Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002109
Parecer: P000582002
Nº do Documento: PPA16012003005800
Descritores: REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
CONCESSÃO DE OBRAS PÚBLICAS
PORTAGEM SCUT
PORTAGEM VIRTUAL
ESTRADA MUNICIPAL
ESTRADA NACIONAL
ASSEMBLEIA REGIONAL
PODER LEGISLATIVO REGIONAL
DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL DE DESENVOLVIMENTO
LEI DE BASES DE TRANSPORTE TERRESTRE
INTERESSE ESPECÍFICO
INTERPRETAÇÃO
PLANO RODOVIÁRIO NACIONAL
LEI GERAL DA REPÚBLICA
PORTAGEM
CONCESSIONARIO
REMUNERAÇÃO
EMPREITADA DE OBRAS PÚBLICAS
CONSTRUÇÃO
CONSERVAÇÃO
EXPLORAÇÃO
ILEGALIDADE
Livro: 00
Pedido: 06/04/2002
Data de Distribuição: 06/12/2002
Relator: FERNANDA MAÇÃS
Sessões: 01
Data da Votação: 01/16/2003
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE S. EXA. O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [11]
Indicação 2: ASSESSOR:MARTA PATRÍCIO
Área Temática:DIR CONST * ORG PODER POL / DIR ADM * ADM PUBL / DIR CIV * TEORIA GERAL
Legislação:CONST76 -ART6 N1 ART112 ART165 N1 F) G) H) N) T) U); ART227 N1 A) C) ART228 H) ART229 N2; DLR 25/2001/A DE 2001/12/31 - ART1 ART2 ART3 ART4 ART5 ART6 ART7 ART8 ART9; L10/90 DE 1990/03/17 - ART1 ART3 N4 ART4 ART5 ART6 ART7 ART9 ART13 ART14 N1 N2 N3 ART15 N1 N2 N3 N4 N5 N6 N7 N8 ART35; DL267/97 DE 1997/10/02; LC 1/97 - ART112 N5 ART228 A) B) C) D) E) F) G) H) I) J) L) M) N) O) ; LC /82 - ART115 N4; L 39/80 DE 1980/08/05 ; L61/98 DE 1998/08/27 - ART8; DLR 26/94/A DE 1994/11/30 - ART1 ART2 ART3 N1 ART4; CCIV66 - ART9 N3
Direito Comunitário:COMUNICAÇÃO 200/C IN JOCE, C-121, DE 29 DE ABRIL DE 2000
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:AC DO STA DE 01/07/99
AC DO TC N 408/98 IN DR II S N283 DE 9/12/98
AC DO TC 437/02 IN DR I S N292 DE 18/12/02
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª. A matéria relativa a “vias de circulação, trânsito e transportes terrestres,” incluindo a construção, conservação e exploração do sistema viário regional, constitui assunto de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores e sobre a qual pode incidir o poder normativo regional;
2ª. Trata-se de matéria em relação à qual a Assembleia Legislativa Regional goza, nos termos do disposto nos artigos 227º, alínea a), e 228º, alínea h), da CRP, artigo 8º, alínea h), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nº 2 do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março ( Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres), de competência legislativa primária, condicionada aos limites que decorrem da necessidade de conformação às normas e princípios constitucionais, em especial no que se refere às competências reservadas aos órgãos de soberania, aos direitos, liberdades e garantias, e ao respeito por princípios fundamentais das leis gerais da República;
3ª. O regime de concessão, mediante portagens, da construção, conservação e exploração de auto–estradas ou grandes obras de arte, incluindo outros troços viários principais, há-de constar de acto legislativo, em resultado da interpretação conjugada dos nºs 6 e 8 do artigo 15º da Lei nº 10/90;
4ª. O Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro, ao estabelecer o regime de realização do concurso com vista à concessão, através de portagens SCUT, de troços rodoviários na Ilha de São Miguel, satisfaz o exigido na conclusão anterior;
5ª. As denominadas concessões SCUT, instrumentos contratuais que têm por objecto “a concepção, construção, conservação e exploração de lanços de auto-estradas em regime de portagem, sem cobrança aos utilizadores, não deixam de ser expressão da figura de concessão de obra pública, uma vez que se mantém o sistema de exploração da obra pelo concessionário, elemento que constitui, no momento actual da sua evolução, o traço distintivo específico desta figura contratual;
6ª. Atento o mencionado na conclusão anterior, quando o artigo 15º, nº 6, da Lei nº 10/90 fala em concessão em “regime de portagem” deve entender-se esta expressão em sentido amplo de forma a abranger tanto o regime tradicional de portagens pagas pelos utentes como o de portagens SCUT;
7ª. Em face das conclusões anteriores, o Decreto-Legislativo Regional nº 25/2001/A e, bem assim, o Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro, não enfermam de ilegalidade.

Texto Integral:
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República
Excelência:


I

O Auditor Jurídico do Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores dirigiu a Vossa Excelência uma informação onde suscita várias questões a propósito do Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro, que resumidamente se indicam:

1. O diploma em causa estabelece o regime de realização do concurso com vista à concessão de obra pública, em regime de portagem SCUT (sem cobrança ao utilizador), de troços rodoviários na Ilha de São Miguel.

2. Resulta do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março (Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres), que somente quanto “à construção de auto-estradas e outros troços de itinerários principais ou complementares da rede nacional de estradas e de grandes obras de arte é possível haver concessão (nºs. 1, 3 e 7), e que as estradas e as grandes obras de arte construídas por concessão serão exploradas em regime de portagem (nº 6).”

3. Assim sendo, “os nºs 1 e 2 do artigo 15º só podem ser interpretados no sentido de que está vedado para as estradas regionais e municipais o recurso à concessão.”

4. Por outro lado, “o nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março, preceitua que as estradas e grandes obras de arte construídas por concessão serão exploradas em regime de portagem. (...) O legislador, ao utilizar o termo portagem teve necessariamente o propósito de só admitir concessões de obras públicas mediante o pagamento de taxas pelos utentes.”

5. O Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro - estabelece o regime de realização de concursos públicos internacionais para a concessão da concepção, construção e exploração em regime de portagem sem cobrança aos utilizadores (SCUT) de lanços de auto-–estradas da rede rodoviária nacional - “parece violar o nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março, visto que portagem, por definição, implica pagamento de taxas pelos utentes e nunca um pagamento de um preço pelo concedente.”

6. “A apontada violação do nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março, por parte do Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro, constata-se existir igualmente por parte do Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro, na medida em que este prevê concessões em regime SCUT (...) ambos os diplomas estão afectados, neste particular, do vício de ilegalidade, visto que as leis de bases têm valor reforçado (nº 3 do artigo 112º da Constituição), devendo os decretos-leis e os decretos legislativos regionais de desenvolvimento respeitar o preceituado nas bases (nº 2 do artigo 112º da Constituição).”

7. “O diploma viola, de igual modo, os nºs 1, 2 e 7 da Lei nº 10/90, porquanto admite concessões de redes viárias da Ilha de São Miguel de categoria não correspondente às que são permitidas por aquela lei, sendo seguro que não foi feita qualquer equiparação das estradas regionais da Região Autónoma dos Açores às estradas nacionais referidas nos nºs 1, 3 e 7 do artigo 15º da Lei nº 10/90.”
8. “Outra questão que se coloca, relativamente ao Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro é o do interesse específico a que alude a alínea c) do nº 1 do artigo 227º da Constituição (...) não se vislumbra qualquer fundamento para que as estradas das regiões autónomas tenham um regime de construção e exploração diferente do definido para as estradas regionais do território do continente.”

9. “Uma última questão prende-se com o facto de o decreto legislativo regional em apreciação não ter estabelecido um quadro jurídico de concessão de obras públicas aplicável em geral na Região Autónoma dos Açores, limitando-se a estabelecer o regime de realização do concurso para a concessão de obra pública em regime de portagem SCUT em determinados troços da ilha de São Miguel.”

10. “É que, não tendo a Lei nº 10/90, de 17 de Março, contemplado a possibilidade de concessão de construção e exploração das estradas regionais, e vigorando na Administração o princípio da legalidade (cfr. nº 2 do artigo 266º da Constituição e nº 1 do artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo), era suposto que primeiramente fosse definido, na generalidade, um regime legal de concessão de obras públicas para toda a Região Autónoma dos Açores (posto que justificado o interesse específico e respeitados os princípios fundamentais das leis gerais da República) e seria ao abrigo de tal regime que seriam estabelecidas concessões em concreto. (...). No caso em apreciação é manifesto que se impunha a definição de um regime legal de concessão de obras públicas, com carácter genérico, para a Região Autónoma dos Açores.”

“Pelo exposto, o nosso parecer é no sentido de que o decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro, padece do vício de ilegalidade.”

A mencionada informação foi objecto de análise no âmbito do Gabinete, onde se concluiu que, sobre as matérias ali versadas, fosse ouvido o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.

Dignou-se Vossa Excelência acolher a sugestão, pelo que cumpre emitir parecer.

II

1. Como vimos, na informação do Auditor Jurídico do Gabinete do Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores são apontadas diversas ilegalidades ao Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro.

O mencionado diploma legal veio consagrar “o regime de realização do concurso com vista à concessão de obra pública, em regime de portagem SCUT (sem cobrança ao utilizador), de troços rodoviários, respectivos lanços e conjuntos viários associados, na Ilha de São Miguel, identificados no anexo, que faz parte integrante do presente, numa extensão total aproximada de 94 KM” (cfr. artigo 1º do diploma).

Para esse efeito, o diploma estabelece, para além do Objecto já referido, o “Regime” (artigo 2º); “Natureza e estrutura do concurso” (artigo 3º); “Natureza e qualificação dos concorrentes” (artigo 4º); “Conteúdo mínimo obrigatório da regulamentação do concurso” (artigo 5º); “Modo de selecção da concessionária” (artigo 6º); “Critérios de atribuição da concessão” (artigo 7º); “Contratos de concessão” (artigo 8º); e “Direitos de não atribuição da concessão” (artigo 9º).

Do preâmbulo do Decreto Legislativo Regional em apreciação resulta que o mesmo teve em vista desenvolver o disposto no nº 8 do artigo 15º da Lei nº 10/90[1], de 10 de Abril, tendo sido, por conseguinte, emitido ao abrigo da competência reconhecida pela CRP às Regiões para “desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g), h), n), t) e u) do nº 1 do artigo 165º”[2].

Por sua vez, as normas principais da Lei nº 10/90, de 17 de Março - Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres[3] - relevantes para a apreciação da questão, são as dos artigos 14º e 15º, integrados no Capítulo III, com a epígrafe “Transporte rodoviário”:

“Artigo 14º
Infra-estruturas: rede rodoviária

1 - A rede de estradas nacionais, que constituem bens do domínio público do Estado, é definida no plano Rodoviário Nacional e inclui a rede fundamental - integrada pelos itinerários principais - e a rede complementar - integrada pelos itinerários complementares e outras estradas.
2 - O Plano Rodoviário Nacional e as redes viárias regionais e municipais serão objecto de diplomas específicos.
3 - Os diplomas referidos no número anterior estabelecerão as normas disciplinadoras das categorias e características técnicas das estradas das redes nacional, regionais e municipais, as quais serão adaptadas à natureza e volume dos tráfegos previsíveis.”

“Artigo 15º
Construção, conservação e exploração de infra-estruturas

1 - A construção, conservação e exploração da rede de estradas nacionais competem à administração central, salvo a excepção referida no nº 3.

2 - A construção, conservação e exploração das redes viárias regionais e municipais competem às regiões e aos municípios em que se situarem.

3 - A construção e exploração de auto-estradas e de grandes obras de arte, nomeadamente pontes e túneis, integradas na rede de estradas nacionais poderá ser objecto de concessão, atribuída a empresa constituída expressamente para esse fim.

4 - Para o efeito do disposto no número anterior, o Governo definirá quais os lanços de auto-estrada ou as grandes obras de arte a incluir na concessão e bem assim os respectivos programas de construção.

5 - Em regra, deverão ser objecto de concessão os lanços de auto-estrada que correspondam a trajectos de longa distância, devendo ser excluídos os que, pela sua localização em áreas urbanas ou em acessos imediatos aos grandes centros urbanos, a portos ou aeroportos, devam ser construídos pela administração central.

6 - As auto-estradas ou grandes obras de arte construídas por concessão serão exploradas em regime de portagem.

7 - O regime de concessão a que se refere o presente artigo pode aplicar-se também a outros troços de itinerários principais ou complementares da rede nacional de estradas.

