Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002053
Parecer: P000072002
Nº do Documento: PPA1403200200702
Descritores: CIDADÃO COMUNITÁRIO
SITUAÇÃO IRREGULAR
EXPULSÃO
ORDEM PÚBLICA
SEGURANÇA PÚBLICA
SAÚDE PÚBLICA
LIBERDADE DE ESTABELECIMENTO
PRIMADO DO DIREITO COMUNITÁRIO
TÍTULO DE RESIDÊNCIA
DEVER DE IDENTIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Livro: 00
Numero Oficio: 358
Data Oficio: 01/29/2002
Pedido: 01/30/2002
Data de Distribuição: 01/31/2002
Relator: MÁRIO SERRANO
Sessões: 01
Data da Votação: 03/14/2002
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: MAI
Entidades do Departamento 1: SEA DO MIN DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 05/06/2002
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 26-06-2002
Nº do Jornal Oficial: 145
Nº da Página do Jornal Oficial: 11635
Indicação 2: ASSESSOR:TERESA BREIA
Área Temática:DIR CONST * DIR FUND / DIR ESTR / DIR COM
Ref. Pareceres:P000771994Parecer: P000771994
Legislação:CRP76 ART33 N2; DL 60/93 DE 1993/03/03 ART3 ART4 N1 ART5 ART9 ART12 N1 N2 N3 ART13 N2 N3 ART14 ART16 ART19 ART20 ART21 ART22 ART28 N2 ART31; DL 250/98 DE 1998/08/11; DL 244/98 DE 1998/08/08 ART1 N1 ART3 N1 ART99 N1 A ART102 ART111 ART119 N1 N8 ART136 ART140 N1; L 97/99 DE 1999/07/26; DL 4/2001 DE 2001/01/10; RECT 3-A/2001 DE 2001/01/31; CPP87 ART1 N3 ART250; L 59/98 DE 1998/08/25; L 5/95 DE 1995/02/21 ART1 N1 ART2 N1 N2 B ART5; DL 433/82 DE 1982/10/27 ART32
Direito Comunitário:TCE ART17 ART18 ART39 N3 ART40 ART44 ART46 N1 N2
DIR CONS CEE 64/221 DE 1964/02/25 ART2 N1 N2 N3 ART4 ART5 A 9 ART10 ART11
REG CONS CEE 1612/68 DE 1968/10/15 ART1 N1 ART7 N1
DIR CONS CEE 68/360 DE 1968/10/15 ART2 N1 ART4 N1 N2 ART8 ART10
DIR CONS CEE 73/148 DE 1973/05/21ART1 N1 ART3 N1 ART4 N1 N2 ART6 ART8
DIR CONS CEE 90/364 DE 1990/06/28 ART1 N1 ART2 N1 N2
AC TRIJ DE 1974/12/04 CASO VAN DUYN IN RECUEIL 1974 (DEUXIÈME PARTIE) PP 1
337-1360
AC TRIJ DE 1974/06/21 CASO REYNERS IN RECUEIL 1974 (PREMIÈRE PARTIE) PP 631-669
AC TRIJ DE 1975/02/26 CASO BONSIGNORE IN RECUEIL 1975-2 PP 297-317
AC TRIJ DE 1975/10/28 CASO RUTILI IN RECUEIL 1975-7 PP 1219-1244
AC TRIJ DE 1977/10/27 CASO BOUCHEREAU IN RECUEIL 1977 (TROISIÈME PARTIE) PP 1999-2029
AC TRIJ DE 1976/04/08 CASO ROYER IN RECUEIL 1976-3 PP 497-529
AC TRIJ DE 1977/07/14 CASO SAGULO IN RECUEIL 1977 (DEUXIÈME PARTIE) PP 1495-1515
AC TRIJ DE 1980/07/03 CASO PIECK IN RECUEIL 1980-6 PP 2171-2203
AC TRIJ DE 1976/07/07 CASO WATSON E BELMANN IN RECUEIL 1976-6 PP 1185-1211
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª) O Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, que regula as condições de entrada, permanência e saída de estrangeiros do território português, constitui lei geral relativamente ao Decreto-Lei nº 60/93, de 3 de Março, que regula as condições especiais de entrada e permanência em território português de nacionais de Estados-membros da União Europeia;

2ª) Nos termos das disposições combinadas dos artigos 99º, nº 1, alínea a), 119º, nºs 1 e 8, 121º e 136º, nº 2, do Decreto-Lei nº 244/98, o estrangeiro que permaneça irregularmente em território português será objecto de expulsão determinada por autoridade administrativa;

3ª) Porém, os nacionais de Estados-membros da União Europeia, enquanto titulares do direito de livre circulação no espaço comunitário, apenas poderão ser objecto de expulsão, nos termos referidos na conclusão anterior, quando ocorram razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública que a justifiquem, em conformidade com o disposto na Directiva nº 64/221/CEE, de 25 de Fevereiro de 1964, e nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 60/93;

4ª) A situação de permanência irregular em que se encontra um estrangeiro comunitário em território nacional, devido a não possuir bilhete de identidade ou passaporte válidos, nem qualquer título de residência, não é por si bastante para integrar as cláusulas de ordem pública ou de segurança pública que fundamentam a derrogação do princípio da livre circulação de pessoas, o que inviabiliza a sua expulsão administrativa;

5ª) A referida situação irregular desse estrangeiro comunitário em território nacional não está sujeita a qualquer sanção na legislação portuguesa;

6ª) Enquanto essa situação irregular não for sanada, apenas se impõe ao cidadão comunitário em causa um dever de identificação perante órgãos de polícia criminal, nos termos do artigo 250º, nº 1, do Código de Processo Penal, o que implica, dada a falta de documento de identificação válido na posse do visado, a sua sujeição ao procedimento de identificação previsto nos nºs 5 a 9 daquela disposição legal;

7ª) A exigência do cumprimento de tal dever de identificação, nos termos referidos na conclusão anterior, tem de ser objectivamente justificada, nunca podendo traduzir-se numa restrição intolerável ao princípio da livre circulação de pessoas, consagrado no Tratado da Comunidade Europeia.

Texto Integral:
Senhor Secretário de Estado Adjunto do
Ministro da Administração Interna,
Excelência:



I


1. Dignou-se Vossa Excelência solicitar a este corpo consultivo, com carácter de urgência, parecer relativo à eventual situação irregular em que se encontra, em território nacional, JOSÉ LUÍS TELLECHEA MAYA, cidadão estrangeiro a que não foi atribuído qualquer título de residência e que não possui documentos de identificação válidos.

Concretamente, são formuladas as seguintes questões ([1]) :

1ª) É viável, nas circunstâncias atrás descritas, instaurar ao referenciado estrangeiro um processo de expulsão administrativa?

2ª) No caso de a resposta à primeira questão ser negativa, como deverá proceder o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, se o referenciado estrangeiro continuar a invocar que lhe não é possível apresentar documento de identificação (BI ou passaporte)?”


2. Quanto às aludidas circunstâncias descritas, importa esquematizar a cronologia dos factos relevantes relacionados com esse cidadão estrangeiro, com base nos elementos disponíveis no processo, para uma melhor compreensão do caso e um mais correcto enquadramento das questões colocadas:

a) em 4 de Julho de 1995: Tellechea Maya é detido por autoridade portuguesa em cumprimento de um pedido de detenção provisória, com vista a futura extradição, formulado por Espanha, tendo o Tribunal da Relação determinado a sua subsequente libertação;

b) em 30 de Março de 1996: é detido, por crime de falsificação (uso de passaporte falso), ao tentar sair de Portugal;

c) em 20 de Setembro de 1996: apresenta pedido de asilo político ao Estado Português;

d) em 30 de Setembro de 1996: é condenado, no 6º Juízo Criminal de Lisboa, pelo crime de falsificação referido em b), na pena de 7 meses de prisão, que cumpriu;

e) em 9 de Outubro de 1996: o pedido de asilo político mencionado em c) é indeferido, por despacho do Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna;

f) em 2 de Janeiro de 1997: é julgado procedente, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o pedido de extradição de Tellechea Maya, enquanto cidadão espanhol e pela prática de actos de auxílio à organização terrorista E.T.A., entretanto apresentado pela Espanha, na sequência do que se relata em a);

g) em 26 de Fevereiro de 1997: no âmbito do recurso da decisão da Relação sobre o pedido de extradição referido em f), o Supremo Tribunal de Justiça recusa a extradição;

h) em 19 de Março de 1999: Tellechea Maya apresenta, ao Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, pedido de emissão de cartão de residência, invocando a qualidade de cidadão comunitário e a prossecução de actividade empresarial em território nacional;

i) em 14 de Julho de 1999: o Tribunal Constitucional, através do acórdão nº 477/99, da 2ª Secção, põe termo ao processo de asilo a que se alude em c) e e), indeferindo reclamação de despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade, na sequência de recursos entretanto interpostos para o Supremo Tribunal Administrativo relativos ao despacho de indeferimento do pedido de asilo, que não obtiveram provimento;

j) em 17 de Maio de 2000: o Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras profere despacho de indeferimento do pedido de emissão de cartão de residência referenciado em h);

l) em 23 de Junho de 2000: por iniciativa do Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, é instaurado contra Tellechea Maya, no 2º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca de Sintra, processo de expulsão judicial (Processo nº 80/00.9 ZCLSB);

m) em 7 de Julho de 2000: Tellechea Maya interpõe recurso hierárquico necessário, para o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, do despacho de indeferimento do Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras mencionado em j);

n) em 11 de Julho de 2000: por decisão do Tribunal da Comarca de Sintra, é julgado improcedente o pedido de expulsão judicial a que se alude em l), não tendo a sentença sido objecto de recurso, pelo que transitou em julgado;

o) em 3 de Abril de 2001: em sede de reapreciação do pedido de emissão de cartão de residência referido em h), e na sequência de provimento parcial do recurso hierárquico necessário mencionado em m), é proferido, pela Directora Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, despacho de indeferimento de tal pedido, designadamente por não estar provado, através de bilhete de identidade ou passaporte válidos, o vínculo de nacionalidade do requerente com um Estado comunitário;

p) em 22 de Maio de 2001: Tellechea Maya interpõe recurso hierárquico necessário, para o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, do despacho de indeferimento da Directora Regional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras referido em o);

q) em 11 de Junho de 2001: a autora do acto recorrido (Directora Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) pronuncia-se sobre o recurso a que se alude em p), nos termos do artigo 172º do Código do Procedimento Administrativo, sustentando a solução de indeferimento, designadamente com base na invocação de um critério de igualdade, na medida em que se afirma ser praticada a exigência de exibição de documento de identificação válido em relação a todos os cidadãos que formulem pedido idêntico ao do requerente;

r) em 13 de Julho de 2001: no âmbito do recurso hierárquico necessário mencionado em p), a Auditoria Jurídica do Ministério da Administração Interna emite parecer (com o nº 447-R/01), em que propõe – invocando o princípio do inquisitório, ao abrigo do artigo 87º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo – que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras solicite às autoridades competentes de Espanha informação sobre se reconhecem Tellechea Maya como seu nacional;

s) em 30 de Julho de 2001: com referência ao parecer identificado em r), o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna profere despacho, no rosto daquele parecer, a considerar sem utilidade a diligência proposta;

t) em 12 de Dezembro de 2001: a autoridade recorrida (agora através de uma Subdirectora Regional) volta a pronunciar-se sobre o recurso referido em p), renovando a proposta de indeferimento do pedido de emissão de cartão de residência;

u) em 13 de Dezembro de 2001: o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, concordando com as pronúncias de 11 de Junho de 2001 e de 12 de Dezembro de 2001, indicadas em q) e t), profere despacho, no rosto dessa última, no sentido de confirmar o indeferimento do pedido de emissão de cartão de residência, com a consequente rejeição do recurso hierárquico necessário mencionado em p);

v) em 22 de Janeiro de 2002: o Director-Geral do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras envia ao Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna um “memorandum sobre a “situação peculiar” do presente caso (i.e., de “cidadão desprovido de título de residência ou de documento de identificação válido, relativamente ao qual se sabe todavia, e sem qualquer dúvida, que se trata de cidadão comunitário”), no qual, por um lado, se refere a possibilidade de o requerente vir a interpor recurso contencioso do despacho identificado em u) ([2]) e, por outro, se considera ser inviável a expulsão administrativa do cidadão em causa, ao mesmo tempo que se sugere, nomeadamente, a consulta à Procuradoria-Geral da República sobre o assunto;

x) em 23 de Janeiro de 2002: o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, por despacho proferido no rosto do memorandum referido em v), concorda com o ali sugerido e determina a formulação dos termos da consulta pela respectiva Auditoria Jurídica;

z) em 28 de Janeiro de 2002: o Ex.mo Auditor Jurídico do Ministério da Administração Interna apresenta parecer sobre a matéria (com o nº 48-G/02), no qual formula as duas questões supra transcritas, a que o Ex.mo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna dá a sua concordância, solicitando nesses termos parecer deste corpo consultivo.

