, a seguinte redacção:
“1 - Quem promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21º e 22º é punido com pena de prisão de 10 a 25 anos.
2 - Quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação referidos no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3 - Incorre na pena de 12 a 25 anos de prisão quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação referidos no n.º 1.
4 - Se o grupo, organização ou associação tiver como finalidade ou actividade a conversão, transferência, dissimulação ou receptação de bens ou produtos dos crimes previstos nos artigos 21° e 22°, o agente é punido:
a) Nos casos dos números 1 e 3, com pena de prisão de 2 a 10 anos;
b) No caso do n° 2, com pena de prisão de um a oito anos.”
([73]) Alterado pela Lei nº 97/99, de 26 de Julho, e pelo Decreto-Lei nº 4/2001, de 10 de Janeiro, este rectificado pela Declaração de Rectificação nº 3-A/2001, de 31 de Janeiro.
([74]) Este artigo 135º do Decreto-Lei nº 244/98 tem a epígrafe “Associação de auxílio à imigração ilegal” e apresenta o seguinte conteúdo:
“1 - Quem fundar grupo, organização ou associação cuja actividade seja dirigida à prática do crime previsto no artigo anterior será punido com prisão de 1 a 5 anos.
2 - Incorre na mesma pena quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações.
3 - Quem chefiar os grupos, organizações ou associações mencionados nos números anteriores será punido com prisão de 2 a 8 anos.
4 - A tentativa é punível.”
([75]) Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 15/2001, de 4 de Agosto, e alterada pela Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro.
([76]) Em matéria de infracções tributárias, e anteriormente a este diploma, só em sede das então designadas “infracções fiscais aduaneiras”, correspondentes aos actuais crimes aduaneiros, se previa a figura da “associação criminosa” (artigo 34º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras – RJIFA –, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, de 25 de Outubro, e alterado pelos Decretos-Leis nºs 255/90, de 7 de Agosto, e 98/94, de 18 de Abril).
([77]) O artigo 89º do Regime Geral das Infracções Tributárias, sob a epígrafe “Associação criminosa”, tem o seguinte texto:
“1 - Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes tributários é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber, nos termos de outra lei penal.
2 - Na mesma pena incorre quem fizer parte de tais grupos, organizações ou associações ou que os apoiar, nomeadamente fornecendo armas, munições, instrumentos de crime, armazenagem, guarda ou locais para as reuniões, ou qualquer auxílio para que se recrutem novos elementos.
3 - Quem chefiar ou dirigir os grupos, organizações ou associações referidos nos números anteriores é punido com pena de prisão de dois a oito anos, se pena mais grave não lhe couber, nos termos de outra lei penal.
4 - As penas referidas podem ser especialmente atenuadas ou não ter lugar a punição se o agente impedir ou se esforçar seriamente para impedir a continuação dos grupos, organizações ou associações, ou comunicar à autoridade a sua existência, de modo a esta poder evitar a prática de crimes tributários.”
([78]) O nº 2 do artigo 1º do Código de Processo Penal (este aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro), com a redacção que resulta do Decreto-Lei nº 317/95, de 28 de Novembro, estatui como segue:
“Para efeitos do disposto no presente Código, apenas podem considerar-se como casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que:
a) Integrarem os crimes previstos nos artigos 299°, 300° ou 301° do Código Penal; ou
b) Dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos.”
([79]) Porém, e estranhamente, o legislador dissocia o crime de “associação criminosa” do conceito de “terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade altamente organizada” quando se refere ao regime de excepção previsto para as escutas telefónicas [artigo 187º, nº 2, alínea b)] e para a duração da prisão preventiva [artigo 215º, nº 2, alínea a)].
([80]) Esse nº 1 do artigo 51º do Decreto-Lei nº 15/93 tem a seguinte redacção:
“Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com o n° 2 do artigo 1° do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos nos artigos 21° a 24° e 28° deste diploma.”
([81]) As «Associações Criminosas» no Código Penal Português de 1982 (Arts. 287º e 288º), Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, Coimbra, 1988, pp. 31-52. Essencialmente no mesmo sentido se exprime ainda o autor na anotação ao artigo 299º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo II, pp. 1155-1174.
([82]) No entanto, FIGUEIREDO DIAS concede que “um único crime continuado” possa “integrar o escopo criminoso da associação”, mas só “quando os factos integrantes da continuação se apresentem, a um modo de consideração fáctico e natural, como uma pluralidade de comportamentos autónomos” (As «Associações Criminosas»...cit., p. 40).
([83]) Neste sentido, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 1993, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo 2, pp. 237-239.
([84]) Assim, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 1996, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo 2, pp. 229-251.
([85]) Em direito internacional público, é notória uma certa preferência por um método de interpretação baseado no elemento literal, ainda que sem descurar os elementos sistemático, teleológico e histórico – de que é expressão a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, a qual, sem ter sido ratificada por Portugal, não deixa de ser considerada na doutrina como globalmente vigente enquanto direito internacional geral ou comum, por se tratar de codificação de regras consuetudinárias, e cujo artigo 31º, nº 1, “dá uma grande enfâse ao elemento literal e ao sentido normal das palavras como base de partida para a interpretação” (assim, EDUARDO CORREIA BAPTISTA, ob. cit., p. 259; e, na mesma linha, desenvolvendo o tópico da recepção na ordem interna dessa Convenção, v. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA-FAUSTO DE QUADROS, ob. cit., pp. 171-172 e 242).
([86]) O «Relatório do Comité Ad Hoc sobre a Elaboração da Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional», que inclui «Notas interpretativas para os documentos oficiais (trabalhos preparatórios)», constitui uma adenda à Convenção disponível em www.un.org (documento A/55/383/Add.1).
([87]) As «Associações Criminosas»...cit., pp. 35-36.
([88]) Na anotação ao artigo 299º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo II, p. 1161.
([89]) FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas»...cit., p. 39.
([90])Sobre a consagração constitucional do princípio da necessidade da pena ou da intervenção mínima, que se extrai do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição), e do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso (artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição), v. JOSÉ DE SOUSA E BRITO, «A Lei Penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2º Volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1978, pp. 197-254, em especial p. 200.