8 - O regime de concessão da construção, conservação e exploração das auto-estradas ou grandes obras de arte constará de legislação especial.”


2. Para facilitar a resolução das questões postas importa recortar um primeiro núcleo de dúvidas de ilegalidade imputadas exclusivamente ao diploma legislativo regional e que são, em termos sintéticos, as seguintes:

a) Em primeiro lugar, na óptica da mencionada informação, o Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, ao prever que determinados troços rodoviários possam, na Ilha de São Miguel, ser explorados em regime de concessão de obra pública, viola a Lei nº 10/90, na medida em que os nºs 1 e 2 do seu artigo 15º vedam, para as estradas regionais, o recurso à concessão;

b) Em segundo lugar, o diploma regional, ao admitir concessões de redes viárias da Ilha de São Miguel de categoria não correspondente às que são permitidas pela Lei nº 10/90, viola também os preceitos contidos nos nºs 1, 2 e 7 desta Lei;

c) Argumenta-se também que, ao não existir “fundamento para que as estradas das regiões autónomas tenham um regime de construção e exploração diferente do definido para as estradas regionais do território do continente”, o diploma em causa carece de interesse específico, nos termos do exigido na alínea c) do nº 1 do artigo 227º da CRP;

d) Finalmente, invoca-se que, não tendo a Lei nº 10/90 contemplado a possibilidade de concessão de construção e exploração das estradas regionais, impunha-se, por exigência do princípio da legalidade da Administração, que o Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A fosse antecedido da previsão de “um regime legal de concessão de obras públicas para toda a Região Autónoma dos Açores.”

As questões apontadas, não obstante autonomizadas na informação do Auditor Jurídico, acabam por se reconduzir ao mesmo núcleo problemático, qual seja o da competência legislativa da Assembleia Regional dos Açores e sua articulação com o poder legislativo dos órgãos da República.

Eis, por conseguinte, a primeira questão jurídica que se impõe analisar, com vista a aferir da ilegalidade do diploma regional em causa, nos termos expostos.


3. A Constituição confere, desde a sua versão originária, ampla competência legislativa às regiões, emanação do modelo de autonomia política e administrativa que o legislador constituinte consagrou para as Regiões Autónomas[4].

As Regiões Autónomas podiam legislar em matéria de interesse específico regional, respeitados os seguintes limites: a Constituição, as leis gerais da República e as matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania[5].

No domínio da competência legislativa própria, a Constituição não formulou nenhum critério material orientador nem procedeu a qualquer enumeração de matérias em relação às quais as regiões desfrutassem de poderes legislativos exclusivos.

Desde o início e durante muito tempo, a Constituição limitou-se a apontar, como critério orientador e legitimador da manifestação de tais poderes, a existência de um interesse específico para as regiões, que funcionava como limite positivo.

Por sua vez, os Estatutos procederam, desde o início, a uma enumeração de matérias que, além de meramente exemplificativa, também não oferecia um critério objectivo de determinação do que fossem matérias de “interesse específico.”

A determinação da existência de interesse específico passou a fazer-se de forma casuística e tópica[6], tendo, nesta tarefa, desempenhado relevante papel, primeiro a Comissão Constitucional e, posteriormente, o Tribunal Constitucional, no âmbito da função de controlo da legalidade da legislação regional no que dizia respeito à verificação daquele limite.

Os critérios sedimentados pelo Tribunal Constitucional, na sua orientação interpretativa tendente à densificação material do conceito, são essencialmente os da “exclusividade” e da “especificidade”, considerando-se que constituem matérias de interesse específico das regiões aquelas “que lhes respeitem exclusivamente ou que nelas exijam um especial tratamento por ali assumirem peculiar configuração”[7] [8] [9].
Também este corpo consultivo teve oportunidade de se pronunciar sobre esta matéria, tendo-se firmado doutrina no sentido de que a especificidade do interesse específico há-de ser apreendida casuisticamente e “detectada na óptica condicionante de uma comunidade territorialmente circunscrita, tendo em conta o espaço geográfico, as características demográficas e socio-culturais, os traços fundamentais da economia regional”[10]

Sobre o valor jurídico das matérias de “interesse específico” enunciadas nos Estatutos, também desde cedo o Tribunal Constitucional consolidou jurisprudência na matéria.

A tal propósito a jurisprudência constitucional tem-se orientado no sentido de considerar o elenco estatutário mera “presunção abstracta, ilidível pela demonstração, caso a caso, de que não se verifica nenhum interesse específico”[11], de acordo com os critérios materiais seguidos pelo Tribunal.

Segundo este modo de ver as coisas, o facto de determinada matéria figurar no elenco do respectivo Estatuto da Região não habilitava só por si o intérprete a concluir no sentido de dar como verificado o interesse específico. Tal conclusão só seria possível depois de uma valoração em concreto que demonstrasse tratar-se de questões que respeitavam exclusivamente à Região em causa ou nela exigiam tratamento especial por aí assumirem particular configuração[12].
3.1. Como vimos, antes de 1997 a Constituição não enunciava as matérias de interesse específico, cometendo essa tarefa aos instrumentos estatutários.

A Lei Constitucional de Revisão nº 1/97 aditou[13] o artigo 228º, eliminou o primitivo 230º, passando a enumerar, sem carácter exaustivo, um elenco de matérias de interesse específico regional.

Trata-se de uma enumeração exemplificativa, que inclui:

“a) Valorização dos recursos humanos e qualidade de vida;
b) Património e criação cultural;
c) Defesa do ambiente e equilíbrio ecológico;
d) Protecção da natureza e dos recursos naturais, bem como da sanidade pública, animal e vegetal;
e) Desenvolvimento agrícola e piscícola;
f) Recursos hídricos, minerais e termais e energia de produção local;
g) Utilização de solos, habitação, urbanismo e ordenamento do território;
h) Vias de circulação, trânsito e transportes terrestres;
i) Infra-estruturas e transportes marítimos e aéreos entre ilhas;
j) Desenvolvimento comercial e industrial;
l) Turismo, folclore e artesanato;
m) Desporto;
n) Organização da administração regional e dos serviços nela inseridos;
o) Outras matérias que respeitem exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam particular configuração.”

O preceito afigura-se aberto numa dupla perspectiva:

Por um lado, passa a existir um conjunto de matérias doravante constitucionalmente garantido mas, como se trata de uma enumeração não taxativa, podem os Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas proceder à concretização e aditamentos apropriados aos condicionalismos e características específicas de cada Região.

Por outro lado, a alínea o) consubstancia uma cláusula geral sobre o interesse específico, cláusula aberta que se destina a permitir o aditamento de novas matérias[14].

Tendo em conta a inserção deste novo preceito, o alcance desta cláusula geral e sobretudo a sua articulação com as restantes alíneas do artigo 228º da CRP, afigura-se pertinente questionar se para concluir que determinada matéria integra o interesse específico basta, a partir de agora, que ela figure numa das alíneas elencadas no preceito constitucional em causa.

Sobre a questão de saber como se detecta, perante determinado decreto legislativo regional, se ele integra ou não matéria de interesse específico, JORGE MIRANDA considera que é preciso distinguir as situações: “se a matéria se subsumir na lista estatutária –e a fortiori na lista constitucional – deverá presumir-se que existe interesse específico (...)”, resolvendo-se a questão através do mero confronto entre normas – a do diploma regional em causa e as normas da Constituição ou do estatuto; diferentemente se passam as coisas quando se tratar de matéria que não figure no preceito constitucional, nem no correlativo preceito estatutário. Neste caso será necessário indagar se em concreto se divisa ou não interesse específico regional, tendo em conta se existe “especial conexão entre a matéria e a realidade regional, derivada das ‘características geográficas, económicas, sociais e culturais da região’ “[15].

MARCELO REBELO DE SOUSA/JOSÉ ALEXANDRINO pronunciam-se de forma inequívoca no sentido de que a integração de uma dada matéria no elenco previsto no artigo 228º da CRP dispensa um juízo autónomo de apreciação sobre a verificação em concreto do interesse específico.

Referindo-se de modo particular ao alcance da articulação entre o disposto na cláusula inserta na alínea o) do artigo 228º da CRP e as restantes alíneas do mesmo preceito, os mesmos autores ponderam que “resulta, com evidência, do uso da expressão ‘outras matérias’, que esta última alínea não pode servir para valer como segunda grelha de aferição do interesse específico, no sentido de esvaziar o duplo desígnio do legislador reconstituinte de alargar a autonomia regional e de o fazer através de enumeração exemplificativa.”

Ainda que “não existisse a expressão ‘outras matérias’ - continuam os mesmos autores - e a técnica adoptada fosse a de prever no proémio do artigo uma cláusula geral, seguida de enumeração exemplificativa, ainda aí o sentido útil só poderia ser o de caberem sempre no conceito constitucional de matérias de interesse específico as constantes da enumeração exemplificativa, e a elas se poderem juntar outras inseríveis na cláusula geral.”

E os autores que vimos seguindo concluem que “só faz sentido, portanto, falar em segunda grelha de aferição de interesse específico como fórmula de aditamento de novas matérias de interesse específico, e não de segunda apreciação sobre as elencadas na enumeração exemplificativa”[16].

No mesmo sentido, para JOSÉ MAGALHÃES, a alínea o) “cristaliza o critério material usado nas anteriores e obrigatório para apurar qualquer outra área ‘extracatálogo’. Só podem considerar-se de ‘interesse específico’ ‘matérias que respeitem exclusivamente à respectiva região ou que nela assumam particular configuração’ (nenhum outro critério releva”[17].

Também GOMES CANOTILHO parece inculcar a mesma ideia quando vê na individualização, a nível constitucional (reserva de Constituição)[18], de algumas matérias de interesse específico das Regiões Autónomas, uma forma de reagir à interpretação restritiva do interesse específico da responsabilidade do Tribunal Constitucional.

Se os critérios da exclusividade e da especificidade serviram, antes da revisão de 1997, “de instrumentos hermenêuticos freadores da expansividade do interesse específico regional, transmudam-se em critérios ampliadores da reserva constitucional de interesse específico”[19] [20].

Da doutrina citada transparece, em síntese, a ideia de que o critério material de interesse específico, agora com assento constitucional, só deve ser utilizado para apurar se uma dada matéria, que não figura no elenco das previstas no artigo 228º, é ou não subsumível ou enquadrável na categoria de interesse específico das regiões autónomas[21].

Esta interpretação do preceito é a que parece vislumbrar-se nos trabalhos preparatórios da revisão constitucional, sendo que é manifesta a intenção de reforçar os poderes legislativos dos parlamentos regionais, pondo cobro a uma conceptualização de “interesse específico” até agora bloqueadora destas competências[22].

Para esse efeito, “elenca-se um conjunto de matérias de interesse específico, de carácter meramente exemplificativo, como resulta da dupla cláusula aberta constituída pela expressão ‘designadamente’ do corpo do novo artigo 228º e da alínea o) do mesmo artigo em que se referem ‘certas matérias que respeitem exclusivamente à região ou que nela assumam particular configuração’ “[23].

No entanto, observa-se que em acórdãos emitidos depois das alterações introduzidas na Lei Fundamental pela revisão de 1997, a orientação do Tribunal Constitucional vai no sentido de que tais alterações “não são de molde a modificar os termos em que se coloca a apreciação do requisito do interesse específico”[24], (...) “em face da difícil delimitação, em abstracto, do parâmetro constitucional, é a própria natureza do caso concreto que suscita, normalmente a percepção do critério definidor do interesse específico (...)”, que “tem sempre de ser apreciado em concreto ao que corresponda a emissão de um juízo de valor”.

“Nessa apreciação”, pondera o Tribunal Constitucional em acórdão mais recente, “a alínea o) do artigo 228º fornece um critério interpretativo geral – a exclusividade ou particular configuração das matérias –, critério esse que constitui o elemento unificador das matérias expressamente previstas nas alíneas anteriores e daquelas que escapam à previsão não taxativa do legislador constitucional”[25].

Resta, por último, destacar, enquanto expressão da orientação no sentido do reforço da autonomia e da descentralização, a consagração, no nº 1 do artigo 6º da CRP, do princípio da subsidiariedade, como critério orientador da repartição de competências entre o Estado e as Regiões Autónomas, princípio que deve ser chamado à colação na densificação dos princípios fundamentais das leis gerais da República[26].