Cabe ainda salientar que, de acordo com os dados disponíveis, a alegada actividade empresarial de Tellechea Maya não foi nunca posta em dúvida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, como disso se dá conta no parecer nº 447-R/01 da Auditoria Jurídica do Ministério da Administração Interna. Resulta ainda desses elementos que o bilhete de identidade de cidadão espanhol de Tellechea Maya terá caducado (estando na posse das autoridades uma cópia do mesmo) e que é desconhecido o paradeiro do seu passaporte, o qual alega ter sido furtado.

Por sua vez, na sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de Sintra ([3]) foram dados como provados, sobre a situação pessoal e sócio-económica do aí arguido, e entre outros, os factos que ora se transcrevem:

t) o arguido encontra-se inscrito no R.N.P.C. como empresário em nome individual, com o NIPC 814080472, nas Finanças com o cartão de contribuinte nº 214298280 e no Centro de Saúde de Cascais da A.R.S.L.V.T. com o número de beneficiário 150020465;

u) o arguido vive em Portugal desde, pelo menos, o início de 1994;

v) dedica-se à actividade comercial, sendo presentemente representante da marca Faher e da organização Amway;

x) é tido no meio em que vive e trabalha como pessoa pacífica e ordeira, mantendo boas relações de vizinhança e profissionais”.

Perante este circunstancialismo, cumpre emitir parecer.


II


1. Os diplomas legais fundamentais em matéria de imigração são, por um lado, o Decreto-Lei nº 60/93, de 3 de Março ([4]), que “regula as condições especiais de entrada e permanência em território português de nacionais de Estados membros da Comunidade Europeia” ([5]), e, por outro, o Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto ([6]), que “regula as condições de entrada, permanência e saída de estrangeiros do território português” ([7]).

Importa, desde já, referir que este segundo diploma, enquanto sucessor do anterior Decreto-Lei nº 59/93, é subsidiário do primeiro. Com efeito, o artigo 31º do Decreto-Lei nº 60/93, sob a epígrafe “Direito subsidiário”, dispõe que “em tudo quanto não esteja regulado no presente diploma, observar-se-á o disposto na lei geral”.

Sendo o Decreto-Lei nº 60/93 um diploma de pequena dimensão (34 artigos), dirigido ao segmento específico dos estrangeiros comunitários, seguramente o Decreto-Lei nº 244/98, bem mais extenso (163 artigos), e regendo directamente sobre a matéria da entrada, permanência e saída de todos os demais estrangeiros, constituirá “lei geral” relativamente ao primeiro diploma ([8]). Por exemplo, só no Decreto-Lei nº 244/98 encontramos regulado o instituto da expulsão (artigos 99º a 126º), sendo o Decreto-Lei nº 60/93 praticamente omisso nesse ponto, pelo que a eventual expulsão de cidadãos comunitários – a ser possível – terá de levar em conta o regime do Decreto-Lei nº 244/98.

A essa aplicação subsidiária não pode obstar o teor do novo nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 244/98, introduzido pelo Decreto-Lei nº 4/2001, segundo o qual “sem prejuízo de referência expressa em contrário no presente diploma, a entrada, permanência, saída e afastamento de cidadão estrangeiro nacional de um Estado membro da União Europeia ou nacional de um Estado Parte do espaço económico europeu rege-se por legislação própria”. Não é essa menção impeditiva de que tal “legislação própria” (actualmente, o Decreto-Lei nº 60/93), por sua vez, reenvie, a fim de ser completada, para o mesmo diploma geral, bem mais vasto, sobre direito de estrangeiros. Assim o exige o carácter não exaustivo do regime relativo aos estrangeiros comunitários e com isso se continua a conferir sentido útil à remissão do artigo 31º do Decreto-Lei nº 60/93.


2. Sendo o objecto central da presente consulta o instituto da expulsão, importa recuperar uma noção que já foi acolhida por este corpo consultivo, no parecer nº 77/94 ([9]): “Numa acepção lata, a expulsão consiste no acto unilateral pelo qual o Estado, por considerações de interesse nacional de que é juiz soberano, obriga um estrangeiro que permaneça no seu território a abandoná-lo. (...) Do lado do Estado, a expulsão surge como um acto de natureza soberana; do lado do indivíduo, a ameaça de expulsão é o símbolo da precaridade do seu estatuto jurídico e que resulta do facto de, em regra, não possuir o direito absoluto de permanecer sobre o território de um Estado que não é o seu.”

Em todo o caso, esse poder soberano de expulsão – correlativo da inexistência, em direito internacional geral, de um direito de entrada e permanência do estrangeiro –, sendo discricionário, não é absoluto, já que a própria condição de pessoa humana, por via da garantia internacional dos direitos do homem, assegura, no mínimo, o direito a um tratamento digno e não arbitrário ([10]).

No plano constitucional, e sobre a temática da expulsão de estrangeiros ([11]), rege o disposto no artigo 33º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do seguinte teor:

“A expulsão de quem tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, de quem tenha obtido autorização de residência ou de quem tenha apresentado pedido de asilo não recusado só pode ser determinada por autoridade judicial, assegurando a lei formas expeditas de decisão.”

Esta norma foi introduzida no texto constitucional com a segunda revisão ([12]), tendo-se mantido nas posteriores revisões constitucionais ([13]). Anteriormente regia nesta matéria a versão originária da Constituição ([14]), que dispunha que a expulsão só podia ser decidida por autoridade judicial.

Ou seja, após uma primeira fase do sistema em que dominou a exigência constitucional de que toda e qualquer ordem de expulsão teria de ser emitida por um juiz, inaugurou-se com a revisão de 1989 uma nova fase em que o legislador constitucional veio permitir uma distinção entre duas modalidades de expulsão, consoante o estrangeiro se encontre numa situação regular ou numa situação irregular. Em conformidade com a disposição constitucional em causa, deve entender-se por situação regular aquela em que se encontra o estrangeiro que tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional, que seja titular de autorização de residência ou que tenha apresentado pedido de asilo não recusado. Só nos casos em que o estrangeiro se encontre nessa situação regular é que se impõe a utilização da expulsão judicial – nos restantes casos, i.e., de situação irregular, passou a ser possível a expulsão por via administrativa ([15]).


3. Esta dicotomia foi acolhida pelo legislador ordinário na anterior lei geral de estrangeiros, o Decreto-Lei nº 59/93, e mantida no subsequente Decreto-Lei nº 244/98. Segundo o artigo 102º deste último texto legal, “a expulsão pode ser determinada, nos termos do presente diploma, por autoridade judicial ou autoridade administrativa competente”.

Assim, dispõe o artigo 111º do Decreto-Lei nº 244/98, sob a epígrafe “Expulsão judicial”, o seguinte:

“A expulsão será determinada por autoridade judicial quando revista a natureza de pena acessória ou quando o estrangeiro objecto da decisão:
a) Tenha entrado ou permaneça regularmente no território nacional;
b) Seja titular de autorização de residência válida;
c) Tenha apresentado pedido de asilo aceite ou ainda pendente.”

Ou seja, incluem-se na modalidade da expulsão judicial as três situações descritas no texto constitucional, que correspondem às alíneas do preceito legal citado, a par da situação de aplicação da pena acessória de expulsão, a qual, dada a integral jurisdicionalização da aplicação de penas principais em processo penal ([16]), teria de ser atribuída necessariamente a autoridade judicial.

Quanto à expulsão administrativa, resulta do artigo 119º do mesmo diploma que essa modalidade se refere ao “estrangeiro que entre ou permaneça ilegalmente em território nacional” ([17]), o que constitui fundamento de expulsão segundo o disposto no artigo 99º, nº 1, alínea a), esclarecendo o artigo 121º que “a decisão de expulsão é da competência do director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”. O que se deva considerar “entrada e permanência ilegal” vem definido no artigo 136º, para o qual remete o artigo 119º, nº 8:

“1 - Considera-se ilegal a entrada de estrangeiros em território português em violação do disposto nos artigos 9º, 10º, 12º, 13º e 25º, nºs 1 e 2.
2 - Considera-se ilegal a permanência de estrangeiros em território português quando esta não tenha sido autorizada de harmonia com o disposto no presente diploma ou na lei reguladora do direito de asilo, bem como quando se tenha verificado a entrada ilegal nos termos do número anterior.”

Em termos gerais, a entrada legal em território nacional exige a passagem pelos postos de fronteira (artigo 9º), com sujeição a controlo fronteiriço (artigo 10º), e depende, em regra, da posse de um documento de viagem válido reconhecido (artigo 12º) e de um visto válido e adequado à finalidade da deslocação (artigo 13º), sem que esteja interditada a entrada em território português do respectivo estrangeiro por indicação para efeitos de não admissão no Sistema de Informação Schengen ou na lista nacional (artigo 25º, nºs 1 e 2). Por sua vez, a permanência legal, nos termos deste mesmo diploma, depende, em regra, da existência de uma autorização de residência (artigos 80º a 96º), de uma prorrogação de permanência ou de uma autorização de permanência, estas obtidas nas condições previstas nos artigos 52º e 55º, respectivamente.

Este enquadramento geral permite-nos já afirmar que, nos termos do Decreto-Lei nº 244/98, uma situação de entrada ou permanência ilegal de estrangeiro em território português culmina, necessariamente, na expulsão administrativa do cidadão ilegal, de acordo com as disposições combinadas dos artigos 99º, nº1, alínea a), 119º, nºs 1 e 8, e 136º do diploma ([18]). Uma entrada ou uma permanência ilegais implicam, segundo essas normas, a detenção do estrangeiro em situação irregular, a apresentação ao juiz para validação da detenção e aplicação de medidas de coacção, a organização de processo com vista ao afastamento do estrangeiro do território nacional e, a final, verificada aquela situação irregular, a prolação da decisão de expulsão.


4. Sendo este o regime emergente da aplicação directa do Decreto-Lei nº 244/98, importa agora apurar se o mesmo se aplica de igual modo aos estrangeiros comunitários.


4.1. Como se disse supra, o Decreto-Lei nº 60/93 não trata especificamente do instituto da expulsão. Aliás, isso terá contribuído para o aparecimento de uma corrente jurisprudencial no Supremo Tribunal de Justiça que, fundada na predominância no direito comunitário de um princípio de livre circulação de pessoas ([19]) e na integração de Portugal no espaço Schengen ([20]), daí extraiu a conclusão de que não seria, de todo, possível a expulsão de cidadãos de Estados-membros da União Europeia ([21]). Nesse contexto, invocou--se, a propósito da aplicação da pena acessória de expulsão, a existência de uma alegada incompatibilidade da legislação penal com o direito comunitário.

Refira-se, desde já, que, se é certo que a Convenção de Aplicação de 1990 define como estrangeiro “qualquer pessoa que não seja nacional dos Estados membros das Comunidades Europeias” (artigo 1º) ([22]), isso não torna qualquer nacional dum Estado-membro em nacional dos restantes Estados-membros – e, logo, insusceptível de expulsão, como é princípio nuclear nesta matéria ([23]). Essa definição vale apenas para efeitos da própria Convenção, como se diz no proémio do seu artigo 1º, sem que dela resulte explicitamente qualquer proibição da aplicação da medida de expulsão a outra categoria de estrangeiros não tratada na Convenção, precisamente a dos estrangeiros comunitários.

Por outro lado, o próprio Decreto-Lei nº 60/93 faz referências pontuais a uma “decisão de expulsão do território nacional”, como sucede nos artigos 26º, 27º e 28º, que se reportam, sucessivamente, à notificação da decisão de expulsão, à contagem do prazo para abandono do território nacional em consequência de uma decisão de expulsão e à recorribilidade de tal decisão.

Existem, portanto, alguns indícios – que trataremos de confirmar mais adiante – da viabilidade de expulsão de cidadãos de Estados-membros da União Europeia dentro do espaço comunitário. Aliás, a corrente jurisprudencial supra assinalada, que viera inflectir a anterior orientação do Supremo Tribunal de Justiça na matéria ([24]), não terá tido continuidade, como sugere a posterior jurisprudência conhecida sobre a questão ([25]).


4.2. A possibilidade de expulsão de cidadãos da União Europeia tem de ser averiguada, desde logo, à luz do próprio direito comunitário.


4.2.1. Reconhecida a primazia do direito comunitário sobre o direito ordinário interno, como decorre do texto constitucional ([26]) e dos princípios fundamentais da ordem jurídica comunitária, que nas relações com os direitos nacionais se consubstanciam no efeito directo e no primado ([27]), há que atender à produção normativa da Comunidade em matéria de livre circulação de pessoas, enquadrada na actual realidade da União Europeia, instituída pelo Tratado de Maastricht, entretanto revisto pelo Tratado de Amesterdão ([28]).

O Tratado da União Europeia veio consagrar uma cidadania da União. Segundo o artigo 17º do Tratado da Comunidade Europeia, na redacção resultante dos Tratados de Maastricht e Amesterdão ([29]), “é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-membro”.

Não há aqui uma definição autónoma da titularidade da cidadania da União, já que a atribuição dessa condição depende do estatuto de nacional do Estado-membro, ou seja, da aquisição do vínculo de nacionalidade segundo a vontade política de cada Estado, expressa na sua respectiva lei interna. No entanto, o conceito tem a virtualidade de reforçar simbolicamente o sentimento de pertença de cada cidadão à nova entidade jurídico-política que é a União ([30]).