([91]) Esta posição foi inicialmente defendida em 1985, em parecer jurídico relativo a crimes aduaneiros, por FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE («Associações Criminosas. Artigo 287º do Código Penal», Colectânea de Jurisprudência, ano X, tomo 4, pp. 9-19, em especial pp. 16-17) e reiterada por FIGUEIREDO DIAS em As «Associações Criminosas»...cit., pp. 43-47. Já anteriormente CARLOS CRESPO DIAS COELHO (A Ilicitude Fiscal Aduaneira, Rei dos Livros, Lisboa, 1984, pp. 54-55) considerara não ser possível o crime de associação criminosa em matéria penal aduaneira, mas essencialmente por não estar previsto de forma expressa no então vigente Decreto- -Lei nº 187/83, de 13 de Maio, que continha o regime dos crimes aduaneiros. Quanto a estes crimes, a questão concreta suscitada foi entretanto superada com a explícita consagração da figura da “associação criminosa” no artigo 34º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 376-A/89, como supra referido.
([92]) Na anotação ao artigo 299º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo II, pp.1164-1165. De todo o modo, o legislador ainda veio reduzir mais o eventual campo de aplicação da tese restritiva, ao estender a figura da associação criminosa, no domínio das infracções tributárias, aos crimes fiscais e aos crimes contra a segurança social (a par dos crimes aduaneiros, contemplados desde o Decreto-Lei nº 376-A/89), de acordo com o já citado artigo 89º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001.
([93]) Melhor analisado infra, em V.2.5.
([94]) Para além da necessária harmonização desses mesmos parâmetros internos entre si.
([95])Este artigo 23º do Decreto-Lei nº 15/93, com a epígrafe “Conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos”, tem a seguinte redacção:
“1 - Quem, sabendo que os bens ou produtos são provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de infracção prevista nos artigos 21°, 22°, 24° e 25°:
a) Converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência desses bens ou produtos, no todo ou em parte, directa ou indirectamente, com o fim de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de auxiliar uma pessoa implicada na prática de qualquer dessas infracções a eximir-se às consequências jurídicas dos seus actos é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos;
b) Ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação, propriedade desses bens ou produtos ou de direitos a eles relativos é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos;
c) Os adquirir ou receber a qualquer título, utilizar, deter ou conservar é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
2 - A punição pelos crimes previstos no número anterior não excederá a aplicável às correspondentes infracções dos artigos 21°, 22°, 24° e 25°.
3 - A punição pelos crimes previstos no n.° 1 tem lugar ainda que os factos referidos nos artigos 21°, 22°, 24° e 25° hajam sido praticados fora do território nacional.”
([96])Alterado pelas Leis nºs 65/98, de 2 de Setembro, e 104/2001, de 25 de Agosto (esta apenas revoga o originário artigo 20º), pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro (que adapta vários regimes legais ao euro), pela Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro (esta apenas revoga o originário artigo 19º), por sua vez rectificada pela Declaração de Rectificação nº 5/2002, de 6 de Fevereiro, e pela Lei nº 10/2002, de 11 de Fevereiro, esta rectificada pela Declaração de Rectificação nº 11/2002, de 14 de Março.
([97])O texto originário do artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95, sob a epígrafe “Conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos”, é o seguinte:
“1 - Quem, sabendo que os bens ou produtos são provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de crimes de terrorismo, tráfico de armas, extorsão de fundos, rapto, lenocínio, corrupção e das demais infracções referidas no n° 1 do artigo 1° da Lei n° 36/94, de 29 de Setembro:
a) Converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência desses bens ou produtos, no todo ou em parte, directa ou indirectamente, com o fim de ocultar ou dissimular a sua origem ilícita ou de ajudar uma pessoa implicada na prática de qualquer dessas infracções a eximir--se às consequências jurídicas dos seus actos, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos;
b) Ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação, propriedade desses bens ou produtos ou direitos a eles relativos, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos;
c) Adquirir ou receber tais bens ou produtos a qualquer título, os utilizar, detiver ou conservar, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - A punição pelos crimes mencionados no número anterior não deve exceder os limites mínimo e máximo previstos para as correspondentes infracções principais.
3 - A punição pelos crimes previstos no n° 1 tem lugar ainda que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional.”
([98]) Trata-se do regime dos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. A Lei nº 34/87 foi alterada pela Lei nº 108/2001, de 28 de Novembro.
([99]) Contém o regime das infracções contra a economia e contra a saúde pública. O Decreto-Lei nº 28/84 foi alterado pelos Decretos-Leis nºs 347/89, de 12 de Outubro, 6/95, de 17 de Janeiro, 20/99, de 28 de Janeiro, 162/99, de 13 de Maio, e 143/2001, de 26 de Abril, e pelas Leis nºs 13/2001, de 4 de Junho, e 108/2001, de 28 de Novembro.
([100]) Este diploma refere-se a crimes relacionados com a competição desportiva.
([101]) Os crimes referidos nas alíneas g) a m) do texto são os indicados especificamente no artigo 1º, nº 1, alíneas a) a e), da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro (melhor analisada infra, em V.7.2.), para que remete o artigo 2º do Decreto-Lei nº 325/95.
([102]) Refira-se que esse limite máximo de pena da lei interna também não leva em conta o limite fixado, no âmbito comunitário, pela Acção Comum nº 98/699/JAI e retomado na Decisão-Quadro nº 2001/500/JAI (pena de máximo superior a um ano), conforme supra referido. Tomando posição no sentido da necessidade de alteração do direito interno, concretamente do catálogo legal de crimes precedentes, devido ao limite de pena indicado na Acção Comum nº 98/699/JAI, v. JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., p. 99. Também o Ministro da Justiça ANTÓNIO COSTA, no debate parlamentar sobre o projecto de lei (nº 124/VIII, do PCP) que deu origem à Lei nº 10/2002, reconheceu ser necessária uma alteração futura desse limite de pena em função da respectiva exigência comunitária (debate ocorrido em 8 de Março de 2001 e relatado no DAR, I, nº 57, de 9 de Março de 2001, pp. 2274-2293, em especial p. 2291).
([103]) Por sua vez, essa figura havia sido recebida a partir da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, celebrada em Viena, a 20 de Dezembro de 1988 (v. nota 43), em cujo artigo 11º se sugeria a adopção, pelos Estados Partes, de medidas tendentes a permitir o cumprimento de pedidos de cooperação internacional em que estivesse em causa o recurso a entregas controladas de droga.
([104]) Sobre esta matéria, cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1997, pp. 291-293.
([105]) Aliás, a lei portuguesa ainda poderá ser aplicável mesmo quando a actividade criminosa decorra integralmente fora do território nacional, desde que verificadas as condições do artigo 5º do Código Penal.