Segundo a sua mais recente conceptualização, tal princípio “traduz a ideia de que deve caber às estruturas políticas e administrativas mais próximas dos cidadãos a solução dos seus problemas e inerente dotação dos meios, cabendo aos escalões superiores intervir, subsidiariamente, quando pela natureza e dimensão das questões se torne necessária, adequada e mais eficaz tal intervenção”[27].


3.2. O interesse específico não é, porém, como vimos, o único critério de definição da competência legislativa das assembleias legislativas regionais.

A Constituição prescreve outros dois tipos de limites: os que se prendem às matérias reservadas aos órgãos de soberania e os que derivam do respeito pelas leis gerais da República[28].

A revisão de 1982 incluiu no artigo 115º, nº 4, uma definição do conceito de leis gerais da República, entendendo-se como tais, as leis e decretos-lei que, pela sua “razão de ser”, envolvessem a aplicação, sem reservas, a todo o território nacional[29].

Com a revisão constitucional de 1997, o alargamento da competência legislativa autonómica fez-se também pela via da alteração do âmbito de um dos limites negativos ao poder legislativo regional.

De acordo com o novo enunciado dado ao nº 5 do artigo 112º da CRP (versão de 1997), as leis gerais da República são “aquelas cuja razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional e assim o decretem”[30]. Foi eliminada a expressão “sem reservas“ e aditada, in fine, a expressão “e assim o decretem.”

Por outro lado, o valor paramétrico das leis gerais da República sobre os decretos legislativos regionais, que se reportava a todo o conteúdo dispositivo dessas leis, cinge-se, a partir da revisão de 97 aos preceitos que contenham os seus “princípios fundamentais”[31] [32].

Passou desta forma a admitir-se que as regiões possam contrariar o disposto em tais diplomas desde que se conformem aos seus princípios fundamentais[33].

A orientação fundamental do Tribunal Constitucional sobre o conceito de leis gerais da República tem sido a de considerar que assumem tal carácter “as leis e os decretos-leis que versem matéria com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos, uma vez que tais matérias, por exigências decorrentes do princípio da unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir os portugueses, são da competência própria dos órgãos de soberania”[34].

Na doutrina, para alguns autores, são leis gerais da República, desde logo, “aquelas que, pela sua natureza ou pelo seu teor, não permitem que as regiões autónomas sejam excluídas do seu âmbito[35]” ou que “resultam de exigências postas pela integridade da soberania do Estado[36]” ou, ainda, as “que dizem respeito a matérias imediatamente relevantes para a generalidade dos cidadãos (...) ou directamente referíveis à unidade substancial da ordem jurídica”[37]. Leis gerais da República podem ser também aquelas que definem “um âmbito de exclusividade legislativa do acto legislativo nacional (lei ou decreto-lei)”[38].
3.3. Com interesse para a análise da questão em apreço importa também destacar que, a partir da revisão constitucional de 1989[39], as assembleias legislativas regionais passaram a ter competência legislativa para desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência legislativa da Assembleia da República[40].

Referindo-se ao âmbito deste poder legislativo regional, GOMES CANOTILHO considera que “não existindo aqui qualquer delimitação material de competências constitucionalmente estabelecida, as normas regionais de desenvolvimento dependem da iniciativa do legislador nacional e do maior ou menor grau de concretização por este conferido às leis de bases. Daí que os decretos legislativos de desenvolvimento estejam subordinados às bases, podendo apenas actuar, desenvolver, integrar, secundum ou praeter legem, mas nunca contra legem[41].


4. O breve excurso acabado de fazer sobre o poder legislativo das Regiões Autónomas permite-nos ensaiar uma resposta ao primeiro núcleo de questões sumariadas no ponto II.


4.1. De entre as matérias de interesse específico elencadas no artigo 8º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores[42], “para efeitos de definição dos poderes legislativos ou de iniciativa legislativa da Região, bem como das matérias de consulta obrigatória pelos órgãos de soberania, nos termos do nº 2 do artigo 229º, da Constituição, destaca-se, na alínea h), “Vias de circulação, trânsito e transportes terrestres.”

Vimos também que, depois da revisão de 1997, tal assunto passou a constar do elenco de matérias de interesse específico que a Constituição enumera de forma exemplificativa no artigo 228º, mais propriamente na alínea h) do mencionado preceito.

Admitindo, no sentido do preconizado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tal circunstância não dispensa uma valoração concreta tendente a averiguar se tal matéria reveste interesse específico para a Região, afigura-se que a resposta não pode deixar de ser positiva.

Na verdade, estamos perante assuntos que pela sua própria natureza não podem deixar de integrar o critério material de interesse específico atrás mencionado.

Embora não possamos afirmar tratar-se de problemas de interesse exclusivo das regiões, não deixam de ser matérias que devem ser reguladas com especial atenção às particularidades locais, assumindo uma singular configuração, a reclamar um tratamento específico.

A reduzida dimensão territorial, o carácter acidentado do terreno, a descontinuidade continental, o regime de exploração agro-–pecuária e florestal apontam, decisivamente, para uma sistematização da rede viária regional em moldes diferentes da nacional, incluindo uma classificação específica, uma definição própria das características técnicas, áreas de jurisdição, restrições, fiscalização, sanções, etc. Às particularidades apontadas hão-de acrescer, como melhor será analisado adiante, as diferentes formas de exploração e de gestão da rede viária regional.

Por outro lado, a Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres remete para diploma específico o plano das redes viárias regionais (cfr. nº 2 do artigo 14º da Lei nº 10/90), sendo que o plano rodoviário nacional se limita a definir a rede rodoviária nacional do continente[43].

É, por conseguinte, a própria legislação nacional que deixa ao poder legislativo regional o tratamento dos aspectos relevantes respeitantes às vias de circulação, trânsito e transportes, o que constitui igualmente indício relevante no sentido da existência de interesse específico.

Neste sentido, o Decreto Legislativo Regional nº 26/94/A, de 30 de Novembro de 1994, contém o Estatuto das Vias de Comunicação Terrestres na Região Autónoma dos Açores.

Do referido diploma destaca-se, em especial, o Capítulo I (artigos 1º a 3º) que estabelece disposições gerais e integra as vias de comunicações terrestres, existentes na Região, em três grupos: rede regional, rede municipal e rede florestal. O capítulo II (artigos 4º a 17º) trata das características das vias, sejam elas vias rápidas[44], estradas regionais (de 1ª ou 2ª classes), estradas municipais, caminhos municipais (de 1ª ou 2º classes), caminhos florestais (principais ou secundários) ou estradões florestais. O capítulo III (artigos 18º a 40º) é relativo ao tratamento e gestão das vias: define a zona da via, a zona de protecção da via e a área de protecção da paisagem e ambiente e regula a demarcação, as condições de circulação, a arborização e o cadastro das vias.

A matéria relativa a “Vias de circulação, trânsito e transportes terrestres” é, desta forma, uma matéria de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores, e sobre a qual pode incidir o poder normativo regional.


4.2. No que se refere propriamente à construção e gestão ou exploração das redes viárias regionais, o artigo 3º do Decreto Legislativo Regional nº 26/94/A dispõe:

“1- A construção, ampliação, manutenção e gestão das vias públicas são da competência do Governo Regional, de acordo com a orgânica respectiva, no que toca às redes regional e florestal, e dos municípios, no que respeita à rede municipal.”

No caso em apreço, como já ficou dito, o Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A foi emitido ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 227º da CRP, ou seja, da competência legislativa para desenvolver as leis de bases em matérias não reservadas à Assembleia da República, invocando expressamente o artigo 7º da Lei nº 10/90[45].

Vejamos, então, em que medida é que a referida lei de bases[46] pode constituir parâmetro de legalidade do referido diploma regional.
4.2.1. A Lei nº 10/90 veio estabelecer as bases do Sistema de Transportes Terrestres, com vista a constituir o “enquadramento normativo e o ponto de partida para a reformulação do ordenamento legal e regulamentar dos transportes terrestres no País.”

Uma das linhas de força orientadoras reporta-se à “descentralização administrativa - ou seja, o equacionamento das soluções adoptadas, não só com a especificidade de modos de transporte, mas também com o âmbito espacial e político-administrativo em que se desenvolvam as operações de transporte (dando origem, designadamente, à diferenciação do tratamento dos transportes urbanos, locais, regionais e interurbanos). Esta óptica conjuga-se com a redefinição, em termos descentralizados, das atribuições, competências e responsabilidades das administrações central, regional e local e inspira-se no propósito de conseguir uma maior eficácia e aderência às necessidades concretas das populações”[47].
A matéria sobre que incide a Lei nº 10/90, em especial a do artigo 15º, não está reservada à “competência própria dos órgãos de soberania”.
Segundo alguma doutrina, fora deste âmbito as leis de bases só ganham importância prática autónoma quando qualificáveis como leis gerais da República, “uma vez que não existe qualquer impedimento ao exercício da competência legislativa primária”[48].

Esta orientação imporia averiguar se o diploma em causa consentiria ou não a qualificação como lei geral da República, sendo certo, como vimos, que o limite do poder legislativo regional no confronto com as leis gerais da República se cinge, actualmente, ao respeito pelos seus princípios fundamentais.

Além das referências nesse sentido já assinaladas e insertas na “Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 72/V”, decorre, expressamente de alguns preceitos[49], que se trata de um diploma cujo âmbito de aplicação abrange todo o território nacional[50].

É o que se passa como o artigo 1º, quando se refere a “todo o território português”[51], o artigo 3º, nº 4[52], ao falar em regiões autónomas, o artigo 9º, que faz uma referência expressa aos “órgãos de governo próprio das regiões autónomas”[53] e o artigo 35º que tem como epígrafe “Regulamentação da lei relativamente às regiões autónomas”[54].

No mesmo sentido aponta, explicitamente, a passagem da intervenção do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, aquando da apresentação da proposta de lei sobre Lei de Bases Transportes Terrestres[55]: “entendeu-se conveniente a referência a redes regionais, tendo já por objectivo as redes de estradas das regiões autónomas.”

Para além das referências, expressas, ao âmbito territorial de aplicação, existem preceitos desta lei donde é possível extrair princípios que revelam, no contexto próprio do diploma, uma opção legislativa fundamental na matéria aplicável a todo o território nacional.

Encontram-se nesta situação, por exemplo, o que se extrai do artigo 1º quanto aos princípios gerais de organização e funcionamento do sistema de transportes terrestres; do artigo 4º, sobre a instituição de uma contabilidade no sector; do artigo 5º, que se refere à harmonização fiscal; do artigo 6º; quanto ao financiamento dos transportes em meio urbano; e, ainda, do artigo 13º, quando se define que a “organização e exploração dos transportes na rede ferroviária constitui um serviço público”.

Nos casos em que uma lei de bases seja ao mesmo tempo qualificável como lei geral da República, ela traduzirá, para o decreto legislativo regional, a necessidade de uma vinculação acrescida.

Com efeito, enquanto uma lei geral da República pura e simples deve ser respeitada em termos de compatibilidade, não podendo os decretos legislativos regionais dispor contra ela, uma lei de bases qualificada simultaneamente como lei geral da República tem de ser respeitada em termos de conformidade[56].
Esta orientação doutrinária sobre a relevância das leis de bases em matéria não reservada é, porém, objecto de crítica por parte da doutrina maioritária, já que a mesma acaba por reduzir ou converter as leis gerais da República em actos legislativos equiparados às leis de bases[57].

Observe-se, no entanto, que a resolução do caso em apreço não exige uma tomada de posição quanto ao problema de saber se a legalidade do diploma regional deve aferir-se em função da sua conformidade com as bases, na sua integralidade ou apenas em função do respeito por “princípio fundamentais.“

Com efeito, como quer que seja, afigura-se-nos poder desde já avançar-se que o diploma regional em apreciação não enferma de qualquer ilegalidade.

Se não vejamos.


4.2.2. A resolução das questões que constituem objecto do parecer exige que nos situemos no artigo 15º da Lei nº 10/90 com vista a tentar captar se dele decorrem directivas materiais com as quais o poder legislativo regional se deva conformar ou princípios fundamentais que deva respeitar.

Mais concretamente, o problema de ilegalidade, a resolver, pressupõe que possa retirar-se do mencionado preceito um princípio ou uma directiva no sentido de uma reserva de construção e exploração, através da figura da concessão, restrita às auto-estradas e grandes obras de arte integradas na rede de estradas nacionais.

Dito por outras palavras: o artigo 15º consentirá uma interpretação no sentido de que a construção e exploração, em regime de concessão, diga respeito exclusivamente a auto-estradas e grandes obras de arte, nomeadamente pontes e túneis, integradas na rede de estradas nacionais?

