Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
491/11.4TAMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: PROCESSO ABREVIADO
AUTO DE NOTÍCIA
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP20111026491/11.4tamts-A.P1
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O Ministério Público pode deduzir acusação em processo abreviado, sem necessidade de realizar quaisquer diligências de investigação, quando, cumpridos os restantes requisitos legais [art. 391.º-A, do CPP], o processo contiver um auto de notícia.
II – Uma certidão extraída de outro processo não é um auto de notícia.
III – Se o Ministério Público deduziu acusação (em processo abreviado) apoiado unicamente nessa certidão, verifica-se a nulidade insanável de falta de inquérito [art. 119.º, alínea d), do CPP].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 491/11.4TAMTS-A.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1.Relatório
Nos autos de processo abreviado nº 491/11.4TAMTS, distribuídos ao 3º juízo criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, o Sr. Juiz proferiu despacho que julgou nula a acusação e determinou a devolução dos autos ao MºPº.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o MºPº, pretendendo a sua revogação e substituição por outro que receba a acusação e designe dia para julgamento, para o que formulou as seguintes conclusões:

1- Os factos em causa nos autos foram participados por autoridade judiciária;
2- Tal participação, materializada numa certidão extraída dum processo judicial, é, na sua verdadeira acepção, um auto de notícia;
3- Face a esse auto de notícia, há provas simples e evidentes de que resultam indícios suficientes de se ter verificado o crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º, nº 1, al. b), do Cód.Penal, e de que foi sua autora B…;
4- Pois a prova é essencialmente documental;
5- Acresce que, o crime imputado à arguida é punível com pena de prisão até 5 anos.
6- Assim, por estarem preenchidos todos os requisitos legais, e por imposição legal, deduziu-se acusação para julgamento em processo abreviado;
7- Não se verifica, portanto, qualquer motivo para a Mmª Juiz a quo, invocando a nulidade prevista no artº 119º, nº 1, al. d) (falta de inquérito), rejeitar a acusação pública;
8- Ao decidir dessa forma, a Mmª Juiz a quo violou o disposto nos arts. 119º, nº 1, al. d), 243º, nº 1, 311º, 312º, 391ºA e 391ºB, todos do Cód.Proc.Penal, e artº 348º, nº 1, al. b), do Cód.Penal.
9- Nestes termos, deve ser revogado o despacho recorrido e determinada a sua substituição por outro que receba a acusação e designe data para julgamento.

Não houve resposta.
O recurso foi admitido, tendo-se o Sr. Juiz limitado a ordenar a subida dos autos.
Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer, no qual considerou que, não havendo auto de notícia nem inquérito sumário, o inquérito padece efectivamente da nulidade insanável declarada na decisão recorrida, devendo o recurso ser rejeitado por manifesta improcedência.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.

2. Fundamentação

Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
- o inquérito que deu origem aos autos principais iniciou-se com uma certidão extraída de uns autos de execução instaurados pelo MºPº contra B… por se indiciar a prática pela executada de um crime de descaminho perante a informação prestada pelo encarregado da venda, na sequência de entraves que ela foi colocando à apresentação dos bens que haviam sido penhorados (conforme auto de penhora fotocopiado a fls. 5-8), de que ela já não os possuía por os ter vendido;
- em face dessa certidão, o MºPº ordenou a junção aos autos do B.I. da arguida, bem como requisição do respectivo CRC, e, posteriormente, de cópia certificada de outras peças processuais constantes daquele processo executivo, após o que deduziu acusação contra ela, em processo abreviado, imputando-lhe a prática de um crime de descaminho de objectos colocados sob o poder público, p. e p. pelo art. 355º do C. Penal;
- distribuídos os autos, foi proferido o despacho recorrido, que é do seguinte teor:

Deduziu o Ministério Público acusação contra a arguida B… imputando-lhe a prática de um crime de descaminho, requerendo o seu julgamento em processo especial abreviado, com fundamento nos factos descritos na acusação de fls. 51 e ss.
Dispõe o art. 391ºE do CPP que “recebidos os autos, o juiz conhece das questões a que se refere o art. 311º”.
Por sua vez, estatui o citado art. 311º nº 1 que “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que posse desde logo conhecer”.
Nos termos do art. 391ºA nº 1 do CPP que “em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.”.
Compulsados os autos, verifica-se que o presente procedimento se iniciou com a remessa de certidão extraída dos autos de execução nº 2925/07.3TAMTS que correm termos neste 3º juízo criminal deste tribunal.
Baseando-se exclusivamente nessa certidão referente ao acima indicado processo de execução, e sem quaisquer diligências de inquérito, a não ser a junção aos autos de “print” de BI e do CRC da arguida, foi deduzida a acusação em apreciação, para julgamento em processo abreviado.
Ora, em conformidade com o que dispõe o art. 391º A nº 1 acima transcrito extrai-se que o Ministério Público apenas e só poderá deduzir acusação em processo abreviado, sem a realização de inquérito sumário, quando existir auto de notícia.
A definição de auto de notícia dada pela lei processual penal encontra-se no art. 243º nº 1 do CPP que com essa mesma epígrafe, dispõe que “sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciaram qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem: a) os factos que constituem crime; b) o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; e c) tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos”.
O auto de notícia pressupõe, assim, que a autoridade policial ou a autoridade judiciária tenham presenciado os factos que constituem crime e só deve ser levantado quando tal sucede, razão pela qual vale como documento autêntico, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque (cfr. Código de Processo Penal Anotado, pág. 616).
E é por essa razão que, no âmbito do processo abreviado, o Ministério Público só está dispensado de realizar inquérito sumário quando existe auto de notícia. O que se compreende, se atendermos que o processo abreviado deve ser a forma de processo utilizada quando há “provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente”, dispondo, em concretização desse conceito, o nº 3 que tal sucede “quando a) o agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efectuar-se sob a forma de processo sumário; b) a prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação; ou c) a prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos”.
Porém, quando inexiste auto de notícia, é obrigatória a realização de inquérito sumário, o que sucederá, além do mais, nos casos previstos nas als. b) e c) nº 1 do transcrito art. 391º A do CPP.
Por outras palavras: quando o processo se inicia com um auto de notícia, o Ministério Público pode deduzir acusação em face simplesmente do auto de notícia, sem qualquer outra diligência de inquérito e até mesmo sem que o arguido seja interrogado.
Assim, contudo, já não acontecerá quando não há qualquer auto de notícia, pois que nesse caso, haverá que proceder a inquérito sumário. E havendo lugar a inquérito, nele se contará, como obrigatório, o interrogatório de arguido e a sua constituição como tal, tudo em obediência ao que dispõe o art. 272º nº1 do CPP [1].