([106]) As restantes são, como já referido a propósito do artigo 3º da Convenção, o “branqueamento do produto do crime” (artigo 6º da Convenção), “corrupção” (artigo 8º) e “obstrução à justiça” (artigo 23º).
([107]) Como é o caso, v.g., dos crimes configurados nos artigos 6º a 8º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Sobre este instrumento internacional, v., desta instância consultiva, a informação-parecer nº 33/99, de 27 de Janeiro de 2000.
([108]) Note-se que o afirmado supra, na nota 66, acerca das consequências da desconformidade entre uma norma legal e uma norma convencional, apenas se coloca nos termos aí referidos se se verificar uma exequibilidade imediata da norma internacional, diferentemente do que sucede se esta norma ainda carecer de intermediação legislativa, como acontece com os crimes previstos na presente Convenção. Nesse caso, a norma internacional a que o Estado se vinculou, enquanto não for transposta para o plano interno, não afecta a norma nacional preexistente, que continuará aplicável, sem prejuízo da responsabilidade internacional do Estado pela não concretização interna da norma convencional.
([109]) Fórmulas idênticas são utilizadas nos artigos 6º, 8º e 23º da Convenção.
([110]) Para desenvolvimentos desta matéria, v. FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas»...cit., pp. 52-62, e Comentário Conimbricense...cit., Tomo II, pp. 1165- -1169, que aqui seguimos de perto.
([111]) Note-se que a cumplicidade tem cabimento, pelo menos, em relação às acções de fundação e de apoio, como admite FIGUEIREDO DIAS (v. As «Associações Criminosas»...cit., pp. 65-67).
([112]) V. nota 43. Esse nº 3 do artigo 3º da Convenção de Viena de 1988 tem a seguinte redacção: “O conhecimento, a intenção ou o propósito requeridos como elementos constitutivos de qualquer das infracções previstas no nº 1 do presente artigo podem ser deduzidos das circunstâncias factuais objectivas.”
([113]) Como exemplo da aplicação desse critério na nossa jurisprudência, cite-se o acórdão da Relação de Évora de 20 de Janeiro de 1987, onde se pode ler que “a representação mental do resultado e a conformidade com ele pertencem ao foro interno do agente, devendo o julgador partir de factos materiais consumados e daí retirar o grau de pré-figuração do resultado pelo agente, segundo a experiência comum“ (Boletim do Ministério da Justiça, nº 365, p. 713).
([114]) Sobre a consagração constitucional do princípio da culpa, que se deduzirá da tutela da “dignidade da pessoa humana” (artigo 1º da Constituição) e do direito à liberdade (artigo 27º), v. JOSÉ DE SOUSA E BRITO, ob. cit., pp. 199-200.
([115]) Essas normas da Convenção de Viena de 1988 são do seguinte teor (v. nota 43):
“1 - As Partes adoptam as medidas necessárias para tipificar como infracções penais no respectivo direito interno, quando cometidas intencionalmente:
(...)
b):
i) A conversão ou a transferência de bens, com o conhecimento de que os mesmos provêm de qualquer das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo, ou da participação nessa ou nessas infracções, com o objectivo de ocultar ou dissimular a origem ilícita desses bens ou de auxiliar a pessoa implicada na prática dessa ou dessas infracções a eximir-se às consequências jurídicas dos seus actos;
ii) A ocultação ou a dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação, propriedade ou outros direitos respeitantes aos bens, com o conhecimento de que eles provêm de uma das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou de actos de participação nessa ou nessas infracções;
c) Sob reserva dos princípios constitucionais e dos conceitos fundamentais dos respectivos sistemas jurídicos:
i) A aquisição, detenção ou uso de bens, com o conhecimento, no momento da sua recepção, de que provêm de qualquer das infracções estabelecidas de acordo com a alínea a) do n.º 1 deste artigo ou da participação nessa ou nessas infracções;
(...)
iv) A participação na prática de uma das infracções estabelecidas de acordo com o presente artigo, ou a associação ou conspiração, a tentativa e a prestação de auxílio, a facilitação ou o aconselhamento relativamente à prática dessas infracções. (...)”
([116]) É a seguinte a redacção das referidas normas da Convenção do Branqueamento de 1990 (v. nota 45):
“1 - Cada uma das Partes adopta as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para conferirem carácter de infracção penal em conformidade com o seu direito interno, quando o acto tenha sido cometido intencionalmente à:
a) Conversão e transferência de bens em relação aos quais aquele que as faz sabe que esses bens constituem produtos, com o fim de dissimular ou de ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na prática da infracção principal a escapar às consequências jurídicas dos seus actos;
b) Dissimulação ou ocultação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens ou de direitos a eles relativos, sabendo o autor que esses bens constituem produtos;
e, sob reserva dos seus princípios constitucionais e dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico:
c) Aquisição, detenção ou utilização de bens em relação aos quais aquele que os adquire, detém ou utiliza sabe, no momento em que os recebe, que eles constituem produtos;
d) Participação numa das infracções previstas em conformidade com o presente artigo ou em qualquer associação, acordo, tentativa ou cumplicidade para prestação de assistência, auxílio ou aconselhamento com vista à sua prática. (...)”
([117]) Aliás, apenas é feita uma referência a um “aditamento” do legislador português à versão da Convenção de Viena, a propósito da inclusão, nas alíneas a) dessas disposições internas, do segmento “auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência desses bens ou produtos” (v. JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., p. 190).
([118]) Atentas as penalidades aplicáveis às formas consumadas do crime, superiores no seu máximo a 3 anos de prisão (artigo 23º, nº 1).
([119]) Neste sentido, v. RODRIGO SANTIAGO, «O “Branqueamento” de Capitais e outros Produtos do Crime», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, fasc. 4º (Outubro-Dezembro/1994), pp. 497-560, em especial p. 528.
([120]) «Branqueamento de capitais: reacção criminal», in Estudos de Direito Bancário, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 337-358, em especial p. 345.
([121]) Sobre este aspecto, cfr. JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., p. 193.
([122]) Porém, RODRIGO SANTIAGO considera criticável a solução legal (ob. cit., pp. 538--539).
([123]) No sentido da exclusão da punição do dolo eventual, posicionaram-se JOSÉ DE FARIA COSTA (apud JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 348), o próprio JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO (ob. cit., pp. 348-349) e JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO (ob. cit., pp. 214-215). Mas RODRIGO SANTIAGO defende a tese contrária (ob. cit., p. 539).