Se assim fosse, as Regiões Autónomas ficariam impossibilitadas de construir e explorar, em regime de concessão, as vias sob a sua jurisdição.

Considerando o contrato de concessão como modelo privilegiado de construção e exploração de infra-estruturas, incluindo rodoviárias, como melhor será analisado adiante, tal significaria privar as regiões do poder de lançar mão deste instrumento jurídico para a concretização de investimentos avultados que só são possíveis através de parcerias entre capitais privados e públicos.

O artigo 15º tem como objectivo traçar as regras básicas quanto à construção, conservação e exploração de infra-estruturas.

Neste sentido, nos nºs 1 e 2 estabelece-se uma repartição de competências entre a administração central, regional e local quanto à construção, conservação e exploração respectivamente, das estradas nacionais, regionais e municipais.

O nº 2 é claro quando comete à competência das regiões “a construção, conservação e exploração das redes viárias regionais.”

Em primeiro lugar, esta disposição normativa funciona mais como norma remissiva ou atributiva de competência[58] do que propriamente como parâmetro material condicionador de ulteriores desenvolvimentos legislativos.

Por outro lado, a referência expressa à “exploração” só pode querer significar que as regiões, além de assumirem a construção e conservação das redes viárias, serão também responsáveis pela sua gestão.

De seguida, o legislador passa a estabelecer algumas regras quanto à exploração das vias nacionais[59], mormente quando revistam as características técnicas de auto-estrada e de grandes obras de arte.

Com efeito, o nº 3 do artigo 15º forma uma unidade de sentido com os restantes nºs 4, 5, e 7, todos eles dirigidos à construção e exploração da rede de estradas nacionais.

Unidade de sentido que é evidenciada pelo facto de nos preceitos contidos nos nºs 3, 4, 5, e 7, se utilizar o adjectivo “nacional”, a referência à “administração central” ou à “rede nacional de estradas.”

Assim sendo, e em primeiro lugar, a interpretação imediata e directa do preceito vai no sentido de que as auto-estradas e as grandes obras de arte, nomeadamente pontes e túneis, integradas na rede de estradas nacionais[60], possam ser objecto de construção e exploração através de concessão.

Esta é a interpretação que resulta claramente da letra do preceito, sendo que o intérprete está vinculado a presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cfr. nº 3 do artigo 9º do Código Civil).

Outra interpretação no sentido de retirar do preceito qualquer princípio destinado a restringir os poderes legislativos autonómicos, no que concerne à decisão gestionária da rede viária da sua responsabilidade, não tem qualquer acolhimento na letra do preceito.

Conclui-se, em primeiro lugar, não ser possível retirar dos nºs 3, 4, 5, e 7 do artigo 15º, quaisquer limites ou condicionamentos aos poderes legislativos regionais, em matéria de construção e exploração das vias sob a sua jurisdição, até porque tais preceitos, pura e simplesmente, não se lhes dirigem.

Retomando a análise do artigo 15º da Lei nº 10/90, resta apreciar o sentido e alcance dos nºs. 6 e 8.

Estes preceitos têm em comum, desde logo, o facto de não se dirigirem expressamente à administração central como acontecia com os anteriores.

Por outro lado, as normas em causa sugerem exprimir uma opção legislativa fundamental, no que concerne ao regime a adoptar na construção, conservação e exploração de auto-estradas e grandes obras de arte.

A opção fundamental traduz-se em permitir, nesta matéria, o recurso à concessão, em regime de portagem, desde que o respectivo regime conste de legislação especial.

Afigura-se ser intenção do legislador subtrair de algum modo esta matéria à intervenção do poder administrativo, quer de forma casuística através de acto individual e concreto quer por meio de instrumentos normativos de natureza regulamentar, relegando-a para o plano legislativo.

Assim sendo, o Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A ao estabelecer o regime de realização do concurso com vista à concessão, através portagens SCUT, de troços rodoviários na Ilha de São Miguel, satisfaz, em princípio, a exigência dos mencionados preceitos.

Acresce que segundo este modo de ver as coisas, o mencionado diploma não teria que assumir-se, por conseguinte, como diploma complementar ou de desenvolvimento da Lei nº 10/90[61].


4.2.3. Por tudo quanto se expõe, afigura-se legítimo concluir que, em matéria de infra-estruturas rodoviárias, incluindo a construção, a conservação e a exploração do sistema viário, a Assembleia Legislativa Regional goza de competência legislativa primária apenas condicionada aos limites que decorrem da necessidade de conformação às normas e princípios constitucionais e, em especial, aos direitos, liberdades e garantias[62], e ao respeito por princípios fundamentais das leis gerais da República.

Decorre da interpretação conjugada dos nºs 6 e 8 do artigo 15º da Lei nº 10/90 que o regime de concessão, mediante portagens, da construção, conservação e exploração de auto–estradas ou grandes obras de arte, incluindo outros troços viários principais[63], há-de constar de diploma com força de acto legislativo.

Em tudo o mais, caberá aos órgãos do poder político regional a opção sobre a existência ou não de portagens, a definição do suporte financeiro para a construção ou conservação de vias rodoviárias através do orçamento ou de taxas pagas pelos utentes, uma vez que se trata de “uma questão de especial sensibilidade política”[64].

Entender de outro modo, seria impor aos poderes regionais o modelo de gestão do sistema rodoviário regional, limitando de forma excessiva a competência legislativa da Assembleia Legislativa Regional e os poderes de decisão do governo regional nesta matéria.

Em última análise, seria interferir na “gestão política da política rodoviária”[65] que a Constituição, o Estatuto Político-Regional dos Açores e a Lei nº 10/90 (nº 2 do artigo 15º) cometem aos órgãos do poder regional.

Assim sendo, afigura-se que o diploma regional em apreciação não merece qualquer censura já que ele visa precisamente estabelecer o regime especial a que se refere o nº 8 do artigo 15º.

IV

1. A par das ilegalidades susceptíveis de serem reconduzidas ao núcleo acabado de apreciar, a informação do Auditor Jurídico aponta ainda outra espécie de ilegalidades que já não são exclusivas do diploma regional, pois estendem-se também ao Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro.

Este diploma veio estabelecer o regime de realização de concursos públicos internacionais para a concessão da concepção, construção e exploração, em regime de portagem (sem cobrança aos utilizadores – SCUT), de lanços de auto-estradas da rede rodoviária nacional.

Ao introduzir o sistema SCUT estaria a violar o nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90, dado este preceito referir que “as estradas e as grandes obras de arte construídas por concessão serão exploradas em regime de portagem.”

Tal ilegalidade seria extensível ao Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, que veio estabelecer o regime de realização do concurso com vista à concessão de obra pública, precisamente em regime de portagem SCUT de troços rodoviários na Ilha de São Miguel.

A questão agora colocada já não se reporta propriamente a um problema de competências. O que importa averiguar é se o legislador quando fala em “concessão em regime de portagens” afasta a possibilidade de “concessão em regime de portagem SCUT.”


2. A resposta a esta questão exige um excurso, ainda que breve, sobre a figura da concessão.

Na definição clássica de concessão, expressão mais típica da gestão privada delegada de serviços públicos, é concebida como um contrato de direito público, mediante o qual o Estado confere temporariamente, a uma entidade privada, os poderes bastantes para explorar um serviço público, sob fiscalização do concedente, durante o prazo estipulado, incluindo os investimentos necessários para a sua manutenção[66].

A entidade concessionária actuará por sua conta e risco, como se fora o concedente, sendo remunerada por meio de taxas[67] ou tarifas a pagar pelos utentes ou consumidores do respectivo serviço público[68] [69].

A concessão pode ter por objecto a construção e exploração de uma obra pública, o que a aproxima da empreitada de obra pública. Isto é: o particular executa a obra tal como na empreitada mas, de seguida, efectua a sua gestão durante um certo prazo, findo o qual devolve a obra à Administração.

É, por conseguinte, essencialmente na fase de execução da obra que a concessão se aproxima da empreitada mas as duas figuras não se confundem. Além das especialidades relativas à fase da exploração, a concessão distingue-se da empreitada logo na fase da construção, na medida em que o concessionário actua como dono da obra, em vez da Administração, ao passo que, na empreitada, o particular tem de ser um empreiteiro de obras públicas que é um mero “conductor operis, que limita a sua actuação à mera execução material de uma prestação”[70].

Segundo a concepção tradicional, de origem francesa, constitui elemento essencial da figura a remuneração do concessionário através de taxas cobradas aos utentes[71], critério em geral apontado para distinguir a concessão de obras públicas do contrato de empreitada de obras públicas.

O contrato de concessão de obras públicas, refere o Supremo Tribunal Administrativo, “é distinto do contrato de empreitada de obra pública, pois que, enquanto no contrato de empreitada o particular se encarrega de executar uma obra, mediante retribuição a pagar pela Administração, na “concessão de obras públicas”, o particular obriga-se a executar e explorar uma obra pública, mediante retribuição a obter directamente dos utentes, através do pagamento por estes de taxas de utilização”[72].

Em relação à concessão de serviço público, existem várias referências legais que a diversos títulos se referem à concessão, como forma de gestão de um serviço público, mas não existe propriamente uma definição legal da figura.

Por outro lado, verifica-se que o instituto tem atravessado várias crises que muito têm contribuído para lhe introduzir transformações com reflexos sobretudo ao nível da determinação ou fixação dos caracteres que devem desempenhar um papel essencial ou meramente secundário na sua identificação[73].

As maiores discussões doutrinárias que actualmente a figura concita localizam-se precisamente ao nível da autonomização dos traços que devem permitir distinguir a concessão (de obra ou serviço público) de outros tipos contratuais próximos, associados à prestação ou gestão de serviços públicos.
Por razões de vária ordem que não vem ao caso desenvolver, a definição clássica de concessão, sobretudo francesa, construída com base no critério da contraprestação pecuniária (“perception de redevances”), tem sido objecto de críticas severas[74], sobretudo no que respeita aos elementos da figura que mais têm sentido a pressão evolutiva: referimo-nos aos da remuneração e risco do concessionário.

Assim, no direito francês, onde o Conselho de Estado e a doutrina maioritária têm continuado a defender a remuneração pelos utentes como elemento essencial da concessão[75], não faltam autores a questionar se a percepção de taxas deve continuar a constituir o modo exclusivo de remuneração do co-contratante ou se, pelo contrário, tal forma de remuneração pode coexistir com outras modalidades[76].

Na verdade, na prática proliferam situações em que esta forma de remuneração não é exclusiva, sendo complementada através de receitas derivadas, por exemplo, da publicidade ou da exploração de actividades conexas ao serviço concessionado.

Segundo a orientação tradicional, já se admitia que “o direito dado ao concessionário de cobrar taxas, segundo as tarifas que forem fixadas, não é o único elemento financeiro nas relações entre concedente e concessionário. Pode, na verdade, a insuficiência dos preços ser suprida pela assistência do concedente,” a qual podia ser traduzida em subvenções, subsídios e garantias de rendimento[77].

Alguns autores vão mesmo mais longe ao ponto de se observar que o elemento constitutivo essencial da concessão reside na transferência global do serviço público da Administração para a esfera do particular, relegando a forma de remuneração para critério acessório[78].

Questiona-se, por outro lado, se o complemento da remuneração proporcionada pelo utente pode consistir num preço pago pela Administração ou mesmo se é possível conceber a concessão sem prestações pecuniárias pagas pelos utentes[79] [80].

Por outro lado, decorre da própria natureza da concessão, que é antes de mais um modo de gestão de serviços públicos, a sua não submissão a uma estrita lógica económica. A extensão da técnica concessória a domínios de gestão de serviços públicos que se sabe de antemão não serem rentáveis, tem contribuído para a erosão da regra da gestão do serviço por conta e risco exclusivo do concessionário[81].

As técnicas utilizadas são muito variadas e vão desde a previsão de empréstimos, subvenções, não faltando hoje exemplos de concessões em que o concedente aparece a suportar os eventuais “déficits” da exploração[82].

No direito português, segundo PEDRO GONÇALVES[83], não existe “nenhum princípio ou norma jurídica que impeça de qualificar como concessão de serviço público o acto que ‘concede’ a uma entidade o ‘direito de gerir um serviço público’ e que estabelece como contrapartida do gestor uma remuneração suportada exclusivamente pelo concedente.”

Segundo o mesmo autor, “aceitando-se que a remuneração do concessionário pode consistir exclusivamente numa retribuição a cargo do concedente, excluiu-se também que a concessão pressuponha a assunção de um risco económico-financeiro por parte do concessionário”[84].