Acrescenta o subsequente artigo 18º ([31]) que “qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas no presente Tratado e nas disposições adoptadas em sua aplicação”.

Essa liberdade de circulação de pessoas, desde sempre um princípio-chave da Comunidade ([32]), tem desenvolvimentos no Tratado em termos de consagração da liberdade de circulação dos trabalhadores (actuais artigos 39º a 42º) e da liberdade de estabelecimento, compreendendo esta quer o acesso a actividades não assalariadas, quer a constituição e a gestão de empresas (actuais artigos 43º a 48º).

Por sua vez, as “limitações e condições” à livre circulação de pessoas, referidas no citado artigo 18º do Tratado, são concretizadas, nos artigos 39º, nº 3, proémio, e 46º, nº 1, quanto a assalariados e a não assalariados, respectivamente. Assim, o Tratado admite, quanto à livre circulação de trabalhadores, “limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública” e, quanto aos titulares do direito de estabelecimento, “a aplicabilidade das disposições legislativas, regulamentares e administrativas que prevejam um regime especial para os estrangeiros e sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública”.

Paralelamente, estabelece-se o seguinte: no proémio do artigo 40º, que o Conselho “tomará, por meio de directivas ou regulamentos, as medidas necessárias à realização da livre circulação dos trabalhadores” nos termos definidos no artigo 39º, o que integra as mencionadas limitações; e, no artigo 44º, que, “para realizar a liberdade de estabelecimento (...), o Conselho (...) adoptará directivas”, ao mesmo tempo que o nº 2 do artigo 46º determina que o Conselho “adoptará directivas para a coordenação das citadas disposições”, previstas no nº 1, fundadas em razões de ordem, segurança e saúde públicas.


4.2.2. Ao abrigo desses preceitos, e ainda na vigência da sua versão originária (idêntica à actual nos aspectos salientados), ocorreu uma significativa produção normativa da Comunidade. É, neste ponto, fundamental a Directiva nº 64/221/CEE, de 25 de Fevereiro de 1964 ([33]), dirigida à “coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas que prevêem um regime especial para os estrangeiros, justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública” ([34]), nela englobando de forma unitária a situação de assalariados e de não assalariados. Já numa perspectiva sectorial, seguiram-se-lhe importantes diplomas, que visaram a supressão de restrições à deslocação e à permanência de nacionais dos Estados-membros na Comunidade: em matéria de livre circulação de trabalhadores, o Regulamento (CEE) nº 1612/68, de 15 de Outubro de 1968 ([35]), e a Directiva nº 68/360/CEE, da mesma data ([36]); sobre direito de estabelecimento ([37]), a Directiva nº 73/148/CEE, de 21 de Maio de 1973 ([38]). Mais recentemente, veio a Directiva nº 90/364/CEE, de 28 de Junho de 1990 ([39]), regular, em geral, o direito de residência dos nacionais dos Estados-membros na Comunidade ([40]).

4.2.2.1. A Directiva nº 64/221/CEE refere-se, nos termos do seu artigo 2º, nº 1, “às disposições relativas à entrada no território, à emissão ou renovação da autorização de residência ou à expulsão do território, adoptadas pelos Estados-membros por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública” ([41]), acrescentando o nº 2 que “estas razões não podem ser invocadas com fins económicos”.

Quanto às medidas de ordem pública e de segurança pública, determina o artigo 3º, nº 1, da Directiva que “devem fundamentar-se, exclusivamente, no comportamento pessoal do indivíduo em causa”, esclarecendo o nº 2 que “a mera existência de condenações penais não pode, por si só, servir de fundamento à aplicação de tais medidas” e o nº 3 que “a caducidade do documento de identidade, que permitiu a entrada no país de acolhimento e que instruiu a emissão da autorização de residência, não pode justificar a expulsão do território”.

Quanto às razões de saúde pública, só podem fundamentar medidas restritivas as doenças tipificadas em lista anexa ao diploma, sendo aplicáveis tais medidas apenas anteriormente à emissão da primeira autorização de residência (artigo 4º).

Os artigos 5º a 9º estabelecem um conjunto de garantias processuais que assistem aos destinatários das medidas restritivas aplicadas ao abrigo das aludidas excepções à livre circulação de pessoas: prazo para decisão de concessão ou recusa da primeira autorização de residência; comunicação ao interessado dos fundamentos dessa decisão; notificação ao interessado da decisão de recusa de emissão ou renovação de autorização de residência ou da decisão de expulsão do território; recurso dessa decisão; na falta ou insuficiência desse recurso, obtenção de parecer prévio à decisão emitido por autoridade diferente da entidade competente para a decisão ([42]).

Os artigos 10º e 11º dirigem-se aos Estados-membros, delimitando as obrigações impostas para cumprimento da directiva ([43]).

4.2.2.2. As normas nucleares do Regulamento (CEE) nº 1612/68 estabelecem que “os nacionais de um Estado-membro, independentemente do local da sua residência, têm o direito de aceder a uma actividade assalariada e de a exercer no território de outro Estado-membro, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais deste Estado” (artigo 1º, nº 1) e que “o trabalhador nacional de um Estado-membro não pode, no território de outros Estados-membros, sofrer, em razão da sua nacionalidade, tratamento diferente daquele que é concedido aos trabalhadores nacionais no que respeita a todas as condições de emprego e de trabalho (...)” (artigo 7º, nº 1) ([44]).

4.2.2.3. Na mesma lógica de supressão de restrições à livre circulação de trabalhadores, a Directiva nº 68/360/CEE estabelece que o direito de acesso a outro Estado-membro para desempenho de uma actividade assalariada “será exercido mediante a simples apresentação do bilhete de identidade ou de um passaporte válido” (artigo 2º, nº 1).

Determina-se que “os Estados-membros reconhecerão o direito de permanência no seu território às pessoas abrangidas” (artigo 4º, nº 1), sendo esse direito de permanência “confirmado pela emissão de um documento denominado «Cartão de Residência de Nacional de um Estado-membro da CEE»” (artigo 4º, nº 2), ressalvadas algumas situações que não dão lugar à emissão de cartão (artigo 8º).

Finalmente, e na linha do que consta do actual artigo 39º, nº 3, do Tratado da Comunidade Europeia, o artigo 10º da Directiva esclarece que “os Estados-membros só podem derrogar disposições da presente directiva por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública”.

4.2.2.4. Concretizando a proibição de restrições à liberdade de estabelecimento a que se refere o actual artigo 43º, nº 1, do Tratado da Comunidade Europeia, a Directiva nº 73/148/CEE estabelece, no seu artigo 1º, nº 1, que “os Estados-membros suprimirão (...) as restrições à deslocação e à permanência: a) Dos nacionais de um Estado-membro estabelecidos ou que desejem estabelecer-se em outro Estado-membro para nele exercerem uma actividade não assalariada (...)”.

Segundo o artigo 3º, nº 1, “os Estados-membros admitem no seu território as pessoas referidas no artigo 1º mediante a simples apresentação do bilhete de identidade ou passaporte válidos”. Por sua vez, no nº 1 do artigo 4º afirma-se que “os Estados-membros reconhecem o direito de residência permanente aos nacionais dos outros Estados-membros que se estabeleçam no seu território para nele exercerem uma actividade não assalariada”, enquanto o nº 2 refere que “o direito de residência é comprovado pela emissão de um documento denominado «Cartão de Residência de Nacional de um Estado-membro das Comunidades Europeias»”. Para a emissão desse cartão, o artigo 6º admite apenas duas condições relativamente ao requerente: “a) A apresentação do documento ao abrigo do qual entrou no seu território; b) A prova de que é abrangido por uma das categorias referidas nos artigos 1º e 4º.”

Em consonância com o actual artigo 46º, nº 1, do Tratado da Comunidade Europeia, o artigo 8º da Directiva declara que “os Estados-membros só podem derrogar a presente directiva por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública”.

4.2.2.5. A Directiva nº 90/364/CEE visa a generalização do direito de residência dos cidadãos comunitários, como decorre do seu artigo 1º, nº 1, no qual se diz que “os Estados-membros concederão o direito de residência aos nacionais dos Estados-membros que não beneficiem desse direito por força de outras disposições de direito comunitário (...), na condição de disporem, para si próprios e para as suas famílias, de um seguro de doença que cubra todos os riscos no Estado-membro de acolhimento e de recursos suficientes (...)”. Alarga--se, assim, o direito de residência a cidadãos não activos.

Também aqui se estabelece que “o direito de permanência é consignado através da emissão de um documento denominado «Cartão de Residência de Nacional de um Estado-membro da CEE»”, para cuja emissão “o Estado-membro apenas pode pedir ao requerente que apresente um bilhete de identidade ou um passaporte válido e que comprove que satisfaz as condições previstas no artigo 1º” (artigo 2º, nº 1).

E igualmente se declara que “os Estados-membros apenas podem derrogar o disposto na presente directiva por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública” e que “nesse caso, será aplicável a Directiva 64/221/CEE” (artigo 2º, nº 2).


4.2.3. Feito este percurso tópico pelas disposições comunitárias mais relevantes em matéria de livre circulação de pessoas, é possível colher um sentido geral dessa normação.

Logo da Directiva nº 64/221/CEE pareciam resultar duas asserções: que é possível a expulsão de cidadãos comunitários dentro do espaço da Comunidade; e que tal expulsão só pode ocorrer por razões de ordem, segurança e saúde públicas. Depois vieram as Directivas nºs 68/360/CEE e 73/148/CEE, uma quanto a assalariados e a outra quanto a não assalariados, respectivamente, confirmar que as medidas derrogatórias da liberdade de circulação só podem ter fundamento nas aludidas cláusulas de ordem, segurança e saúde públicas, sendo claro, à luz da Directiva nº 64/221/CEE, que nessas medidas derrogatórias se pode incluir a expulsão ([45]). Finalmente, também a Directiva nº 90/364/CEE convoca essas cláusulas limitativas, remetendo para o enquadramento que emerge da Directiva nº 64/221/CEE.

Ora, foi este conjunto de directivas que o nosso Decreto-Lei nº 60/93 procurou transpor para a nossa ordem interna, como aliás se exprime na nota preambular do diploma (aí identificando, designadamente, tais directivas) e se evidencia da reprodução quase literal no diploma nacional de muitas dessas disposições comunitárias.

Aí encontramos, nomeadamente, a indicação de que “podem entrar e permanecer em território nacional, observadas as condições previstas no presente diploma: a) Os trabalhadores assalariados nacionais de um Estado membro; b) Os nacionais de um Estado membro que sejam titulares do direito de estabelecimento (...)” (artigo 3º).

Quanto à entrada em território nacional dos referidos “nacionais de um Estado membro”, admite-se a mesma “mediante a simples apresentação de um bilhete de identidade ou de passaporte válidos” (artigo 4º, nº 1). Por sua vez, estabelece-se, no artigo 16º, que será emitido um cartão de residência de nacional de um Estado-membro da Comunidade Europeia a favor de determinados cidadãos comunitários, como sejam os trabalhadores assalariados, em certas condições de estabilidade de emprego, os titulares do direito de estabelecimento ou cidadãos não activos com direito de residência definido nos termos do artigo 9º, ao mesmo tempo que se prevê um cartão de residência temporária para situações de permanência transitória (artigos 19º e 20º) e um cartão de residência para os titulares do designado direito de permanência a título definitivo consagrado no artigo 5º (artigos 21º e 22º). São evidentes as similitudes com as Directivas nºs 68/360/CEE e 73/148/CEE e, no que toca ao direito de residência do artigo 9º, vê- -se que foi acolhida a Directiva nº 90/364/CEE.

Por fim, mostram-se essenciais os artigos 12º a 14º, que seguem muito proximamente o teor da Directiva nº 64/221/CEE. Diz- -se, no artigo 12º, nº 1, que “o regime previsto no presente diploma pode ser derrogado por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública”. Os nºs 2 e 3 referem-se às razões de saúde pública, reproduzindo o nº 2 a lista anexa à citada directiva e sendo o nº 3 idêntico ao nº 2 do artigo 4º do diploma do Conselho. O artigo 13º, relativo aos requisitos das medidas derrogatórias, é decalcado, praticamente com a mesma redacção, do supra transcrito artigo 3º desse diploma comunitário. E o artigo 14º, que impõe a comunicação ao interessado dos fundamentos da decisão derrogatória da livre circulação, tem correspondência quase integral no artigo 6º da directiva.


4.3. Reveste, assim, especial interesse conhecer a mais significativa jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre as medidas de excepção à livre circulação de pessoas previstas no Tratado e desenvolvidas pelas directivas assinaladas.


4.3.1. O Tribunal de Justiça admitiu pela primeira vez o efeito directo de uma directiva precisamente a propósito da Directiva nº 64/221/CEE ([46]).