([124]) Neste sentido, v.g., LOURENÇO MARTINS, Droga e Direito, Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1994, pp. 137-138, e, mais recentemente, em «Branqueamento de Capitais: contra-medidas a nível internacional e nacional», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, fasc. 3º (Julho-Setembro/1999), pp. 449-487, em especial pp. 474-475.
([125]) Esta a posição de OLIVEIRA ASCENSÃO, ob. cit., p. 347.
([126]) Assim JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO (ob. cit., pp. 236-240), para quem o bem jurídico protegido pela incriminação do “branqueamento” é a realização da justiça, tal como sucederá com o crime precedente após a respectiva lesão, por via da qual o bem jurídico previamente tutelado é substituído pelo da realização da justiça.
([127]) A mencionada disposição da Convenção do Branqueamento de 1990 é do seguinte teor, na sua versão francesa: “Il peut être prévu que les infractions énoncées par ce paragraphe ne s'appliquent pas aux auteurs de l'infraction principale”. Na versão portuguesa o texto surge com um sentido aparentemente diverso, por deficiente tradução (muito criticada por JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., p. 237, nota 539): “Pode ser previsto que as infracções enumeradas no presente número apenas se aplicam aos autores da infracção principal”.
([128]) Diz essa disposição da Convenção do Branqueamento de 1990: “O facto de a infracção principal ser ou não da competência das jurisdições penais da Parte não é tomado em consideração”.
([129]) Neste sentido, RODRIGO SANTIAGO, ob. cit., p. 558, e JORGE ALEXANDRE FERNANDES GODINHO, ob. cit., pp. 180-181.
([130]) É o seguinte o texto desse preceito da Convenção do Branqueamento de 1990: “O conhecimento, a intenção ou a motivação necessários enquanto elemento de uma das infracções enumeradas no presente número pode ser deduzido de circunstâncias factuais objectivas.”
([131]) O trecho que ora nos interessa do artigo 1º da Directiva (v. nota 47) reza assim: “O conhecimento, a intenção ou a motivação, que devem ser um elemento das actividades acima referidas, podem ser apurados com base em circunstâncias factuais objectivas.”
([132]) Admitindo que o citado preceito da Directiva possa ser interpretado no sentido da consagração duma presunção de culpa, que assim teria de ceder perante o princípio constitucional da culpa, v. JOSÉ DE FARIA COSTA, «O Branqueamento de Capitais (algumas reflexões à luz do direito penal e da política criminal)», Boletim da Faculdade de Direito (Universidade de Coimbra), vol. LXVIII (1992), pp. 59-86, em especial pp. 82-85.
([133]) Rectificado pela Declaração de Rectificação nº 231/93, de 30 de Novembro, e alterado pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de Dezembro (que adapta vários regimes legais ao euro).
([134]) Neste conceito, de acordo com o artigo 2º do diploma, incluem-se: instituições de crédito; sociedades financeiras; empresas seguradoras, na medida em que exerçam actividades no âmbito do ramo «Vida»; sociedades gestoras de fundos de pensões, que tenham a sua sede no território português; sucursais e agências gerais, situadas em território português, das entidades anteriormente referidas que tenham a sua sede no estrangeiro, bem como as sucursais financeiras exteriores; e entidades que explorem o serviço público de correios, na medida em que prestem serviços financeiros.
([135]) Aqui se abrangem, desde a versão originária do Decreto-Lei nº 325/95: empresas concessionárias de exploração de jogo em casinos; pessoas singulares ou colectivas que exerçam actividades de mediação imobiliária; entidades que exerçam a actividade de compra de imóveis para revenda; entidades que procedam a pagamentos a ganhadores de prémios de apostas ou lotarias; e entidades que comercializem pedras e metais preciosos, antiguidades, obras de arte, aeronaves, barcos ou automóveis (artigos 4º a 8º do diploma). Com a nova redacção dada pela Lei nº 10/2002 foram aditados: técnicos de contas, auditores externos e transportadores de fundos que assistam na contabilidade ou auditoria de empresas, sociedades e clientes ou no transporte e guarda de bens ou valores; notários, conservadores de registos ou outras entidades que intervenham na compra e venda de bens imóveis ou de entidades comerciais, operações relativas a fundos, valores mobiliários ou outros activos pertencentes a clientes, abertura ou gestão de contas bancárias de poupança ou de valores mobiliários, de criação, exploração ou gestão de empresas, fundos fiduciários ou estruturas análogas e de execução de quaisquer operações financeiras (artigos 8º-A e 8º-B).
([136]) Além de deveres especiais para as empresas concessionárias de exploração de jogo em casinos [artigo 4º, nº 1, alíneas b) e c) do Decreto-Lei nº 325/95].
([137]) Rectificada pela Declaração de Rectificação nº 5/2002, de 6 de Fevereiro.
([138]) O artigo 78º desse Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, sob a epígrafe “Dever de segredo” dispõe do seguinte modo:
“1 - Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”
([139]) Alterado pelos Decretos-Leis nºs 246/95, de 14 de Setembro, 232/96, de 5 de Dezembro, este rectificado pela Declaração de Rectificação nº 4-E/97, de 31 de Janeiro, e 222/99, de 22 de Junho.
([140]) Refira-se que toda a regulamentação derrogatória do sigilo bancário que se irá descrever se aplica de igual modo ao sigilo fiscal, previsto no artigo 64º, nº 1, da lei geral tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro [rectificado pela Declaração de Rectificação nº 7-B/99, de 27 de Fevereiro, e alterado pelas Leis nºs 100/99, de 26 de Julho, 3-B/2000, de 4 de Abril (esta rectificada pela Declaração de Rectificação nº 6-A/2000, de 3 de Junho), e 30- -G/2000, de 29 de Dezembro (esta rectificada pela Declaração de Rectificação nº 8/2001, de 13 de Março), e também pela já citada Lei nº 15/2001]. Com efeito, o sigilo fiscal também cessa “em caso de colaboração com a justiça (...) nos termos do Código de Processo Penal” [artigo 64º, nº 2, alínea d)].
([141]) Esse artigo 60º do Decreto-Lei nº 15/93, com a epígrafe “Prestação de informações e apresentação de documentos”, apresenta a seguinte redacção, depois da alteração introduzida pela Lei nº 45/96:
“1 - Podem ser pedidas informações e solicitada a apresentação de documentos respeitantes a bens, depósitos ou quaisquer outros valores pertencentes a indivíduos suspeitos ou arguidos da prática de crimes previstos nos artigos 21.° a 23.°, 25.° e 28.°, com vista à sua apreensão e perda para o Estado.