Em regra, os critérios da remuneração e da assunção do risco económico continuam a ser elementos normais e até frequentemente utilizados para a caracterização das concessões de serviços públicos existentes mas deixaram de ser apontados como elementos essenciais do conceito.

No que respeita em particular à concessão de obra pública, segundo a definição legal, que sofre já as influências do direito comunitário, trata-se de um contrato administrativo com as características de uma empreitada de obras públicas que tem como contrapartida o direito de exploração da obra, acompanhado ou não do pagamento de um preço[85].

No direito comunitário, essencialmente depois da posição assumida pela Comissão da Comunidade Europeia, na sua Comunicação de 12 de Abril de 2000[86] [87], os autores apontam para uma “concepção comunitária” da concessão, cujo critério basilar assenta na transferência da responsabilidade de exploração para o operador económico.

Chamada a distinguir os contratos públicos (de empreitadas, serviços e de fornecimentos) das concessões (de obra ou de serviço), a Comissão estabeleceu como critério identificador da concessão “a transferência da responsabilidade de exploração, que engloba os aspectos técnicos, financeiros e de gestão da obra” ou seja, numa concessão os riscos e “imprevistos inerentes à exploração são transferidos para o concessionário.”

Como referem PEDRO GONÇALVES/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, “sem álea económico-financeira, sem risco, não há, portanto, na perspectiva da Comissão, contrato de concessão - há sim, mero contrato público”[88].

A remuneração do concessionário, que se admite poder consistir em parte num preço pago pela Administração, aparece, na referida comunicação, apenas como um índice e não como critério da natureza do contrato.
3. Numa época em que a concessão parecia ter esgotado as suas virtualidades[89], assiste-se ao seu reaparecimento através do uso generalizado do denominado sistema de “Shadow tolls”[90], “péages virtuels” (“péages publics” ou “péages fictifs”), traduzido em português por sistema de portagens virtuais.

O seu êxito deve-se ao facto de se assumir como técnica privilegiada, no âmbito de parcerias públicas e privadas, permitindo conciliar as vantagens da técnica concessória com o financiamento público.

Vimos que na concessão tradicional faz-se recair sobre o utilizador o financiamento da obra ou do serviço, o qual nem sempre encara bem a situação dado que além de utilizador ele é também contribuinte.

Por outro lado, verifica-se não raro existirem projectos que não são economicamente rentáveis e apetecíveis ao investimento privado mas não deixam de ser socialmente necessários. Muitas vezes, os governos vêem-se confrontados com a necessidade de fazer investimentos que têm de ser gratuitos para os utentes.

Acresce que, no contexto do Mercado Único, os constrangimentos colocados pela necessidade de redução das despesas públicas, associados à necessidade de desenvolver as infra-–estruturas[91] destinadas a sustentar o desenvolvimento económico, explicam o florescimento desta técnica.

Com efeito, ela aparece como um expediente de obtenção do financiamento de ambiciosos programas de infra-estruturas sem onerar, de forma imediata, o orçamento das colectividades públicas com o financiamento[92] de projectos que, além de onerosos, envolvem risco económico.

Do ponto de vista financeiro, um projecto de construção de uma infra-estrutura segundo o sistema de “shadow tolls” consiste em fazer impender, sobre um operador privado, a construção e/ou a exploração, por sua conta e risco, de uma infra-estrutura ou obra pública, cujo custo é impossível de ser suportado pelos utilizadores através do pagamento de portagens[93].

Uma das principais vantagens reside, desta forma, em permitir a concretização de grandes projectos sem custos para o utilizador, ao mesmo tempo que contribui para desonerar o orçamento das colectividades públicas dos riscos da construção e ou da exploração.

Esta constitui seguramente uma das razões pelas quais se tem assistido ao longo da última década ao desenvolvimento sem precedentes da técnica concessória nos países europeus, em particular na Alemanha e Reino Unido.

Também nos Estados-Unidos, país em geral pouco receptivo à utilização da concessão, perante a incapacidade de resposta das técnicas tradicionais de financiamento de infra-estruturas, segundo o ritmo necessário ao desenvolvimento, dados os constrangimentos orçamentais das colectividades, assiste-se à adesão crescente ao recurso a parcerias públicas e privadas[94].


3.1. Pronunciando-se sobre a natureza jurídica dos contratos de «shadow tolls», a doutrina continua a reportá-los à figura clássica da concessão.

Segundo DIDIER LINOTTE/BRUNO CANTIER, um contrato de “shadow tolls” constitui uma variante da concessão, pois através dele “uma entidade pública confia a um operador o encargo de realizar e/ou explorar, por sua conta e risco, uma obra pública, remunerando-se através do produto da exploração da mesma (...)”[95].

O contrato de “shadow tolls” distingue-se todavia da figura clássica da concessão pela origem da remuneração do concessionário.

Com efeito, neste caso, o operador tem direito a receber portagens pela utilização da infra-estrutura, em função do volume de tráfico devidamente registado e contado mas, ao invés do que acontece na concessão tradicional, essas portagens não são pagas directamente pelo utilizador mas sim pelo concedente (Administração)[96]. Ou seja, o financiamento continua a ser assegurado por “redevances” devidas pelos utilizadores mas é a Administração que aparece a pagá-las por conta daqueles.

Atendendo à forma de remuneração o contrato de “shadow tolls” aproximar-se-ia, desta forma e numa primeira análise, mais dos “marchés publics”[97] característicos do direito francês.

Acontece porém que, do ponto de vista económico, um contrato baseado em “portagens virtuais” situa-se antes numa lógica de concessão, em virtude do risco financeiro assumido pelo concessionário.

Na verdade, o concessionário vai ser remunerado do capital investido com base em cálculos de volumes de tráfego que são meramente previsíveis e, por conseguinte, incertos. Pode dizer-se que a remuneração não se encontra, no caso, garantida, pois não lhe é dada qualquer certeza quanto à frequência ou grau de utilização das infra-estruturas edificadas.

Podemos dizer que o operador económico, tal como o concessionário clássico, continua a assumir integramente os riscos económicos de exploração da obra que ele construiu e financiou, o que não se verifica no caso da empreitada de obra pública.

Mantém-se, desta forma, um dos traços característicos da concessão, o risco económico e financeiro de exploração da obra que o operador construiu e financiou, e que permite distingui-la, no direito francês, dos denominados “marché d’entreprise de travaux publics”[98] [99].
Em suma, podemos dizer que os autores convergem no sentido de que a natureza concessória do contrato com portagens virtuais tem apoio na definição de concessão que vigora no direito europeu mormente depois da tomada de posição da Comissão sobre a definição de concessão e está a ser seguida pelo Tribunal de Justiça[100] das Comunidades europeias[101] [102].


3.2. As denominadas concessões SCUT, instrumentos contratuais que têm por objecto “a concepção, construção, conservação e exploração de lanços de auto-estrada em regime de portagem sem cobrança aos utilizadores foram, como já foi dito, introduzidos em Portugal pelo Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro.

Da análise dos Contratos de concessão em regime de portagens SCUT resulta que a exploração da obra construída fica a cargo do concessionário que, além de ter direito a colher todos os benefícios obtidos no âmbito da referida exploração, arrecada ainda as importâncias das portagens SCUT devidas em função dos valores de tráfego registados, embora não directamente dos utilizadores mas sim da Administração[103].
O facto de o concessionário não ser remunerado por meio de taxas cobradas aos utentes não impede o legislador de ver aí expressão da figura de concessão de obra pública[104].

Com efeito, apesar de não serem cobradas taxas de utilização aos utentes, mantém-se o regime de exploração pelo concessionário, elemento que constitui, no momento actual de evolução da concessão, o traço distintivo específico desta figura contratual, como ficou dito.

Afigura-se, desta forma, perfeitamente plausível admitir que a expressão “regime de portagem” quando associado ao “contrato de concessão,” nos termos do disposto no nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90, deve entender-se em sentido amplo de forma a abranger tanto o regime tradicional de portagens pagas pelos utentes como o regime de portagens SCUT.

Na actividade interpretativa “o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris”, sendo certo que a fórmula normativa, objectivada no texto, deve ser captada não num sentido estático e petrificado mas sim evolutivo, de forma a acompanhar o ritmo da vida de acordo com as mudanças técnicas, as necessidades e as concepções sociais e, bem assim, as novas concepções jurídicas.

Só desta forma é possível adaptar a lei às reclamações da justiça e às necessidades da prática e realizar, no quadro da lei, a tão famosa e ansiada “equação entre o direito e a vida”[105].

3.2.1. Uma nota final a propósito da legalidade do Decreto-Lei nº 267/97.

Como a Lei nº 10/90 versa matéria não reservada à Assembleia da República, seria sempre de questionar o valor paramétrico da mesma no caso em apreço.

Com efeito, a tese da superioridade geral[106] (quer em matéria reservada quer concorrente) das leis de bases perante os decretos-leis tem merecido, nas palavras de GOMES CANOTILHO, “séria contestação na doutrina[107]. Por um lado, ela violaria o princípio da tipicidade de competências, pois ‘expropriaria’ ao Governo uma competência concorrencial e acrescentaria uma reserva geral a favor da AR. Por outro lado, a interpretação contrária acaba numa articulação não razoável das normas dos arts. 198º/1/a e 198º/c: esta última seria uma norma restritiva da competência concorrencial fixada na primeira.Consequentemente, a alínea c) do art. 198º/1 não implica qualquer restrição à competência legislativa do Governo, podendo as as leis de bases em matéria concorrencial ser modificadas ou revogadas por decretos-leis (desde que não sejam eles próprios decretos-leis de desenvolvimento”[108].

Assim sendo, mesmo que não fosse de acolher a interpretação a que se chegou para o nº 6 do artigo 15º da Lei nº 10/90 do Decreto-–Lei nº 267/97, também por esta via haveria de concluir-se pela legalidade deste diploma.
V

Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1ª. A matéria relativa a “vias de circulação, trânsito e transportes terrestres,” incluindo a construção, conservação e exploração do sistema viário regional, constitui assunto de interesse específico para a Região Autónoma dos Açores e sobre a qual pode incidir o poder normativo regional;

2ª. Trata-se de matéria em relação à qual a Assembleia Legislativa Regional goza, nos termos do disposto nos artigos 227º, alínea a), e 228º, alínea h), da CRP, artigo 8º, alínea h), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e nº 2 do artigo 15º da Lei nº 10/90, de 17 de Março ( Lei de Bases do Sistema de Transportes Terrestres), de competência legislativa primária, condicionada aos limites que decorrem da necessidade de conformação às normas e princípios constitucionais, em especial no que se refere às competências reservadas aos órgãos de soberania, aos direitos, liberdades e garantias, e ao respeito por princípios fundamentais das leis gerais da República;

3ª. O regime de concessão, mediante portagens, da construção, conservação e exploração de auto–estradas ou grandes obras de arte, incluindo outros troços viários principais, há-de constar de acto legislativo, em resultado da interpretação conjugada dos nºs 6 e 8 do artigo 15º da Lei nº 10/90;

4ª. O Decreto Legislativo Regional nº 25/2001/A, de 31 de Dezembro, ao estabelecer o regime de realização do concurso com vista à concessão, através de portagens SCUT, de troços rodoviários na Ilha de São Miguel, satisfaz o exigido na conclusão anterior;

5ª. As denominadas concessões SCUT, instrumentos contratuais que têm por objecto “a concepção, construção, conservação e exploração de lanços de auto-estradas em regime de portagem, sem cobrança aos utilizadores, não deixam de ser expressão da figura de concessão de obra pública, uma vez que se mantém o sistema de exploração da obra pelo concessionário, elemento que constitui, no momento actual da sua evolução, o traço distintivo específico desta figura contratual;

6ª. Atento o mencionado na conclusão anterior, quando o artigo 15º, nº 6, da Lei nº 10/90 fala em concessão em “regime de portagem” deve entender-se esta expressão em sentido amplo de forma a abranger tanto o regime tradicional de portagens pagas pelos utentes como o de portagens SCUT;

7ª. Em face das conclusões anteriores, o Decreto-Legislativo Regional nº 25/2001/A e, bem assim, o Decreto-Lei nº 267/97, de 2 de Outubro, não enfermam de ilegalidade.