Com efeito, no Acórdão Van Duyn, de 4 de Dezembro de 1974 ([47]), reconheceu-se o carácter directamente aplicável do artigo 48º (actual artigo 39º) do Tratado de Roma, relativo à livre circulação de trabalhadores. Foi afirmado que o citado preceito do Tratado da Comunidade Europeia “tem um efeito directo nas ordens jurídicas dos Estados-membros e confere aos particulares direitos que as jurisdições nacionais devem salvaguardar” e que o artigo 3º, nº 1, da Directiva nº 64/221/CEE “gera a favor dos particulares direitos que podem fazer valer em juízo num Estado-membro” ([48]). Aliás, no Acórdão Reyners, de 21 de Junho de 1974 ([49]), já o Tribunal havia considerado directamente aplicável o artigo 52º (actual artigo 43º), relativo ao direito de estabelecimento.


4.3.2. Ao ser o Tribunal chamado a pronunciar-se sobre o alcance da Directiva nº 64/221/CEE, desde logo sublinhou o carácter dominante do princípio da livre circulação de pessoas, daí fazendo decorrer o postulado de que as medidas derrogatórias dessa liberdade constituem medidas de excepção que devem ser interpretadas de forma restritiva.

4.3.2.1. Encontramos essa menção logo no Acórdão Van Duyn, quando se afirma que “a noção de ordem pública, no contexto comunitário e, nomeadamente, enquanto justificação duma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de trabalhadores, deve ser entendida restritivamente”.

4.3.2.2. Na mesma linha, o Acórdão Bonsignore, de 26 de Fevereiro de 1975 ([50]), sustentou que “as derrogações às regras relativas à livre circulação de pessoas constituem excepções a interpretar restritivamente”, donde se concluiu que o artigo 3º, nºs 1 e 2, da Directiva nº 64/221/CEE “impede a expulsão do nacional de um Estado-membro quando fundada no objectivo de dissuasão de outros estrangeiros”. Ou seja, o citado artigo 3º, ao impor que as “medidas de ordem pública ou de segurança pública” se fundamentem no “comportamento pessoal” do interessado, “exprime a exigência de que a medida de expulsão só pode visar ameaças à ordem pública e à segurança pública que tenham por objecto um facto praticado pelo indivíduo”.

4.3.2.3. O Caso Rutili permitiu aprofundar essa orientação, já que, acolhendo a premissa de que a excepção de ordem pública deve ser entendida restritivamente, o Tribunal veio a considerar, no respectivo acórdão de 28 de Outubro de 1975 ([51]), que “as restrições estabelecidas quanto aos direitos dos nacionais de Estados-membros de entrar no território de outro Estado-membro, e aí permanecer, só terão lugar quando a sua presença ou o seu comportamento constitua uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem pública”.

4.3.2.4. Desenvolvendo esta exigência, o Acórdão Bouchereau, de 27 de Outubro de 1977 ([52]), exprime a ideia de que o uso da noção de ordem pública, enquanto justificação para certas restrições à livre circulação de pessoas, “supõe, em todo o caso, para além da perturbação à ordem social que constitui qualquer infracção à lei, uma ameaça real e suficientemente grave, que afecte um interesse fundamental da sociedade”.


4.3.3. Tendo a presente consulta por objecto a avaliação da possibilidade de expulsão de cidadão estrangeiro em caso de entrada ou permanência irregular, merece uma análise mais detalhada a jurisprudência relativa a esse tipo de situações.

4.3.3.1. No Caso Royer apreciou-se a situação de um cidadão francês acusado de entrada e permanência ilegais em território belga, por não ter cumprido as formalidades administrativas necessárias à autorização de residência.

O Tribunal, em acórdão de 8 de Abril de 1976 ([53]), declarou, na parte dispositiva, designadamente o seguinte:

- “O direito, para os nacionais de um Estado-membro, de entrar no território de um outro Estado-membro e de aí permanecer é directamente conferido, a qualquer pessoa abrangida pelo campo de aplicação do direito comunitário, pelo Tratado (...) ou, se for esse o caso, pelas disposições adoptadas em sua execução, independentemente da concessão de qualquer título de residência pelo Estado de acolhimento”;

- “O artigo 4º da directiva nº 68/360 implica, para os Estados- -membros, a obrigação de conceder o título de residência a qualquer pessoa que faça a prova, pelos documentos apropriados, de que pertence a uma das categorias visadas pelo artigo 1º dessa directiva”;

- “A simples omissão, pelo nacional de um Estado-membro, das formalidades relativas ao acesso e permanência de estrangeiros não constitui, em si mesma, um comportamento que ameace a ordem e a segurança públicas e não justifica, por si, nem uma medida de expulsão, nem uma detenção provisória em vista de tal medida”.

Da fundamentação destacam-se ainda as afirmações de que o direito de entrada e permanência “é adquirido independentemente da entrega de um título de residência pela autoridade competente de um Estado-membro” e de que “a concessão desse título deve ser considerada não como um acto constitutivo de direitos, mas como um acto destinado a constatar, por parte de um Estado-membro, a situação individual de um nacional de outro Estado-membro face às disposições do direito comunitário”.

4.3.3.2. No Caso Sagulo, o litígio respeitava a dois cidadãos italianos, que residiam na República Federal da Alemanha sem possuírem passaporte, nem título de residência, e a um cidadão francês que deixara caducar o seu título de residência naquele país, sem pedir a sua prorrogação.

Por acórdão de 14 de Julho de 1977 ([54]), o Tribunal de Justiça, na linha do Acórdão Royer, considerou, na parte dispositiva, que “a emissão do documento especial previsto no artigo 4º da directiva do Conselho nº 68/360 ([55]), (...) tem apenas um efeito declarativo e não pode, para os estrangeiros que recebem os seus direitos do artigo 48º do Tratado CEE ([56]) ou de outras disposições paralelas, ser assimilado a uma autorização de residência que implique um poder de apreciação das autoridades nacionais, tal como a que é prevista para a generalidade dos estrangeiros”. Declara-se também que “pertence às autoridades nacionais de cada Estado aplicar, se a isso houver lugar, sanções penais pela omissão de uma pessoa (...) se munir de um dos documentos de identidade referidos no artigo 3º, nº 1, da directiva nº 68/360, sendo certo que as penalidades aplicadas não devem ultrapassar uma medida proporcional à natureza da infracção cometida”.

Na fundamentação, argumenta-se que “em caso algum essas sanções podem ter uma gravidade tal que se tornem um entrave à liberdade de entrada e de permanência prevista no Tratado”.

4.3.3.3. No Caso Pieck discutia-se a situação de um cidadão holandês residente no Reino Unido, cuja autorização de residência (de seis meses) havia expirado sem ter pedido a sua renovação e em relação ao qual se colocava a hipótese de expulsão.

O acórdão, de 3 de Julho de 1980 ([57]), adere à solução do Caso Sagulo, reproduzindo-a quanto à afirmação do carácter declarativo do «Cartão de Residência de Nacional de um Estado- -membro da CEE», mas vai mais longe e afirma expressamente que “a omissão, por um estrangeiro comunitário a que se aplique o regime de livre circulação de trabalhadores, de se munir do título de residência especial previsto no artigo 4º da directiva nº 68/360 não pode ser sancionada por expulsão ou por pena de prisão”.

Para justificar esta última conclusão, recuperaram-se argumentos já utilizados no Acórdão Watson e Belmann, de 7 de Julho de 1976 ([58]):

- “Entre as sanções associadas à inobservância de formalidades exigidas pela constatação do direito de residência de um trabalhador protegido pelo direito comunitário, a expulsão é certamente incompatível com as disposições do Tratado, sendo certo que uma tal medida constitui a negação do próprio direito conferido e garantido pelo Tratado (...)”;

- “Quanto às outras sanções, como a multa ou a prisão, (...) não se justificaria associar-lhe uma sanção tão desproporcionada à gravidade da infracção que se tornasse um entrave à livre circulação de trabalhadores. Tal seria o caso se essa sanção se tratasse da pena de prisão” ([59]).


4.3.4. Concluída esta incursão pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, torna-se possível ensaiar uma síntese quanto ao sentido geral a retirar das disposições comunitárias relativas à livre circulação de pessoas e às medidas de excepção, à luz da descrita intervenção judicial ([60]).

Inequivocamente, o direito de livre circulação de pessoas, no plano comunitário, é um direito directamente conferido pelo Tratado de Roma e que, portanto, é adquirido independentemente da emissão de um título de residência pela autoridade competente do Estado- -membro. A derrogação ao princípio da livre circulação apenas se pode fundar nas reservas de ordem, segurança e saúde públicas. Tais reservas devem ser entendidas como excepções ao direito de livre circulação e, como tal, devem ser interpretadas restritivamente.

É certo que os Estados-membros têm competência para impor restrições baseadas em razões de ordem, segurança e saúde públicas, mas,+ dada a aplicabilidade directa do princípio da livre circulação, essas medidas estão sujeitas a controlo jurisdicional dos tribunais internos e ao controlo de legalidade do Tribunal de Justiça.

Considerando, em especial, a excepção de ordem pública, pode sustentar-se que só podem ser colocados entraves, com esse fundamento, à livre circulação de nacionais de um Estado-membro no território de outro Estado-membro, quando a sua presença ou o seu comportamento, individualmente considerados, constituam uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem pública. E as medidas adoptadas devem ser adequadas a essa gravidade, segundo um critério fundado no princípio da proporcionalidade.

Assim, a simples existência de antecedentes criminais ou a omissão de formalidades administrativas não bastam para justificar a expulsão da pessoa visada. O que leva JOÃO MOTA DE CAMPOS a afirmar que, para o Tribunal de Justiça, “a simples omissão pelo nacional de um Estado-membro das formalidades relativas ao acesso, à deslocação ou à permanência dos estrangeiros não é de natureza a constituir, em si mesma, uma ameaça à ordem e segurança públicas nem justifica uma detenção provisória tendo em vista a sua expulsão” ([61]). E, no mesmo contexto, permite a MARIA LUÍSA DUARTE considerar que “a medida restritiva deve ser necessária e adequada face ao objectivo de proteger interesses fundamentais do Estado- -membro (-) – o que exclui, desde logo, a legalidade de uma medida de expulsão de trabalhadores comunitários em situação irregular” ([62]).


4.4. À questão dogmática por nós anteriormente colocada acerca da aplicabilidade do Decreto-Lei nº 244/98, em matéria de expulsão, aos estrangeiros comunitários, ex vi do artigo 31º do Decreto-Lei nº 60/93, podemos agora responder que não é viável uma aplicação ampla do regime geral de estrangeiros.

Como vimos, os estrangeiros comunitários apenas podem ser expulsos por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública, sendo ainda de atender às restrições interpretativas que ficaram demonstradas – o que condiciona, nesses precisos termos, quer a expulsão judicial, quer a expulsão administrativa, sempre que devam ser aplicadas. Porém, quando – à luz do Decreto-Lei nº 60/93 – se justifique a expulsão, haverá necessariamente lugar à aplicação subsidiária do Decreto-Lei nº 244/98, em tudo o que não estiver regulado naquele diploma especial.

Chegados aqui, e munidos dos elementos doutrinais, normativos e jurisprudenciais que fomos coligindo no texto, cabe apreciar a situação concreta que se nos apresenta no processo.


III


1. As autoridades políticas e judiciais do Reino de Espanha têm manifestado várias vezes, como é do domínio público, o seu interesse na entrega pelo Estado português de José Luís Tellechea Maya – mas têm falhado as várias tentativas empreendidas para alcançar esse desiderato.

Como é sabido, o Supremo Tribunal de Justiça desatendeu o pedido de extradição formulado por Espanha. No processo era imputado ao extraditando a prática de um crime de colaboração com grupo terrorista, previsto no Código Penal espanhol, mas aquele tribunal superior considerou, entre outros argumentos, que os factos indicados no pedido não integravam os elementos típicos do crime de organização terrorista, previsto, à data dos factos (1989), no artigo 288º do Código Penal português, que não puniria actos de simples apoio ou colaboração, diferentemente do que sucederia com o novo artigo 300º, após a revisão de 1995 – não se cumprindo assim a exigência legal da dupla incriminação ([63]).

Não cabe aqui analisar o decidido, em particular no segmento mencionado, mas tão-só equacionar, a partir daí, os caminhos que então se abriam para persistir na pretendida perseguição criminal do visado.

Perante a improcedência do pedido de extradição, eram hipoteticamente possíveis três vias de solução ([64]): ou o Estado espanhol formulava outro pedido de extradição com base em novos factos; ou o Estado espanhol fazia uso do instituto da transmissão de processos penais, requerendo a delegação do respectivo procedimento criminal nas autoridades judiciárias portuguesas ([65]); ou se considerava verificada, no caso, a competência originária dos tribunais portugueses para julgamento do crime de organização terrorista, ainda que cometido no estrangeiro, ao abrigo do artigo 5º, nº 1, alínea a), do Código Penal, sendo o então arguido julgado em Portugal ([66]).

Nenhuma dessas soluções foi intentada, pelo que a entrega do visado, pretendida pelas autoridades espanholas, passou a poder apenas equacionar-se no plano de uma eventual expulsão. Frustrada a expulsão judicial, face à decisão já transitada do Tribunal da Comarca de Sintra, coloca-se, pois, a hipótese da expulsão administrativa.