2 - A prestação de tais informações ou a apresentação dos documentos, quer se encontrem em suporte manual ou informático, não podem ser recusados por quaisquer entidades, públicas ou privadas, nomeadamente pelas instituições bancárias, financeiras ou equiparadas, por sociedades civis ou comerciais, bem como por quaisquer repartições de registo ou fiscais, desde que o pedido se mostre individualizado e suficientemente concretizado.
3 - O pedido a que se referem os números anteriores é formulado pela autoridade judiciária competente, devendo, se respeitar a instituições bancárias, financeiras ou equiparadas, ser formulado através do Banco de Portugal.
4 - A individualização e a concretização a que alude o nº 2 pode bastar-se com a identificação do suspeito ou do arguido.”
([142]) Alterada pela Lei nº 90/99, de 10 de Julho, e pela já referida Lei nº 5/2002 (esta apenas revoga o citado artigo 5º).
([143]) O conceito de “criminalidade económica e financeira” usado no diploma consubstancia-se num catálogo de crimes, referido no seu artigo 1º, nº 1, que corresponde às infracções supra identificadas sob as alíneas g) a m) em V.2.5.2.
([144]) Da «Exposição de Motivos» que acompanhou a Proposta de Lei (nº 94/VIII) que deu origem à citada Lei nº 5/2002 [v. DAR, II-A, nº 76, de 18 de Julho de 2001, pp. 2434(66)-2434(71), em especial p. 2434(67)].
([145]) O que é indiciado por expressões como “cada Estado Parte considerará a possibilidade de criar...” [nº 1, alínea b)], “os Estados Partes considerarão a possibilidade de aplicar...” (nº 2) ou “os Estados Partes diligenciarão no sentido de desenvolver e promover...” (nº 4).
([146]) Como na alínea b) do nº 1 do artigo em análise.
([147]) Que, além do mais, introduziu alterações aos tipos legais de corrupção previstos nos artigos 372º e 373º do Código Penal, bem como à Lei nº 34/87 e ao Decreto-Lei nº 28/84.
([148]) Sobre a evolução do direito internacional no domínio da corrupção, v. LEILA LANKARANI, «La lutte contre la corruption», in HERVÉ ASCENSIO, EMMANUEL DECAUX e ALAIN PELLET (dir.), ob. cit., pp. 603-609.
([149]) Aprovada pela Resolução da AR nº 32/2000, de 2 de Dezembro de 1999 (publicada no DR, I, de 31 de Março), e ratificada pelo Decreto do PR nº 19/2000, de 10 de Março de 2000 (publicado no DR, I, de 31 de Março). O Aviso do depósito do instrumento de ratificação foi publicado sob o nº 253/2000, no DR, I, de 21 de Dezembro.
([150]) Já defendendo esse entendimento, JOSÉ SOUTO DE MOURA, «Corrupção (Para uma abordagem jurídica e judiciária)», in CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, Textos-2 (1991-92/1992-93), pp. 67-81, em especial pp. 69 e 72-73.
([151]) Distinguem-se em função do carácter ilícito ou lícito da conduta do funcionário corrupto.
([152]) Em relação à corrupção activa, a punição da corrupção imprópria só passou a ter lugar na versão do Código Penal Revisto, de 1995 (artigo 374º, nº 2).
([153]) Estas modalidades distinguem-se consoante a oferta ou promessa de vantagem ocorra antes ou depois do acto praticado pelo funcionário. Mas a punição da corrupção subsequente, passiva e activa, só se tornou possível com a revisão de 1995, ao substituir-se, nos artigos 372º e 373º (originários artigos 420º e 422º), a expressão “para praticar acto” pela de “como contrapartida do acto”. Para eliminar dúvidas entretanto surgidas na jurisprudência, a Lei nº 108/2001 procurou clarificar a questão, dizendo agora, ainda mais explicitamente, que a conduta ilícita é “para qualquer acto ou omissão (...), ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação” (artigos 372º, nº 1, e 373º, nº 1), conforme se refere na «Exposição de Motivos» que acompanhou a Proposta de Lei (nº 91/VIII) que deu origem à citada Lei nº 108/2001 [v. DAR, II-A, nº 76, de 18 de Julho de 2001, pp. 2434(4)-2434(6), em especial p. 2434(4)].
([154]) Sobre esta matéria, com mais actualidade, cfr. ANTÓNIO MANUEL DE ALMEIDA COSTA, em anotação aos artigos 372º a 374º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, pp. 654-686.
([155]) V. nota 142.
([156]) Vimos supra como esse regime foi reformulado pela Lei nº 5/2002.
([157]) A figura do agente infiltrado ou encoberto foi inicialmente consagrada no domínio do combate à criminalidade ligada ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, nos termos do artigo 52º da anterior lei da droga (Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de Dezembro) e do posterior artigo 59º do Decreto-Lei nº 15/93 (e também do artigo 59º-A deste diploma, introduzido pela Lei nº 45/96).
([158]) E que revogou igualmente os artigos 59º e 59º-A do Decreto-Lei nº 15/93.
([159]) Refira-se que o regime das acções encobertas também vale para os crimes de “associações criminosas” e de “branqueamento de capitais, outros bens ou produtos” [alíneas i) e l) do artigo 2º da Lei nº 101/2001].
([160]) Sobre esta matéria, no plano da legislação interna, cfr. MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, «A Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – Novas Perspectivas», in CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, Ciclo de Estudos de Direito Penal Económico, Coimbra, 1985, pp. 107-187, e JOSÉ DE FARIA COSTA, «A Responsabilidade Jurídico-Penal da Empresa e dos seus Órgãos», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 4º (Outubro-Dezembro/1992), pp. 537--559.
([161]) Designadamente, OLIVEIRA ASCENSÃO sustenta, de forma expressa, a necessidade de criminalização da actuação de pessoa colectiva que se dedique ao branqueamento de capitais (ob. cit., pp. 357-358).
([162]) Por confisco entende-se a “perda definitiva de bens”, nos termos da alínea g) do artigo 2º da Convenção.