[1]) O preâmbulo refere o nº 7 do artigo 15º mas, tendo em conta o conteúdo que atribui ao preceito, só pode querer significar o actual nº 8.
[2]) Cfr. alínea c) do artigo 227º da CRP e alínea e) do nº 1 do artigo 31º do Estatuto Político-–Administrativo da Região Autónoma dos Açores.
[3]) Alterada pela Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril.
[4]) O regime político-administrativo das Regiões Autónomas funda-se “nos condicionalismos geográficos, económicos e sociais e nas históricas aspirações autonomistas das populações,” cfr. artigo 227º da CRP (versão originária). Para maiores desenvolvimentos, cfr. RUI MEDEIROS/PEREIRA DA SILVA, Estatuto Político–Administrativo da Região Autónoma dos Açores Anotado, Principia, Lisboa, 1997, pp. 11 ss. Sobre a autonomia regional, cfr. o Parecer nº 140/2001, de 14 de Março de 2002.
[5]) O artigo 229º, sob a epígrafe “Poderes das regiões autónomas,” tinha o seguinte conteúdo: “1. As regiões autónomas são pessoas colectivas de direito público e têm as seguintes atribuições, a definir nos respectivos estatutos: a) Legislar, com respeito da Constituição e das leis gerais da República, em matérias de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania.” Estava vedado igualmente às regiões, no artigo 230º, restringir os direitos legalmente reconhecidos aos trabalhadores, estabelecer restrições ao trânsito de pessoas e bens entre elas e o restante território nacional, bem como reservar o exercício de qualquer profissão ou acesso a qualquer cargo público aos naturais ou residentes na região.
[6]) Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, pp. 803 ss. Sobre conceito “interesse específico”, cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1993, pp. 853 ss.; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, Tomo V, pp. 395 ss.; ANTÓNIO VITORINO, “Os poderes legislativos das Regiões Autónomas na segunda revisão constitucional,” Legislação, INA, nº 3, 1992, pp. 25 ss.; PAULO OTERO, “A competência Legislativa das Regiões Autónomas”, Revista Jurídica, nº 8, 1986, pp. 149 ss.; PEREIRA DA SILVA, “O conceito de interesse específico e os poderes legislativos regionais,” Estudos de Direito Regional, Lex, Lisboa, 1997, pp. 310 ss.
[7]) Cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 57/85, Diário da República, I Série nº 84, de 11 de Abril de 1985, 164/86, Diário da República, I Série nº 130 de 7 de Junho de 1986, 82/86, Diário da República, I Série nº 76, de 2 de Abril de 1986, 212/92, Diário da República, I Série - A, de 21 de Julho de 1992, 151/93, Diário da República, I Série - A, nº 72, de 26 de Março de 1993 e 431/94, Diário da República, I Série-A, de 21 de Junho de 1994 (todos com vasta remissão para jurisprudência anterior, no mesmo sentido).
[8]) Na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual, ob. cit., p. 396, define o interesse específico “a partir de três vectores determinados: a exclusividade, a especialidade de matérias, a intensidade de relevância.” Para ANTÓNIO VITORINO, ob. cit., p. 29, “indicadores seguros da existência de um tal ‘interesse específico’ serão não só a singularidade da matéria em causa, indiciadora de uma exclusividade específica da região (v.g. a colonia na Madeira), mas também a existência nessa região, com especial intensidade, de problemas específicos da regulação de um determinado domínio de matérias, especial intensidade essa que fundamenta o seu tratamento em termos distintos dos aplicáveis ao restante território nacional, em função da importância que tal domínio de matérias reveste na região.”
[9]) Para além dos apontados, JORGE MIRANDA, “O Interesse específico das Regiões Autónomas,” Estudos de Direito Regional, Lex, Lisboa, 1997, pp. 42 ss., salienta, como já foi adiantado, um terceiro vector definidor do interesse específico, de natureza quantitativa e não qualitativa. Na verdade, “mesmo sem especialidade, pode encontrar- -se um grau maior de relevância de certa matéria no tocante às regiões ou a uma região que determine um interesse específico; não já diversidade, mas intensidade de matéria na região; não já particularidade deste ou daquele assunto, mas maior necessidade de intervenção legislativa em face da importância regional que ele assume.” Do mesmo autor, cfr. Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, pp. 324 ss.
[10] ) Cfr. Parecer nº 63/82, de 22 de Julho de 1982. Sobre o interesse específico, cfr., entre outros, pareceres nºs 127/84, de 28 de Janeiro de 1988;162/84, de 27 de Abril de 1984, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 341, pp. 37 ss.; nºs 68/87, Diário da República, II Série, de 23 de Setembro de 1988, 17/98, de 2 de Dezembro de 1998, 9/96, Diário da República, II Série, nº 277, de 29 de Novembro de 1996.
[11]) Cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pp. 853/54 e a jurisprudência aí citada.
[12]) Ver, neste sentido, os acórdãos do Tribunal Constitucional citados na nota (7).
[13]) Cfr. JOSÉ MAGALHÃES, Dicionário da Revisão Constitucional, Notícias Editorial, 1999, pp. 355/56.
[14]) Neste sentido, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA / JOSÉ ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, p. 362.
[15]) Cfr. Manual, ob. cit., pp. 399/400.
[16]) Cfr. ob. cit., p. 362.
[17]) Cfr. ob. cit., p. 172.
[18]) Segundo o autor, cfr. Direito Constitucional, ob. cit., p. 803, a novidade está em se fixar, desta forma, através de reserva da Constituição um conceito material de interesse específico.
[19]) Ibidem.
[20]) Para PAULO OTERO, “Relação entre decretos legislativos regionais e leis gerais da República,” Legislação, INA, nº 19/20, 1997, p. 128, “Sobre as matérias objecto de expressa menção no artigo 228º (...) cria-se, deste modo, uma reserva de competência legislativa sui generis a favor das regiões autónomas.”
[21]) No sentido de que “as matérias elencadas no artigo 228º da CRP só podem considerar-–se objecto de legislação regional, na medida em que respeitem exclusivamente à região, ou nela assumam especial configuração”, cfr. ALEXANDRE PINHEIRO/MÁRIO FERNANDES, Comentário à IV Revisão Constitucional, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1999, pp. 498 ss.
[22]) Cfr. “IV Revisão Constitucional, Diário da Assembleia da República”, nº 106, ob. cit., pp. 27 ss.
[23]) Cfr. “IV Revisão Constitucional, Diário da Assembleia da República,” nº 106, ob. cit., pp. 27 ss. No mesmo sentido, cfr. “IV Revisão Constitucional, Reunião nº 55 de 19 de Novembro de 1996”, pp. 22 ss. e “Dicionário de temas da IV Revisão Constitucional”, Dicionário da Revisão Constitucional, pp. 70 ss.
[24]) Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 408/98, Diário da República, II Série nº 283, de 9 de Dezembro de 1998.
[25]) Cfr. o Acórdão nº 473/2002, Diário da República, I Série-A, nº 292, de 18 de Dezembro de 2002.
[26]) Cfr. BLANCO DE MORAIS, “As Competências Legislativas das Regiões Autónomas no Contexto da Revisão Constitucional de 1997”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, Lisboa, 1997, p. 985.
[27]) Cfr. “Diário da Assembleia da República, nº 106, de 4 de Setembro de 1997”, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, p. 26.
[28]) Cfr. a alínea a) do nº 1 do artigo 229º e o artigo 112º, nº 4, da CRP, respectivamente.
[29]) Um bosquejo histórico sobre a densificação do conceito “lei geral da República” pode encontrar-se no Parecer nº 68/87. Pode ler-se aí que, na versão originária, a Constituição não formulava qualquer critério definidor desta categoria, o que concitou dificuldades interpretativas que dividiram a doutrina e a jurisprudência. O Estatuto dos Açores veio adiantar uma definição, ao dispor, no artigo 26º, nº 2, alínea a), serem leis gerais da República “aquelas cuja razão de ser envolva a sua aplicação, sem reservas, a todo o território nacional.” De seguida, a revisão constitucional de 1982 transpôs para o artigo 115º, nº 4, o mencionado preceito do Estatuto dos Açores. Sobre o conceito de leis gerais da República ver também os pareceres nºs 9/96,de 19 de Agosto de 1996, Diário da República, II Série, de 29 de Novembro de 1996 e 66/97, de 30 de Setembro de 1999.
[30]) Segundo PAULO OTERO, “Conceito de leis gerais da República”, Legislação, nº 19/20, INA, 1997, p. 123, “o conceito de leis gerais da República compreende três elementos: são as leis e os decretos–leis cuja razão de ser (elemento material) envolva a sua aplicação a todo o território nacional (elemento espacial) e que assim o decretem (elemento formal).”
[31]) O nº 4 do artigo 112º da CRP passou a ter o seguinte conteúdo: “Os decretos legislativos regionais versam matérias de interesse específico para as regiões e não reservadas à Assembleia da República ou ao Governo, não podendo dispor contra os princípios fundamentais das leis gerais da República, sem prejuízo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 227º.” Para maiores desenvolvimentos, cfr. JOSÉ MAGALHÃES, ob. cit., pp. 172 e 294 ; “IV Revisão Constitucional, Reunião nº 55 de 19 de Novembro de 1996”, ob. cit., pp. 31 ss. e RUI MEDEIROS/ PEREIRA DA SILVA, ob. cit., pp. 104 ss.
[32]) Foi neste sentido acolhida a tese desde cedo defendida por JORGE MIRANDA, cfr. “O interesse específico”, ob. cit., pp. 45 ss. BARBOSA DE MELO/CARDOSO DA COSTA/VIEIRA DE ANDRADE, Estudo e Projecto de Revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 266, já propunham a substituição da expressão “leis gerais” pela referência aos “princípios e normas fundamentais das leis da República”. Entretanto, o problema reside agora no preenchimento do conceito indeterminado presente na fórmula “princípios fundamentais”, já que a Constituição nada adianta sobre o seu conteúdo. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., p. 802, define-os como “aqueles princípios positivamente incorporados, de forma directa ou indirecta, nas leis e decretos-leis.” Para MARIA DA ASSUNÇÃO ESTEVES, “Os Princípios Fundamentais das Leis Gerais da República e os Poderes Legislativos das Regiões,” Estudos de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 51, “com a locução princípios fundamentais das leis gerais da República, a Constituição não quer significar princípios ou ideias que dirigem e esgotam o sentido de todo o conjunto das regras singulares nelas estabelecidas, nem mesmo quer significar princípios que sintetizam toda a fundamentalidade material dessas leis. A Constituição quer dizer, ali, princípios jurídicos como causa, critério e justificação da generalidade da lei, princípios que a fazem ser geral, princípios como ideia essencial do que é geral por conteúdo, em oposição a forma.” A questão não se afigura, porém, fácil de dilucidar como ponderam, entre outros, BLANCO DE MORAIS, “As Competências Legislativas das Regiões...”, ob cit., pp. 1012 ss., e, do mesmo autor, As Leis Reforçadas, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 295 ss.; MARIA LÚCIA AMARAL, “Relação entre decretos-legislativos regionais e leis gerais da República”, Legislação, INA, nº 19/20, 1997, pp. 109 ss. Ver também, acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 631/99 e 299/99 e Parecer nº 66/97.
[33]) Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., pp. 802 ss. e BLANCO DE MORAIS, “As competências legislativas das Regiões Autónomas...,” pp. 1026 ss.
[34]) Cfr. PEDRO MACHETE, “Elementos para o estudo das relações entre os actos legislativos do Estado e das Regiões Autónomas no quadro constitucional vigente”, Estudos de Direito Regional, Lex, Lisboa, 1997, p. 119.
[35]) Cfr. SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, pp. 202, nota (354).
[36]) Cfr. PEDRO MACHETE, ob. cit., p. 118.
[37]) Cfr. BARBOSA DE MELO/CARDOSO DA COSTA/VIEIRA DE ANDRADE, ob. cit., p. 265.
[38]) MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva da Lei, Universidade Católica, Porto, 1992, p. 463.
[39]) A Lei Constitucional de Revisão nº 1/89, aditou a alínea c) do nº 1 do artigo 229º da CRP, passando as assembleias regionais a ter competência para “desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g), n), v) e x) do nº 1 do artigo 168º.”
[40]) O artigo 227º da Constituição, referindo-se aos poderes das regiões autónomas, estabelece:
“1. As regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
a) Legislar, com respeito pelos princípios fundamentais das gerais da República, em matéria de interesse específico para as regiões que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania;
b) (...);
c) Desenvolver, em função do interesse específico das regiões, as leis de bases em matérias não reservadas à competência da Assembleia da República, bem como as previstas nas alíneas f), g), h), n), t) e u) do nº 1 do artigo 65º.”
[41]) Cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 666.
[42]) Que consta da Lei nº 39/80, de 5 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9/87, de 26 de Março, e Lei nº 61/98, de 27 de Agosto (que aprovou a segunda alteração ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores e procedeu à sua republicação integral).
[43]) O Decreto-Lei nº 222/98, de 17 de Julho (rectificado por Declaração de Rectificação nº 19-D/98, Diário da República, I Série-A, nº 252/98, 2ª Suplemento, e alterado por apreciação parlamentar através da Lei nº 98/99, de 26 de Julho de 1999), que veio redefinir o plano rodoviário nacional (PRN) e criar estradas regionais, estabelece no seu artigo 1º: “1- O plano rodoviário nacional define a rede rodoviária nacional do continente, que desempenha funções de interesse nacional ou internacional. 2- A rede rodoviária nacional é constituída pela rede nacional fundamental e pela rede nacional complementar.”
[44]) Nos termos do disposto no artigo 7º, nº 1, designam-se por Vias rápidas (VR) “as vias cuja principal finalidade é o escoamento rápido do tráfego entre os principais centros urbanos“. “Os itinerários classificados como VR devem ter, no mínimo, duas faixas de circulação em cada sentido, perfeitamente demarcadas, numa largura total de faixa de rodagem não inferior a 12m” ( nº 2 do artigo 7º). Às estradas regionais se refere o artigo 8º, dispondo que “são vias de interesse essencialmente económico que ligam as zonas mais importantes de cada ilha e formam as malhas fundamentais da rede de viação ordinária, estabelecendo a comunicação entre centros principais e destes com os principais portos, aeroportos e outros de especial interesse económico.”
[45]) Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 227º da CRP, os decretos legislativos regionais devem indicar expressamente as respectivas leis de bases.
[46]) As leis de bases são definidas como “leis consagradoras dos princípios vectores ou das bases gerais de um regime jurídico”, deixando a cargo do executivo o desenvolvimento desses princípios ou bases, cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., p. 746. Segundo o Tribunal Constitucional são leis que contêm a “fixação do travejamento do respectivo regime, a definição das ideias standards ou dos princípios gerais”, cfr., entre outros, o Acórdão nº 326/86, de 25 de Novembro de 1986. As leis de bases têm valor reforçado (artigo 112º, nº 3, da CRP) e os “decretos-leis e os decretos legislativos regionais de desenvolvimento têm, pela natureza das coisas, de se mover no âmbito preceptivo das bases”, cfr. o Parecer nº 74/2001, Diário da República, II Série, nº 265, de 15 de Novembro de 2001. As leis de bases em matéria de competência reservada aos órgãos de soberania constituem simultaneamente uma directiva material e um limite de competência, ao passo que em matéria não reservada são meras directivas materiais com valor reforçado. Assim se compreende que o vício resultante da violação do parâmetro constituído pelas leis de bases seja diferente. No primeiro caso existe violação directa da Constituição (inconstitucionalidade); no segundo infringe-se a regra constitucional da subordinação dos decretos-leis de desenvolvimento às leis de bases (artigo 112º, nº 2, da CRP) mas não se viola directamente qualquer norma constitucional e daí falar-se em vício de ilegalidade. Sobre o tema, cfr. JORGE MIRANDA, Funções, órgãos e actos do Estado, ob. cit., pp. 292 ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., pp. 749 ss. e o Parecer nº 68/97. Sobre a problemática das leis com valor reforçado cfr., entre outros, os pareceres nºs 71/2002, e 75/2002, de 14 de Agosto e 26 de Setembro de 2002, respectivamente e, na doutrina, ver por todos, BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, ob. cit., pp. 646 ss.
[47]) Cfr. Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 72/V, Diário da República, II Série nº 103 de 14 de Outubro de 1988.
[48]) Cfr. PEDRO MACHETE, ob. cit., p. 129.
[49]) Para além de no procedimento legislativo terem sido ouvidos os órgãos de governo das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
[50]) A Constituição contém uma disposição transitória (artigo 193º) segundo a qual o estabelecido na parte final do artigo 112º, nº 4, apenas se aplica às leis e decretos-leis aprovados após a sua entrada em vigor. Assim sendo, a identificação das leis gerais da República anteriores terá de continuar a ser feita exclusivamente com base em critérios materiais.
[51]) O artigo 1º tem o seguinte conteúdo: “O sistema de transportes terrestres compreende as infra-estruturas e os factores afectos às deslocações por via terrestre de pessoas e de mercadorias no âmbito do território português ou que nele tenham término ou parte do percurso e rege-se pela presente lei, seus decretos-leis de desenvolvimento e regulamentos.”
[52]) No nº 4, alínea b), pode ler-se: “Transportes regionais, os transportes interurbanos que se realizem no interior de uma dada região, designadamente de uma região autónoma.”
[53]) O preceito, sob a epígrafe “Medidas de emergência”, tem o seguinte conteúdo: “O Governo e os órgãos de governo próprio das regiões autónomas poderão, no âmbito das respectivas competências, promover, garantir, requisitar, proibir, suspender ou limitar, total ou parcialmente, pelo período de tempo estritamente necessário, a realização de certos tipos de serviços de transporte objecto da presente lei quando o justifiquem graves motivos de ordem e saúde públicas, segurança da circulação, preservação do ambiente, abastecimento de energia ou outros interesses públicos.”
[54]) O preceito diz o seguinte: “A regulamentação prevista nesta lei terá em conta as situações específicas já existentes nas regiões autónomas.”
[55]) Diário da Assembleia da República, I Série, nº 21, de 21 de Dezembro de 1988, p. 761.
[56]) Cfr. PEDRO MACHETE, ob. cit., p. 130.
[57]) Cfr., entre outros, BLANCO DE MORAIS, “As Competências Legislativas das Regiões Autónomas,” ob. cit., pp. 1012 ss. Também, no sentido da distinção entre poder legislativo regional de desenvolvimento de leis de bases e poder legislativo densificador de leis gerais da República, em matéria de interesse específico, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ob. cit., p. 805.
[58]) Em consonância, aliás, com o disposto na alínea h) do artigo 228º da CRP e alínea h) do artigo 8º do Estatuto dos Açores.
[59]) No fundo, nos nºs 3, 4 e 5 do artigo 15º, o legislador está a estabelecer directrizes quanto às vias cuja construção e exploração será feita directamente pela Administração central e aquelas que podem ser objecto de concessão.
[60]) Repare-se que, segundo o nº 7 do mesmo preceito, o regime de concessão pode estender-se a outros troços de itinerários principais ou complementares da rede nacional de estradas.
[61] ) O que realmente acontece, pois não se vislumbra sustentável defender que o diploma regional tem uma função de desenvolvimento da Lei nº 10/90.
[62]) Por exemplo, o direito à liberdade de circulação pode ser afectado pela construção e exploração de estradas com portagem quando não seja oferecida aos utentes outra alternativa.
[63]) Será de aplicar às regiões, eventualmente por analogia e com as devidas adaptações, a extensão do regime de concessão a “outros troços de itinerários principais ou complementares”, prevista no nº 7 do artigo 15º para a rede nacional de estradas.
[64]) Cfr. GOMES CANOTILHO, “Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/98,” ob. cit., pp. 90 ss.
[65]) Palavras usadas por GOMES CANOTILHO, “Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 24/98”, ob. cit., p. 92.
[66]) A técnica concessória, que remonta à época romana, deve o seu sucesso ao facto de permitir associar o sector privado à concretização de grandes projectos de infra-estruturas públicas (construção de caminhos de ferro, redes de distribuição de electricidade, água, esgotos, transportes, etc.). Desde a segunda metade do século XIX, o recurso a esta técnica permitiu financiar a construção das sociedades industrializadas de toda a Europa, essencialmente a partir do sistema conhecido por “modelo francês”. Uma análise pormenorizada da figura, em especial do seu papel e evolução, pode ver-se em XAVIER BENZANÇON, Essai sur les Contrats de Travaux et de Services Publics, L.G.D.J., Paris, 1999, em especial, pp.105 ss., e PEDRO GONÇALVES, A Concessão de Serviços Públicos, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 45 ss.
[67]) No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 640/95 (Diário da República, II Série, nº 17, de 20 de Janeiro de 1996, p. 983) foi abordada a natureza das portagens das auto-estradas sob o ponto de vista da doutrina financeira e fiscal, podendo aí ler-se: “quanto às portagens das pontes e auto-estradas, a doutrina financeira corrobora a qualificação de taxa acolhida nos cultores de direito administrativo. Para Teixeira Ribeiro - autor que sustenta que taxas são «preços autoritariamente fixados» - “a portagem é um tributo cobrado pela utilização de um bem semipúblico”, sendo que, no dizer deste professor, bens semipúblicos são os que, “além de satisfazerem necessidades colectivas, satisfazem necessidades individuais”. Realce-se que o regime geral das taxas passou a constituir reserva relativa da competência da Asssembleia da República (terá de ser fixado por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado do Governo ( artigo 165º, nº 1, alínea i), da CRP)
[68]) A concessão integra-se, desta forma, a par da gestão por delegação, na denominada gestão indirecta dos serviços públicos cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 10ª. Ed., Almedina, Coimbra, 1999, pp. 1070 ss. e, em especial, pp. 1099 ss.
[69]) Segundo a doutrina e jurisprudência francesas, são cinco as características que concorrem para a definição clássica de concessão: a) existência de um serviço público; b) imputação dos riscos ao concessionário; c) remuneração através de taxas ou “redevances” cobradas aos utentes; d) controlo pela Administração que mantém a responsabilidade pelo bom funcionamento do serviço público; e) prerrogativas de poder público e diversas vantagens conferidas ao concessionário cfr. GEORGES DUPUIS, “Sur la concession de service public,” Recueil Dalloz, Année 1978, p. 220. Para JEAN DUFAU, a concessão de serviço público é o contrato pelo qual uma autoridade pública (concedente) encarrega uma pessoal moral ou física, em geral privada - o concessionário - de explorar um serviço público, por sua conta e risco, pagando-se por meio de «redevances»” cobradas aos utilizadores do serviço” cfr. DUPUIS, ibidem.
[70]) Cfr. PEDRO GONÇALVES, ob. cit., pp. 90/92, e Parecer nº 41/2002, de 14 de Agosto de 2002.
[71]) Neste sentido, cfr., entre outros, ANDRÉ DE LAUBADÈRE/JEAN CLAUDE VENEZIA/YVES GAUDEMET, Droit Administratif, 12º ed., L.G.D.J., Paris, 1992, Tome I, pp. 742 ss., JEAN-PAUL GILLI, “Les opérations d’urbanisme inachevées à l’expiration de la concession “, Revue française de droit administratif, nº 4, 1989, pp. 666 ss.
[72]) Cfr. o Acórdão de 1 de Julho de 1999, Recurso nº 44.249.
[73]) Tratou-se essencialmente de uma crise da definição clássica de concessão, cfr. PEDRO GONÇALVES, ob. cit., pp. 105 ss. Para maiores desenvolvimentos, quanto à análise dos factores que têm contribuído para a desagregação dos caracteres distintivos da concessão de serviço público, cfr. LLORENS, “La Définition Actuelle de la Concession de Service Public en Droit Interne”, La concession de service public face au droit communautaire, Sirey, Paris, 1992, pp. 16 ss.
[74]) Ver, por todos, PEDRO GONÇALVES, ob. cit., p. 130 e, em especial, pp. 140 ss.