2. Note-se, antes de mais, que a expulsão não pode ser vista como um sucedâneo da extradição.

Recusado um pedido de extradição e inviabilizado o uso de qualquer mecanismo alternativo de perseguição criminal do extraditando, pode gerar-se efectivamente uma situação de impunidade. O visado deixa de poder ser perseguido no Estado de acolhimento pelo crime imputado, tornando ilegítima qualquer restrição aos seus direitos. E dessa situação não decorre necessariamente a possibilidade de expulsão do indivíduo em causa, que sempre dependerá da verificação dos requisitos próprios dessa medida.


2.1. Como se viu supra, a figura da expulsão administrativa apenas terá cabimento relativamente a “estrangeiro que entre ou permaneça ilegalmente em território nacional” (artigo 119º, nº 1, do Decreto-Lei nº 244/98, ex vi do artigo 31º do Decreto-Lei nº 60/93).

Dos factos descritos resulta que Tellechea Maya se encontra em situação irregular. Não está munido de bilhete de identidade ou de passaporte válidos, não lhe foi conferido qualquer título de residência e foi definitivamente desatendido o seu pedido de asilo.

Desconhecem-se as circunstâncias da sua entrada em Portugal, pelo que não é possível afirmar que tenha penetrado irregularmente em território nacional – no entanto, aqui permanece actualmente, sem que disponha de qualquer autorização de residência ou de permanência ([67]), da qual não está dispensado ([68]).

Está, portanto, configurada uma situação de permanência irregular em território português ([69]).


2.2. Como se disse, a permanência irregular constitui fundamento de expulsão administrativa do cidadão que se encontra nessa situação, em conformidade com o disposto nos artigos 99º, nº1, alínea a), e 119º do Decreto-Lei nº 244/98. A ser aplicável a Tellechea Maya, em exclusivo, o regime deste Decreto-Lei, então estaria respondida positivamente a primeira questão da consulta: o mesmo poderia ser objecto de um processo de expulsão administrativa.

Porém, coloca-se a questão de saber se esse indivíduo beneficiará do estatuto de estrangeiro comunitário, enquanto alegado cidadão espanhol, caso em que lhe seria antes aplicável o regime do Decreto-Lei nº 60/93, integrado pelo Decreto-Lei nº 244/98 (ex vi do artigo 31º do primeiro diploma).

Como se viu antes, o visado não dispõe de bilhete de identidade ou de passaporte válidos, pelo que não lhe é possível demonstrar formalmente o seu vínculo de nacionalidade com um Estado comunitário. A falta de prova da nacionalidade terá sido determinante na decisão do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de indeferimento do pedido de emissão de cartão de residência apresentado por Tellechea Maya, como se dá conta no parecer da Auditoria Jurídica do Ministério da Administração Interna (MAI) de 13 de Julho de 2001. Mas decorrerá daí a inaplicabilidade ao interessado do regime do Decreto-Lei nº 60/93?

Note-se que, apesar dessa falta de prova, nunca o SEF sustentou claramente a não aplicação ao requerente do regime dos estrangeiros comunitários, com a consequente aplicação directa do Decreto-Lei nº 244/98, enquanto regime geral e, quanto ao âmbito pessoal, de carácter residual face ao regime especial do Decreto-Lei nº 60/93.

É certo que foram suscitadas dúvidas sobre a nacionalidade de Tellechea Maya, o que terá motivado a proposta da Auditoria Jurídica do MAI no sentido de se providenciar pela obtenção, junto das autoridades competentes de Espanha, do reconhecimento da sua condição de cidadão espanhol – mas tal proposta, no entanto, não foi acolhida superiormente, certamente por não se considerar questionável a nacionalidade espanhola do indivíduo. Por outro lado, no memorando do Director-Geral do SEF acima referido é expressamente reconhecida a sua condição de cidadão comunitário.

Com efeito, existem diversos elementos que permitem concluir, com suficiente segurança, pela nacionalidade espanhola de Tellechea Maya. Foi nessa qualidade que Espanha pediu a sua extradição ([70]) e como tal tem sido considerado pelas várias entidades intervenientes no caso ([71]), conforme se evidenciou.

Partiremos, pois, desse pressuposto para a análise concreta da sua situação irregular.

De todo o modo, refira-se que quaisquer dúvidas que subsistam no espírito das autoridades administrativas que devam actuar em relação ao visado, acerca da definição formal do seu vínculo de nacionalidade com Espanha, sempre poderão ser dirimidas através da realização da diligência já antes sugerida pela Auditoria Jurídica do MAI e devidamente fundamentada.


2.3. Ao reconhecer-se ao indivíduo em causa a condição de cidadão comunitário, enquanto nacional de um outro Estado-membro, daí decorre a sua sujeição a todo o quadro normativo que ficou exposto.

Como se disse, levando em conta o disposto nas Directivas nºs 64/221/CEE, 68/360/CEE, 73/148/CEE, 90/364/CEE, bem como o regime inserto no Decreto-Lei nº 60/93, que as executa, e ainda a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre a matéria, os estrangeiros comunitários apenas podem ser expulsos por razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública.

Ou seja, Tellechea Maya, enquanto estrangeiro comunitário, apenas pode ser expulso por razões de ordem, segurança ou saúde públicas. Apesar de não ter sido concedido o título de residência por si pretendido, a verdade é que esse documento não tem efeito constitutivo, mas antes meramente declarativo do direito de residência que lhe é conferido pelo Tratado da Comunidade Europeia e pelas directivas indicadas.

In casu, esse indivíduo vem exercendo uma actividade não assalariada, como é reconhecido pelas autoridades administrativas intervenientes. No âmbito do exercício do direito de estabelecimento que assiste aos cidadãos comunitários, não podem ser colocados quaisquer entraves ao desenvolvimento dessa actividade, salvo os que resultam dos fundamentos de derrogação do princípio da livre circulação de pessoas.

Assim, apesar da permanência irregular de Tellechea Maya, esta não tem necessariamente como consequência a sua expulsão administrativa, contrariamente ao que aconteceria se se tratasse de estrangeiro não comunitário, sujeito ao regime do Decreto-Lei nº 244/98.

Designadamente, apenas poderá ser posto em causa esse seu direito de livre circulação quando a sua presença ou o seu comportamento, individualmente considerados, constituam uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem e segurança públicas.

Ora, como se afirmou no Acórdão Royer, “a simples omissão, pelo nacional de um Estado-membro, das formalidades relativas ao acesso e permanência de estrangeiros não constitui, em si mesma, um comportamento que ameace a ordem e a segurança públicas”.

Por outro lado, também a mera existência de antecedentes criminais não pode determinar a aplicação automática de medidas derrogatórias (artigo 3º, nº 2, da Directiva nº 64/221/CEE e artigo 13º, nº 2, do Decreto-Lei nº 60/93), sendo necessária uma actuação individual particularmente grave, que afecte interesses fundamentais da sociedade (como se assinalou nos Acórdãos Rutili e Bouchereau). Neste contexto, é manifestamente insuficiente a condenação por crime de falsificação, na pena de 7 meses de prisão, aplicada a Tellechea Maya, em 30 de Setembro de 1996, quer pela menos significativa gravidade do facto, quer pelo muito tempo decorrido, sem que haja conhecimento de outras condenações ou comportamentos que façam perigar a ordem pública ou a segurança pública nacionais.

Também a caducidade do documento de identificação não pode constituir fundamento de expulsão, conforme dispõem os artigos 3º, nº 3, da Directiva nº 64/221/CEE e 13º, nº 3, do Decreto-Lei nº 60/93. É certo que isso é dito nessas normas no pressuposto de que tal documento, quando válido, tenha servido para permitir a entrada no país ou a emissão do título de residência – e, como se viu, desconhecem-se as circunstâncias da entrada de Tellechea Maya em Portugal e nunca foi emitido a seu favor título de residência. Mas, não obstante a entrada ou permanência ab initio irregulares não estarem expressamente previstas na letra das normas indicadas, nem por isso deixam de se comportar no seu espírito ([72]), como parece admitir o Tribunal de Justiça ao considerar que a falta de bilhete de identidade ou de passaporte válidos, ou de título de residência, não justificam uma expulsão, embora possam fundamentar sanções, a fixar por cada Estado, que não ultrapassem uma medida proporcional à natureza da infracção cometida (como se estatuiu nos Acórdãos Sagulo e Pieck).

Não se vislumbrando factos ou circunstâncias que integrem as cláusulas de excepção previstas nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 60/93, cumpre concluir pela inviabilidade, em concreto, da expulsão administrativa de Tellechea Maya ([73]) ([74]).


2.4. A conclusão de que não é possível a expulsão por permanência irregular do indivíduo em causa retira relevância à questão da possibilidade de recurso contencioso do indeferimento do seu pedido de emissão de título de residência, suscitada no memorando do Director-Geral do SEF e no parecer de 28 de Janeiro de 2002 da Auditoria Jurídica do MAI.

Não há notícia de que tenha recorrido contenciosamente dessa decisão, embora não haja garantia de que a mesma seja já insusceptível de recurso.

A haver recurso, a lei atribui-lhe, como regra, efeito suspensivo (artigo 28º, nº 2, do Decreto-Lei nº 60/93). E, a ser procedente, poderá vir a ter como consequência última a emissão do requerido título de residência, sanando a situação irregular em que se encontra o interessado.

Mas ainda que não haja tal recurso (ou que o mesmo não tenha provimento), assim se consolidando a permanência irregular do visado, isso nada acrescenta à situação já anteriormente existente, que, em qualquer caso, não determina a expulsão, como se procurou demonstrar.


IV


1. Respondida negativamente a primeira questão da consulta, importa avançar para a segunda questão: como deve actuar o SEF perante a continuidade da situação irregular do indivíduo em causa ?

Tendo sido indeferida a pretendida emissão de cartão de residência de nacional de um Estado-membro da Comunidade Europeia ([75]), e sendo impossível, no caso, a expulsão administrativa, persistirá necessariamente a situação irregular do indivíduo em causa em território nacional, enquanto a mesma não for sanada pela obtenção de documento de identificação válido e do respectivo título de residência ([76]).

Em tese, justificar-se-ia a existência de um qualquer meio que dissuadisse o visado de prosseguir nessa situação, i.e., que o levasse a providenciar pela obtenção de novo documento de identificação e, subsequentemente, do título de residência. É essa função que, noutros sistemas legais, é desempenhada por sanções pecuniárias ([77]).

Como se referiu, a jurisprudência comunitária, que colocou na disponibilidade dos Estados-membros da Comunidade a definição das respectivas sanções, tem reconhecido a multa ou a coima como sanções adequadas a penalizar situações de omissão de formalidades respeitantes à regularização da entrada ou permanência em território de um Estado-membro por nacional de outro Estado-membro (conforme os citados Acórdãos Sagulo e Pieck). E, a esse propósito, tem convocado o princípio da proporcionalidade como limite à competência sancionatória dos Estados e como critério de ponderação entre a gravidade da infracção e a gravidade da sanção ([78]).

Importa, pois, verificar se na nossa ordem jurídica existem disposições legais que prevejam sanções (pecuniárias ou outras) para a permanência irregular ou para a falta de documento de identificação.


2. Quanto à permanência irregular, o artigo 140º, nº 1, do Decreto-Lei nº 244/98, com a epígrafe “permanência ilegal”, prevê como contra-ordenação a situação “em que o cidadão estrangeiro exceda o período de permanência autorizado em território português”, estabelecendo depois quatro diferentes molduras de coima, em função do número de dias de excesso do período de permanência.

Literalmente, a norma rege para casos em que houve prévia autorização de permanência ou de residência, que entretanto caducou, e não para casos em que houve permanência irregular ab initio. Não obstante poder justificar-se igual tratamento das duas situações, por identidade de razões, a verdade é que se trata de norma sancionatória, cuja interpretação por analogia está vedada [artigo 1º, nº 3, do Código Penal, ex vi do artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro ([79]) ([80])].

Não está, pois, prevista na legislação de estrangeiros qualquer sanção para a situação irregular em que se encontra o indivíduo em causa.


3. Quanto à falta de documento de identificação, a eventual existência de um regime sancionatório pressuporá a consagração de uma obrigação do porte de documento de identificação.

Essa obrigação foi consignada no artigo 2º, nº 1, da Lei nº 5/95, de 21 de Fevereiro ([81]), nele se estipulando que “os cidadãos maiores de 16 anos devem ser portadores de documento de identificação sempre que se encontrem em lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial”. Na parte que interessa ao caso sub judicio, lia-se no nº 2, alínea b), desse preceito, que “para os efeitos do número anterior, considera-se documento de identificação, (...) o título de residência, o bilhete de identidade ou o passaporte, para os cidadãos nacionais de Estados membros da Comunidade Europeia”.

Porém, não se previa qualquer sanção pecuniária para o incumprimento dessa obrigação do porte de documento de identificação ([82]). Associadamente a esse dever, apenas se estabelecia um dever de identificação perante agentes de forças ou serviços de segurança, no artigo 1º, nº 1, do diploma. E, na parte que interessa ao tema da consulta, resultava dessa disposição legal que o cumprimento desse dever de identificação podia ser imposto a quem permanecesse irregularmente no território nacional.