([163]) Trata-se de operar, ex vi legis, a inversão do ónus da prova quanto à origem lícita dos presumíveis produtos do crime cuja perda possa ser declarada, acolhendo assim, no nosso sistema, a solução que já era proposta no nº 7 do artigo 5º da Convenção de Viena de 1988. Esta fórmula coloca a pertinente questão da sua conformidade constitucional, face ao princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º, nº 2, da Constituição. E o problema surgirá agravado para quem considere a declaração de perda como uma pena acessória ou uma sanção referida não apenas ao objecto, mas também à pessoa do agente (sobre a natureza jurídica do instituto da perda, com opinião diversa, cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pp. 627-629). De qualquer modo, o legislador entendeu, desde logo, que não ocorria violação do citado princípio constitucional, com o argumento de que se condicionou a aplicação deste regime à existência de uma sentença condenatória transitada, conforme declarou expressamente na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei nº 94/VIII, que deu origem à Lei nº 5/2002 [DAR, II-A, nº 76, de 18 de Julho de 2001, p. 2434(68)]. Aderindo a essa leitura, v. JORGE DIAS DUARTE, «Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro: Breve comentário aos novos regimes de segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado», Revista do Ministério Público, Ano 23, nº 89 (Janeiro/Março-2002), pp. 141-154, em especial p. 152.
([164]) Em V.7.2.
([165]) Em 12.1.6.
([166]) Para uma leitura global do precedente regime interno da cooperação internacional penal, incluindo a extradição, cujo interesse se mantém dadas as afinidades com a actual lei, v. MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA e TERESA ALVES MARTINS, Cooperação Judiciária Internacio­nal em Matéria Penal (Comentários), Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1992. Para desenvolvimentos sobre a matéria específica em causa, já à luz da Lei nº 144/99, MÁRIO MENDES SERRANO, «Extradição – Regime e Praxis», in AA.VV., Cooperação Internacional Penal, I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2000, pp. 13-103.
([167]) Aprovada para ratificação pela Resolução da AR nº 40/98, de 28 de Maio de 1998 (publicada no DR, I, de 5 de Setembro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 40/98, de 18 de Agosto de 1998 (publicado no DR, I, de 5 de Setembro). O Aviso de entrada em vigor foi publicado sob o nº 61/99 no DR, I, de 2 de Junho.
([168]) Para desenvolvimentos sobre esta matéria, na vigência da Lei nº 144/99, v. LUÍS SILVA PEREIRA, «Transferência de Pessoas Condenadas», in AA.VV., Cooperação Internacional Penal, I, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2000, pp. 113-160.
([169]) Em V.2.6.
([170]) Em V.9.1.2.
([171]) A descrição típica constante do nº 1 do citado artigo 154º apresenta o seguinte texto: “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade...”.
([172]) Neste sentido, v. AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, em anotação ao artigo 154º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo I, pp. 354-355.
([173]) Idem, p. 368.
([174]) Ibidem.
([175]) A factualidade indicada no nº 1 do mencionado artigo 360º é a seguinte: “Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informações ou fizer traduções falsos...”. Já o nº 2 se refere a “quem, sem justa causa, se recusar a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução”.
([176]) Neste sentido, MEDINA DE SEIÇA, em anotação ao artigo 360º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, pp. 468-469.
([177]) O enunciado típico do referido nº 1 do artigo 367º é do seguinte teor: “Quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança...”.
([178]) Assim MEDINA DE SEIÇA, citando MANZINI, em anotação ao artigo 367º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, pp. 595-596.
([179]) A acção típica a que se refere o aludido artigo 363º vem assim descrita: “Quem convencer ou tentar convencer outra pessoa, através de dádiva ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial, a praticar os factos previstos nos artigos 359.° ou 360.°, sem que estes venham a ser cometidos...”.
([180]) Neste sentido, MEDINA DE SEIÇA, em anotação ao artigo 363º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, pp. 595-596.

([181]) Em V.15.2.1.2.
([182]) Eis a descrição típica desse artigo 347º: “Quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres...”.
([183]) Neste sentido, CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, em anotação ao artigo 347º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, p. 341.
([184]) E em qualquer das suas modalidades, excepto quanto ao crime de favorecimento pessoal, em que é insuficiente o dolo eventual (cfr. MEDINA DE SEIÇA, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo III, pp. 594-595).
([185]) Alterado pela Lei nº 136/99, de 28 de Agosto, e regulamentado pelo Decreto Regulamentar nº 4/93, de 22 de Fevereiro, por sua vez alterado pelo Decreto Regulamentar nº 1/99, de 15 de Fevereiro.
([186]) Aprovada pela Resolução da AR nº 16/2000, de 2 de Dezembro de 1999 (publicada no DR, I, de 6 de Março), e ratificada pelo Decreto do PR nº 4/2000, de 17 de Fevereiro de 2000 (publicado no DR, I, de 6 de Março). O Aviso do depósito do instrumento de ratificação foi publicado sob o nº 107/2001, no DR, I, de 1 de Outubro, tendo sido ainda publicado um Aviso relativo à entrada em vigor da Convenção sob o nº 135/2001, no DR, I, de 31 de Dezembro.
([187]) Nesta disposição verifica-se outro lapso de escrita significativo da tradução portuguesa, uma vez que surge nesta uma alínea e) do artigo 30º que não existe nas versões originais, a qual corresponde, afinal, ao nº 3 do preceito, pelo que se fez a devida rectificação na nossa transcrição.
(x) Nações Unidas, Treaty Series, vol. 189, Nº 2545.
(x1) Ibid., vol. 606, Nº 8791.
([188]) Embora, por força dos nºs 1 e 3 do artigo 1º do Protocolo, seja de levar em conta o disposto no nº 2 do artigo 34º da Convenção, segundo o qual a incorporação do respectivo crime nos direitos internos deverá fazer-se “independentemente da sua natureza transnacional ou da implicação de um grupo criminoso organizado” (neste sentido também se apresenta a orientação expressa nas já citadas «Notas interpretativas», a propósito do artigo 6º do Protocolo sobre tráfico de migrantes).
([189]) Assim informa ELIANA GERSÃO, «Crimes sexuais contra crianças», in CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS, Textos-3 (1994/1997), pp. 171-193, concretamente na p. 187, nota 59.
([190]) Sobre a realidade sociológica subjacente ao fenómeno, v. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redes de tráfico de pessoas», in Revista do Ministério Público, Ano 21, nº 84 (Outubro/Dezembro-2000), pp. 15-29, e JORGE DIAS DUARTE, «Tráfico e exploração sexual de mulheres», in Revista do Ministério Público, Ano 22, nº 84 (Janeiro/Março-2001), pp. 51-69.