[75]) Em conformidade com uma concepção clássica e estrita de concessão. Sobre o tema, cfr. LLORENS, ob. cit., pp. 37 ss. JEAN-CLAUDE DOUENCE lembra que tal critério é utilizado pela jurisprudência há mais de trinta anos para fazer a distinção entre “marché et concession”, cfr. “Observations sur l’application à certains contrats de la distinction entre marchés et délégations fondée sur le mode de rémunération“, Revue Française de Droit Administratif, 15 (6), 1999, p.1136. Entretanto, repare-se, que a própria jurisprudência tem admitido existir contrato de concessão em situações em que o concessionário pode remunerar-se também à custa de receitas obtidas através da publicidade ou venda de imóveis (no caso de concessões no âmbito de operações de ordenamento urbano), cfr. ANDRÉ DE LAUBADÈRE/JEAN CLAUDE VENEZIA/YVES GAUDEMET, ob. cit., p. 742.
[76]) Cfr., entre outros, ANDRÉ DE LAUBADÈRE/ JEAN CLAUDE VENEZIA/YVES GAUDEMET, ob. cit., p. 742 ; GEORGES DUPUIS e OUTROS, Droit Administratif, 7ª ed., Armand Colin, Paris, 2000, p. 372 e PHILIPPE TERNEYRE, “La notion de convention de délégation“, L’ Actualité Jurídica Droit Administratif, nº 9, 1996, pp. 590 ss.
[77]) Cfr. MARCELLO CAETANO, ob. cit., pp. 1126/7.
[78]) Cfr. DUPUIS, ob. cit., p. 222. Também JEAN-CLAUDE DOUENCE alude a uma viragem na Jurisprudência do Conselho de Estado no sentido de que seria suficiente para caracterizar a concessão que a remuneração do concessionário seja substancialmente assegurada pelos resultados da exploração, abrindo, desta forma, espaço para a admissão de financiamentos complementares, cfr. ob. cit., p. 1140.
[79]) Neste sentido, cfr. DUPUIS, ob. cit., p. 222 e LLORENS, ob. cit., pp. 38/39. Uma concepção de concessão assente essencialmente na ideia de transferência de um serviço público pode ver-se também em CHAPUS, “Le service public et la puissance publique,” Revue du Droit Públic et de la Science Politique, nº 2, 1968, p. 264, nota (45).
[80]) DUPUIS pergunta mesmo por que recusar a qualificação de concessão no caso de uma sociedade assumir gratuitamente a prestação de um serviço público, ibidem, p. 222.
[81]) As concessões no âmbito de operações de ordenamento urbano caracterizam-se pelo facto de o concessionário não assumir os riscos financeiros da operação, cfr. JEAN -PAUL GILLI, ob. cit., pp. 666 ss.
[82]) Cfr. LLORENS, ob. cit., pp. 24 ss.
[83]) Cfr. ob. cit., p. 139.
[84]) A concessão do serviço público de televisão constitui um exemplo em que a remuneração do concessionário consiste exclusivamente na retribuição do concedente.
[85]) Cfr. artigo 2º, nº 4, do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, e ainda o artigo 1º, alínea d), da Directiva nº 93/37/CEE, de Conselho, de 14 de Junho de 1993. Sobre a influência do direito comunitário e a concessão de obra pública, no direito espanhol, cfr. JOSÉ MARIA RODRIGUEZ DE SANTIAGO, “Aspectos Básicos sobre su Concepto y Régimen Jurídico,” Contratación Pública-II, Marcial Pons, Madrid, 1997, pp. 138 ss. e, no direito italiano, cfr. BARBARA MAMELI, Servizio Pubblico e Concessione, Giuffrè Editore, Milão,1998, pp. 406 ss.
[86]) Comunicação 2000/C, 121/01, publicada no JOCE, nº C-121, de 29 de Abril de 2000, p. 2.
[87]) Cfr. JOEL ARNOULD, “Le texte définitif de la communication interprétative de la Commission européenne sur les concessions en droit communautaire”, Revue Française de Droit Administratif, 16 (5), 2000, pp.1016 ss. Do mesmo autor, ver também “Le projet de communication interprétative de la Commission européenne sur les concessions en droit communautaire des marchés publics“, Revue Française de Droit Administrative, 16, (1), 2000, pp. 25 ss. Sobre o alcance da Comunicação da Comissão, cfr., ainda, BARBARA MAMELI, “Concessioni e pubblici servizi”, Rivista Italiana di Diritto Pubblico Comunitario, anno XI, nº 1/2001, pp. 63 ss., e pp. 179 ss., PAUL LIGNIÈRES, Partenariats Publics Privés, Litec, Paris, 2000, pp. 179 ss. e MICHAEL ELLAND-GOLDSMITH, “Public Finance Iniciative: Les Infrastruturas Routières,” Revue internationale de droit comparé, Cinquante-quatriéme année, nº 1, 2002, pp. 20 ss. No sentido da tese da Comissão, cfr. conclusões do advogado geral Fennelly no caso Telaustria Verlags GMBH e, bem assim, as do advogado geral LA PERGOLA, no Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de 10 de Novembro de 1999, caso C-360/96, onde se pondera como elemento significativo da concessão, o facto de o concessionário assumir os riscos económicos decorrentes da gestão de serviços, objecto da concessão.
[88]) Cfr. As Concessões Municipais de Distribuição de Electricidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 48.
[89]) Depois de um período de declínio, que coincidiu com o movimento mundial de estatização da economia, as concessões reaparecem em força na cena económica internacional. Num contexto em que os Estados se debatem com a necessidade de redução das despesas públicas mas ao mesmo tempo precisam desenvolver infra-estruturas, a concessão reaparece como meio privilegiado, permitindo financiar ambiciosos programas destinados a manter o desenvolvimento económico, sem sobrecarregar os orçamentos públicos. Daí a divulgação crescente de tipos contratuais que dão corpo a parcerias públicas e privadas e relevam todos da técnica concessória: “contratos de BOT (build, operate, transfer), BOOT (build, own, operate and transfer), DBFO (design, build, finance and operate), DBO (design, build, operate), etc.” (cfr. DIDIER LINOTTE/ BRUNO CANTIER, “Shadow Tolls’: le droit public français à l’épreuve des concessions à péages virtuels“, L‘Actualité Juridique Droit Administratif, nº 11, 20 novembre, 2000, p. 863). Sobre o tema, ver, igualmente, BERNARDO DE AYALA, “O método de escolha do co-contratante da Administração nas concessões de serviços públicos”, Anotação ao Acórdão do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, de 7 de Dezembro de 2000, P. C-324/98, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 26, Março /Abril de 2001, pp. 18 ss.
[90]) O conceito de “Shadow tolls” ou “péages virtuels” surgiu no Reino-Unido no início dos anos 90, sendo posteriormente aplicado noutros países da Europa. Trata-se fundamentalmente de uma modalidade de financiamento, cuja característica essencial reside no facto de o custo das infra-estruturas ser pago pelo Estado ao gestor privado. O processamento da remuneração faz-se ao longo de um dilatado prazo temporal em forma de retribuição periódica, cujo montante depende da utilização das infra-estruturas pelos utentes. A fim de interessar o operador, o montante das portagens depende do tráfico real medido através de um sistema de bandas de contagem dos veículos. No entanto, a portagem por veículo diminui à medida que aumenta a circulação até se reduzir a zero quando atinge um determinado nível de circulação. Neste sentido, cfr. JEAN AUBY/PAUL LIGNIÈRES, “Droit des délégations de service public“, Droit Administratif, 38º Ano, nº 1, 1999, pp. 6 ss. e ELLAND-GOLDSMITH, “Public Finance Iniciative: Les Infraestructures Routières“, Revue Internationale de Droit Comparé, nº 1, 2002, pp. 19 ss. No Direito espanhol, o sistema de “Peaje «en sombra» constitui uma modalidade de OFPIP (operación de financiación privada de infraestruturas públicas)“, cfr. FERNANDO AZOFRA VEGAS, “La financiación privada de infraestruturas públicas“, Civitas, 96º, 1997, pp. 543 ss.
[91]) Em especial, infra-estruturas de transportes (auto-estradas, pontes, túneis, ligações ferroviárias, metros, etc.), cfr. DIDIER LINOTTE/ BRUNO CANTIER, ob. cit., pp. 864/65.
[92]) Ou pelo menos dos riscos de construção e de exploração.
[93]) DIDIER LINOTTE/ BRUNO CANTIER, ibidem, p. 865.
[94]) Cfr. “The Selective Use of Shadow Tolls in the United States”, in www.fhwa.dot. gov./innovativefinance/shadtoll.htm.
[95]) Cfr. ob. cit., p. 866. No sentido de que os contratos de “Shadow Tolls” são de natureza próxima ou equivalente à concessão, cfr. PAUL LIGNIÈRES, ob. cit., pp. 49 ss. Sobre o contrato de concessão de construção e exploração de obras hidráulicas em regime de “peaje en sombra, cfr. FERNANDO AZOFRA VEGAS, ob. cit., pp. 576 ss.
[96]) DIDIER LINOTTE/ BRUNO CANTIER, ob. cit., p. 865.
[97]) Sobre a distinção entre “les marchés publics“ e “concessions“, cfr. LLORENS, “La Réglementation Communautaire des Marchés Publics et le Droit des Concessions,“ Revue du Marché Commun , nº 332, 1989, pp. 603 ss.
[98]) Neste caso, o operador só recebe a remuneração acordada entre ele e a administração como contrapartida da prestação (cfr., entre outros, CHRISTINE MAUGUÉ, “Les délégations de service public et le juge administratif”, Actualité Juridique Droit Administratif, nº 9, 1996, p. 600, e XAVIER BEZANÇON/OLIVIER RUYMBEKE, “Les marchés d’entreprise de travaux publics, une forme particulière de concession?“, Actualité Juridique Droit Administratif, nº 11, 1990, pp. 814 ss.).
[99]) “Le marché d’entreprise de travaux publics est un contrat se décomposant en deux éléments: marché de travaux publics pour la construction“; contrat de prestation de services pour l’exploitation des installations. La prestation est fournie à l’administration qui rémunère forfaitairement ou non son cocontractant“, cfr. XAVIER BEZANÇON/OLIVIER RUYMBEKE, ob. cit., p. 813.
[100]) Ver a jurisprudência citada na nota (87).
[101]) Ver a jurisprudência citada na nota (87).
[102]) Ver, por todos, DIDIER LINOTTE/ BRUNO CANTIER, ob. cit., pp. 866 ss. Pode dizer-–se, segundo BERNARDO de AYALA, ob. cit., p. 18, que “a private finance iniciative agrega-se à técnica concessória, a qual, por sua vez, consoante a complexidade da operação, tanto pode aparecer sob as vestes de comuns concessões de obras públicas ou de serviços públicos, quanto pode surgir camuflada sob siglas que passaram a integrar o léxico contratual e de que constituem exemplos os contratos BOT (build, operate, transfer), DCMF (design, build, finance and operate), cuja matriz também é, normalmente a concessão.”
[103]) Cfr. a Resolução do Conselho de Ministros nº 114/2002, que “aprova a minuta do contrato da concessão de concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designados por concessão SCUT do Grande Porto....” , rectificada por Declaração de Rectificação nº 27-A/2002, de 28 de Agosto de 2002, Diário da República, Número 198, Suplemento, I Série-B, pontos 49 e 49.1, e 65.1. ss.
[104]) Neste sentido, cfr. PEDRO GONÇALVES, ob. cit., pp. 141/142, nota (121), e os acórdãos do STA de 1 de Julho de 1999; Acórdão de 16 de Maio de 2002, Processo nº 048104; e o Parecer nº 41/2002.
[105]) FRANCESCO FERRARA, Interpretação e aplicação das leis, traduzido por MANUEL DE ANDRADE, Arménio Amado, Coimbra, 1987, pp. 57 e 135. Ver também BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, pp. 177 ss.
[106] ) No sentido de que o artigo 112º, nº 2, da CRP “abrange quer leis sobre matérias matérias de reserva absoluta ou relativa de competência parlamentar quer leis sobre matérias de competência concorrencial”, cfr. JORGE MIRANDA, Manual, ob. cit., pp. 370 ss. No entanto, o mesmo autor admite que o Governo, ao abrigo do artigo 198º, nº 1, alínea a), da CRP, assuma a totalidade da regulamentação da matéria de uma lei de bases ou faça ele próprio um decreto-lei de bases.
[107] ) Cfr., entre outros, PAULO OTERO, O desenvolvimento das leis de bases pelo Governo, Lex, Lisboa, 1997, em especial, pp. 22 ss.; BLANCO DE MORAIS, As leis reforçadas, ob. cit., pp. 302 ss. Para MANUEL AFONSO VAZ “fora das áreas da reserva, a relação entre lei e decreto-lei rege-se pelo princípio geral da equiparação entre lei e decreto-lei, em consonância com a competência primária atribuída ao Governo pela alínea a) do nº 1 do art. 201. Ou seja, a lei e o decreto-lei têm aí igual valor – a excepção ao princípio só valeria para as leis de bases em matérias reservadas, em consonância com a alínea c) do nº 1 do art. 201º (...). A solução contrária (...) implicaria que o Governo se veria limitado à mera regulamentação (execução da lei) no âmbito da competência concorrente, área em que a Constituição reconhece racionalidade de valor igual tanto à vontade do Parlamento quanto à vontade do Governo” , cfr. ob. cit., pp. 447 ss.
[108] ) Cfr. Direito Constitucional, ob. cit., p. 752.