O conteúdo desse diploma ([83]) era vocacionado para aplicação fora do âmbito do processo penal, como decorria do teor do seu artigo 5º ([84]). Para o processo penal regia o artigo 250º do Código de Processo Penal (CPP). Porém, dada uma certa incongruência entre os dois blocos normativos ([85]), foi dada uma nova redacção ao artigo 250º do CPP, através da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, com o intuito de conjugar os modelos em confronto, da qual terá resultado a revogação tácita da Lei nº 5/95 ([86]).

O artigo 250º do CPP não contém norma correspondente ao citado artigo 2º, nº 1, da Lei nº 5/95, mas daquele decorre implicitamente a consagração da obrigação do porte de documento de identificação, ao estatuir o dever de identificação. E também nele se indicam como documentos de identificação os mencionados na citada alínea b) do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 5/95 [artigo 250º, nº 3, alínea b)] e se estabelece que o cumprimento desse dever de identificação pode ser imposto a quem “permaneça irregularmente no território nacional” (artigo 250º, nº 1). Sendo impossível a identificação, por falta do respectivo documento ([87]), está previsto um procedimento de identificação, a realizar por vários meios, designadamente a identificação por terceiro (nºs 5 a 9).

Perante o inevitável incumprimento, por parte de Tellechea Maya, da obrigação do porte de documento de identificação, e enquanto não obtiver documento de identificação válido ou título de residência, mostra-se legalmente possível a imposição a este, por órgãos de polícia criminal, dos referidos procedimentos de identificação.

Teoricamente, admite-se que essa identificação possa justificar-se por razões de controlo, no quadro de particulares circunstâncias concretas ([88]). No entanto, sempre se colocará, em cada ocasião, a questão da utilidade de uma tal actuação, quando é suficientemente conhecida do SEF a identidade do visado. Pelo que uma eventual futura realização de tais diligências (em particular, se sistemáticas) poderá ainda ser considerada violadora do Tratado da Comunidade Europeia, quando se traduza numa restrição excessiva ao respectivo direito de livre circulação ([89]).


4. Com referência à situação de permanência irregular de estrangeiro comunitário em território nacional, por falta de documento de identificação válido, e sendo inviável a sua expulsão, cumpre, pois, concluir que a lei portuguesa é omissa quanto a sanções pecuniárias.

Apenas está previsto um dever de identificação perante certas autoridades, que pode implicar a realização de procedimentos de identificação. Mas a exigência do cumprimento de tal dever, em concreto, tem de ser objectivamente justificada, nunca podendo traduzir-se, pelo seu eventual carácter abusivo, numa restrição intolerável ao direito de livre circulação do visado.


V


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1ª) O Decreto-Lei nº 244/98, de 8 de Agosto, que regula as condições de entrada, permanência e saída de estrangeiros do território português, constitui lei geral relativamente ao Decreto-Lei nº 60/93, de 3 de Março, que regula as condições especiais de entrada e permanência em território português de nacionais de Estados-membros da União Europeia;

2ª) Nos termos das disposições combinadas dos artigos 99º, nº 1, alínea a), 119º, nºs 1 e 8, 121º e 136º, nº 2, do Decreto-Lei nº 244/98, o estrangeiro que permaneça irregularmente em território português será objecto de expulsão determinada por autoridade administrativa;

3ª) Porém, os nacionais de Estados-membros da União Europeia, enquanto titulares do direito de livre circulação no espaço comunitário, apenas poderão ser objecto de expulsão, nos termos referidos na conclusão anterior, quando ocorram razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública que a justifiquem, em conformidade com o disposto na Directiva nº 64/221/CEE, de 25 de Fevereiro de 1964, e nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 60/93;

4ª) A situação de permanência irregular em que se encontra um estrangeiro comunitário em território nacional, devido a não possuir bilhete de identidade ou passaporte válidos, nem qualquer título de residência, não é por si bastante para integrar as cláusulas de ordem pública ou de segurança pública que fundamentam a derrogação do princípio da livre circulação de pessoas, o que inviabiliza a sua expulsão administrativa;

5ª) A referida situação irregular desse estrangeiro comunitário em território nacional não está sujeita a qualquer sanção na legislação portuguesa;

6ª) Enquanto essa situação irregular não for sanada, apenas se impõe ao cidadão comunitário em causa um dever de identificação perante órgãos de polícia criminal, nos termos do artigo 250º, nº 1, do Código de Processo Penal, o que implica, dada a falta de documento de identificação válido na posse do visado, a sua sujeição ao procedimento de identificação previsto nos nºs 5 a 9 daquela disposição legal;

7ª) A exigência do cumprimento de tal dever de identificação, nos termos referidos na conclusão anterior, tem de ser objectivamente justificada, nunca podendo traduzir-se numa restrição intolerável ao princípio da livre circulação de pessoas, consagrado no Tratado da Comunidade Europeia.