([191]) Sobre a evolução do direito internacional no domínio do tráfico de pessoas em geral, com especial incidência no tema da escravatura, v. EMMANUEL JOS, «La traite des êtres humains et l’esclavage», in HERVÉ ASCENSIO, EMMANUEL DECAUX e ALAIN PELLET (dir.), ob. cit., pp. 337-347. Na mesma linha, mas quanto ao tema da exploração sexual de crianças, v. AURÉLIE DE ANDRADE, «La pédophilie», idem, pp. 395-403.
([192]) Aprovada para ratificação pelo Decreto nº 14046, publicado no DG, I, de 21 de Junho de 1927, tendo a respectiva Carta de confirmação e ratificação sido depositada em 4 de Outubro de 1927, conforme Aviso publicado no DG, I, de 2 de Janeiro de 1929.
([193]) Aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 42172, publicado no DG, I, de 2 de Março de 1959, tendo a respectiva Carta de confirmação e ratificação sido depositada em 10 de Agosto de 1959, conforme Aviso publicado no DG, I, de 19 de Setembro de 1959.
([194]) Depositado por Portugal o instrumento de ratificação em 12 de Julho de 1905 (v. texto em Nova Colecção de Tratados, Convenções, Contratos e Actos Públicos, Tomo XII/1904-1906, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1916, pp. 5-13).
([195]) Depositado por Portugal o instrumento de ratificação em 9 de Setembro de 1913 (v. texto em Nova Colecção de Tratados, Convenções, Contratos e Actos Públicos, Tomo XIV/1908-1910, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1917, pp. 321-331).
([196]) Aprovada para ratificação pela Lei nº 1544, publicada no DG, I, de 4 de Fevereiro de 1924. Após ratificação, foi depositado o respectivo instrumento em 1 de Dezembro de 1923.
([197]) Aprovado pela Resolução da AR nº 5/2001, de 28 de Setembro de 2000 (publicada no DR, I, de 27 de Janeiro), e ratificado pelo Decreto do PR nº 6/2001, de 15 de Janeiro de 2001 (publicado no DR, I, de 27 de Janeiro).
([198]) A respectiva Carta de confirmação e ratificação, contendo o texto da Convenção, foi publicada no DG, I, de 28 de Julho de 1937, tendo o respectivo instrumento de ratificação sido depositado em 7 de Janeiro de 1937.
([199]) Aprovada pela Resolução da AR nº 31/91, de 6 de Junho de 1991 (publicada no DR, I, de 10 de Outubro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 48/91, de 20 de Setembro de 1991 (publicado no DR, I, de 10 de Outubro). O Aviso do depósito do instrumento de adesão foi publicado sob o nº 19/93, no DR, I, de 26 de Janeiro.
([200]) Aprovada pela Resolução da AR nº 20/90, de 8 de Junho de 1990 (publicada no DR, I, de 12 de Setembro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 49/90, de 10 de Agosto de 1990 (publicado no DR, I, de 12 de Setembro), tendo o Aviso do depósito do instrumento de ratificação sido publicado no DR, I, de 26 de Outubro de 1990. O nº 2 do artigo 43º da Convenção foi entretanto objecto de alteração, a qual foi aprovada pela Resolução da AR nº 12/98, de 22 de Janeiro de 1998 (publicada no DR, I, de 19 de Março), e ratificada pelo Decreto do PR nº 12/98, de 9 de Março de 1998 (publicado no DR, I, de 19 de Março), tendo o Aviso relativo à aceitação da emenda sido publicado sob o nº 267/98, no DR, I, de 20 de Novembro.
([201]) O Tratado da União Europeia foi assinado em Maastricht a 7 de Fevereiro de 1992 e veio a ser, entre nós, aprovado para ratificação pela Resolução da AR nº 40/92, de 10 de Dezembro de 1992 (publicada no DR, I, de 30 de Dezembro), e ratificado pelo Decreto do PR nº 63/92, de 17 de Dezembro de 1992 (publicado no DR, I, de 30 de Dezembro), tendo entrado em vigor em 1 de Novembro de 1993. Quanto ao Tratado de Amesterdão, a sua assinatura data de 2 de Outubro de 1997, e em Portugal foi aprovado para ratificação pela Resolução da AR nº 7/99, de 6 de Janeiro de 1999 (publicada no DR, I, de 19 de Fevereiro), e ratificado pelo Decreto do PR nº 65/99, de 10 de Fevereiro de 1999 (publicado no DR, I, de 19 de Fevereiro), tendo entrado em vigor em 1 de Maio de 1999.
([202]) JO nº L 63, de 4 de Março de 1997, p. 2.
([203]) Para uma análise circunstanciada da acção da União Europeia em sede de tráfico de seres humanos, v. ANNE WEYEMBERGH, «L’Union Européenne et la lutte contre la traite des êtres humains», Cahiers de Droit Européen, 36ème année (2000), nºs 1-2, pp. 215-251.
([204]) O preceito, que constituiu inicialmente o artigo 217º, foi objecto de alterações introduzidas pelos já indicados Decreto-Lei nº 48/95 e Lei nº 65/98, e, mais recentemente, pela Lei nº 99/2001, de 25 de Agosto.
([205]) Acerca dos elementos típicos, v. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, em anotação ao artigo 169º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo I, pp. 510-517.
([206]) Assim AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, em anotação ao artigo 159º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo I, pp. 423-424.
([207]) Sobre a escravatura e outras formas de servidão, consagrando a respectiva proibição, regem também os artigos 4º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o artigo 4º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 8º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
([208]) Opta-se, portanto, por um conceito mais amplo de escravatura, que inclui o trabalho forçado, na linha da doutrina invocada. Na posição de admitir um conceito autónomo de trabalho forçado, que assim encontraria dificuldades de enquadramento penal, se colocou a informação-parecer nº 71/99, de 7 de Janeiro de 2000, em que se apreciou a legalidade da Convenção nº 182 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à Interdição das Piores Formas de Trabalho das Crianças e à Acção Imediata com vista à Sua Eliminação (aprovada para ratificação pela Resolução da AR nº 47/2000, de 25 de Maio de 2000, publicada no DR, I, de 1 de Junho, e ratificada pelo Decreto do PR nº 28/2000, de 26 de Maio de 2000, publicado no DR, I, de 1 de Junho, tendo o Aviso do depósito do instrumento de ratificação sido publicado sob o nº 173/2000, no DR, I, de 22 de Agosto).
([209]) A que se faz corresponder uma pena de 2 a 10 anos de prisão (nº 1), que é agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo quando a extracção se efectue em pessoa que manifestou em vida a sua oposição (nº 2).