E bem se compreende a diferença de regimes: é que se nos casos em que há auto de notícia, além de o ilícito indiciado ter sido presenciado por autoridade, há necessariamente constituição como arguido do denunciado, nos demais casos, a aquisição da notícia do ilícito carece de alguma confirmação, na qual se sustente a afirmação da existência de indícios suficientes que fundamentem a decisão de deduzir acusação.
Aliás, a suficiência de indícios aferida em função do auto de notícia ou do inquérito sumário – suficiência essa que não é sindicável pelo juiz de julgamento aquando da prolação do despacho a que alude o art. 311º e 391º C do CPP, por força da estrutura acusatória do processo penal português -, com a revisão operada pela lei 48/07, de 29/8, que veio abolir a possibilidade de o arguido requerer a instrução no âmbito do processo abreviado, autoriza que do Ministério Público sejam exigidos maiores e particulares cuidados e cautelas na utilização desta forma de processo, porquanto ao arguido não é concedida qualquer possibilidade de contrariar a decisão de acusar, sem que seja submetido a julgamento. Cuidados e exigências essas que não ficam minimamente satisfeitas se não for a acusação precedida – quando inexiste auto de notícia – de um conjunto abreviado e sumário de diligências tendentes a apurar da existência do ilícito, entre as quais se contam, estamos em crer, e como obrigatório, o interrogatório do denunciado em obediência ao que dispõe o art. 272º nº 1 do CPP, o que no presente caso também não sucedeu.
Ora, no presente caso, não só o ilícito acusado à arguida não foi presenciado pela autoridade policial ou judiciária, inexistindo, consequentemente, qualquer auto de notícia, como não foi realizado qualquer inquérito sumário de onde se extraia a manifesta simplicidade e evidência da prova em que se baseia a acusação, e que fundamente a afirmação da existência de indícios suficientes por ela pressuposta e que, repetimos, não se está, nesta sede sequer a apreciar (muito embora o juiz de julgamento possa aferir e apreciar, no despacho a que alude o art. 391ºE se a prova em que se funda a acusação em processo abreviado constitui prova simples e evidente, no sentido de apurar se estão verificados os pressupostos do art. 391ºA para a dedução de acusação em processo abreviado – cfr. neste sentido, Anabela Rodrigues, in RPPC, III, pág. 245).
O que significa que não tendo sido realizadas quaisquer diligências de inquérito, sendo no caso obrigatória a realização de inquérito sumário, por inexistir auto de notícia do ilícito acusado, verifica-se a nulidade prevista no art. 119º al. d) do CPP.
A falta de inquérito, além de constituir nulidade insanável, é do conhecimento oficioso, é susceptível de ser conhecida em qualquer fase do procedimento (art. 119º nº 1 do CPP) e torna a acusação deduzida nula, bem como os termos subsequentes do processado, designadamente a remessa dos presentes autos a este juízo, enquanto actos dela dependentes e por ela afectados, tudo nos termos previstos no art. 122º nº 1 e 2 do CPP, o que ora se julga.
*
Nestes termos, e por tudo o exposto, por verificação da nulidade a que alude o nº 1 al. d) do art. 119º do CPP, julgo nula a acusação deduzida nos autos, bem como a remessa do processo a este juízo, pelo que, consequentemente, determino a devolução dos autos ao Ministério Público para subsequente tramitação do processado em conformidade com o decidido.
Notifique.