([1]) Ofício nº 358, de 29 de Janeiro de 2002, com registo de entrada na Procuradoria-Geral da República datado do dia 30 subsequente.
([2]) De acordo com informações telefónicas colhidas, já na pendência do presente processo, junto dos tribunais administrativos, pelos serviços de apoio deste Conselho Consultivo, por determinação do relator, não terá ali dado entrada até então qualquer recurso contencioso do referenciado despacho.
([3]) Conforme cópia solicitada ao Tribunal da Comarca de Sintra, já na pendência do presente processo, pelos serviços de apoio deste corpo consultivo, por determinação do relator.
([4]) Alterado pelo Decreto-Lei nº 250/98, de 11 de Agosto.
([5]) Do artigo 1º desse diploma.
([6]) Alterado pela Lei nº 97/99, de 26 de Julho, e pelo Decreto-Lei nº 4/2001, de 10 de Janeiro, este por sua vez rectificado pela Declaração de Rectificação nº 3-A/2001, de 31 de Janeiro. Para regulamentação desse regime jurídico foi emitido o Decreto Regulamentar nº 5-A/2000, de 26 de Abril, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 7-B/2000, de 30 de Junho, e alterado pelo Decreto Regulamentar nº 9/2001, de 31 de Maio. Anteriormente, regia neste domínio o Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, rectificado pela Declaração de Rectificação nº 37/93, de 31 de Março, e complementado pelo Decreto Regulamentar nº 43/93, de 15 de Dezembro (cfr., quanto à sua revogação, os artigos 162º e 163º do citado Decreto-Lei nº 244/98).
([7]) Do artigo 1º, nº 1, do referido texto legal.
([8]) Igualmente sustentando que o Decreto-Lei nº 244/98 constitui a “lei geral” a que se reporta o artigo 31º do Decreto-Lei nº 60/93, v. PAULO MANUEL COSTA, Regime Jurídico de Entrada e Permanência de Estrangeiros Anotado e Comentado, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1999, p. 237.
([9]) De 27 de Abril de 1995 (não publicado). O parecer teve por objecto a situação de retenção, na zona internacional de porto ou aeroporto, de estrangeiro que tente penetrar irregularmente no país.
([10])Estamos manifestamente no domínio do direito internacional imperativo ou jus cogens, a que vários autores atribuem valor supraconstitucional (cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª edição, reimpressão, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 116-124; JORGE MIRANDA, «As Relações entre Ordem Internacional e Ordem Interna na actual Constituição Portuguesa», in Ab Vno ad Omnes-75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 275- -301; e EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Internacional Público-Conceito e Fontes, vol. I, Lex, Lisboa, 1998, pp. 430-437). Sobre esse enquadramento de direito internacional público do instituto da expulsão, v. LUÍS SILVEIRA, «O Acolhimento e Estadia do Estrangeiro», Documentação e Direito Comparado, nº 18 (1984), pp. 165-234, e MARIA LUÍSA DUARTE, A Liberdade de Circulação de Pessoas no Direito Comunitário, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pp. 21-64.
Note-se que alguma protecção internacional acrescida, em caso de expulsão, pode resultar, em concreto, do direito internacional convencional. A este propósito, refira-se, por exemplo, que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) não garante directamente aos estrangeiros um direito de não serem expulsos (ou um direito de não serem extraditados), mas pode verificar-se aquilo que tem sido designado de “protecção por ricochete” (v. FRÉDÉRIC SUDRE, Droit International et Européen des Droits de l'Homme, 3ème édition, PUF, Paris, 1997, p. 263), que permite estender a protecção da CEDH a direitos não expressamente protegidos pela Convenção, os quais surgem as­sim como “direitos indirectos derivados” (na terminologia de SUDRE, ob. cit., pp. 253 e 263). Trata-se de direitos de que o indivíduo só se pode prevalecer em conexão com outros direitos expressamente garantidos pela Convenção. Com efeito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que as decisões de expulsão (bem como as de extradição ou de recusa de entrada) são susceptíveis de violar o artigo 3º da CEDH, enquanto proíbe a prática de tratamentos desumanos ou degradantes, quando aquelas possam colocar os estrangeiros em risco de serem sujeitos, no país de destino, a tratamentos contrários à citada norma – como ficou expresso nos acórdãos dos Casos Cruz Varas (20 de Março de 1991) e Vilvarajah (30 de Outubro de 1991) ou, mais recentemente, no acórdão do Caso Hilal (6 de Março de 2001). Sobre toda esta matéria, v., em especial, JUAN ANTÓNIO CARRILLO SALCEDO e FRÉDÉRIC SUDRE (em comentários, respectivamente, aos artigos 1º e 3º da CEDH), in LOUIS-EDMOND PETTITI, EMMANUEL DECAUX e PIERRE-HENRI IMBERT (dir.), La Convention Européenne des Droits de l'Homme-Commentaire article par article, Paris, Económica, 1995, pp. 135-141 e 155-175.
([11]) Sobre o tema dos estrangeiros na Constituição, cfr. MÁRIO TORRES, «Prefácio», in ANA VARGAS e JOAQUIM RUAS, Direito dos Estrangeiros, Livraria Arco-Íris/Edições Cosmos, Lisboa, 1995, pp. 7-27, e «O Estatuto Constitucional dos Estrangeiros», Scientia Ivridica, Tomo L, nº 290, Maio-Agosto 2001, pp. 7-27.
([12]) Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, que atribuiu a essa norma o nº 5, renumerado para o actual nº 2 apenas na 4ª revisão, de 1997.
([13]) Leis Constitucionais nºs 1/92, de 25 de Novembro, 1/97, de 20 de Setembro, e 1/2001, de 12 de Dezembro.
([14]) No artigo 23º, nº 4, da versão inicial, a que passou a corresponder o nº 4 do artigo 33º após a primeira revisão (Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro).
([15]) Sobre esta distinção, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VI­TAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 211.
([16]) Sobre esta regra, que se deduz do princípio da legalidade e do princípio do monopólio estadual da função jurisdicional, e se exprime na máxima nulla poena sine processu, v. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, pp. 55- -56. No plano legal, tal regra extrai-se dos artigos 2º (“A aplicação de penas e de medidas de segurança criminais só pode ter lugar em conformidade com as disposições deste Código”) e 8º (“Os tribunais judiciais são os órgãos competentes para decidir as causas penais e aplicar penas e medidas de segurança criminais”) do actual Código de Processo Penal.
([17]) Segundo a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 4/2001. Na redacção originária deste artigo 119º, nº 1, do Decreto-Lei nº 244/98 usava-se a fórmula “estrangeiro que penetre ou permaneça irregularmente em território nacional”, que não divergia substancialmente da agora utilizada. Com efeito, esta alteração terminológica não é significativa, podendo dizer-se que o legislador usa indistintamente as expressões “entrada e permanência irregular” e “entrada e permanência ilegal”, quer porque o artigo 136º, na versão originária, já usava a expressão “entrada e permanência ilegal”, a qual também sempre figurou na epígrafe do artigo 119º, quer porque o artigo 99º, nº 1, alínea a), não foi alterado, continuando a referir-se à expulsão de estrangeiros “que penetrem ou permaneçam irregularmente no território português” – em conformidade, aliás, com o texto constitucional.
([18]) Ressalva-se a possibilidade de apresentação, por parte do estrangeiro que entrou ilegalmente, de pedido de asilo nos termos do artigo 119º, nº 5, o que impede a organização do processo de expulsão, pelo menos até à decisão do pedido (sendo definitivo o impedimento se for aceite o pedido de asilo).
([19]) A ordem jurídica comunitária fundamenta-se em quatro grandes liberdades económicas: livre circulação de mercadorias, de pessoas, de serviços e de capitais. Para um enquadramento geral dessas liberdades, v. JOSÉ CARLOS MOITINHO DE ALMEIDA, Direito Comunitário. A Ordem Jurídica Comunitária. As Liberdades Fundamentais na C.E.E., Centro de Publicações do Ministério da Justiça, Lisboa, 1985.
([20]) O chamado espaço Schengen integra vários países da União Europeia (ainda não a totalidade) e traduz-se na supressão de controlos nas fronteiras internas entre esses Estados, com o consequente incremento da liberdade de circulação de pessoas, passando o controlo de pessoas a efectuar-se nas respectivas fronteiras externas. A criação do espaço Schengen funda-se no «Acordo entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns», assinado em Schengen a 14 de Junho de 1985 (dito Acordo de Schengen), e na «Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985 entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns», assinada em Schengen a 19 de Junho de 1990 (dita Convenção de Aplicação de 1990). A integração de Portugal no espaço Schengen funda-se, por sua vez, no «Protocolo de Adesão do Governo da República Portuguesa ao Acordo Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen a 14 de Junho de 1985» e no «Acordo de Adesão da República Portuguesa à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 14 de Junho de 1985, assinada em Schengen a 19 de Junho de 1990», concluídos em Bona, a 25 de Junho de 1991. O Protocolo de Adesão de Portugal ao Acordo de Schengen e o Acordo de Adesão de Portugal à Convenção de Aplicação de 1990 foram aprovados, para adesão, pela Resolução da AR nº 35/93, de 2 de Abril de 1992 (publicada no DR, I, de 25 de Novembro de 1993), e ratificados pelo Decreto do PR nº 55/93, de 29 de Setembro de 1993 (publicado no DR, I, de 25 de Novembro de 1993), tendo o Aviso de depósito dos instrumentos de ratificação e de entrada em vigor sido publicado, sob o nº 93/95, no DR, I, de 26 de Abril de 1995. O espaço Schengen está operativo desde 26 de Março de 1995, inicialmente apenas com sete países: Portugal, Espanha, França, Alemanha, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Posteriormente integraram-se nele, em diferentes datas, outros seis países: Itália, Áustria, Grécia, Dinamarca, Finlândia e Suécia. Actualmente funciona com estes treze Estados comunitários.
([21]) Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Novembro de 1995, Boletim do Ministério da Justiça, nº 451, p. 130, com um voto de vencido, e no qual se cita um outro aresto de idêntico teor, lavrado no processo nº 47683, de 30 de Março de 1995.
([22]) Sobre este conceito de estrangeiro, cfr. FRANÇOIS JULIEN-LAFERRIÈRE, «L´entrée, le séjour et le travail des étrangers dans la Communauté», in MIREILLE DELMAS-MARTY (dir.), Quelle Politique Pénale pour l´Europe?, Economica, Paris, 1992, pp. 35-49, em especial p. 38.
([23]) Cfr., entre nós, o artigo 33º, nº 1, da Constituição: “Não é admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional.”
([24]) Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 1991, Boletim do Ministério da Justiça, nº 412, p. 229, e Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, tomo 5, p. 31 (no qual já se sustenta genericamente uma incompatibilidade da pena acessória de expulsão com o direito comunitário, mas ressalvando a possibilidade de expulsão em caso de alto grau de perigosidade do estrangeiro, que sucederia no caso), e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 1993, Boletim do Ministério da Justiça, nº 423, p. 172, e Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo 1, p. 160 (que conclui claramente pela possibilidade de expulsão de nacionais de Estado-membro das Comunidades Europeias).
([25]) Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Julho de 1996, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo 2, p. 229 (que reconduz ao artigo 12º do Decreto-Lei nº 60/93, enquanto prevê derrogações ao princípio da livre circulação de pessoas, o fundamento para permitir a expulsão de estrangeiros comunitários). Para uma referência a arestos do Supremo Tribunal de Justiça dos anos de 1996 e 1997 não publicados, na mesma linha do ora citado, a par de uma análise da aludida querela jurisprudencial, v. CRUZ BUCHO, «Pena Acessória de Expulsão – Direito à Vida Privada e Familiar – Direito Comunitário», in Droga: Decisões de Tribunais de 1ª Instância, 1996. Comentários, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga, Lisboa, 1998, pp. 147-163, em especial nota 17.
([26]) Sobre este ponto, cfr. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., pp. 89-90. A recepção do direito comunitário na nossa ordem constitucional operou-se através do artigo 8º, nº 3, introduzido na revisão de 1982 (“As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos”), e a constitucionalização da União Europeia foi obtida por via da introdução do artigo 7º, nº 6, verificada na revisão de 1992 (“Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica e social, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia”).
([27]) Sobre esta temática, cfr. JEAN-VICTOR LOUIS, A Ordem Jurídica Comunitária, 5ª edição, Comissão Europeia, Bruxelas/Luxemburgo, 1995, em especial pp. 137-207.
([28]) O Tratado da União Europeia foi assinado em Maastricht a 7 de Fevereiro de 1992 e veio a ser, entre nós, aprovado para ratificação pela Resolução da AR nº 40/92, de 10 de Dezembro de 1992 (publicada no DR, I, de 30 de Dezembro de 1992), e ratificado pelo Decreto do PR nº 63/92, de 17 de Dezembro de 1992 (publicado no DR, I, de 30 de Dezembro de 1992), tendo entrado em vigor em 1 de Novembro de 1993. Quanto ao Tratado de Amesterdão, a sua assinatura data de 2 de Outubro de 1997, e em Portugal foi aprovado para ratificação pela Resolução da AR nº 7/99, de 6 de Janeiro de 1999 (publicada no DR, I, de 19 de Fevereiro de 1999), e ratificado pelo Decreto do PR nº 65/99, de 10 de Fevereiro de 1999 (publicado no DR, I, de 19 de Fevereiro de 1999), tendo entrado em vigor em 1 de Maio de 1999.
([29]) Corresponde ao anterior artigo 8º, na numeração dada pelo Tratado de Maastricht.
([30]) Neste sentido, por palavras que aqui acompanhamos de perto, v. RUI MANUEL MOURA RAMOS, «Maastricht e os Direitos do Cidadão Europeu», in Das Comunidades à União Europeia – Estudos de Direito Comunitário, Coimbra Editora, Coimbra, 1994, p. 346. Na mesma linha, JORGE MIRANDA, Ma­nual de Direito Constitucional, tomo III, 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 160.
([31]) Anterior artigo 8º-A.
([32])Cfr. artigos 48º a 58º, integrados no Título III, sob a epígrafe “A livre circulação de pessoas, de serviços e de capitais”, da versão originária do Tratado de Roma, que instituiu a Comunidade Económica Europeia, os quais correspondem aos actuais artigos 39º a 48º desse Tratado (que, entretanto, passou a ser designado por Tratado da Comunidade Europeia), na versão resultante dos Tratados de Maastricht e Amesterdão.
([33]) JO nº 56, de 4 de Abril de 1964, p. 850/64.
([34]) Do preâmbulo do diploma.
([35]) JO nº L 257, de 19 de Outubro de 1968, p. 2.
([36]) JO nº L 257, de 19 de Outubro de 1968, p. 13.
([37]) E também sobre livre prestação de serviços, a que se referem os artigos 49º a 55º do Tratado da Comunidade Europeia – de que não curaremos, por escapar ao objecto do parecer.
([38]) JO nº L 172, de 28 de Junho de 1973, p. 14.
([39]) JO nº L 180, de 13 de Julho de 1990, p. 26.
([40]) A par desta Directiva nº 90/364/CEE, foram emitidos, na mesma data, outros dois diplomas sobre a matéria do direito de residência, de carácter mais específico: a Directiva nº 90/365/CEE, relativa ao direito de residência dos assalariados e não assalariados após a cessação da sua actividade profissional; e a Directiva nº 90/366/CEE, respeitante ao direito de residência dos estudantes (esta entretanto substituída pela Directiva nº 93/96/CEE, de 29 de Outubro de 1993).
([41]) Itálico nosso.
([42]) Para uma análise mais detalhada da Directiva nº 64/221/CEE, v. MARIA LUÍSA DUARTE, A Liberdade de Circulação...cit., pp. 273-326, e JOÃO MOTA DE CAMPOS, Manual de Direito Comunitário, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2000, pp. 535- -540.
([43]) Nos termos do terceiro parágrafo do artigo 249º (anterior artigo 189º) do Tratado da Comunidade Europeia, “a directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”.
([44])Quanto ao regulamento, o segundo parágrafo do artigo 249º (anterior artigo 189º) do Tratado da Comunidade Europeia define-o assim: “O regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados- -membros.”
([45]) Não oferece dúvidas na doutrina juscomunitária a possibilidade de expulsão com base nessas cláusulas de excepção. Com efeito, afirma MARIA LUÍSA DUARTE («Direito de residência dos trabalhadores comunitários e medidas de excepção – Reflexão sobre o significado do estatuto de trabalhador-cidadão na União Europeia», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXIX-nº 2, 1998, p. 501): “Como cláusulas de excepção, (...) são o fundamento jurídico no Tratado de uma conhecida prerrogativa de soberania dos Estados – limitar ou impedir o acesso e a permanência de cidadãos estrangeiros no seu território. Assim, as autoridades nacionais podem, mediante a invocação de valores societários fundamentais ligados aos imperativos da ordem pública, segurança pública e saúde pública, recusar a entrada de um cidadão de outro Estado-membro ou determinar a sua expulsão”. Também JOÃO MOTA DE CAMPOS admite a expulsão como medida de excepção à livre circulação (ob. cit., pp. 537-538). E, mesmo perante a instituição da cidadania da União pelo Tratado de Maastricht, RUI MANUEL MOURA RAMOS não hesita em reconhecer que ainda foi deixada em aberto aos Estados-membros a possibilidade de expulsão de cidadãos da União que não possuam a nacionalidade respectiva (ob. cit., p. 351, nota 74).