([210]) A distinção entre esses dois núcleos fundamentais de finalidades adstritas à recolha de órgãos, ou seja, para fins terapêuticos e de transplantação e para fins de ensino e de investigação científica, está bem patente no artigo 1º da Lei nº 12/93, de 22 de Abril, que contém o regime geral da colheita e transplante de órgãos e tecidos de origem humana.
([211]) O artigo 16º da Lei nº 12/93 limita-se a declarar o seguinte: “Os infractores das disposições desta lei incorrem em responsabilidade civil, penal e disciplinar, nos termos gerais de direito.”
([212]) Para a caracterização do conceito jurídico-penal de intervenção ou tratamento médico-cirúrgico e distinção entre actuações integradoras do conceito e acções que caem já fora dele, ainda que realizadas por médico, v. MANUEL DA COSTA ANDRADE, em anotação aos artigos 150º e 156º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo I, pp. 302-303 e 381.
([213]) Situando-se nesta perspectiva de análise, MARIA PAULA BONIFÁCIO RIBEIRO DE FARIA, Aspectos Jurídico-Penais dos Transplantes, Universidade Católica Portuguesa-Editora, Porto, 1995.
([214]) Assim MARIA PAULA BONIFÁCIO RIBEIRO DE FARIA, ob. cit., pp. 121-140 e 240--241.
([215]) Neste sentido, MANUEL DA COSTA ANDRADE, ob. cit., p. 381.
([216]) Até aí regia para essa situação o tipo legal comum de tráfico de pessoas (artigo 169º), com todos os seus requisitos, apenas acrescendo a agravação prevista no artigo 177º, nº 4, para os menores de idade inferior a 14 anos – o que justificava a crítica fundada na inexistência de um tipo autónomo, que, designadamente, dispensasse as exigências quanto aos meios utilizados pelo agente (assim ELIANA GERSÃO, ob. cit., pp. 180, 182-183 e 186).
([217]) Usando aqui a terminologia de ELIANA GERSÃO, ob. cit., p. 183.
([218]) Assim MARIA JOÃO ANTUNES, em anotação ao artigo 176º do Código Penal, in Comentário Conimbricense...cit., Tomo I, pp. 579-580. De igual modo, ANABELA MIRANDA RODRIGUES, «O papel dos sistemas legais...» cit., p.27.
([219]) Depois da consagração do tipo de tráfico de menores na versão dada ao Código Penal pela Lei nº 65/98, foi o preceito alterado pela Lei nº 99/2001, de 25 de Agosto.
([220]) Reza assim o citado preceito: “Nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo.”
([221]) Essa atitude mereceu a crítica de ELIANA GERSÃO, que, perante a reforma de 1998, comentava o seguinte: “(...) subsistem ainda alguns aspectos em relação aos quais se poderá questionar se as obrigações resultantes dos instrumentos jurídicos internacionais ou de outros compromissos assumidos pelo nosso país [estão] a ser plenamente satisfeitas. A questão central e de maior repercussão prática é a do limite etário máximo adoptado no tocante aos crimes de lenocínio e tráfico de menores, fixado em 16 anos, enquanto o conceito de criança consagrado na Convenção sobre os Direitos da Criança exigiria, a nosso ver, o seu alargamento até aos 18 anos” (ob. cit., p. 191). Em sentido igualmente favorável ao mencionado alargamento, se posicionou a informação-parecer nº 110/2001, de 31 de Julho de 2001, que apreciou a legalidade de dois Protocolos à Convenção sobre os Direitos da Criança.
([222]) Adite-se, com interesse nesta matéria, que nas mencionadas «Notas interpretativas» se considera a “adopção ilegal” assimilável a uma “prática análoga à escravatura”.
([223]) Alterado pela Lei nº 97/99, de 26 de Julho, e pelo Decreto-Lei nº 4/2001, de 10 de Janeiro, este por sua vez rectificado pela Declaração de Rectificação nº 3-A/2001, de 31 de Janeiro. Para regulamentação desse regime jurídico foi emitido o Decreto Regulamentar nº 5-A/2000, de 26 de Abril, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 7-B/2000, de 30 de Junho, e alterado pelo Decreto Regulamentar nº 9/2001, de 31 de Maio.
([224]) Do artigo 1º, nº 1, do referido texto legal.
(x2) Nações Unidas, Treaty Series, vol. 596, Nº 8638–8640.
(x3) Nações Unidas, Treaty Series, vol. 189, Nº 2545.
(x4) Ibid., voI. 606, Nº 8791.
([225]) Aprovada pela Resolução da AR nº 60-B/97, de 3 de Abril de 1997 (publicada no DR, I, de 14 de Outubro), e ratificada pelo Decreto do PR nº 67-A/97, de 4 de Setembro de 1997 (publicado no DR, I, de 14 de Outubro). O Aviso do depósito do instrumento de ratificação foi publicado sob o nº 81/98, no DR, I, de 21 de Abril.
([226]) Neste sentido, e sobre esta matéria, v. DJAMCHID MOMTAZ, «Les infractions liées aux activités maritimes», in HERVÉ ASCENSIO, EMMANUEL DECAUX e ALAIN PELLET (dir.), ob. cit., pp. 511-519, em especial p. 517.
([227]) Embora também aqui, tal como referido a propósito do artigo 5º do Protocolo relativo ao tráfico de pessoas (v. nota 188), e por força dos nºs 1 e 3 do artigo 1º do presente Protocolo, seja de levar em conta o disposto no nº 2 do artigo 34º da Convenção, segundo o qual a incorporação do respectivo crime nos direitos internos deverá fazer-se “independentemente da sua natureza transnacional ou da implicação de um grupo criminoso organizado” (neste sentido segue igualmente a orientação expressa nas «Notas interpretativas»).
([228]) Em princípio, não puníveis, de acordo com o artigo 21º do Código Penal.
([229]) Com efeito, não divergem significativamente o elenco de actuações referidas nessas disposições do Protocolo e as condutas que integram o crime de falsificação do artigo 256º do Código Penal, que pune quem:
“a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa”.
Refira-se que, nas já indicadas «Notas interpretativas» se considera que as palavras “falsificado ou alterado” do artigo 3º, alínea c), subalínea i), do Protocolo englobam não só a criação de falsos documentos, mas igualmente a modificação de documentos lícitos e o preenchimento de documentos virgens furtados.
([230]) Aliás, terá sido este o sentido pretendido, de acordo com as «Notas interpretativas», em que se afirma que a expressão “outro meio ilegal” se deve entender como referida a quaisquer meios ilegais definidos no direito interno.