3. O Direito
O objecto do recurso, tal como delimitado pelas conclusões da recorrente, circunscreve-se à questão de determinar se no caso não existia fundamento para a rejeição da acusação, em concreto por verificação da nulidade insanável prevenida na al. d) do nº 1 do art. 119º do C.P.P.

O recorrente sustenta que a participação, efectuada por autoridade judiciária e materializada numa certidão extraída de um processo judicial, é um auto de notícia. Além disso, existindo provas simples e evidentes de que resultam indícios suficientes de se ter verificado o crime de descaminho[2] e de que foi sua autora a arguida na medida em que a prova é essencialmente documental, e sendo o crime que lhe foi imputado punível com pena de prisão até 5 anos, verificam-se todos os requisitos legais de que depende a utilização do processo abreviado, não havendo motivo para que, com invocação da nulidade acima aludida, tivesse sido rejeitada a acusação.

Subjacentes à criação da forma de processo abreviado estiveram razões de celeridade, obtida através da compressão ao mínimo das fases preliminares ao julgamento, sem prejuízo da garantia de que este decorra no geral com o formalismo próprio do processo comum, pretendendo-se uma rápida submissão a julgamento da pequena e média criminalidade relativamente à qual existam provas recentes e evidentes do crime.
Os pressupostos do processo abreviado estão condensados no art. 391º-A do C.P.P.[3], cuja redacção é a seguinte:
"1 – Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.
2 – São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número anterior, os crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se que há provas simples e evidentes quando:
a) O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder efectuar-se sob a forma de processo sumário;
b) A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto para a dedução de acusação; ou
c) A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.”
Assim, o emprego desta forma de processo especial depende – para além da observância do prazo estabelecido no nº 2 do art. 391º-B para o termo final do inquérito - da moldura abstracta do crime ou crimes em causa ( que não pode exceder os 5 anos de prisão, considerada individualmente quando se verifique concurso de infracções ), da existência de auto de notícia ou, na sua falta ou insuficiência, de inquérito sumário, e destes elementos se recolherem provas simples e evidentes ( de acordo com uma das hipóteses enumeradas no nº 3 do preceito ), das quais resultem indícios suficientes da prática do crime ou de quem foi o seu agente.
Verificados os demais pressupostos, temos assim que o MºPº pode deduzir acusação em processo abreviado sem necessidade de realizar quaisquer diligências de investigação (e, obviamente, também de proceder ao interrogatório do/s arguido/s) quando os autos contiverem um auto de notícia – caso excepcional que se integra nos que vêm genericamente ressalvados no nº 2 do art. 262º - precisamente porque os autos desta natureza, desde que obedeçam às prescrições legais, gozam da força probatória conferida aos documentos autênticos ou autenticados, ou seja, fazem prova plena dos factos que deles constam enquanto a sua autenticidade ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postos em causa (cfr. art. 169º). Para ter esta especial força probatória, o auto de notícia terá de corresponder ao conceito acolhido no nº 1 do art. 243º: ter sido levantado ou mandado levantar por uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial que hajam presenciado – termo que “terá de ser interpretado de forma a nele incluir toda a comprovação pessoal e directa se bem que não imediata, podendo nele incluir o “imediatamente antes” como integrando o “momento” da prática dos factos”[4] - um qualquer crime de denúncia obrigatória.
Inexistindo auto de notícia (ou não abrangendo este todos os factos relevantes para a imputação do crime ou crimes indiciados), haverá que realizar inquérito sumário. Ou seja, neste caso aplica-se a regra geral da obrigatoriedade do inquérito, apenas com a particularidade de que este será o mais breve e reduzido possível. Só assim se compreende a disjuntiva utilizada pelo legislador na norma do nº 1 do art. 391º-A: o MºPº deduz acusação para julgamento em processo abreviado “em face do auto de notícia ou após realizar inquérito sumário”. Ainda que reduzido ao essencial, esse inquérito deverá cumprir a finalidade assinalada no nº 1 do art. 262º - “investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação” – não vislumbrando nós nenhum fundamento para, neste caso, afastar a obrigatoriedade de interrogatório do arguido que o nº 1 do art. 272º impõe sempre que corra inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e que só é dispensada quando não seja possível notificá-la.