Note-se, a este propósito, que as normas sobre cidadania da União, em particular o nº 1 do artigo 18º (anterior artigo 8º-A) do Tratado da União Europeia, levaram MARIA LUÍSA DUARTE a sustentar que “as Directivas de 1990 sobre o direito de residência se devem considerar derrogadas na parte em que exigem um seguro de doença e a prova sobre a existência de recursos suficientes de subsistência no Estado-membro de acolhimento” («Direito de residência...» cit., p. 504), enquanto RUI MANUEL MOURA RAMOS, analisando a imposição – constante das directivas de 1990 – da prova da existência de meios de subsistência, afirma que “a condição posta à livre circulação e residência nas directivas de 1990, deve ter-se por caduca” (ob. cit., p. 348).
([46]) Como informa MARIA LUÍSA DUARTE, A Liberdade de Circulação...cit., p. 276, nota 14.
([47]) Recueil de la Jurisprudence de la Cour, 1974 (Deuxième partie), Luxembourg, pp. 1337- -1360.
([48]) Tradução nossa, bem como a das restantes citações de jurisprudência retiradas do Recueil de la Jurisprudence de la Cour.
([49]) Recueil...cit., 1974 (Première partie), pp. 631-669.
([50]) Recueil...cit., 1975-2, pp. 297-317.
([51]) Recueil...cit., 1975-7, pp. 1219-1244.
([52]) Recueil...cit., 1977 (Troisième partie), pp. 1999-2029.
([53]) Recueil...cit., 1976-3, pp. 497-529.
([54]) Recueil...cit., 1977 (Deuxième partie), pp. 1495-1515.
([55]) Refere-se ao denominado «Cartão de Residência de Nacional de um Estado-membro da CEE».
([56]) Actual artigo 39º.
([57]) Recueil...cit., 1980-6, pp. 2171-2203.
([58]) Recueil...cit., 1976-6, pp. 1185-1211.
([59]) Esta linha de orientação da jurisprudência comunitária tem-se mantido, sendo disso exemplo o bem mais recente Acórdão Wijsenbeek, de 21 de Setembro de 1999, Colectânea da Jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Primeira Instância, I, 1999-8/9 (B), pp. 6207-6267.
([60]) Na síntese que se segue atendeu-se, em particular, às resenhas feitas sobre esta matéria por JOÃO MOTA DE CAMPOS (ob. cit., pp. 537-538), MARIA LUÍSA DUARTE («Direito de residência...» cit., pp. 501-503) e LUÍS SILVEIRA («O Acolhimento...» cit., pp. 192-193).
([61]) Ob. cit., p. 537.
([62]) «Direito de residência...» cit., p. 503.
([63]) Cfr. acórdão de 26 de Fevereiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Jus­tiça, Ano V, Tomo 1, p. 230. Quanto ao princípio da dupla incriminação, encontra-se o mesmo consagrado no artigo 31º, nº 2, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal (Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, alterada pela Lei nº 104/2001, de 25 de Agosto), já constante do artigo 30º, nº 2, da Lei anterior, vigente à data do acórdão (Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro).
Para uma descrição mais pormenorizada do aresto e sua análise crítica, v. MÁRIO MENDES SERRANO, «Extradição-Regime e Praxis», in AA.VV., Cooperação Internacional Penal, I, Centro de Estudos Judiciários, 2000, pp. 93-95, nota 160.
([64]) Sobre este ponto, ibidem, pp. 51-53.
([65]) Sujeita às condições definidas no artigo 80º da Lei nº 144/99, correspondente ao artigo 75º da Lei nº 43/91.
([66]) Trata-se de um afloramento de extraterritorialidade, no contexto da vigência – no nosso sistema – do princípio da territorialidade como princípio-regra do regime de aplicação da lei criminal no espaço [artigo 4º, alínea a), do Código Penal]. A solução está consagrada no citado artigo 5º, nº 1, alínea a), do Código Penal, desde a sua versão originária, enquanto referida inicialmente ao artigo 288º e actualmente ao artigo 300º desse diploma. A verificação dessa competência internacional, no entanto, sempre dependeria de se considerar que os factos imputados poderiam integrar os elementos típicos do crime de organização terrorista, na primitiva versão (o que encontraria algum apoio em FIGUEIREDO DIAS, As «Associações Criminosas» no Código Penal Português de 1982 (Arts. 287º e 288º), Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência, Coimbra Editora, Coimbra, 1988, pp. 79-81), contra a opinião do STJ, que se teria de entender não formar, quanto a este ponto, caso julgado material, por se tratar de fundamentos da decisão (cfr. ANTUNES VARELA et alii, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 714, e GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1994, p. 33). A concretização dessa solução teria como efeito inviabilizar a hipótese alternativa da transmissão do processo (v. artigo 80º, nº 3, da Lei nº 144/99 e artigo 75º, nº 3, da Lei nº 43/91).
([67]) Seja à luz do Decreto-Lei nº 60/93, já que não dispõe de título de residência, seja ao abrigo do Decreto-Lei nº 244/98, uma vez que não beneficia de uma autorização de residência, de uma prorrogação de permanência ou de uma autorização de permanência (artigos 80º e ss., 52º e 55º).
([68]) A dispensa de autorização de residência aplica-se aos estrangeiros com funções diplomáticas ou consulares ou que prestem serviço em representações diplomáticas ou consulares e seus familiares (artigo 96º do Decreto-Lei nº 244/98).
([69]) Segundo a definição constante do artigo 136º, nº 2, do Decreto-Lei nº 244/98.
([70]) Cfr. teor do respectivo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, identificado na nota 63.
([71]) Designadamente, Tribunal da Relação de Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal da Comarca de Sintra e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
([72]) Na esteira deste entendimento se alinham as conclusões do Advogado-Geral, Christine Stix-Hackl, apresentadas em 13 de Setembro de 2001, no processo nº C-459/99 (Mouvement contre le racisme, l´antisémitisme et la xénophobie-ASBL contra Estado belga), disponíveis via INTERNET. Aí se considera que, apesar dessas situações não estarem expressamente previstas, delas não é lícito “a contrario concluir que, em tal caso, os Estados-membros poderiam tomar medidas de afastamento”. Sustenta-se que o artigo 3º, nº 3, da Directiva nº 64/221/CEE não pode ser interpretado a contrario, por se tratar de “lex specialis em relação ao princípio – geral – previsto no artigo 3º, nº 1”, pelo qual se regem as sanções a aplicar em caso de entrada irregular e que faz depender o afastamento do território da verificação da excepção de ordem pública aferida pelo comportamento pessoal do indivíduo em causa.
([73]) Essa contingência havia já sido admitida no citado memorando do Director-Geral do SEF e estava já implícita no sentido geral dos mencionados pareceres da Auditoria Jurídica do MAI.
([74]) A título de curiosidade, refira-se que, a ocorrer situação idêntica à da consulta, mas com os dois países, Portugal e Espanha, em posições inversas, verificar-se-ia uma manifestação prática do princípio da reciprocidade.
Com efeito, também em Espanha existem dois regimes distintos, consoante se trate de estrangeiros comunitários (Real Decreto 766/1992, de 26 de Junho, alterado pelo Real Decreto 737/1995, de 5 de Maio, e pelo Real Decreto 1710/1997, de 14 de Novembro) ou de estrangeiros não comunitários (Lei Orgânica 4/2000, de 11 de Janeiro, alterado pela Lei Orgânica 8/2000, de 22 de Dezembro), aplicando-se o regime destes últimos supletivamente aos primeiros. O regime espanhol para estrangeiros comunitários traduz--se igualmente na transposição das directivas que foram recebidas no nosso Decreto-Lei nº 60/93, havendo similitude entre as respectivas normas. Por isso, se compreende que na doutrina espanhola se afirme que o cartão de residência comunitário “não se assimila a uma autorização de residência ordinária, antes servindo como um mero título declarativo da situação de cidadão comunitário residente em outro país da União Europeia” e que, quanto a estrangeiros comunitários, “a medida de expulsão de Espanha haja de se aplicar de forma muito restritiva”, já que só é possível “quando assim o imponham razões de ordem pública, segurança pública ou saúde pública”, ficando reservada a sanção pecuniária “para os estrangeiros que incumpram suas obrigações com respeito ao pedido ou renovação do cartão de residente comunitário” (MIGUEL LÓPEZ-MUÑIZ GOÑI, La Nueva Ley de Extranjería, Colex, Madrid, 2001, pp. 239, 276 e 277, em tradução nossa). Aliás, a lei espanhola consagra expressamente, no seu artigo 15º, que a expulsão é uma das medidas possíveis quando o imponham razões de ordem, segurança ou saúde públicas e, no seu artigo 16º, que a omissão de formalidades só pode ser sancionada com multa, não podendo dar lugar a expulsão. Do mesmo modo, como informa MIGUEL LÓPEZ-MUÑIZ GOÑI, a jurisprudência espanhola reconheceu a existência de “um conceito europeu [de expulsão] de carácter restritivo, (...) tal como resulta da Jurisprudência do Tribunal Europeu assumida pelo (...) Tribunal Constitucional” (sentença de 20 de Julho de 1998, da 2ª Secção do Tribunal de Valência). Do teor dos muito arestos significativos, coligidos por aquele autor, sobre casos relacionados com cidadãos comunitários, destacam-se os seguintes trechos: “a omissão do pedido de cartão de residência (...) só pode ser sancionada com multa e não dar lugar à expulsão do território espanhol” (sentença de 15 de Setembro de 1994, do Tribunal Supremo); “entre os mecanismos implementados para assegurar o direito à livre circulação de pessoas, a normação comunitária limita os factos ou situações que podem justificar a proibição de entrada ou a expulsão (...)” e “essas razões hão-de estar ligadas à infracção da ordem pública, da segurança ou saúde públicas, imperantes no Estado em questão, conforme se contempla na Directiva do Conselho nº 64/221/CEE” (sentença de 14 de Maio de 1998, da 1ª Secção da Audiencia Nacional).
Sobre o actual regime espanhol de estrangeiros, v. tb. ANDRÉS RODRÍGUEZ BENOT e CÉSAR HORNERO MÉNDEZ (coord.), El Nuevo Derecho de Extranjería, Editorial Comares, Granada, 2001, e CAMINO VIDAL FUEYO, «La Nueva Ley de Extranjería a la luz del texto constitucional», Revista Española de Derecho Constitucional, Año 21, Núm. 62, Mayo-Agosto 2001, pp. 179-218.
([75]) Sem prejuízo do eventual provimento de um hipotético recurso contencioso dessa decisão de indeferimento, caso ainda seja possível, conforme supra equacionado.
([76])Sem prejuízo da possibilidade de emissão do pretendido título de residência, apesar da falta de documentos de identificação válidos, que o SEF sempre pode determinar, enquanto entidade competente para o efeito (artigo 24º, nº 1, do Decreto-Lei nº 60/93), em atenção à evidência da nacionalidade e da identidade do visado acima assinalada.
([77])No sistema espanhol, em que o artigo 16º do Real Decreto 766/1992 diz que a omissão de formalidades só pode ser sancionada com multa, o valor das multas resulta da articulação do artigo 27º desta lei com o artigo 55º da Lei Orgânica 4/2000, sendo que a multa será proporcional à gravidade das infracções, repartidas em leves, graves e muito graves, a que correspondem diferentes molduras de multa (neste sentido, MIGUEL LÓPEZ-MUÑIZ GOÑI, ob. cit., p. 294).
Segundo se colhe do acórdão do Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 1998 (Caso Comissão c/ Alemanha, Colectânea...cit., I, 1998-4, pp. 2131-2146), o regime sancionatório alemão nesta matéria constava da Gesetz über Einreise und Aufenthalt von Staatsangehörigen der Mitgliedstaaten der Europäischen Wirtschaftsgemeinschaft, de 22 de Julho de 1969, cujo § 12 a) classificava como autor de infracção administrativa o beneficiário da livre circulação que permanecesse no território sem passaporte, documento que o substituísse ou autorização de residência, e que a sancionava com uma coima de um máximo de 5000 DM. Aí se fazia um paralelo com a legislação que impunha aos nacionais alemães a obrigação de apresentar o bilhete de identidade a pedido de autoridade competente (§ 5 da Gesetz über Personalausweise, de 19 de Dezembro de 1950), cujo incumprimento era sancionado com uma coima que podia ir até 1000 DM (segundo o § 17 da Gesetz über Ordnungswidrigkeiten, de 24 de Maio de 1968), o que foi considerado um “tratamento desmesuradamente diferente”, desfavorável aos estrangeiros comunitários, em violação do Tratado, por criar um entrave à livre circulação de pessoas pelo que se justificaria um tratamento comparável das duas situações, de acordo com o princípio da não-discriminação.
([78]) Sobre o princípio da proporcionalidade e sua caracterização nos termos referidos no texto, v. MARIA LUÍSA DUARTE, A Liberdade de Circulação...cit., pp. 300-307.
([79]) Este último alterado pelos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro, e 244/95, de 14 de Setembro, e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro.
([80]) O princípio da proibição da analogia, em matéria contra-ordenacional, pode ainda ser deduzido directamente do princípio da legalidade, consagrado no artigo 2º do Decreto- -Lei nº 433/82. Perfilhando este entendimento, perante norma equivalente do direito alemão (§ 3 da Gesetz über Ordnungswidrigkeiten), v. MANUEL LOPES ROCHA, MÁRIO GOMES DIAS e MANUEL ATAÍDE FERREIRA, Contra-Ordenações. Legislação e Doutrina, Escola Superior de Polícia, Lisboa, 1994, p. 27, nota 14.
([81]) Alterada pela Lei nº 49/98, de 11 de Agosto.
([82]) Note-se que também a legislação sobre identificação civil e emissão de bilhete de identidade (Lei nº 33/99, de 18 de Maio), respeitante aos nacionais portugueses, não contém qualquer previsão de sanção pecuniária pela falta desse documento. O titular pode justificar a sua falta por extravio, furto ou roubo (artigo 41º, nº 1), sendo possível, nesses casos, pedir 2ª via (artigo 19º, nºs 1 e 2) – mas, mesmo que aquela justificação não seja verdadeira, não está prevista qualquer sanção. Entre as disposições sancionatórias, prevendo coimas (artigos 47º a 50º), nenhuma se refere a situações de falta de porte do bilhete de identidade.
([83]) Os artigos 1º, nº 1, e 3º, nº 1, do diploma não correspondem ao teor das normas equivalentes constantes da proposta de lei que lhe deu origem. Na sua versão aprovada na Assembleia da República (decreto nº 161/VI), a obrigação de identificação era bem mais extensa, podendo ser exigido o seu cumprimento “quando existam razões de segurança interna que o justifiquem”. Contudo, o decreto parlamentar, com esse conteúdo, veio a ser objecto de fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, que julgou inconstitucionais essas normas, “enquanto autorizam que uma pessoa insuspeita da prática de qualquer crime e em local não frequentado habitualmente por delinquentes possa ser sujeita a identificação policial, com base na invocação de razões de segurança interna, através de procedimento susceptível de o vir a privar da liberdade por um período até seis horas, por violação do disposto no artigo 27.°, nºs 1, 2 e 3, da Constituição” (Acórdão nº 479/94, de 7 de Julho de 1994, in DR, I, 24 de Agosto de 1994).
([84]) “O disposto no presente diploma não prejudica a aplicação das providências previstas no âmbito do processo penal.”
([85])Devido às limitações no âmbito de aplicação da Lei nº 5/95 que resultaram das vicissitudes legislativas referidas na nota 80.
([86]) Neste sentido, considerando que o conteúdo da Lei nº 5/95 passou a fazer parte da previsão do artigo 250º do CPP, v. JOSÉ LUÍS LOPES DA MOTA, «A Revisão do Código de Processo Penal», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, fasc. 2º (Abril- -Junho/1998), p. 191. Na mesma linha, v. MANUEL LOPES MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 9ª edição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 487, embora não tão categórico, por apenas referir genericamente que “com o novo texto deste artigo ficaram revogados dispositivos da Lei nº 5/95”.
([87]) E não sendo possível a alternativa prevista no artigo 250º, nº 4, do CPP: apresentação de original ou cópia autenticada de documento que contenha o nome completo, a assinatura e a fotografia do titular.
([88]) Aliás, o artigo 250º, nº 2, do CPP impõe aos ditos órgãos de polícia criminal a comunicação ao identificando das circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação.
([89]) Assim já o declarou o Tribunal de Justiça acerca de controlos fronteiriços relativos à detenção de títulos de residência, quando sejam sistemáticos. No acórdão de 27 de Abril de 1989 (Caso Comissão c/ Bélgica, Recueil...cit., 1989-4, pp. 997-1012), considerou-se que tais controlos são susceptíveis de constituir entrave à livre circulação de pessoas “quando sejam praticados de forma sistemática, arbitrária ou inutilmente constrangedora”.