Analisemos, agora, à luz do quadro traçado, o que sucedeu no caso sub judice.
Desde logo, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, temos como inequívoco que a certidão com que se iniciaram os autos de inquérito não é um auto de notícia. Embora a sua extracção tenha sido ordenada por uma autoridade judiciária, certo é que a mesma não presenciou o crime, no sentido que acima foi precisado. Limitou-se a constatar a falta de apresentação dos bens pela executada – que não a fiel depositária dos mesmos[5] como erradamente vem alegado na acusação, se bem que tal qualidade não seja exigida pelo tipo legal de crime que lhe foi imputado já que o respectivo agente “pode ser qualquer pessoa, inclusivamente o proprietário do objecto em questão”[6] –, transmitida pelo encarregado da venda e acompanhada da informação de que ela lhe havia dito que já não possuía os bens porque os havia vendido, tendo sido estes os elementos que levaram a considerar haver indícios da prática do crime de descaminho, justificativos da instauração de procedimento criminal. Ao fim e ao cabo, a notícia do (eventual) crime foi alcançada através de uma informação prestada por um particular. E, embora a certidão em causa constitua um dos meios de prova a apreciar em julgamento, é muito duvidoso que o seu concreto conteúdo baste para integrar a evidência probatória que permite considerar suficientemente indiciada a prática do crime, consubstanciado no caso num acto de disposição onerosa dos bens penhorados (integrador da subtracção dos mesmos ao poder público a que se encontravam sujeitos) quando os únicos indícios da sua verificação se resumem a uma informação muito sucinta veiculada por escrito pelo encarregado da venda. Não foi certamente por acaso que o MºPº não se limitou a indicar prova documental, antes veio indicar também prova testemunhal, oferecendo esse mesmo encarregado da venda como testemunha.
De todo o modo, inexistindo auto de notícia, havia que proceder a inquérito sumário. O que manifestamente não foi feito, pois nenhuma diligência de investigação (não se podendo considerar como tal a mera junção seja de peças adicionais extraídas do mesmo processo executivo de onde provinha a certidão que iniciou os autos de inquérito, seja de elementos que apenas têm a ver com a identificação da arguida e respectivo passado criminal) foi levada a cabo[7].
Ocorrendo uma falta total de inquérito, quando a sua realização era obrigatória em virtude de não existir auto de notícia, verifica-se a nulidade insanável prevista na al. d) do art. 119º, tal como considerado no despacho recorrido e com as consequências aí indicadas.
Inexistem, pois, razões para censurar ou alterar o que foi decidido.

4. Decisão
Pelo exposto, julgam o recurso improcedente e, em consequência, mantêm integralmente o despacho recorrido.
Sem tributação.

Porto, 26 de Outubro de 2011
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
____________
[1] Cfr. não sustentado embora directa e inequivocamente a obrigatoriedade que aqui defendemos da realização de inquérito sumário nos casos em que inexiste auto de notícia, cfr. Helena Leitão, “Processos Especiais: os processos sumário e abreviado no Código de Processo Penal (após a revisão operada pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto”, pág. 16 in http://www.cej.mj.pt/cej/forma-continua/forma-continua-activid.php, segundo a qual “ainda assim, em casos específicos, designadamente quanto a notícia do crime tenha sido alcançada através de denúncia formulada por particulares, deverá haver lugar à abertura de inquérito e à realização de diligências probatórias em processo abreviado, sob pena de prática de nulidade insanável, prevista no art. 119º al. d).” Neste sentido ainda, Luís Silva Pereira, “Os processos especiais no Código de Processo Penal após a revisão de 1998”, in RMP, ano XX, nº 77, pág. 148)
[2] Por lapso que resulta manifesto aludiu-se a um crime de desobediência na conclusão 3ª, quando o crime imputado à arguida foi, sim, o de descaminho.
[3] Diploma ao qual pertencerão os preceitos adiante citados sem menção especial.
[4] cfr. Ac. RC 2/11/05, proc. nº 2842/05.
[5] Uma leitura minimamente atenta do auto de penhora cuja cópia consta de fls. 5-8 evidencia claramente que foi o cônjuge da ali executada, C..., a pessoa que foi nomeada fiel depositária dos bens penhorados. E que não foi ouvido nem achado, seja na execução, seja nos autos de inquérito…
[6] Como salientado no Comentário Conimbricense do Código Penal, t. III, pág. 423.
[7] Refira-se, a latere, que no presente caso até nos parece que o interrogatório da arguida se revestia de muito interesse, não só para tentar averiguar o concreto destino que ela terá dado aos bens, nomeadamente se a venda em questão teve lugar e em que circunstâncias foi efectuada, bem como – e aqui há que salientar que os processos não são nem podem ser encarados como meros números para efeitos de estatística – as razões pelas quais assim terá procedido (“para dar de comer aos filhos” quando ela e o marido se encontravam desempregados? - explicação que o encarregado da venda indicou como tendo sido a que ela lhe forneceu) em ordem a ponderar se se justificava a suspensão provisória do processo, tendo em conta, ademais, que, de acordo com o CRC junto aos autos, se trata de uma delinquente primária.